Open-access Falência aguda de órgão e risco de admissão em unidade de terapia intensiva nos pacientes oncológicos: estudo de coorte prospectivo unicêntrico

RESUMO

Objetivo:  Determinar a incidência cumulativa de falência aguda de órgão e internamento em unidade de terapia intensiva em pacientes oncológicos.

Métodos:  Estudo de coorte prospectivo de pacientes oncológicos adultos em tratamento sistêmico antineoplásico, internados de forma não programada.

Resultados:  Entre agosto de 2018 e fevereiro de 2019, 10.392 pacientes foram submetidos a tratamento sistêmico antineoplásico, sendo que 358 necessitaram de internamento hospitalar não programado e foram elegíveis para inclusão; por fim, 258 desses pacientes foram incluídos. A média de idade foi de 60,9 anos, e 50,9% eram do sexo masculino; 17,9% dos pacientes tinham câncer hematológico. O risco acumulado de falência de órgãos foi de 39,6% (IC95% 35 - 44) e o risco de internamento na unidade de terapia intensiva em pacientes com falência aguda de órgão foi de 15,0% (IC95% 12 - 18). À admissão em internamento, 62,1% dos pacientes foram considerados não elegíveis para terapia de substituição artificial de órgãos. O tempo mediano de seguimento foi de 9,5 meses. A mortalidade hospitalar foi de 17,5%, na unidade de terapia intensiva de 58,8%. A mediana de sobrevivência da coorte foi de 134 dias (IC95% 106 - 162). Na análise multivariada, a falência aguda de órgão se associou com a mortalidade aos 6 meses após a alta (hazard ratio: 1,6; IC95% 1,2 - 2,2).

Conclusão:  O risco de falência aguda de órgão em pacientes oncológicos admitidos para tratamento hospitalar não programado durante o tratamento sistémico foi de 39,6% e o risco de internamento em unidade de terapia intensiva foi de 15,0%. A falência aguda de órgão em pacientes oncológicos foi um fator de prognóstico independente para maior mortalidade intra-hospitalar e menor sobrevivência aos 6 meses após a alta.

Descritores: Neoplasias; Neoplasias hematológicas; Insuficiência de múltiplos órgãos; Doente crítico

ABSTRACT

Objective:  To ascertain the cumulative incidence of acute organ failure and intensive care unit admission in cancer patients.

Methods:  This was a single-center prospective cohort study of adult cancer patients admitted for unscheduled inpatient care while on systemic cancer treatment.

Results:  Between August 2018 and February 2019, 10,392 patients were on systemic treatment, 358 had unscheduled inpatient care and were eligible for inclusion, and 285 were included. The mean age was 60.9 years, 50.9% were male, and 17.9% of patients had hematologic cancers. The cumulative risk of acute organ failure was 39.6% (95%CI: 35 - 44), and that of intensive care unit admission among patients with acute organ failure was 15.0% (95%CI: 12 - 18). On admission, 62.1% of patients were considered not eligible for artificial organ replacement therapy. The median follow-up time was 9.5 months. Inpatient mortality was 17.5%, with an intensive care unit mortality rate of 58.8% and a median cohort survival of 134 days (95%CI: 106 - 162). In multivariate analysis, acute organ failure was associated with 6-month postdischarge mortality (HR 1.6; 95%CI: 1.2 - 2.2).

Conclusion:  The risk of acute organ failure in cancer patients admitted for unscheduled inpatient care while on systemic treatment was 39.6%, and the risk of intensive care unit admission was 15.0%. Acute organ failure in cancer patients was an independent poor prognostic factor for inpatient hospital mortality and 6-month survival.

Keywords: Neoplasms; Hematologic neoplasms; Multiple organ failure; Critical illness

INTRODUÇÃO

A incidência estimada de doenças neoplásicas malignas na Europa é superior a 3 milhões de caso ao ano, com cerca de 1,5 milhões de óbitos anuais.(1) A melhoria dos exames complementares de diagnóstico e o aumento e melhoria das tratamentos antineoplásicos disponíveis levou a uma constante diminuição dos óbitos relacionados essa patologia.(2) Por outro lado, o aumento do número de pacientes em tratamento antineoplásico tem resultado em uma maior frequência de reações adversas medicamentosas, algumas das quais associadas à falência aguda de órgão (FAO), aumentando o número de pacientes oncológicos que podem necessitar de internamento em em unidades de terapia intensiva (UTI).(3-5)

