Open-access Desafios na gestão municipal do Sistema Único de Saúde no município de São Paulo

RESUMO

A implementação de políticas de saúde que assumam como objetivo a consecução dos princípios de solidariedade do Sistema Único de Saúde é uma tarefa gigantesca, com desafios renovados a cada dia, especialmente no município de São Paulo, que é marcado por uma profunda desigualdade social. Dentre os muitos desafios, o presente texto aborda: a rede de atenção à saúde e a gestão da Secretaria Municipal de Saúde, incluindo o financiamento; a Atenção Primária à Saúde na rede de saúde; e a posição estratégica de ações intersetoriais. A gestão da saúde precisa ser capaz de traduzir as demandas e necessidades da população paulistana em um sistema de saúde público, eficiente, acolhedor, democrático e ousado, de forma intersetorial e interfederativa, para melhorar a situação de saúde dos paulistanos e construir uma cidade menos desigual e mais justa.

PALAVRAS-CHAVE: Sistema Único de Saúde; Políticas de Saúde; Serviço de Saúde; Município de São Paulo

ABSTRACT

The implementation of health policies aimed at achieving the solidarity principles of the Unified Health System (SUS) is a monumental task, with renewed challenges every day, especially in the municipality of São Paulo, marked by profound social inequality. Among the many challenges, this text addresses: the health care network and management of the Municipal Health Departments, including financing; Primary Health Care in the health network; and the strategic position of intersectoral actions. Health management needs to be capable of translating the demands and needs of the population of São Paulo into a public health system efficient, welcoming, democratic, and bolded, in an intersectoral and intergovernmental manner, to improve the health situation of São Paulo residents and build a less unequal and fairer city

KEYWORDS: Unified Health System; Health Policies; Health Service; Municipality of São Paulo

Introdução

São paulo é uma cidade superlativa, independentemente do ângulo escolhido para a análise. Em seu território vivem 11.451.999 habitantes, um número que supera o de muitos países. Sem dúvida, é a grande metrópole nacional ocupando a posição de maior hierarquia urbana do país, com uma rede de influência que chegava a 49 milhões de habitantes em 2018, e respondendo sozinha por 9,2 % do Produto Interno Bruto brasileiro em 2021 (IBGE, 2022. No entanto, essa riqueza não é acessada pelo conjunto da população. Diversos autores demonstram que o desenvolvimento econômico da metrópole paulista e sua inserção no circuito global da economia não se traduziu em desenvolvimento social. Pelo contrário, o que aconteceu foi exatamente o inverso, pois para assumir o papel da grande metrópole brasileira, dado o modelo de acumulação vigente, baseou-se em um modelo de desenvolvimento pautado pela intensificação e manutenção dos processos sociais de exclusão (Lencioni, 1998; Santos, 1990; Santos, 1994; Santos; Silveira, 2001, Marques, 2014)

Desse modo, a implementação de políticas de saúde que assumam como objetivo a consecução dos princípios de solidariedade do Sistema Único de Saúde (SUS), tão bem expressos na tríade “Universalidade, Integralidade e Equidade”, é uma tarefa gigantesca, com desafios renovados a cada dia. O padrão de desigualdade social é marcante na cidade e se espelha, no caso da saúde, tanto no modo em que seus habitantes acessam os serviços de saúde bem como nos padrões de mortalidade, como ficou claro na pandemia de Covid-19, quando se observou um gradiente positivo de mortalidade afetando as populações negras e/ou com piores indicadores sociais (Ribeiro et al., 2021). Além disso, demonstra que o sistema de saúde foi incapaz de cumprir um de seus grandes objetivos, que é o de impedir, ou diminuir substantivamente, o efeito das iniquidades estruturais nos resultados de saúde vivenciados pela população.

Essa incapacidade do sistema aconteceu a despeito da oferta de serviços de saúde no município de São Paulo (MSP), que é o município com o maior número e variedade de estabelecimentos e profissionais de saúde do país (IBGE, 2020).

Pensar a saúde como uma política pública de corte social no MSP, ante as características apresentadas nos parágrafos anteriores, significa reafirmar o SUS como política capaz de contribuir para a construção de uma sociedade mais igualitária.

Vale ressaltar que discutir os inúmeros problemas de saúde, os novos e os persistentes, no MSP, é uma tarefa impossível de ser realizada em poucas páginas. Assim, temos como objetivo refletir sobre alguns temas que consideramos importantes no debate sobre a saúde no MSP e que precisam se enfrentados pela administração municipal. Nesse sentido, o presente texto abordará: a rede de atenção à saúde e a gestão da Secretaria Municipal de Saúde, incluindo o financiamento; a Atenção Primária à Saúde na rede de saúde; e a importância de intersetorialidade para melhoria da situação de saúde da população, tomando como exemplo as políticas de saúde para a população idosa.

