Open-access OCHOA, Juan Andrés Pizzani (Org.). Crítica a los discursos sobre las prácticas sexuales de los pueblos originarios. Caracas: Fundación Editorial el perro y la rana. 2015, 167p.

OCHOA, Juan Andrés Pizzani. Crítica a los discursos sobre las prácticas sexuales de los pueblos originarios. Caracas: Fundación Editorial el perro y la rana, 2015. 167

Se, a princípio, o título do livro organizado por Ochoa impressiona, pelas possibilidades de sua temática no campo dos estudos de gênero e sexualidade, bem como etnológicos, sua leitura pode decepcionar. Não pelo conjunto de autores, ou pela profundidade dos dados e análises trazidas em seus cinco capítulos – nesse sentido, o texto não deixa a desejar –, mas por não trazer a crítica aos discursos sobre as práticas sexuais dos povos originários, prometida no título. Essa promessa o texto deixa em aberto. Da mesma forma, questões a serem enfrentadas de modo mais enfático não são trabalhadas, apesar de permearem os capítulos desde as primeiras páginas. Tais questões dizem respeito às possibilidades da comparação dos vários processos trazidos pelos autores dos capítulos que formam o núcleo do livro (um venezuelano, um brasileiro, um costarriquenho e um colombiano) na compreensão da relação entre sexualidades indígenas, colonização e políticas indigenistas nas Américas. Da mesma forma, o livro não traz maiores novidades para esse campo de estudos, posto que seu capítulo mais recente – excetuando-se sua apresentação – foi escrito em 2007. Dessa maneira, o leitor interessado em compreender o “estado da arte” dos estudos de gênero e sexualidade no continente não encontrará, no livro, uma fonte de interesse particular.

Dito isso, o livro possui pontos positivos. O primeiro diz respeito ao amplo espectro temporal dos textos lá trazidos, entre 1945 e, como dito, 2007. Isso torna possível se vislumbrar, em sua leitura, o deslocamento semântico dos termos utilizados pelos autores, fornecendo, indiretamente, a possibilidade de problematizar o ferramental teórico e metodológico do qual lançamos mão para compreender temáticas que se localizam nas fronteiras (para usar uma expressão cara a autores como Walter Mignolo e Gloria Anzaldúa) da nossa epistemologia. A sexualidade deixa de ser um problema para a medicina (Requena), passando a ser uma questão para as ciências sociais (Mott, Leiva), as quais passam a influenciar o estudo de outros campos, como a psiquiatria, por exemplo (Guerrero). Outro ponto positivo do livro é seu projeto gráfico, bastante inovador e coerente com a problemática, trazendo inúmeras gravuras indígenas e fotos que demonstram a diversidade sexual dos povos indígenas nas Américas.

Como foi apontado aqui, o texto possui uma apresentação, escrita pelo organizador da coletânea, bem como quatro capítulos escritos pelo médico venezuelano António Requena, pelo antropólogo brasileiro Luiz Mott, pelo também antropólogo costarriquenho Dennis Quirós Leiva e, finalmente, pelo psiquiatra colombiano Ricardo Guerrero.

Na Apresentação, Ochoa aponta as dificuldades de se buscar entender, pela perspectiva dos povos indígenas no momento dos descobrimentos, as várias representações gráficas e artísticas de práticas homossexuais produzidas por aqueles povos. De fato, não apenas tais manifestações materiais foram sistematicamente apagadas ao longo da colonização, como a própria memória dos povos indígenas gradualmente foi alvo de políticas de heteronormatividade compulsória nas escolas e nas missões, por meio das políticas indigenistas e de integração forçada. Ainda assim, tais elementos da cultura material indígena deixam claras as opções para além do modelo binário como algo cotidiano aos povos indígenas do continente. À colonização, indica Ochoa, equivale a heteronormatização e a imposição de relações de patriarcado, normalização e homogeneização.