A incidência de FAO em pacientes submetidos à terapia antineoplásica sistêmica é desconhecida. Estima-se que cerca de 5% dos pacientes com tumores sólidos e 15% dos pacientes com neoplasias malignas hematológicas necessitarão internamento em UTI nos estádios iniciais da sua doença.(5-7) Adicionalmente, pacientes com doença oncológica avançada poderão obter benefício da admissão em UTI.(8-11) As duas causas mais comuns de internamento de pacientes oncológicos em UTI são insuficiência respiratória aguda e sepse.(5) Embora as taxas de sobrevivência de pacientes oncológicos internados na UTI sejam mais baixas do que as de pacientes sem comorbidades, suas taxas de mortalidade são semelhantes às de pacientes com outras comorbidades, como a insuficiência cardíaca crônica.(12) A identificação precoce da falência aguda de órgão e o internamento em UTI em tempo adequado são determinantes críticos para o prognóstico a curto prazo dos pacientes oncológicos.(5) Contudo, a mortalidade a longo prazo parece depender mais das características da neoplasia e seu prognóstico, do que da gravidade do evento agudo.(7,13)

O estudo IPOPSCI-2017/01 foi desenhado para estimar a incidência de FAO em pacientes oncológicos submetidos a tratamento antineoplásico sistêmico e estimar a incidência de internamento em UTI e o prognóstico desses pacientes, no maior centro abrangente oncológico português.

MÉTODOS

Este foi um estudo de coorte prospectivo, com uma amostragem consecutiva de pacientes oncológicos internados para cuidados hospitalares não programados decorrentes de complicações clínicas do tratamento antineoplásico ou da doença oncológica no Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil entre agosto de 2018 e fevereiro de 2019.

Os principais critérios de inclusão foram: pacientes 18 ou mais anos de idade, diagnóstico histológico ou citológico de neoplasia maligna, tratamento antineoplásico ativo - definido como administração de pelo menos um agente antineoplásico nas 8 semanas prévias ao internamento - e internamento hospitalar não programado, com elegibilidade avaliada dentro das primeiras 60 horas de cuidados hospitalares. Todos os pacientes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido antes de serem incluídos no estudo. Foram excluídos os pacientes submetidos a tratamento cirúrgico nas 4 semanas prévias ao internamento. O internamento hospitalar não programado foi definido como um internamento não planeado pelo profissional de saúde, devido a um evento com necessidade de cuidados médicos urgentes sem possibilidade de abordagem em ambulatório.

Os objetivos primários do estudo foram a incidência cumulativa de falência de órgão, definida como ocorrência de qualquer um dos seguintes eventos segundo os critérios quick Sequential Organ Failure Assessment (qSOFA): frequência respiratória de 22/minuto ou superior, alteração das condições mentais, pressão arterial sistólica de 100mmHg ou inferior, ou deterioração clínica que fosse motivo de preocupação do oncologista ou hematologista responsável; e risco cumulativo de internamentos em cuidados intensivos. Os objetivos secundários foram a probabilidade de retomar o tratamento antineoplásico após a alta, sobrevivência dos pacientes oncológicos que desenvolveram FAO durante o tratamento antineoplásico e a mortalidade após a alta, definida como óbitos que ocorreram após a alta hospitalar. Todos os pacientes incluídos foram tratados segundo as diretrizes da instituição e as melhores práticas locais. A coleta de dados para este estudo foi realizada após a alta hospitalar de cada paciente. Os dados foram colhidos por meio de um formulário padronizado, que incluía dados demográficos do paciente, variáveis para calcular o índice de comorbidade de Charlson (ICC), informações relacionadas com a doença oncológica (histologia, data do diagnóstico, extensão da doença, tratamentos prévios e último tratamento sistêmico), motivo principal de internamento do paciente, ocorrência de síndrome de FAO, administração de terapia de substituição artificial de órgãos (TSAO), admissão à UTI, condição de saúde do paciente à data da alta e sobrevivência. Todos os pacientes foram seguidos até o final de junho de 2019.