A rede de atenção à saúde e a gestão da Secretaria Municipal de Saúde

O número de serviços de saúde no MSP, informado no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, atinge o espantoso número de 19.716 unidades, das quais 12.291 são consultórios individuais e 1.393 são vinculados ao SUS. Esse conjunto de equipamentos caracteriza o MSP como um importante centro de atração de pessoas em busca de cuidados de saúde; sua influência atravessa as fronteiras tanto da região metropolitana quanto do estado. O peso do setor privado da saúde é muito significativo, tanto no número de equipamentos quanto na força de trabalho. Essa complexa relação público-privado traz inúmeros constrangimentos para a consecução de políticas de saúde equânimes e integrais. Só como exemplo, os transplantes e atendimento para queimados são praticamente exclusividade do SUS; por outro lado, os leitos cirúrgicos de algumas especialidades médicas são eminentemente direcionados à clientela privada (Bahia; Scheffer, 2018).

A rede municipal é numerosa e diversa (Tabela 1); no entanto, observa-se um grande peso da Secretaria de Estado da Saúde (SES-SP) na oferta de serviços aos paulistanos, especialmente os hospitalares. Tomando por referência outubro de 2023, 53,5% das internações de residentes no MSP pelo SUS foram realizadas em serviços estaduais, percentual que chega a 75,3% nas internações de alta complexidade. Padrão semelhante é observado em consultas de diversas especialidades, como cardiologia, oncologia clínica, geriatria, entre outras (Datasus, 2024a; PMSP, 2024a).

Tabela 1
Estabelecimentos de saúde da SMS-SP, dezembro de 2023

Esse quadro deixa claro que a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo (SMS-SP), por um lado, tem um conjunto de unidades de saúde, em número e complexidade, maior do que o existente em qualquer outro município brasileiro; por outro, enfrenta inúmeros desafios para gerir e coordenar os inúmeros atores envolvidos na oferta de serviços de saúde no MSP. Os intensos fluxos com os munícipios da região metropolitana, a grande participação do setor privado, tanto o filantrópico quanto o com fins lucrativos, somada a forte presença assistencial da SES-SP, cobram que novos mecanismos de governança sejam criados, o que sem dúvida é um imenso desafio para a gestão municipal. Os processos de Regionalização e Governança precisam ser ativados para permitir a organização de sistemas micro e macrorregionais, intra e extramunicipais, que envolvam os diversos atores sociais, gestores municipais, estaduais e federais; prestadores de serviços próprios, conveniados e contratados; trabalhadores do SUS, conselheiros de saúde, usuários, pesquisadores e outros interessados, na efetiva pactuação e organização dos fluxos assistenciais.

Outro aspecto central na gestão da SMS-SP, e que não pode deixar de ser desenvolvido no presente texto, é a significativa presença de Organizações Sociais de Saúde (OSS) como gestoras de equipamentos de saúde municipais. Atualmente, a gestão por OSS de serviços de saúde está presente em diversos municípios brasileiros; no entanto, vale lembrar que o MSP foi o primeiro a utilizar essa modalidade de gestão para equipamentos de Atenção Primária à Saúde (APS).

As parcerias público-privadas no MSP iniciaram pelos serviços da APS em 1995, antes mesmo da criação da regulamentação das OSS no país em 1998. Em 2001, as parcerias com as OSS foram utilizadas pela SMS-SP para ampliar a rede de APS, sobretudo nas regiões periféricas do município. À época foram firmados convênios com 12 OSS, que foram progressivamente substituídos por Contratos de Gestão (CG).

Até 2014, os CG eram firmados a partir de uma lógica territorial para os serviços de APS. Os demais equipamentos da rede eram contratualizados e/ou conveniados através de acordos próprios, aumentando a fragmentação da gestão da rede (Coelho; Marcondes; Barbosa, 2019).

Desde 2015, dois formatos de contratação das OSS são utilizados no MSP. O primeiro é remanescente dos anos anteriores e utilizado para parcerias nas quais o objeto de gestão são os hospitais. No segundo, o município foi dividido em 23 áreas geográficas nas quais foi aberto um chamamento público para a gestão das chamadas “Redes Assistenciais das Supervisões Técnicas”. Nesse formato, a OSS faz a gestão não somente dos serviços de APS, mas também de outros equipamentos de Atenção Especializada (AE), de urgência e emergência e até mesmo de alguns hospitais. Em 2024, estas áreas estão sob gestão de onze OSS.

