Open-access Síndrome do T3 baixo como fator prognóstico em pacientes na unidade de terapia intensiva: estudo de coorte observacional

RESUMO

Objetivo:  Avaliar a síndrome do doente eutireóideo como fator prognóstico em pacientes na unidade de terapia intensiva, detectar fatores que possam influenciar a mortalidade e desenvolver uma equação para calcular a probabilidade de morte.

Métodos:  Este foi um estudo de coorte longitudinal, observacional e não concorrente realizado na unidade de terapia intensiva da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará. Realizou-se coleta de 20mL de sangue em 100 adultos sem endocrinopatia previamente documentada para a dosagem do hormônio estimulante da tireoide, da tetraiodotironina livre, da tri-iodotironina livre e da tri-iodotironina reversa.

Resultados:  A maioria dos pacientes era do sexo feminino, com idades entre 20 e 29 anos. A maioria dos pacientes que morreram era mais velha (idade mediana de 48 anos), e 97,5% deles possuíam a síndrome do doente eutireóideo. A síndrome do doente eutireóideo esteve relacionada à morte, às comorbidades, à idade e ao tempo de internação (mediana de 7,5 dias) na unidade de terapia intensiva. A baixa dosagem de hormônio estimulante da tireoide estava associada à morte. Os pacientes com dosagem da tri-iodotironina livre menor que 2,9pg/mL tinham maior probabilidade de morrer e, naqueles que morreram, a dosagem de tri-iodotironina reversa era maior que 0,2ng/mL. A tri-iodotironina livre apresentou maior sensibilidade e acurácia, e a tri-iodotironina reversa teve maior especificidade para prever a mortalidade. Com base nos resultados e pontos de corte, desenvolveu-se uma fórmula de regressão logística múltipla para calcular a probabilidade de morte.

Conclusão:  Sugere-se verificar oportunamente a dosagem da triiodotironina livre e reversa em pacientes graves e aplicar a equação proposta.

Descritores: Síndrome do eutireóideo doente; Mortalidade; Prognóstico; Cuidados Intensivos; Tri-iodotironina; Tri-iodotironina reversa; Unidades de terapia intensiva

ABSTRACT

Objective:  To assess euthyroid sick syndrome as a prognostic factor in patients in the intensive care unit; to detect factors that may affect mortality; and to develop an equation to calculate death probability.

Methods:  This was a longitudinal, observational, nonconcurrent cohort study developed in the intensive care unit of Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará. One hundred adults with no prior documented endocrinopathy were submitted to a 20mL blood sample collection for the measurement of thyroid stimulating hormone, free tetraiodothyronine, free triiodothyronine and reverse triiodothyronine.

Results:  Most patients were female, aged 20 to 29 years. Most patients who died were older (median age of 48 years), and euthyroid sick syndrome was present in 97.5% of them. Euthyroid sick syndrome was related to death, comorbidities, age and length of stay in the intensive care unit (median of 7.5 days). There was an association between lower thyroid stimulating hormone and death. Patients with free triiodothyronine levels below 2.9pg/mL were more likely to die; reverse triiodothyronine rates were above 0.2ng/mL in those who died. Free triiodothyronine had greater sensitivity and accuracy, and reverse triiodothyronine had greater specificity to predict mortality. Based on the results and cutoff points, a multiple logistic regression formula was developed to calculate the probability of death.

Conclusion:  The main limitation of this study is the fact that it was conducted in a reference hospital for maternal and child care; therefore, there was a greater number of female patients and, consequently, a sampling bias existed. However, opportune measurement of free and reverse triiodothyronine levels in critical patients and application of the proposed equation are suggested.

Keywords: Euthyroid sick syndrome; Mortality; Prognosis; Critical care; Triiodothyronine; Triiodothyronine, reverse; Intensive care units

INTRODUÇÃO

A disfunção da tireoide relacionada à diminuição da síntese de tri-iodotironina (T3) está diretamente ligada a prognóstico desfavorável em doenças sistêmicas graves.(1-3) Esses achados estão relacionados à desregulação neuroendócrina em pacientes graves nos quais há redução da síntese de T3 e de tetraiodotironina (T4), sem estímulo à secreção do hormônio estimulante da tireoide (TSH - thyroid stimulating hormone).(4) Isso se deve ao metabolismo em pacientes graves, que gera a supressão da expressão do gene do hormônio liberador de tireotropina (TRH) e, consequentemente, a sub-regulação da atividade do eixo hipófise-hipotálamo-tireoide.(5)