Estimou-se um tamanho de amostra de 400 participantes para permitir a computação do risco de internamento para terapia clínica intensiva com erro de 2% e erro tipo 1 de 5%.(14)

O presente estudo foi aprovado pela administração do hospital e pelo Comitê de Ética (número CES/IPO: 204/018). Todos os pacientes consentiram na participação, por meio da assinatura de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Análise estatística

As características basais dos pacientes incluídos e motivo de admissão para tratamento hospitalar foram analisadas por meio de estatística descritiva apropriada para cada parâmetro. Foram considerados dois grupos principais: pacientes com FAO aquando da admissão ou durante a permanência no hospital e os que não apresentaram FAO. Foi realizada uma análise exploratória de comparação entre as características basais desses grupos, utilizando testes paramétricos e não paramétricos, conforme apropriado.

O risco cumulativo de FAO foi calculado como a proporção de pacientes com FAO à data do internamento ou durante a permanência no hospital em relação a todos os incluídos no estudo. O risco cumulativo de internamento na UTI foi calculado como a proporção de pacientes admitidos na UTI em relação a todos os incluídos no estudo.

A ocorrência de FAO por pacientes oncológicos durante terapia antineoplásica sistêmica foi avaliada segundo a mortalidade hospitalar, mortalidade após a alta e mediana da sobrevivência calculada segundo o método de Kaplan-Meier. Os dados de desfecho para os pacientes admitidos à UTI foram a taxa de mortalidade durante a permanência na UTI e 30 dias após a alta da unidade, assim como a mediana da sobrevivência, calculada pelo método de Kaplan-Meier.

Foram realizadas análises exploratórias do impacto de outras características basais, por meio de modelos uni e multivariáveis de risco proporcional de Cox. Uma análise de potenciais fatores de confusão de FAO foi realizada por meio do modelo de risco proporcional de Cox com os seguintes parâmetros: idade ≥ 60 anos, ICC ajustado ≥ 3, neoplasia maligna hematológica ou não hematológica, tratamento curativo ou paliativo, primeira linha ou mais de uma linha de terapias antineoplásicas e motivo de internamento. A assunção de riscos proporcionais foi testada por meio de análise gráfica dos resíduos escalonados de Schoenfeld.

Não se estabeleceu qualquer correção para testagem de múltiplas hipóteses, já que esta foi uma análise exploratória para geração de hipóteses. Todos os dados foram analisados com utilização do Statistical Package for Social Sciences (SPSS), versão 25.0.

RESULTADOS

Características dos pacientes e das doenças

Entre agosto de 2018 e fevereiro de 2019, 10.392 pacientes foram submetidos a terapêutica antineoplásica sistêmica, dos quais 358 necessitaram de cuidados hospitalares não programados e foram considerados elegíveis para inclusão; destes, foram incluídos 285 participantes (Figura 1). A duração mediana do seguimento da coorte foi de 9,5 meses (mínimo 6 - máximo 12).

As características basais ao internamento não programado estão descritas na tabela 1. A média de idade foi de 60,9 ± 11,8 anos, e 50,9% (n = 145) dos pacientes eram do sexo masculino. A maioria (52,3%; n = 149) dos pacientes tinha comorbidades significativas, conforme avaliação pelo ICC ajustado, e 35,1% (n = 100) utilizavam cinco ou mais medicamentos diariamente. As neoplasias malignas hematológicas representavam 51 pacientes (17,9%) e, não hematológicos 234 (82,1%). Os tipos de neoplasias hematológicas mais frequentes foram linfoma não folicular (37,3%; n = 19), mieloma múltiplo ou plasmocitoma (27,5%; n = 14) e leucemia linfoide (13,7%; n = 7). Nas neoplasias não hematológicas, as topografias mais comuns do tumor primário foram o trato digestivo e glândulas anexas em 26,5% (n = 62), pulmões e trato respiratório em 19,2% (n = 45) e mama em 17,5% (n = 41). Dos 234 casos de neoplasia maligna não hematológica, 161 (68,8%) eram metastáticos à data do internamento hospitalar não programado.