É importante mencionar que a existência de variadas entidades gestoras, especialmente sem uma robusta regulação estatal, leva ao que se poderia chamar de “vários SUS” no MSP. Souza (2019) analisou indicadores de estrutura, processo e resultados a partir dos dados do segundo ciclo do Programa Nacional para Melhoria do Acesso e Qualidade da Atenção Básica. A autora observou diferenças nos indicadores de processo e resultados, entre as distintas OSS, ficando claro os graus de liberdade das entidades na execução das políticas. Como exemplo, o indicador que aferia o rol de procedimentos realizados, demonstrou que o percentual de unidades que inseriam DIU variava de 0% na OSS Santa Catarina, com perfil religioso, até 88% nas UBS gerenciadas naquele período pela Fundação Faculdade de Medicina da USP.

Sem dúvida, essa característica da gestão do MSP contribui para aumentar a fragmentação do sistema de saúde, e deixa claro o protagonismo do ator político privado, o que pode resultar em efeitos de lógicas mercantilizadas e gerencialistas na oferta de serviços de saúde e na produção do cuidado. Nesse cenário é preciso aprimorar os processos regulatórios da relação público privada, de forma a garantir a intencionalidade e o controle público do sistema de saúde.

Esse crescimento da gestão das OSS se reflete nos vínculos da força de trabalho. O número de trabalhadores contratados por OSS atinge o percentual de 76,1%, chegando a 95,6% na APS e 76,1% na Atenção Especializada (AE) (Tabela 2).

Tabela 2
Trabalhadores da saúde do MSP por agente contratante, junho de 2023

Vale ressaltar que esse processo não é exclusivo da SMS-SP e atinge todo o estado, embora em menor proporção. Quanto à gestão do trabalho, o MSP registrou, em 2023, 405.887 vínculos de trabalho ativos nos estabelecimentos de saúde. Desse total, 59% expressam postos de trabalho vinculados ao SUS, dos quais a maior proporção (47%) corresponde à força de trabalho mediada por um agente contratante que não o próprio estabelecimento de saúde, como uma OSS. Na APS, a proporção de vínculos intermediados de médicos e profissionais da enfermagem é superior à 90%. Ademais, a contratação autônoma via pessoa jurídica, com ou sem contratação por empresa intermediária tem ganhado espaço no município, especialmente para a contratação de médicos.

Esses dados refletem o processo de terceirização da força de trabalho em saúde, e, por consequência, a existência de diversas relações contratuais, muitas delas desprotegidas e associadas à piora das condições laborais e salariais, à precarização dos direitos trabalhistas e previdenciários e ao enfraquecimento da capacidade de mobilização reivindicatória dos trabalhadores. Para Druck (2016), esse fenômeno indica a renúncia do Estado à sua responsabilidade social e escancara a promiscuidade das relações entre o público e o privado.

Outro aspecto central na gestão é, sem dúvida, o financiamento e o gasto da saúde, para analisá-los deve-se referir ao Fundo Municipal de Saúde (Fumdes), da SMS, criado em 1990. (Souza; Mendes, 2003). O Fumdes foi estabelecido de forma a criar condições financeiras e de gerenciamento de recursos destinados ao desenvolvimento de ações e serviços de saúde, de forma autônoma pela SMS-SP.

Para se ter uma ideia, mais geral, da dimensão de aplicação dos recursos em saúde, tomemos 2023, quando é necessário observar, antes de tudo, o total da receita de impostos, compreendidas as transferências constitucionais do município, R$ 65,5 bilhões, e, daí, verificar o gasto do Fumdes em ações e serviços públicos em saúde (ASPS) liquidado nesse ano, R$ 16,0 bilhões. Nota-se, então, um percentual de aplicação mínimo em ASPS de 24,4% (PMSP, 2024b), um pouco inferior da aplicação média verificada no total dos 645 municípios do Estado de São Paulo (26,4%) (Siops, 2024). Se refletirmos sobre a magnitude do MSP, cabe alertar que o nível de aplicação dos recursos em saúde é ainda insuficiente.

Ao se analisar as fontes dos recursos do gasto em saúde, em 2023, considerando a totalidade desse gasto - empenhado (R$ 20,4 bilhões) - na Secretaria Municipal (incluindo o Fumdes e o Hospital do Servidor Público Municipal (HSPM) que não é considerado ASPS), registra-se que: a maior parte é proveniente da fonte do Tesouro municipal (85%); seguido das Transferências federais (14%); e, de forma irrisória, das Transferências estaduais (0,4%) e outros (0,1%) (PMSP, 2024b). Portanto, a maior responsabilidade para realizar a saúde na SMS-SP é do prefeito ao alocar parte das receitas de impostos e transferências constitucionais. Por sua vez, não é desprezível a quantidade de recursos que provêm do Ministério da Saúde, o que deve constituir uma preocupação importante na relação entre a secretaria municipal e esse órgão federal.