As mudanças observadas nessas situações foram classificadas como síndrome do doente eutireóideo (SDE), que pode ocorrer em até 70% dos pacientes hospitalizados com doença sistêmica grave, incluindo aqueles com doença hepática, pulmonar e renal grave, estado pós-operatório, trauma físico, infecções agudas, distúrbios psiquiátricos e desnutrição.(6) A SDE consiste em baixa dosagem sérica de T3 total e/ou T3 livre (T3L), alta dosagem de T3 reverso (rT3) e dosagem normal ou baixa de TSH, T4 total e T4 livre (T4L).(7,8) A descoberta mais comum e mais importante, do ponto do vista clínico, é uma diminuição de T3, o que justifica o outro termo, “síndrome do T3 baixo”, mas variantes dessa condição que se apresentam como deficiência de T4 também estão relacionadas a prognóstico desfavorável.(9)

Nesse sentido, a relação entre baixa dosagem de T3 e o prognóstico desfavorável é consistente e pode ser usada como indicador de gravidade de doenças sistêmicas.(3,10) Assim, este estudo visou avaliar a síndrome do T3 baixo como fator prognóstico em pacientes internados na unidade de terapia intensiva (UTI), identificar variáveis que possam interferir na probabilidade de morte e desenvolver um fluxograma para calcular as chances desse desfecho.

MÉTODOS

Este é um estudo de coorte longitudinal, observacional, não concorrente, realizado na Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará (FSCMPA). O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FSCMPA, parecer 2.568.906, em março de 2018.

Entre agosto e dezembro de 2018, de 248 pacientes que foram hospitalizados na UTI da FSCMPA, foram incluídos no estudo 100 pacientes com 18 anos de idade ou mais. Foram excluídos pacientes diagnosticados com endocrinopatia documentada. Entretanto, não foram excluídos pacientes que usavam medicamentos que interferiam na função da tireoide, como amiodarona, lítio, dopamina, andrógenos e esteroides.

Considerando a rotatividade mensal média de 50 pacientes na UTI (aproximadamente 250 pacientes em 5 meses), um intervalo de confiança de 95% e uma prevalência de SDE de 70%, de acordo com a literatura,(6) obteve-se um cálculo do tamanho amostral de 139 pacientes. A impossibilidade de atingir a amostra mínima para o estudo é uma limitação, porém infelizmente os demais pacientes não preencheram os critérios de inclusão, a saber: pacientes com 18 anos de idade ou mais, sem endocrinopatia previamente documentada, que tivessem sido admitidos à UTI durante o período do estudo (Figura 1).

Figura 1
Pacientes admitidos à unidade de terapia intensiva que foram incluídos no estudo.

UTI - unidade de terapia intensiva; SDE - síndrome do doente eutireóideo.


Embora o estudo tenha sido realizado em um hospital materno-infantil de referência, é importante salientar que a UTI adulto da FSCMPA também cobre o tratamento de pacientes do sexo masculino, cujas principais causas de admissão incluem sepse, insuficiência respiratória, insuficiência hepática, colangite, cuidados pós-operatórios, choque, doença cardíaca e neoplasia.

O grupo caso era composto de indivíduos expostos à SDE, enquanto o grupo controle era formado por indivíduos não expostos à SDE. Os dados foram obtidos da coleta de amostras de 20mL de sangue, todas coletadas às 5h da manhã para a dosagem dos hormônios TSH, T4L, T3L e rT3. Foram coletadas amostras de 31% dos pacientes nas primeiras 12 horas após a admissão à UTI, de 26% entre 12 e 24 horas, de 19% entre 24 e 48 horas, de 10% entre 48 e 72 horas e de 14% a partir de 72 horas após a admissão à UTI.

Para a análise de TSH, T4L e T3L, procedeu-se à centrifugação do sangue dentro de 3 horas após a coleta, e as amostras foram armazenadas a uma temperatura de 20 a 25°C. As amostras foram enviadas no mesmo dia para análise laboratorial, durante a qual os hormônios foram dosados utilizando a técnica de quimioluminescência com reagentes SIEMENS®. Para a análise de rT3, o material foi armazenado a uma temperatura de 20 a 25°C e analisado em um prazo máximo de 24 horas por radioimunoensaio, utilizando reagentes ZenTech®. Os valores de referência para análise foram os seguintes: TSH, 0,36 a 5,40µUI/ mL; T4L, 0,74 a 1,72ng/d; T3L, 2,9 a 4,2pg/mL e rT3, 0,09 a 0,2ng/mL. A SDE foi definida como T3L abaixo do valor de referência e rT3 acima do valor de referência, independentemente do valor de referência de TSH e T4L.