Figura 1
Diagrama dos pacientes sob tratamento antineoplásico com internamento hospitalar não programado e incluídos no estudo.
Tabela 1
Características basais dos pacientes à data do internamneto não programado

O tempo mediano desde o diagnóstico da neoplasia até o internamento foi de 15 meses (intervalo: 0 - 253), e o tempo mediano desde a administração de terapêutica antineoplásica foi de 13 dias (intervalo: 0 - 56). A terapia antineoplásica foi prescrita com intenção curativa em 76 pacientes (26,7%). As causas mais frequentes de internamento foram infecções (40,7%; n = 116), seguidas por dor não controlada (11,2%; n = 31) e insuficiência respiratória não atribuível a causas infecciosas (6,0%; n = 17). Dentre os 116 pacientes hospitalizados por febre, 56,9% (n = 66) no momento do internamento não tinham um foco infeccioso identificado. Os locais de infecção mais frequentes foram respiratório (20,7%; n = 24), gastrointestinal (7,8%; n = 9), cutâneo (6,0%; n = 7) e outros (8,6%; n = 10). No momento do internamento, 62,1% (n = 177) dos pacientes foram considerados não elegíveis para terapia de substituição de órgãos.

Risco de falência aguda de órgãos e internamento na unidade de terapia intensiva

O risco cumulativo de FAO à data do internamento foi de 29,5% (intervalo de confiança de 95% - IC95% 26 - 33), e o risco cumulativo de FAO (à data do internamento ou durante a permanência no hospital) foi de 39,6% (IC95% 35 - 44). Para os pacientes com critérios para indicação de suporte artificial à vida, o risco cumulativo de FAO foi de 50,0% (IC95% 41 - 59).

O risco cumulativo de internamento na unidade de terapia intensiva de pacientes com FAO foi de 15,0% (IC95% 12 - 18). Para os pacientes que cumpriam critérios para indicação de suporte artificial à vida, o risco cumulativo de internamento na UTI de pacientes com FAO foi de 31,5% (IC95% 23 - 40).

As características e as comparações entre pacientes em tratamento antineoplásico sistêmico que apresentaram e os que não apresentaram FAO estão descritas na tabela 2. Os pacientes com FAO eram 3,3 anos mais velhos (p = 0,03), com maior proporção de pacientes com um ICC ajustado ≥ 3 (62,5% versus 45,3%; p = 0,04) e maior prevalência de neoplasia hematológica (25,7% versus 12,8%; p = 0,007). A maioria dos pacientes com FAO estava em primeira linha de tratamento antineoplásico sistémico (53,1% versus 37,8%; p = 0,015), e não se observaram diferenças entre os grupos com relação à intenção do tratamento (curativo ou paliativo). A causa mais frequente de internamento dos pacientes com FAO foi infecção (54,9% versus 31,4%; p < 0,001). Em 34,3% dos pacientes que desenvolveram FAO considerou-se que estes não obteriam benefício com uso de terapia de substituição de órgãos.

Tabela 2
Características basais segundo a ocorrência de falência aguda de órgão

Características dos pacientes internados na unidade de terapia intensiva

Dentre os 17 pacientes internados na UTI, 23,5% (n = 4) tinham neoplasia maligna hematológica, 17,6% (n = 3) do trato digestivo, 17,6% (n = 3) da mama, 17,6% (n = 3) genital masculino, 11,8% (n = 2) pulmonar, 5,9% (n = 1) da hipofaringe e 5,9% (n = 1) neuroendócrino do intestino delgado. A terapia antineoplásica sistémica foi administrada com intenção curativa a oito pacientes (47,1%). Em 13 dos pacientes (76,5%), tinham FAO à data do internamento hospitalar. O diagnóstico principal do internamento na UTI foi infecção (58,9%; n = 10), seguida de neutropenia febril (29,4%; n = 5), sepse ou choque séptico (41,2%; n = 7) e insuficiência respiratória não infecciosa (11,8%; n = 2); houve um caso de cada um dos seguintes eventos: disfunção neurológica, insuficiência cardíaca, insuficiência renal aguda, síndrome carcinoide e perfuração de víscera oca.

Desfechos dos pacientes

A mortalidade hospitalar foi de 17,5% e, entre os pacientes internados na UTI, a mortalidade hospitalar foi de 58,8%. Dos pacientes que receberam alta, 63,8% retomaram a terapia antineoplásica e dos que necessitaram de cuidados na UTI, 57,1% retomaram a terapia antineoplásica. Na análise univariada, a probabilidade de retomar a terapia sistêmica foi maior para os pacientes tratados com intenção curativa, para os que à data da alta tinham melhoria do estado de saúde e os pacientes com neoplasia maligna hematológica (Tabela 3). O tempo mediano de sobrevivência foi de 134 dias (IC95% 106 - 162), com taxa de mortalidade de 65,6% (n = 187) (Figura 2). O tempo mediano de sobrevivência para os pacientes que foram internados na UTI foi de 73 dias (IC95% 0 - 163).