É fundamental mencionar que a participação das fontes dos recursos no gasto total da SMS-SP, em 2023, se mantém, de maneira geral, no mesmo patamar em todos os anos das últimas décadas, particularmente desde 2010. O interessante para análise nesse período (2010 - 2023) é constatar que a participação da fonte Tesouro Municipal foi aumentando e que a fonte das Transferências Federais foi diminuindo. Esse quadro demonstra que o gasto em saúde no MSP foi se tornando de maior responsabilidade do gestor do município, à medida que a diminuição das Transferências federais pode ser explicada pelo quadro de subfinanciamento e desfinanciamento dos recursos do Ministério da Saúde (Mendes, 2022). Assim, torna-se imperativo o caráter do compromisso do gestor municipal dessa grande metrópole com o SUS local.

No tocante à direção do gasto em saúde da SMS-SP, observa-se que, em 2023, a APS e a Assistência Hospitalar e Ambulatorial respondem pela maior parte desse gasto total, sendo R$ 9,0 bilhões (44%) e R$ 6,8 bilhões (33%), respectivamente (PMSP, 2024b).

O gasto destinado às OSS foi de R$ 12,8 bilhões, sendo 63% do gasto total da SMS-SP, em que à OSS Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina correspondeu a 27% destes (PMSP, 2024b).

Ademais, ao analisar a participação relativa dos recursos destinados para as OSS em relação ao total dos recursos empenhados do Fumdes, sem o HSPM, observa-se que, em 2023, foi de 80%. Na realidade, percebe-se uma tendência de crescimento nessa participação relativa ao longo do período entre 2010 e 2023. A rigor, em termos percentuais, os valores repassados, em relação ao total dos recursos empenhados do Fumdes vão atingindo um patamar cada vez mais significativo, passando de 20,1%, em 2010, para 50,2%, em 2016, 62%, em 2020, até alcançar 80%, em 2023.

Diante desse quadro, pode-se compreender que o desenvolvimento do SUS no município de São Paulo se faz, desde seu nascedouro, por práticas incrementalistas da lógica privada sob a gestão pública, em especial na APS. Nesse sentido, o Fundo de Saúde passa a estar, em grande medida, a serviço dos interesses mais afeitos ao fortalecimento do setor privado.

Nesse contexto, é possível perceber que os recursos do Fundo de Saúde passam a ser cada vez mais apropriados por essas entidades de caráter privado, explicitando o movimento da saúde no MSP, marcado pela lógica de ampliação dos mecanismos de mercado. Isso porque nota-se a intensificação do modo pelo qual esses recursos são orientados pelo cumprimento de metas quantitativas de produção de serviços, conforme estabelecidas nos contratos de gestão, distanciados da lógica de uma melhoria da saúde para o conjunto da população.

A APS na rede de serviços de saúde do município de São Paulo

A análise da rede de APS é mandatória na escala municipal, pois todos os municípios, independentemente de seu porte, devem oferecer serviços de APS à sua população. Apesar de persistirem inúmeros problemas para que a APS brasileira possa assumir todo seu potencial e se configurar como uma APS forte, ordenadora da rede de atenção, com sólida e ampliada dimensão comunitária e familiar, associada a uma prática clínica robusta, os avanços obtidos nos últimos 30 anos com a expansão em todo o território nacional da Estratégia de Saúde da Família (ESF) são inegáveis e reconhecidos internacionalmente.

A organização dos serviços e ações de APS e sua integração aos outros níveis de atenção, garantindo seu papel de coordenado do cuidado, é ponto central para a garantia da integralidade. Essa organização para ser efetiva necessita de planejamento, monitoramento e avaliação incorporados no cotidiano da gestão.

A rede da APS do MSP, seguindo o movimento nacional, expandiu consideravelmente nos últimos 23 anos. Em 2001, a rede de APS contava com 135 UBS municipais, além de 224 equipamentos estaduais e federais, desproporcionalmente concentrados em áreas com as melhores condições socioeconômicas. Em 2004, já eram 382 UBS sob gestão municipal, aumento fruto tanto da municipalização da rede estadual quanto da construção de novas unidades, quantitativo que chega a 451 em 2016. Como já descrito anteriormente essa expansão se deu através da ampliação do contrato ou convênio com OSS.