As variáveis descritivas coletadas foram sexo, causas do encaminhamento à UTI, comorbidades, presença de SDE, desfecho e causas da hospitalização que levaram à morte. Na estatística descritiva, foram analisadas medidas de tendência central e dispersão. O teste G e o teste quiquadrado foram usados para avaliar variáveis qualitativas; o teste de Mann-Whitney foi usado para avaliar variáveis quantitativas. O ponto de corte foi calculado, o que determinou a sensibilidade, a especificidade e a acurácia das variáveis que mostraram associação significativa com o desfecho de morte naqueles pacientes diagnosticados com SDE. Variáveis que apresentaram correlação significativa foram usadas em regressão logística múltipla para analisar o desfecho de morte, que foi a variável de dependência. Realizaram-se estatísticas descritivas e analíticas utilizando o programa BioEstat® 5.3,(11) com adoção de nível de significância α = 0,05 ou 5% para tomada de decisão.

Para elaborar o fluxograma, que orientou a investigação da SDE, foram identificados pontos de corte com maior significância e acurácia para obter uma previsão de prognóstico mais precisa. Inicialmente, os pacientes internados na UTI dentro de pelo menos 24 horas foram submetidos à triagem de T3L devido sua maior sensibilidade e acurácia no diagnóstico da SDE. Se o T3L estivesse baixo, a investigação continuava com a avaliação da dosagem de rT3.

Se o T3L estivesse baixo e o rT3 estivesse alto, era dado o diagnóstico de SDE, e a avaliação de mortalidade do paciente continuava com a análise de outras variáveis que estavam mais relacionadas à morte, ou seja, idade, tempo de internação na UTI e presença de comorbidades.

A partir desses dados, as cinco variáveis foram classificadas de acordo com seus pontos de corte. Para as variáveis consideradas fatores de risco (rT3, idade, tempo de internação na UTI e presença de comorbidades), atribuía-se 0 (zero) quando a variável estava abaixo do ponto de corte e 1 (um) quando a variável estava acima do ponto de corte. Quando o T3L era considerado fator de proteção, adotava-se o valor de 1 (um) quando a variável estava abaixo do ponto de corte, enquanto 0 (zero) era adotado quando a variável estava acima do ponto de corte. A partir dos pontos de corte, primeiramente calculou-se uma fórmula de regressão logística para identificar o valor de logit Pi. Em seguida, esse valor foi aplicado à fórmula para a probabilidade de morte. O valor final foi expresso em forma decimal e multiplicado por 100 (cem) para identificar a probabilidade de morte expressa em percentual.

Para o ajuste de potenciais confundidores, como idade e comorbidade, realizou-se regressão logística múltipla. Embora a variável comorbidade não tenha mostrado associação significativa com a morte, foi decidido por mantê-la na equação da probabilidade de morte, uma vez que essa associação é significativa na análise univariada.

RESULTADOS

De agosto a dezembro de 2018, dos 248 pacientes que foram hospitalizados na UTI da FSCMPA, 100 consentiram participar da pesquisa ou obtiveram o consentimento de seu representante legalmente responsável para serem incluídos na pesquisa. A maioria dos participantes era do sexo feminino (83%), o que era estatisticamente significativo. A faixa etária mais prevalente foi de 20 a 29 anos (teste quiquadrado; p < 0,0001), e a média de idade foi de 34 anos. Quanto às causas de encaminhamento à UTI, a principal delas foi eclâmpsia (30%), seguida por sepse (26%), insuficiência respiratória (15%), pós-operatório (12%), choque (7%), doença cardíaca (4%), neoplasia (3%) e outras (3%). De todos os pacientes hospitalizados, 59% tinham comorbidades associadas à causa inicial da hospitalização (teste qui-quadrado; p > 0,05), incluindo neoplasia, síndrome da imunodeficiência adquirida, pneumopatia, doença renal crônica, hemorragia, cirrose e insuficiência cardíaca congestiva.