Os pacientes que desenvolveram FAO tiveram tempo mediano de sobrevivência de 87 dias (IC95% 41 - 133), que foi significantemente menor do que para pacientes sem FAO (mediana 149 dias; IC95% 110 - 180; p = 0,028) (Figura 3). A FAO se associou tanto com aumento do risco de mortalidade hospitalar, razão de propensão (hazard ratio - HR de 3,4; IC95% 1,8 - 6,5; p < 0,0001) e maior mortalidade após a alta (HR de 1,6; IC95% 1,2 - 2,2; p = 0,002), após ajuste para as seguintes covariáveis: idade ≥ 60 anos, ICC ajustado ≥ 3, neoplasia hematológica ou não hematológica, intenção do tratamento curativa ou paliativa, terapia antineoplásica de primeira ou mais linhas e motivo de internamento. A pressuposição para o risco proporcional foi cumprida para todas as covariáveis utilizadas no modelo de Cox.

Tabela 3
Características basais entre pacientes que retomaram e os que não retomaram o tratamento sistêmico
Figura 2
Sobrevivência mediana dos pacientes com internamento hospitalar não programado.
Figura 3
Sobrevivência mediana de pacientes segundo a ocorrência de falência aguda de órgão.

DISCUSSÃO

Este estudo de coorte prospectivo foi conduzido por 6 meses e incluiu pacientes com doença oncológica em tratamento antineoplásico sistêmico no maior centro oncológico português, para avaliar o risco cumulativo de FAO e incidência cumulativa de internamento na UTI durante o tratamento. Estima-se que o risco de FAO à data de internamento hospitalar em pacientes submetidos a tratamento antineoplásico sistêmico é de 29,5%, e o risco de internamento na UTI é de 15%. Até onde se sabe, este é o primeiro estudo publicado relativo ao risco de desenvolver FAO em pacientes oncológicos durante a terapia antineoplásica sistêmica em ambulatório. A determinação da incidência de FAO em pacientes oncológicos é de particular interesse, pois pode ter impacto na sobrevivência em curto prazo e levar à maior utilização de recursos médicos, nomeadamente encaminhamento dos pacientes para cuidados na UTI.(7,8)

A maioria dos estudos que envolvem pacientes oncológicos agudos se focaliza naqueles admitidos para tratamento clínico intensivo e seus desfechos em curto prazo (por exemplo, mortalidade hospitalar e mortalidade em 28 dias).(7,8,15) Tais estudos são comumente retrospectivos e têm amostras heterogêneas, que incluem casos clínicos e cirúrgicos, ou pacientes com neoplasias hematológicas e não hematológicas, assim como transplantados de medula óssea. Esta amostra incluiu pacientes oncológicos em tratamento antineoplásico que tiveram um internamento hospitalar não programado durante o tratamento, com a finalidade principal de avaliar a incidência de FAO nesses pacientes. Não se pode excluir a possibilidade de um viés de seleção que resulte em possível subestimação desse risco, já que os pacientes foram obtidos por recrutamento através de um único centro, e alguns deles, podem ter sido internados para tratamento agudo em outros hospitais ou falecido no domicílio com FAO. Mais ainda, alguns dos pacientes encontravam-se clinicamente instáveis e sem condições de assinar o formulário do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, ou tiveram alta, ou ainda morreram antes de poderem assinar tal formulário, deixaram de ser incluídos; contudo, o impacto desses fatores é incerto.

Neste estudo, os pacientes com idade mais avançada, ICC ajustado ≥ 3 ou doença hematológica tiveram maior probabilidade de ter FAO quando do internamento não programado. Isso foi mais frequente durante terapia sistêmica de primeira linha e em pacientes com menor intervalo desde o diagnóstico da sua doença oncológica, o que está provavelmente relacionado com a agressividade das terapias de primeira linha em pacientes cujas reservas biológicas iniciais ainda são desconhecidas.(16) A infecção foi a razão primária para internamento não programado e, desses pacientes, 17,2% tiveram neutropenia febril e 12,3% sepse ou choque séptico, contribuindo para a elevada prevalência de FAO.