Coelho et al. (2019) analisaram a expansão da rede de APS no município entre 2001 e 2016 e identificaram que houve uma diminuição da desigualdade espacial na distribuição das UBS, o que não é uma situação trivial, dadas as inúmeras dificuldades para garantir UBS nas periferias de cidades como São Paulo. Os autores analisam essa mudança a partir do referencial teórico de accountability e demonstram que as dinâmicas locais e os incentivos que passaram a ser oferecidos a políticos, gestores e prestadores de serviços para que priorizassem as periferias, podem explicar o fenômeno. As análises apontam que as fortes disputas eleitorais no período, nas quais se observa forte demanda por respostas dos eleitores, o papel dos conselhos de saúde e dos contratos entre o governo federal e o município, e entre esse último e as OSS, contribuíram para essa mudança no padrão de distribuição espacial (Coelho et al., 2019).

Em dezembro de 2023, o MSP conta com 469 UBS. No entanto, como pode ser observado na Figura 1, existem diferenças tanto na cobertura quanto na modalidade de atendimento oferecida nos diversos Distritos Administrativos (DA). Bousquat et al. (2006) analisaram a dinâmica de implantação do então PSF identificando um padrão que esses serviços eram especialmente oferecidos nos distritos mais periféricos da cidade. Os mapas A e B da Figura 1 demonstram que esse padrão se mantém, ao menos em parte. No mapa A, é possível visualizar a distribuição por quintis da cobertura da ESF, os maiores percentuais, inclusive acima da média nacional, são observados em distritos periféricos, no sentido oposto os distritos centrais, no geral, estão classificados nos dois primeiros quintis. No mapa B, à cobertura da ESF soma-se a oferecida por equipes de atenção primária, o padrão de distribuição é bastante semelhante, no entanto os valores percentuais são evidentemente mais elevados. Apesar dessa cobertura, a população enfrenta tempos médios longos para conseguir o agendamento de uma consulta (Mapa C), apenas, no primeiro quintil, ou seja, em 20% dos DA, esse tempo é inferior a 19,3 dias em média. Em mais de 20% dos DA esse tempo supera os 30 dias. Este é, sem dúvida, um indicador de que a gestão precisa qualificar e melhorar a oferta de serviços, a existência da UBS é condição primeira, mas não suficiente para a oferta de uma APS com os predicados apresentados no primeiro parágrafo desta seção.

Mesmo a APS mais resolutiva necessita muitas vezes que seus usuários naveguem pelos outros níveis do sistema. No Mapa D são visualizados os tempos médios de espera dos usuários para consulta médica especializada, que são muito altos em todos os DA, o menor valor foi de 28,8 dias e o maior de 121,2 dias, o que pode impactar seriamente na saúde dos usuários. Não foi possível o acesso a estes dados distribuídos por especialidades, pois certamente em alguns casos as esperas são muito maiores.

Figura 1
Cobertura populacional estimada para (A) Estratégia de Saúde da Família e para (B) Atenção Básica, (C) tempo médio de espera para atendimento na Atenção Básica e (D) tempo médio de espera para atendimento na Atenção Especializada segundo Distrito de atendimento por quintis, Município de São Paulo, 2023.

Ademais, o aumento descrito anteriormente de UBS na periferia não diminui necessariamente as inúmeras desigualdades socioespaciais existentes no MSP, tomemos por exemplo o caso da Saúde Bucal. A provisão do cuidado odontológico na rede de APS é caracterizada pelo subdimensionamento da sua estrutura. Dados do Ministério da Saúde indicavam uma cobertura potencial de apenas 25% da população residente estimada para o ano de 2021 (Brasil, 2024).

Isso decorre do baixo grau de priorização das políticas de saúde bucal na cidade cuja consequência é um volume insuficiente de recursos financeiros destinados para a área. Ao se examinar a distribuição de um dos principais recursos para provimento do cuidado odontológico que são os cirurgiões-dentistas vinculados aos estabelecimentos da rede de APS, verificam-se agudas disparidades entre os DA.

Considerando não apenas a carga horária das ocupações típicas da APS, mas também outras ocupações que asseguram cuidados que podem ser ofertados na APS, observou-se uma distribuição por quintis bastante desigual dessa força de trabalho pelos diferentes distritos (Figura 2).

Em apenas um quinto dos distritos, o número de cirurgiões-dentistas 40 horas por 100 mil habitantes era igual ou superior a 21,9; o que significava um profissional para cerca de 4,5 mil habitantes, ainda assim uma relação inferior a adotada para estimar a cobertura potencial da ESF (3.450 habitantes). Cabe destacar que em 40% dos distritos, esse valor era duas vezes menor (11,3), ou seja, um profissional para cerca de 8,8 mil habitantes.