A maioria dos pacientes (36%) permaneceu internada na UTI durante o período de 1 a 6 dias. A duração média de internação foi de 8 dias. Para o diagnóstico de SDE, verificou-se a prevalência da síndrome em 72% dos pacientes (teste qui-quadrado; p < 0,0001).

A maioria dos pacientes apresentava dosagem normal de TSH (83%), de T4L (82%), de T3L (75%) e elevada de rT3 (74%), sendo as duas últimas estatisticamente relevantes (teste qui-quadrado; p < 0,05).

Com relação aos desfechos, 60 pacientes (60%) tiveram alta da UTI, e 40 (40%) morreram (teste qui-quadrado; p < 0,0001). Dos pacientes que morreram, 39 (97,5%) apresentavam SDE. Entre as causas de hospitalização que levaram à morte, a insuficiência respiratória aguda (35%), a sepse (29%) e o período pós-operatório (10%) foram as mais prevalentes. Além disso, os pacientes que morreram eram mais velhos, com idade mediana de 48 anos, em comparação com mediana de 25 anos entre aqueles que não morreram, mostrando associação entre morte e idade (teste de MannWhitney; p < 0,0001). Verificou-se também associação entre morte e tempo de internação na UTI, com mediana de 7,5 dias, em comparação com mediana de 4 dias entre aqueles que não morreram (teste de Mann-Whitney; p < 0,0001).

A prevalência de SDE foi maior entre os homens (94%), ao passo que a prevalência nas mulheres foi de 67,5% (teste exato de Fisher; p = 0,035). A média de idade era maior nos pacientes que tinham SDE, assim como nos pacientes do sexo masculino. Apenas um paciente do sexo masculino, com 61 anos de idade, não apresentava SDE (Tabela 1). Identificou-se a SDE em 90% dos pacientes com comorbidades e em 61,1% daqueles sem comorbidades (teste exato de Fisher; p = 0,0001). A análise estratificada entre comorbidades e morte com a presença ou ausência de SDE demonstrou que, na ausência de SDE, não havia correlação entre comorbidades e morte (teste exato de Fisher; p = 0,85). Em contraste, na presença de SDE, verificou-se associação altamente significativa entre comorbidades e morte (teste exato de Fisher; p = 0,00000035).

Tabela 1
Perfil dos pacientes de acordo com a presença ou a ausência da síndrome do doente eutireóideo

A associação entre dosagem de TSH e presença de SDE foi significativa, demonstrando que valores mais baixos de TSH estão diretamente relacionados com o diagnóstico de SDE.

A correlação entre dosagem de T4L e presença de SDE foi estatisticamente insignificante (Tabela 1). A probabilidade condicional (curva ROC) de TSH, T4L, T3L e rT3 também foi calculada de acordo com o desfecho de morte. A avaliação dos níveis de TSH e sua correlação com a progressão até a morte mostrou que os níveis de TSH eram menores em pacientes que morreram, com mediana de 1,09µUI/mL, enquanto a mediana daqueles que não morreram foi de 1,74µUI/mL (teste de Mann-Whitney; p < 0,023). A avaliação da probabilidade condicional entre TSH e morte revelou ponto de corte de 1,32µUI/mL para TSH, com sensibilidade, especificidade e acurácia de 62,5%, 63,3% e 62,98%, respectivamente. Em contraste, não houve associação entre T4L e morte, e a probabilidade condicional entre T4L e morte revelou ponto de corte de 0,97ng/mL, com sensibilidade, especificidade e acurácia de 52,5%, 61,7% e 58,02%, respectivamente, revelando que o teste foi inespecífico e correlacionado com a mortalidade.

A análise entre T3L e morte mostrou que os pacientes que morreram tinham dosagem de T3L mais baixa, com mediana de 1,5pg/mL naqueles que morreram e 2pg/mL nos que sobreviveram (teste de Mann-Whitney; p < 0,0001), enquanto a avaliação da probabilidade condicional entre T3L e morte revelou ponto de corte de T3L de 1,7pg/ mL (Figura 2A). A correlação entre rT3 e morte revelou valor maior desse hormônio em pacientes que morreram, com mediana de 0,56ng/mL naqueles que morreram e 0,35ng/mL nos que sobreviveram (teste de Mann-Whitney; p = 0,0001). A probabilidade condicional entre rT3 e morte revelou ponto de corte de 0,97ng/mL (Figura 2B).