O segundo capítulo, intitulado Noticias y consideraciones sobre las anormalidades de los aborígenes americanos: sodomía, foi publicado pela primeira vez pelo médico venezuelano António Requena (1911-1973) em 1945, sendo um dos primeiros estudos do tipo realizados no continente e hoje considerado um clássico. O texto apresenta, primeiramente, testemunhos indígenas (a partir de elementos de sua cultura material, tradição oral e códices maias) e testemunhos europeus sobre as “perversões” indígenas. Nele, Requena traz inúmeras referências de cronistas, conquistadores e missionários (como Cortés, Gomara, Gamboa, entre outros), demonstrando como a “sodomia” era algo que não chocava, de modo particular, populações indígenas no México, América Central e Caribe. Entretanto, esses relatos deixam transparecer o preconceito europeu, que associa as práticas sodomíticas com o canibalismo, a bebedeira e outras “bestialidades”. Tal fato parece não chamar a atenção de Requena – ao contrário de Quirós Leiva, cujo texto focará nessas perspectivas como forma de acentuar a superioridade cultural europeia, justificando a colonização forçada daqueles indígenas – cujo capítulo passará a analisar as “anormalidades sexuais catalogadas como elementos patológicos”. Se Requena apresenta, em seu texto, vários relatos de indígenas “sodomíticos” nos séculos XVI e XVII, ele o faz com o propósito de analisá-los, à luz da medicina e da psiquiatria que lhe eram contemporâneas. Não podemos, aqui, descartar a profunda influência do médico endocrinologista espanhol Gregorio Marañon (1887-1960) sobre o pensamento de Requena. Marañon viria a visitar a América Latina algumas vezes, no final da década de 1930, divulgando sua tese central: a sexualidade é algo orgânico, dependendo do equilíbrio hormonal do ser humano. Assim, Requena enumerará diversas “influências que atuam sobre a determinação homossexual”, incluindo o meio, o narcisismo, a prostituição, a sedução e a religião. Destaca-se ao final do texto um “índice etnográfico das nações ou localidades citadas por fontes com relação ao uso ou conhecimento da sodomia”. Como disse anteriormente, o texto é um clássico nos estudos em sexualidade indígena nas Américas, e se, por um lado, nos soam incômodas, em vários aspectos, diversas das expressões utilizadas pelo autor, ele nos propicia tanto um alerta sobre como perspectivas religiosas e (ou) ideológicas direcionam nossa análise quanto fornece um instantâneo dos enquadramentos sobre sexualidade e história na América Latina de meados do século passado. Alertando o leitor para a importância de se buscar compreender as perspectivas médicas sobre sexualidade no continente naquele momento, espera-se, aqui, diminuir as possibilidades de leituras anacrônicas daquele texto. Transcendendo o papel de resenhista, não consigo deixar de pensar sobre as possibilidades que um entrecruzamento da literatura sobre raça e sexualidade, na América Latina daquele período, seria bastante revelador de práticas sociais adotadas pelo Estado (como a eugenia, por exemplo), e como papéis sexuais foram corroborados pela ciência a fim de servirem de base ideológica para o Estado-nação. Penso que uma perspectiva nesse sentido ampliaria (e problematizaria, talvez?) os cânones em estudos de sexualidade na região, pois deslocariam o lugar de enunciação do pós-estruturalismo foucaultiano (me refiro, especificamente, à História da Sexualidade, vol. 1) para uma crítica das práticas de normalização empregadas na América Latina, não apenas a partir de um enfoque médico e psiquiátrico, como bem indica Foucault, mas para um aparato jurídico e burocrático muito mais amplo, incluindo órgãos de propaganda oficiais (como o DIP, de Getúlio Vargas), textos literários, práticas pedagógicas, entre outros dispositivos.

O segundo capítulo do livro, escrito por Luiz Mott em 1994, intitula-se Etnohistoria de la homosexualidad en América Latina. É, para os estudiosos do campo no país, um texto já bastante conhecido e merece ser – como é – revisitado, dada a amplitude de fontes e questionamentos trazidos pelo autor. Dividindo-se em três partes (“A homossexualidade na América pré-colombiana”; “A repressão aos sodomitas na América Latina Colonial” e “Gays e lésbicas latino-americanas hoje”), esse texto apresenta uma excelente discussão, em particular, sobre a atuação da inquisição portuguesa na vida sexual e homossexual do Brasil colônia. Há vários aspectos para os quais a historiografia oficial não tem voltado os olhos de forma mais sistemática, e Mott fornece, nesse texto, não apenas uma releitura fundamental da sexualidade do país em seu início, mas como, de certa forma, relações de estruturação da subalternidade a partir de seus usos do corpo que existiam desde há cinco séculos se mantêm discursivamente ainda hoje (talvez hoje, mais até do que no momento em que o texto foi escrito, há mais de duas décadas). Há, para além da estrutura textual de Mott, dois aspectos para os quais gostaria de chamar a atenção.