Ainda que seja considerada a população que depende exclusivamente do SUS, delimitada entre aqueles moradores de domicílios com renda per capita de até dois salários-mínimos, 40% dos distritos apresentavam uma relação bastante desfavorável variando de 8,4 a 21,5 cirurgiões-dentistas 40 horas por 100 mil habitantes (Figura 2). Deve-se ressalvar que algumas das ocupações consideradas podem estar vinculadas a unidades de atenção especializada conforme as características da rede em cada território, sugerindo que o quadro pode ser ainda mais injusto se admitirmos resultados de estudos anteriores que têm demonstrado que as necessidades de cuidado odontológico se concentram nos distritos afastados da área central (Antunes et al., 2002; Antunes et al., 2001; Peres et al., 2010).

Figura 2
Distribuição de Cirurgiões-dentistas 40 horas/ 100 mil habitantes (A) Cirurgiões-dentistas 40 horas/ 100 mil habitantes com renda até dois salários mínimos (B), segundo Distrito por quintis, Município de São Paulo, janeiro de 2024.

Como os recursos públicos odontológicos têm sido historicamente subfinanciados e subdimensionados na cidade de São Paulo, em relação às necessidades de cuidados à população, predomina uma resposta tardia e centrada na dor, com forte caráter mutilador-curativista, cuja consequência é uma elevada taxa de perda dentária precoce.

Dados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2019 mostraram que cerca de 15% da população paulistana de 18 ou mais anos de idade tinham perdido metade dos dentes. Essa porcentagem era mais elevada entre as mulheres e entre aqueles que moravam em domicílios com renda per capita de até dois salários-mínimos. De cada quatro adultos com 60 ou mais anos de idade, dois tinham perdido metade dos dentes e um apresentava todos os dentes perdidos (Brasil 2020).

A diminuição da magnitude de ocorrência da cárie dentária na cidade em decorrência do acesso a água tratada e fluoretada, e ao dentifrício fluoretado (Narvai et al., 2000), não tem correspondido a mudanças nos padrões de acesso aos serviços, tampouco ao tipo de cuidado ofertado, podendo-se projetar uma transição da saúde bucal mais como efeito de mudanças entre as gerações em decorrência do impacto acumulado de políticas de uso de fluoreto para prevenção da cárie (Nascimento et al., 2013) do que de políticas para assegurar a detecção precoce e o diagnóstico/tratamento oportuno das doenças e agravos bucais.

Esse panorama da Saúde Bucal demonstra bem alguns dos desafios que a gestão da saúde no MSP tem que enfrentar para garantir que todos seus munícipes independentemente do local em que vivam tenham acesso a um cuidado de qualidade.

Ademais, uma APS integral, robusta e coordenadora do cuidado necessita ter garantido fluxos de acesso à AE quando necessário, diversos estudos têm demonstrado constrangimentos para o acesso à AE nos mais diferentes cenários. Seria esperado que no MSP, dada a diversidade e disponibilidade de serviços de saúde de média e alta complexidade, a articulação APS-AE fosse mais exitosa. Para analisar essa questão, tomemos como exemplo uma questão crucial no cenário da saúde no MSP, que é o cuidado com os usuários com câncer. O Instituto Nacional do Câncer (Inca) estimou 125.200 novos casos de câncer (exceto pele não melanoma) no MSP em 2023, em 2022 os casos de câncer corresponderam a 17,9% do total de mortes (Datasus, 2024b). Dentre os diversos tipos de tumores, vamos nos ater ao câncer de colo de útero, que é prevenível e tem linha de cuidado definida. Apesar dessas características, sua incidência é cinco vezes maior do que a meta proposta pela OMS, acometendo 20 mulheres por 100 mil por ano no MSP. Dados do Estudo Inquérito de Saúde da Capital (Estudo ISA-Capital), realizado em 2015, indicam que mais de 80% das mulheres entre 20 e 65 anos de idade relatavam ter realizado exame preventivo para o câncer de colo de útero nos últimos três anos, a maioria pelo SUS, mas com diferenças entre as regiões da cidade (maior cobertura SUS na zona sul e menor na zona Oeste).

Apesar da alta cobertura de realização do exame preventivo, dados indicam um início tardio do tratamento, impactando as possibilidades de cura. Em 2021, pelo menos 39% desses tumores foram diagnosticados em estágio avançado e 55% das usuárias levaram mais de 60 dias para iniciar o tratamento ou não tinham informação de tratamento. Isso demonstra falhas na atenção nos diversos níveis da rede de atenção à saúde. Ademais, reafirmando o padrão de desigualdade socioespacial os distritos mais periféricos experimentam maiores taxas de mortalidade para todas as faixas etárias, padrão que se repete em outros tumores, como o de mama (Bermudi et al., 2020; Ribeiro et al., 2023; Bermudi et al., 2023).