Figura 2
Curvas ROC para tri-iodotironina livre (A), tri-iodotironina reversa (B) e ambas (C) como testes para prever a morte em pacientes admitidos à unidade de terapia intensiva.

T3 - tri-iodotironina.


Ao comparar TSH, T4L e T3L, notou-se que o T3L apresentava melhor desempenho, revelando-se como o melhor preditor de morte. Entre TSH, T4L e rT3, o rT3 obteve melhor desempenho do que os outros hormônios em correlação com a morte. Entretanto, ao comparar T3L e rT3 como preditores de morte, observou-se que o T3L era superior (Figura 2C).

A avaliação da SDE como fator de risco para morte mostrou prevalência de morte de 54,17% entre aqueles que tinham SDE e 3,57% entre aqueles que não tinham SDE, com razão de chances de 31,9 (p < 0,0001). Assim, a chance de pacientes adultos internados na UTI evoluírem à morte era 31,9 vezes maior entre pacientes com SDE. O aumento relativo do risco foi de 50,60%, mostrando que para cada dois pacientes adultos internados na UTI com SDE, um irá progredir à morte. Ao analisar apenas os pacientes que tinham sido diagnosticados com SDE e o desfecho de morte, o T3L apresentou maiores sensibilidade e acurácia, e o rT3 era o hormônio mais específico.

Isso demonstra que se o rT3 fosse normal, a chance de sobrevida do paciente era maior (Tabela 2).

Tabela 2
Relação entre hormônios da tireoide e morte

A probabilidade condicional entre T3L e morte revelou um ponto de corte de 1,6pg/mL para T3L (Figura 3A; Tabela 2). A avaliação da probabilidade condicional entre rT3 e morte mostrou ponto de corte de 0,87ng/mL (Figura 3B; Tabela 2). Finalmente, ao comparar T3L e rT3 como preditores de morte, o T3L era superior (Figura 3C). Como o T4L e o TSH não apresentaram diferenças significativas entre os pacientes com SDE que progrediram à morte, sua probabilidade condicional não foi calculada.

Figura 3
Curvas ROC para tri-iodotironina livre (A), tri-iodotironina reversa (B) e ambas (C) e suas relações com a morte na presença da síndrome de eutireóideo doente em pacientes admitidos à unidade de terapia intensiva.

T3 - tri-iodotironina.


A correlação entre tempo de internação na UTI e morte em pacientes com SDE foi significativa. Observou-se mediana de 8 dias nos pacientes com SDE que morreram, em contraste com mediana de 4 dias para aqueles que não morreram (teste de Mann-Whitney; p < 0,0001). Para a probabilidade condicional, o ponto de corte foi de 7 dias, com sensibilidade, especificidade e acurácia de 61,5%, 82,4% e 71,24%, respectivamente.

Ao comparar as idades dos pacientes com SDE que morreram, encontrou-se correlação positiva entre morte e idade. Uma mediana de 48 anos foi observada entre os pacientes com SDE que morreram, em contraste com mediana de 23 anos para aqueles que não morreram (teste de Mann-Whitney, p < 0,0001). Para a probabilidade condicional, o ponto de corte foi de 39 anos, com sensibilidade, especificidade e acurácia de 61,5%, 94,1% e 76,7%, respectivamente.

Considerando variáveis significativamente associadas à morte, realizou-se regressão logística múltipla. Foram considerados T3L, rT3, idade e tempo de internação na UTI, com base em seus pontos de corte. A morte foi significativamente associada com as variáveis idade, T3L e tempo de internação. A associação com T3L foi inversamente proporcional, mostrando que valores mais baixos estão relacionados à maior mortalidade (Tabela 3). A partir desses dados, calculou-se a fórmula de regressão: [Logit Pi = -3,1176 + (2,8899 x 0) + (2,6958 x 1) + (0,6120 x 0) + (2,9073 x 0) + (1,9419 x 0)].

Tabela 3
Chances de morte de acordo com as variáveis analisadas

Sugere-se que o fluxograma ilustrado na figura 4 sirva como cálculo para prognóstico em pacientes adultos gravemente doentes internados em UTI com diagnóstico de SDE. Com base nesse fluxograma (Figura 4), foi desenvolvido um aplicativo para telefones celulares chamado Low T3 Death Probability Calculator (LowT3DPC; https://github.com/danlibs/LowT3DeathProbabilityCalculator) para ajudar profissionais da saúde a calcular a probabilidade de morte em pacientes internados na UTI com baixas dosagens séricas de T3L e altas dosagens de rT3, caracterizando a SDE.