Em primeiro lugar, para sua opção em denominar seu texto de um estudo “etnohistórico”. Para os antropólogos, esse termo possui um sentido que, de forma bastante sucinta, diz respeito a um método pelo qual determinada coletividade interpreta e protagoniza seu próprio devir histórico. Em princípio, não parece ser esse o sentido empregado por Mott, mesmo porque isso implicaria colocar os próprios “nativos” para contar sua história, em seus termos. Contudo, se argumentarmos que o autor é bastante conhecido nos meios LGBTIQ brasileiros, por sua militância, sendo assumidamente gay, pode-se tomar esse texto como etnohistórico, no sentido lato do termo. Entretanto, o termo etnohistória, como é empregado por Mott, parece ter um sentido muito mais crítico (não no sentido de crítica, mas de liminaridade), por propor o desvelamento de histórias ocultas e não oficiais, buscando privilegiar aqueles aspectos que escapam à narrativa única e teleológica da formação e consolidação do poder na história do Brasil.

Um segundo ponto a ser destacado diz respeito àquela que é, a meu ver, a questão-chave, em se tratando de estudos sobre sexualidades indígenas no Brasil, formulada por Mott nos seguintes termos: “até que ponto o conceito de homossexualidade pode ser usado com propriedade heurística para descrever e interpretar as relações unissexuais do mundo extraeuropeu?” (op. cit., p. 66). Aos estudiosos da sexualidade indígena no Brasil, esse é um questionamento onipresente, sempre que apresentamos nossas pesquisas a um público mais amplo: afinal, “homossexualidade indígena”, faz sentido? Mott não responde a essa pergunta (“deixarei ao leitor, ao final deste trabalho, tirar suas próprias conclusões”, loc. cit.) e, possivelmente, uma resenha não seja o espaço mais adequado para desenvolver esse questionamento de forma razoável. Entretanto, vale a pena lançar mão aqui de algumas hipóteses. Se a homossexualidade – e uso aqui o termo como guarda-chuva, para me referir às práticas como um todo, posto que as fontes históricas não nos fornecem maiores detalhes da diversidade sexual indígena, utilizando termos como “sodomia”, “perversões” e “pederastia”, indiscriminadamente – pode ser criticada por fazer sentido no universo do colonizador (cristão, branco, ocidental, etc.), talvez resida justamente aí seu potencial analítico, na medida em que nos chama a atenção para como a colonização opera como meio de normalização da vida indígena, em todas as suas esferas, como já foi apontado aqui. Provavelmente não faz sentido ao etnógrafo buscar respostas para perguntas como “na sua aldeia, há homossexuais?”, pois a pergunta opera dentro dos nossos valores. Mas talvez a problemática, em si, seja reveladora no âmbito das relações interétnicas e das políticas indigenistas. Por outro lado, para a etnologia fica o desafio de transcender nosso próprio potencial analítico, a fim de transpor a sexualidade como algo intrínseco ao sexo, ou ao corpo, compreendendo também a pessoa, a cosmologia e os vários aspectos da vida indígena. Dessa forma, ainda que a homossexualidade heuristicamente possa não ser o instrumento mais adequado para a compreensão da diversidade sexual indígena – respondendo, assim, ao questionamento de Mott –, isso não significa que não haja, nessa problemática, potencial político para uma crítica colonial bastante original, bem como potencialidades epistêmicas para avançarmos ainda mais nos estudos sobre a compreensão ontológica do universo indígena.