A escolha do qSOFA como medida para determinar FAO teve por base a fácil aplicabilidade e seruma medida validada associada à mortalidade hospitalar no ambiente fora da UTI em pacientes com infecção confirmada ou suspeita.(17-19) Além disso, fora do contexto infeccioso, o qSOFA foi estudado prospectivamente para avaliação de FAO com precisões prognósticas de mortalidade em 2 e em 30 dias, respectivamente, de 79,9% e 76,2%.(20) O qSOFA também foi comparado prospectivamente com o escore Systemic Inflammatory Response Syndrome (SIRS) para predizer a mortalidade na UTI e no hospital em pacientes oncológicos críticos, com melhor precisão prognóstica para ambos os parâmetros.(20) Assim, crê-se que a medida escolhida e os método de avaliação não trouxeram vieses ao risco estimado de FAO nesses pacientes.

Considerando-se todo o período de internamento, o risco acumulado de FAO aumentou para 39,6%. O risco relatado de sepse, de 12,3%, é comparável com estimativas prévias, que variaram entre 4,9% e 46% em pacientes oncológicos internados na UTI.(21,22) Quando se considera o uso de TSAO, um em cada três pacientes que desenvolveram FAO foram transferidos para cuidados na UTI, 75% dos quais estavam em seu primeiro dia de permanência no hospital, e metade desses pacientes estavam sob terapia com intenção curativa. Infecção foi o diagnóstico primário quando da admissão à UTI, e os pacientes internados nessa unidade tiveram taxa de mortalidade hospitalar superior a 50%. Tais estimativas apresentam-se em concordância com resultados prévios, particularmente quando se consideram estudos que incluíram pacientes com neoplasias hematológicas. Por exemplo, um estudo identificou uma mortalidade na UTI de 31% em pacientes com neoplasias não hematológicas e mortalidade hospitalar para pacientes admitidos à UTI de 38%, com os desfechos dependendo da topografia da neoplasia, do tipo de admissão (planejada ou emergencial) e da especialidade.(23) Outro estudo identificou taxas de mortalidade na UTI e no hospital para pacientes com neoplasia hematológica, respectivamente, de 24,8% e 45,3%.(24)

A mortalidade hospitalar geral foi de 17,5%, com curtos tempos de sobrevivência, com tempo mediano de sobrevivência de 4,5 meses entre todos os pacientes e 2,5 meses entre os pacientes admitidos à UTI. A ocorrência de FAO se associou com um aumento de três vezes da mortalidade e com um aumento de duas vezes da mortalidade após a alta hospitalar, mesmo após ajuste para idade e comorbidades. A mortalidade mais elevada para pacientes que apresentaram FAO é provavelmente não diretamente relacionada com o evento agudo, mas antes inerente às condições do paciente ou subsequentes decisões terapêuticas. Pacientes com um episódio prévio de FAO durante o tratamento podem ter maior risco de hospitalizações subsequentes, com maior probabilidade de eventos adversos sérios e morte. Por outro lado, a ocorrência de FAO pode levar a modificações no plano terapêutico do paciente, com reduções de doses e troca ou suspensão de terapias, que podem estar por si mesmas associadas à diminuição da sobrevivência. Apesar do pior prognóstico dos pacientes que desenvolveram FAO durante tratamento antineoplásico sistêmico, pacientes submetidos a tratamentos potencialmente curativos e os com doença oncológica avançada mas com sobrevivências longas prováveis poderão se beneficiar de admissão à UTI.(5) Para pacientes com neoplasia maligna avançada, uma tentativa de utilização da UTI (UTI trial) poderá ser valiosa, já que tem o potencial de prolongar a sobrevivência com boa qualidade de vida.(25) Embora recomendações para admissão à UTI de pacientes oncológicos críticos tenham sido propostas por um consenso internacional de especialistas, não existem critérios estabelecidos para a admissão de pacientes oncológicos à UTI.(4) No futuro, pretende-se desenhar um estudo sobre a aplicabilidade de um protocolo preestabelecido de critérios para internamento de pacientes oncológicos críticos na UTI.