Os números expressos no parágrafo anterior deixam clara a importância de se garantir o diagnóstico precoce e o pronto-tratamento para os paulistanos. No entanto, apesar da magnitude da rede municipal de São Paulo, a SMS-SP depende enormemente dos serviços estaduais e privados. Dos 18 hospitais que são responsáveis pelo atendimento ao paciente oncológico do SUS no MSP, apenas um é municipal, e esse é credenciado apenas como um Hospital Geral com cirurgia oncológica, ou seja, não é credenciado como um serviço de alta complexidade no tratamento do câncer. Sem dúvida, novas estratégias, que envolvam os diversos pontos da rede, os gestores e os prestadores, precisam ser elaboradas para que se reverta esse quadro.

Para irmos além das fronteiras do setor Saúde

Pensar Saúde no MSP cobra estratégias inovadoras e audaciosas, para além das ações tradicionais dos serviços de saúde. Nesse sentindo, acreditamos que a intersetorialidade, tema no âmbito da formulação de políticas públicas, tem enorme potencial (Akerman et al., 2014). Entretanto, o consenso retórico não tem encontrado o devido conforto na sua ação prática, o que levou Andrade (2006) a cunhar a frase que qualifica bem o dilema: “consenso teórico acompanhado de uma dissonância prática” (Andrade, 2006). A pandemia da Covid-19 exigiu que essa inércia prática fosse superada e clamou urgência na articulação de distintos setores para lidar com a emergência sanitária e suas consequências (Beck et al., 2022). E esses clamores não podem parar, pois há insuficiências importantes na ação setorial isolada que tenha potência para enfrentar a raiz dos principais problemas que afetam a saúde das populações, bem como os modos correntes de produção e consumo deletérios à vida e à saúde (Secretaria de Salud, 2024; OPAS, 2020).

A cidade de São Paulo parece estar atenta à indissociabilidade das políticas públicas, e signatária que é da Agenda 2030 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis (ODS), criou uma das poucas Comissões Municipais dos ODS do Brasil, gerando mecanismos para que a Agenda seja parâmetro estratégico de ação governamental. Nesse sentido, o Plano Municipal de Saúde 2022-2025 (PNS/2022-2025) se comprometeu com ações relacionadas com o ODS 2 (Fome Zero e Agricultura Sustentável), ODS 3 (Saúde e Bem-Estar Social), ODS 5 (Água Potável e Saneamento), e ODS 8 (Trabalho Decente e Crescimento Econômico) (PMSP, 2024).

Esse é um esforço de conexão importante, mas não basta oferecer uma lista de intenções não pactuadas. Como já mencionado “há insuficiências importantes na ação setorial isolada que tenha potência para enfrentar a raiz dos principais problemas que afetam a saúde das populações”, portanto é imperativo que a SMS-SP desenvolva modos de articulação para um planejamento integrado com outras secretarias, sociedade civil e setor privado (Akerman, 2014).

Um desafio evidente e que necessita de uma abordagem intersetorial é a saúde do idoso, afinal essa é a população que proporcionalmente mais cresceu na cidade de São Paulo entre 2010 e 2022. Entretanto, esse envelhecimento veio acompanhando de diversas limitações na vida diária, decorrente do aumento do número de doenças, como demonstram alguns estudos de base populacional realizados no MSP. No período de 2000 a 2015, observou-se aumento nas prevalências de limitações na mobilidade autorreferida - caminhar, subir escada, carregar objetos e se agachar (Nascimento; Duarte; Chiavegatto Filho, 2022) e aumento na proporção de doenças crônicas, ganho de peso e obesidade entre as pessoas idosas (Araújo et al., 2020), mostrando que embora a população tenha envelhecido, o fez em piores condições quando comparadas à população idosa de 2000. Além disso, o envelhecimento em uma metrópole como São Paulo é extremamente heterogêneo. Ser idoso em Higienópolis, bairro rico e central, é completamente diferente de sê-lo em Parelheiros, bairro da periferia sul, dado que as condições de vida ao longo de suas existências, o acesso aos diversos bens e serviços, e a rede de suporte social formal e informal com que essas pessoas podem contar diferem grandemente.