Em larga medida, esse parece ser o caminho traçado pelo capítulo seguinte da coletânea, intitulado Indios, sodomitas y demoníacos: Sumario de la Natural Historia de las Indias de Gonzalo Fernández de Oviedo, escrito pelo antropólogo costarriquenho Dennis Quirós Leiva, em 2003. Nesse texto, Leiva analisa a obra de Oviedo (1478-1557), escrita nas primeiras décadas do século XVI, buscando apresentar ao leitor como as narrativas europeias sobre os povos indígenas legitimavam sua conquista e justificavam seu extermínio. Assim, o capítulo apresenta o contexto do Sumario, fornecendo informações sobre a vida de seu autor, suas outras obras e a influência da inquisição espanhola em suas perspectivas. Isso nos permite compreender o eixo da argumentação de Leiva, ao demonstrar como três aspectos – a raça, o sexo e a religião – das culturas indígenas foram representadas pelo olhar da elite europeia no início da colonização. Se, por um lado, tal perspectiva não representa novidade (autores como Robert Young e Ann Laura Stoler, por exemplo, possuem produção bastante conhecida e consolidada nesse sentido), por outro, o uso intensivo que Leiva faz das fontes da época permitem ao leitor acessar, de modo mais vívido, várias das questões apontadas por Requena e Mott nos capítulos anteriores. Para o contexto brasileiro, em particular, o texto aponta um caminho bastante interessante. As poucas obras sobre o Brasil produzidas no século XVI ainda não foram analisadas pela perspectiva da sexualidade – refiro-me aqui a autores como Pero Magalhães de Gandavo, Soares de Sousa, frei Vicente do Salvador, Fernão Cardim e Simão de Vasconcelos, além de cronistas de viagem, como o alemão Hans Staden, os franceses Léry, D’Evreux, D’Abbeville e Thevet, e os holandeses Marcgrave, Piso e Laet. O que um estudo comparado desses autores poderiam nos ensinar sobre a gênese das relações sexuais no Brasil colônia é algo ainda a ser plenamente trabalhado no país.

Finalmente, o último capítulo da coletânea organizada por Ochoa, intitulado Homofobia y psiquiatría, foi escrito pelo psiquiatra colombiano Ricardo de la Espriella Guerrero em 2007. Confesso que, para o leitor, há aí um anticlímax: o texto que encerra um livro sobre práticas sexuais em povos indígenas não traz, em momento algum, qualquer coisa sobre o tema. Há, contudo, dois aspectos bem interessantes no texto: em primeiro lugar, trata-se de um bom contraponto ao capítulo escrito por Requena, também médico psiquiatra, na década de 1940. Fica evidente o movimento de mudança no estatuto epistemológico da homossexualidade na área médica. Em larga medida, isso se deve ao segundo ponto a ser destacado no texto de Espriella: a compreensão de que a homossexualidade deve ser compreendida a partir de referentes culturais. Dessa forma, se, para Requena, o “homossexualismo” seria uma patologia, para Espriella a homofobia seria um “transtorno mental” (p. 159) a ser tratado por meio da mudança no perfil de instituições como escolas, hospitais e manicômios, bem como de profissionais da área de saúde, que ainda entendem a homossexualidade como algo a ser tratado.

Feitas as ressalvas no início deste texto, pode-se dizer que o livro de Ochoa, de um modo geral, pode servir como ponto de partida para boas discussões – algumas delas apontadas aqui – sem, contudo, representar uma maior contribuição no campo dos estudos das sexualidades indígenas no continente.

Há ainda, a título de conclusão, uma inquietação que fica, ao final da leitura do texto. Sim, há diversas fontes (escritas, orais e materiais) que demonstram claramente a existência de outros regimes de sexualidade nos povos indígenas nas Américas. Tal demonstração é, em alguma medida, justificável para demonstrar que tais práticas não seriam “perversões advindas do contato”, ou “perda da cultura”. Entretanto, ao darem tanta importância a tais fontes, os estudiosos desse campo correm o risco de reforçar a ideia de que a homossexualidade indígena é algo ligado ao passado indígena, e não ao seu presente. Indo além: ao “justificarmos”, ainda que indiretamente, a existência de tais sexualidades por sua importância no âmbito da esfera cosmológica indígena (como no caso dos two-spirit norte-americanos, por exemplo), pode-se obscurecer os desafios enfrentados por aqueles indígenas cuja orientação sexual independe de pressupostos sociocosmológicos. Tal levantamento histórico certamente contribui para fornecer subsídios para um discurso contra-hegemônico, diante das diversas violências que esses indivíduos enfrentam cotidianamente, tanto em suas culturas quanto no âmbito do contato interétnico, mas isso por si só não basta. Faz-se necessário avançar os estudos sobre sexualidades indígenas no sentido de se compreender sua realidade nos dias de hoje, sempre que possível dando voz aos próprios indígenas, a fim que os “discursos sobre as práticas sexuais dos povos originários” possam, finalmente, surgir de seus protagonistas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    11 Dez 2015
  • Aceito
    24 Mar 2016
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