Figura 4
Fluxograma sugerido para estimar o prognóstico em pacientes adultos graves admitidos à unidade de terapia intensiva com o diagnóstico de síndrome do doente eutireóideo.

UTI - unidade de terapia intensiva; T3 - tri-iodotironina; SDE - síndrome do doente eutireóideo.


DISCUSSÃO

Perfil epidemiológico

Durante o período do estudo, a maioria dos pacientes admitidos à UTI era do sexo feminino. Isso diverge das evidências relatadas na literatura, a qual enfatiza que os pacientes admitidos à UTI são, em sua maioria, homens. Comumente, a hospitalização de homens está associada a trauma, cirurgia, complicações cardiovasculares e infecções, o que atesta a maior taxa de ocupação por esse grupo na UTI.(12)

Com relação à idade, a faixa etária mais prevalente do estudo em geral era mais jovem do que a relatada na literatura, na qual a idade média dos pacientes admitidos à UTI fica geralmente entre 55 e 65 anos ou mais. Isso inclui pacientes com menores reservas disponíveis, mais comorbidades e maior chance de agravamento de sua condição clínica. Entretanto, embora a maioria da amostra do estudo fosse composta de jovens, as idades mais avançadas estavam diretamente relacionadas com o desfecho de morte.(13)

Nesse contexto, foram observadas idades mais avançadas entre os pacientes que tinham SDE, em comparação com aqueles que não possuíam a síndrome. Evidências literárias que confirmam essas informações indicam que a idade mais avançada do paciente está associada a uma maior chance de ser afetado por lesões agudas e a uma maior taxa de mortalidade, além de mostrar uma associação mais direta com a gravidade da doença, bem como estar relacionada ao estado funcional prejudicado antes da admissão à UTI.(14)

Esses achados concernentes a sexo e idade mais prevalentes podem ocorrer porque a FSCMPA é um hospital de referência para o cuidado materno-infantil. Como resultado, são admitidas mais pacientes do sexo feminino, especialmente aquelas em idade fértil e com gravidez de alto risco. Portanto, há um maior potencial para condições graves que requerem encaminhamento à UTI. Apesar da prevalência de participantes do sexo feminino, a SDE estava associada ao sexo masculino. No entanto, não há evidências na literatura que mostrem um perfil epidemiológico definido em relação a sexo, idade ou grupo étnico de pacientes com maior risco de desenvolver SDE e, como consequência, uma taxa de mortalidade mais elevada.

Causas de encaminhamento e tempo de internação

As principais razões para o encaminhamento de pacientes à UTI foram eclâmpsia, sepse e insuficiência respiratória. Esses achados são semelhantes aos de outros estudos de populações obstétricas, que definem causas hipertensivas e hemorrágicas como os principais fatores de hospitalização, seguidos de sepse, trauma e causas respiratórias.(15) Verificou-se também uma associação entre comorbidades e SDE. Nos casos já diagnosticados com SDE, as comorbidades estavam associadas ao risco de morte.

Quanto ao tempo de internação na UTI, mais dias de internação conferem um risco maior aos pacientes graves, seja devido à progressão da doença ou a um maior risco de patologias relacionadas ao cuidado com a saúde. A associação entre tempo de internação e morte mostrou maior risco a partir do sétimo dia de internação. A literatura é divergente quanto ao número exato de dias que acrescenta maior morbidade e mortalidade, variando de 3 a 7 dias na maioria dos estudos, mas todos são enfáticos em mostrar relação direta entre internação mais longa e maior mortalidade.(16-18)

Mortalidade associada à síndrome do doente eutireóideo

A maioria dos pacientes que progrediram à morte teve diagnóstico de SDE, sendo a insuficiência respiratória, a sepse e as complicações do período pós-operatório as principais causas de morte. Estudo anterior demonstrou que a dosagem de T3L está diretamente relacionada à produção de surfactantes, à depuração do fluido alveolar e à regulação da tensão superficial do líquido alveolar.(19) Além disso, pacientes sépticos têm chance maior de distúrbios da tireoide como a SDE, que está associada a maior morbidade e mortalidade.(20) Assim, a SDE pode ajudar a perpetuar distúrbios metabólicos e pode até estar diretamente relacionada com as principais causas de morte no ambiente hospitalar, especificamente na UTI.