O envelhecimento saudável requer ações de promoção da saúde, em seu sentido amplo, de prevenção de doenças ao longo da vida e tratamento e reabilitação das doenças e outros agravos, que só pode ser alcançado com ações intersetoriais associadas com a mudança dos padrões de uso e ocupação do espaço urbano. Para tanto, é necessário mudar a forma como a sociedade entende o envelhecimento, como age diante das pessoas idosas, sem discriminação ou preconceitos ligados à idade, valorizando sua contribuição para com as famílias e a sociedade; garantir ambientes físicos, sociais e econômicos amigáveis e, portanto, às pessoas de todas as idades; oferecer serviços de cuidados integrados e de APS centrados na pessoa e adequados à pessoa idosa, integrando serviços sociais e de saúde, buscando a manutenção ou recuperação da saúde e da funcionalidade dessas pessoas. E finalmente, propiciar acesso a cuidados de longo prazo. As famílias estão cada vez menores e consequentemente é menor a disponibilidade de cuidadores familiares para os idosos frágeis e vulneráveis. Cerca de 16% da população idosa do MSP viviam só entre 2015 e 2016, e desses, 63,1% tinham duas ou mais doenças crônicas simultâneas, e 75,1% estão em processo de fragilização (Domingues; Santos; Duarte, 2020) e, portanto, necessitam de cuidados.

O MSP tem, ao longo das últimas décadas, implantado programas de cuidados a pessoas idosas através de serviços sociais e de saúde. Desde os serviços de APS, nas Unidades de Referência de Saúde do idosos e nos equipamentos de baixa, média e alta complexidade da Assistência Social, como os centros de convivência, os centros dia do idoso e as instituições de longa permanência de idosos. Um programa que se destaca na cidade de São Paulo é o de Acompanhantes de Idosos (PAI), que tem se mostrado de grande apoio às pessoas idosas e suas famílias, dentre as quais destacamos a retomada das atividades sociais, a prevenção da institucionalização precoce, a diminuição e prevenção de quedas, o controle adequado da polifarmácia, a melhora da autonomia e manutenção da independência a partir de atividades desenvolvidas pelo programa (Oliveira; Rabelo; Santos, 2022).

Apesar disso, essa rede de cuidados não é suficiente para a atender uma demanda que cresce cada vez mais. Em 2050, as pessoas idosas corresponderão a 30% da população brasileira. Deve ser uma prioridade no país o estabelecimento de serviços sociossanitários, que integrem ações da assistência social e da saúde, a exemplo do que ocorre em alguns países como Japão, financiado por seguro obrigatório, Kaigo Hoken ou Long-Term Care Insurance, e França, através de políticas sociais como Allocation Personnalisée d’Autonomie, com financiamento específico e a formação de profissionais de diversas áreas, especialmente da saúde e da assistência social, voltada especificamente para o cuidado a pessoas idosas.

O desenvolvimento de programas e ações intersetoriais, envolvendo urbanismo, transporte, segurança, saúde, assistência social, cultura, esporte e lazer, voltados às pessoas que envelhecem nessa cidade, é necessário e urgente e beneficiará todos os munícipes.

Considerações finais

Garantir a consecução do Sistema Único de Saúde (SUS) no município de São Paulo, segundo seus princípios e diretrizes, é uma tarefa difícil, mas fundamental para a construção de uma cidade menos desigual e mais justa. A gestão da saúde precisa trazer para si essa responsabilidade, sendo capaz de traduzir as demandas e necessidades da população paulistana em um sistema de saúde público, eficiente, acolhedor, democrático e ousado, capaz de cuidar e produzir saúde de forma intersetorial e interfederativa.

A multiplicidade de prestadores de serviços contratualizados pela gestão municipal gera dificuldades nos processos de regulação estatal. É imperativo aprimorar tais processos regulatórios da relação público-privada para garantir a intencionalidade e o controle público do sistema de saúde. No entanto, cabe alertar que a saúde no município de São Paulo está a caminho de privilegiar a lógica privada na saúde. A conjuntura atual da maior cidade brasileira cede cada vez mais à apropriação mercantil de recursos públicos na área da saúde, indo contra um projeto de sociedade que assegure a manutenção de um sistema público e universal de saúde. Ademais, as estruturas de governança precisam ser reforçadas, especialmente com o governo estadual, que diferente do cenário na maioria dos estados brasileiros, tem uma capacidade instalada de serviços de saúde numerosa e estratégica.

Para que esse SUS ousado se consolide no MSP, não podemos esquecer a necessária participação da população e dos trabalhadores da saúde. Afinal, não são só os problemas que são superlativos no MSP, sua população é rica culturalmente e cria e recria seus espaços e protagonismo nos mais diferentes bairros, periferias e espaços. Os trabalhadores da saúde têm um compromisso e resiliência imensuráveis, como ficou claro no enfrentamento da pandemia. A gestão da saúde do município precisa estar à altura dos paulistanos e ser ousada e criativa, dando respostas aos inúmeros problemas de saúde existente.

Agradecimentos

Agradecemos à Associação Paulista de Saúde Pública por propiciar espaços de reflexão sobre a saúde no município de São Paulo, e a Camila Lorenz pela elaboração dos mapas.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2024
  • Aceito
    24 Jun 2024
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