CONCLUSÃO

Neste estudo de coorte prospectivo unicêntrico, os pacientes oncológicos que necessitaram de tratamento em regime de internamento hospitalar não programado tiveram risco cumulativo de falência aguda de órgão de 39,6% e risco de necessitar transferência para a unidade de terapia intensiva de 15%. A falência aguda de órgão associou-se com maior mortalidade, tanto durante a permanência no hospital como após a alta.

Disponibilidade de dados e materiais

A base de dados gerada e analisada no presente estudo não se encontra publicamente disponível de acordo com o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados da Europa, porém, mediante solicitações razoáveis ao autor correspondente, os dados poderão ser disponibilizados após aprovação do Comitê de Ética da instituição e da autoridade governamental local responsável por avaliar seu impacto sobre a proteção de dados.

REFERÊNCIAS

  • 1 Ferlay J, Colombet M, Soerjomataram I, Dyba T, Randi G, Bettio M, et al. Cancer incidence and mortality patterns in Europe: estimates for 40 countries and 25 major cancers in 2018. Eur J Cancer. 2018;103:356-87.
  • 2 Coleman MP, Quaresma M, Berrino F, Lutz JM, De Angelis R, Capocaccia R, Baili P, Rachet B, Gatta G, Hakulinen T, Micheli A, Sant M, Weir HK, Elwood JM, Tsukuma H, Koifman S, E Silva GA, Francisci S, Santaquilani M, Verdecchia A, Storm HH, Young JL; CONCORD Working Group. Cancer survival in five continents: a worldwide population-based study (CONCORD). Lancet Oncol. 2008;9(8):730-56.
  • 3 Peigne V, Rusinová K, Karlin L, Darmon M, Fermand JP, Schlemmer B, et al. Continued survival gains in recent years among critically ill myeloma patients. Intensive Care Med. 2009;35(3):512-8.
  • 4 Azoulay E, Soares M, Darmon M, Benoit D, Pastores S, Afessa B. Intensive care of the cancer patient: recent achievements and remaining challenges. Ann Intensive Care. 2011;1(1):5.
  • 5 Schellongowski P, Sperr WR, Wohlfarth P, Knoebl P, Rabitsch W, Watzke HH, et al. Critically ill patients with cancer: chances and limitations of intensive care medicine-a narrative review. ESMO Open. 2016;1(5):e000018.
  • 6 Puxty K, McLoone P, Quasim T, Sloan B, Kinsella J, Morrison DS. Risk of critical illness among patients with solid cancers: a population-based observational study. JAMA Oncol. 2015;1(8):1078-85.
  • 7 Schellongowski P, Staudinger T, Kundi M, Laczika K, Locker GJ, Bojic A, et al. Prognostic factors for intensive care unit admission, intensive care outcome, and post-intensive care survival in patients with de novo acute myeloid leukemia: a single center experience. Haematologica. 2011;96(2):231-7.
  • 8 Thiéry G, Azoulay E, Darmon M, Ciroldi M, De Miranda S, Lévy V, et al. Outcome of cancer patients considered for intensive care unit admission: a hospital-wide prospective study. J Clin Oncol. 2005;23(19):4406-13.
  • 9 Azoulay E, Mokart D, Pène F, Lambert J, Kouatchet A, Mayaux J, et al. Outcomes of critically ill patients with hematologic malignancies: prospective multicenter data from France and Belgium--a groupe de recherche respiratoire en réanimation onco-hématologique study. J Clin Oncol. 2013;31(22):2810-8.
  • 10 Wohlfarth P, Carlstrom A, Staudinger T, Clauss S, Hermann A, Rabitsch W, Bojic A, Skrabs C, Porpaczy E, Schiefer AI, Valent P, Knöbl P, Agis H, Hauswirth A, Jäger U, Kundi M, Sperr WR, Schellongowski P; Arbeitsgruppe für hämato-onkologische Intensivmedizin der Österreichischen Gesellschaft für Internistische und Allgemeine Intensivmedizin und Notfallmedizin (ÖGIAIN). Incidence of intensive care unit admission, outcome and post intensive care survival in patients with diffuse large B-cell lymphoma. Leuk Lymphoma. 2016;57(8):1831-8.