A análise da probabilidade condicional entre hormônios da tireoide e morte revelou que valores mais baixos de TSH e T3L e mais altos de rT3 estavam mais relacionados à morte, enquanto o T4L não apresentou essa associação. Embora o prognóstico dependa da doença subjacente, a comparação das dosagens hormonais mostrou que valores de T3L são mais acurados para o prognóstico de pacientes graves. Estudo realizado em um hospital universitário na China, envolvendo 188 pacientes leucêmicos, demonstrou que baixa dosagem de T3L está relacionada a um aumento do estado inflamatório e prognóstico mais desfavorável de leucemia.(21)

Limitações e perspectivas futuras

Apesar de mostrar uma associação, o método observacional não permite determinar uma relação causal entre SDE e mortalidade em pacientes graves. Em outras palavras, ainda não é possível definir se o distúrbio da tireoide é a causa ou se a mortalidade está associada a um conjunto de alterações causadas por outro distúrbio principal. Entretanto, já foi demonstrada a importância da SDE em diversas patologias, como infarto agudo do miocárdio, queimaduras graves, câncer, cirrose e doença renal crônica.(22-24)

A esse respeito, o uso da ferramenta apresentada neste estudo pode ser interessante para a avaliação do prognóstico de pacientes graves. Reconhece-se, contudo, a necessidade de seu aprimoramento, servindo de base para futuras pesquisas.

Além disso, é importante enfatizar que a suplementação com hormônios da tireoide não é recomendada sob nenhuma circunstância.

Apesar do tamanho mínimo da amostra de 139 pessoas, só foi possível obter o consentimento de cem participantes. Além disso, a pesquisa foi realizada em um hospital referência em cuidado materno-infantil, garantindo a admissão de um maior número de pacientes do sexo feminino, e a principal causa de admissão à UTI foi condições relacionadas ao parto, como eclâmpsia. Assim, pode ter ocorrido um viés de amostragem. A FSCMPA também é referência em gravidez de alto risco, o que pode se associar a maior mortalidade em mulheres jovens. Isso pode gerar resultados de baixa semelhança quando se fala em validação externa, considerando que os pacientes admitidos à UTI são, em sua maioria, homens.(12) Além disso, é importante considerar que a aplicabilidade da ferramenta proposta pode ser prejudicada, considerando a disponibilidade limitada das dosagens de hormônios tireoidianos em alguns hospitais. A ausência de índices prognósticos na análise do estudo, como o Simplified Acute Physiology Score 3 (SAPS 3) e a Acute Physiology and Chronic Health Evaluation (APACHE), também pode ser descrita como uma limitação, apesar de não ser o objetivo deste estudo.

CONCLUSÃO

A síndrome do doente eutireóideo estava presente em 72% da população, e 40% progrediram à morte. Quando a síndrome do doente eutireóideo estava presente, verificou-se associação altamente significativa entre comorbidades e morte. Foram encontradas dosagens mais altas de tri-iodotironina reversa e mais baixas de hormônio estimulante da tireoide e tri-iodotironina livre em pacientes que morreram, sendo este o melhor teste para predizer mortalidade. A chance de progredir à morte foi maior entre pacientes com a síndrome do doente eutireóideo.

Apesar desses achados, a avaliação da síndrome do doente eutireóideo é frequentemente negligenciada na maioria das unidades de terapia intensiva, embora a sua importância já haver sido relatada em estudos anteriores, mostrando a tri-iodotironina livre como um marcador independente de mortalidade em pacientes graves e a relação entre síndrome do doente eutireóideo e desfecho desfavorável em diferentes cenários. Portanto, na disponibilidade desses testes, sugere-se a dosagem oportuna dos níveis de tri-iodotironina livre e tri-iodotironina reversa em pacientes graves internados em unidades de terapia intensiva, assim como a aplicação da equação proposta para ajudar a avaliar seu prognóstico.

AGRADECIMENTOS

À Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará, por todo o apoio e incentivo generosamente oferecidos durante este estudo; também ao laboratório SABIN, pela parceria e pelo patrocínio, que possibilitaram a dosagem hormonal dos pacientes.

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Editado por

  • Editor responsável: Leandro Utino Taniguchi

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Dez 2021
  • Aceito
    02 Maio 2022
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