  • 11 Oeyen SG, Benoit DD, Annemans L, Depuydt PO, Van Belle SJ, Troisi RI, et al. Long-term outcomes and quality of life in critically ill patients with hematological or solid malignancies: a single center study. Intensive Care Med. 2013;39(5):889-98.
  • 12 Tanvetyanon T, Leighton JC. Life-sustaining treatments in patients who died of chronic congestive heart failure compared with metastatic cancer. Crit Care Med. 2003;31(1):60-4.
  • 13 Staudinger T, Stoiser B, Mullner M, Locker GJ, Laczika K, Knapp S, et al. Outcome and prognostic factors in critically ill cancer patients admitted to the intensive care unit. Crit Care Med. 2000;28(5):1322-8.
  • 14 Charan J, Biswas T. How to calculate sample size for different study designs in medical research? Indian J Psychol Med. 2013;35(2):121-6.
  • 15 Massion PB, Dive AM, Doyen C, Bulpa P, Jamart J, Bosly A, et al. Prognosis of hematologic malignancies does not predict intensive care unit mortality. Crit Care Med. 2002;30(10):2260-70.
  • 16 Rivera MJ, Do B, Bryan JC, Shigle TL, Patel R. Complications and toxicities associated with cancer therapies in the intensive care unit. In: Nates JL, Price KJ, editors. Oncologic Critical Care. Cham: Springer; 2019;9. p. 201-27.
  • 17 Seymour CW, Liu VX, Iwashyna TJ, Brunkhorst FM, Rea TD, Scherag A, et al. Assessment of Clinical Criteria for Sepsis: For the Third International Consensus Definitions for Sepsis and Septic Shock (Sepsis-3). JAMA. 2016;315(8):762-74.
  • 18 Freund Y, Lemachatti N, Krastinova E, Van Laer M, Claessens YE, Avondo A, Occelli C, Feral-Pierssens AL, Truchot J, Ortega M, Carneiro B, Pernet J, Claret PG, Dami F, Bloom B, Riou B, Beaune S; French Society of Emergency Medicine Collaborators Group. Prognostic accuracy of sepsis-3 criteria for in-hospital mortality among patients with suspected infection presenting to the emergency department. JAMA. 2017;317(3):301-8.
  • 19 Raith EP, Udy AA, Bailey M, McGloughlin S, MacIsaac C, Bellomo R, et al. Prognostic accuracy of the SOFA score, SIRS criteria, and qSOFA score for in-hospital mortality among adults with suspected infection admitted to the intensive care unit. JAMA. 2017;317(3):290-300.
  • 20 López-Izquierdo R, Brio-Ibañez PD, Martín-Rodríguez F, Mohedano-Moriano A, Polonio-López B, Maestre-Miquel C, et al. Role of qSOFA and SOFA Scoring systems for predicting in-hospital risk of deterioration in the emergency department. Int J Environ Res Public Health. 2020;17(22):8367.
  • 21 Taccone FS, Artigas AA, Sprung CL, Moreno R, Sakr Y, Vincent JL. Characteristics and outcomes of cancer patients in European ICUs. Crit Care. 2009;13(1):R15.
  • 22 Williams MD, Braun LA, Cooper LM, Johnston J, Weiss RV, Qualy RL, et al. Hospitalized cancer patients with severe sepsis: analysis of incidence, mortality, and associated costs of care. Crit Care. 2004;8(5),R291-8.
  • 23 Puxty K, McLoone P, Quasim T, Kinsella J, Morrison D. Survival in solid cancer patients following intensive care unit admission. Intensive Care Med. 2014;40(10):1409-28.
  • 24 Al-Zubaidi N, Shehada E, Alshabani K, ZazaDitYafawi J, Kingah P, Soubani AO. Predictors of outcome in patients with hematologic malignancies admitted to the intensive care unit. Hematol Oncol Stem Cell Ther. 2018;11(4):206-18.
  • 25 Shrime MG, Ferket BS, Scott DJ, Lee J, Barragan-Bradford D, Pollard T, et al. Time-limited trials of intensive care for critically ill patients with cancer: how long is long enough? JAMA Oncol. 2016;2(1):76-83.

Editado por

  • Editor responsável: Leandro Utino Taniguchi

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    07 Maio 2021
  • Aceito
    22 Ago 2021
location_on
Associação de Medicina Intensiva Brasileira - AMIB Rua Arminda, 93 - Vila Olímpia, CEP 04545-100 - São Paulo - SP - Brasil, Tel.: (11) 5089-2642 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbti.artigos@amib.com.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro