Resenhas
Um sherlock autista
An autistic Sherlock
Luiz Eduardo Prado de Oliveira
Psicanalista; membro dEspace Analytique, Paris; professor titular da Université de Bretagne Occidentale; diretor de pesquizas da Escola doutoral "Recherches en Psychanalyse", Universidade de Paris 7 Denis Diderot
RESENHA DE:
Haddon, Mark, 2004
Original: The curious incident of the dog in the night-time, Londres: Vintage, 272 pp.
O estranho caso do cachorro morto, Rio de Janeiro, São Paulo: Editora Record, 287 pp.
Há uma certa afinidade entre a psicanálise e os romances policiais. Pessoalmente, suspeito muito que Freud tenha se inspirado em Connan Doyle e em seu pior inimigo, Sherlock Holmes. Como se sabe, o autor Connan Doyle passou grande parte de sua vida tentando libertar-se do personagem por ele criado e que se tornou mais célebre que seu criador. Quem se lembra de Doyle? Lembramo-nos todos de Sherlock Holmes.
A lenda do rei Édipo, no final das contas, é um romance policial: quem matou o rei? "O assassino do rei é, ele mesmo, um rei", diz Tirésias.
Melanie Klein estuda o assassinato de Clitmnestra por seu filho, Orestes. Um dos principais seminários de Lacan trata da "carta roubada", conto de Edgar Allan Poe, baseado em fatos reais e amplamente estudado pela Princesa Maria Bonaparte. Sophie de Mijolla-Mellor é uma das raras autoras psicanalistas a retomar e ampliar a intimidade entre a psicanalise e os "pollards", gíria francesa para esse tipo de novela, em seu livro Meurtre familier : Approche psychanalytique dAgatha Chistie.
Entretanto, a psicanálise se transforma. Os livros de psicanálise vendem menos que os "policiais". Logo, surgiu a idéia de escrever psicanálise em termos de contos policiais. O estranho caso do cachorro morto, livro de estréia do inglês Mark Haddon, é um maravilhoso exemplo desta tendência. Lançado pela Record em 2004, esse livro merece a maior atenção. Belo livro!
Uma amiga observou: "Trata-se de um livro muito chato, até a metade. Depois as coisas ficam mais quentes". Como confio muito em seu julgamento, lembrei-me que Proust e Joyce são também muito "chatos", "até a metade". Encomendei o livro. O título original é The curious incident with the dog in the night-time. Em francês, duas edições diferentes foram publicadas, uma para adultos, outra para crianças. Ambas têm o mesmo título! Le bizarre accident avec le petit chien au milieu de la nuit. A versão infantil tem uma capa mais engraçada e, sobretudo, uma introdução de Sophie de Mijolla-Mellor.
Reparem que não há nenhuma indicação em inglês de que se trata de um "petit chien". Os tradutores brasileiros encontram-se mais próximos do original: "o cachorro". Entretanto, falta a menção a que o incidente ocorreu durante a noite. A menção teria sido útil.
O cachorro se chama Wellington. Quem o descobre morto é uma criança, Christopher. Não se trata de uma criança como as outras. Trata-se de uma criança autista. Lendo o livro, sempre achei que Christopher tinha no máximo dez anos. Uma paciente, de 74 anos, me observou que ele tinha 15. Rimos muito juntos. A velhice induz uma percepção diferente do tempo e das idades. Surpreendo-me chamando de "meninas" mulheres de 50 anos. Minha paciente fala de "seu filhinho", que tem 54 anos.
Christopher não gosta de encontrar ninguém. Logo, só passeia no meio da noite. Vai até o fim de sua rua e volta. De vez em quando, mesmo no meio da noite, vê os vizinhos drogados que voltam para casa. Então, Chistopher se esconde até que tenham desaparecido. Mas o garoto observa intensamente a vida na rua em que mora. Conhece todos os seus vizinhos. Observa-os como observa as estrelas no céu. A maior parte do tempo, Christopher, que mora sozinho com seu pai, as observa ou faz cálculos matemáticos. Mentais. Em seu pensamento, eleva à décima potência a distância entre a Terra e Plutão, por exemplo. Ou brinca de pegar um número qualquer e começar a elevá-lo a potências cada vez maiores. 3 elevado a 2223: trata-se de um cálculo difícil, mas que acalma Christopher, capaz de realizá-lo sem nenhum problema. A mãe de Chritopher morreu. Mas morreu mesmo? Quando é que alguém "morre mesmo"? Christopher escreve seu diário com a ajuda de uma especialista em crianças autistas, que lhe dá indicações, faz recomendações e que, sobretudo, o ama. Um amor triste, cansado, é verdade; mas um amor verdadeiro, resistindo a tudo, um amor cuidadoso, atento, carinhoso, respeitoso. Uma estrangeira ama um garotinho, um pré-adolescente, na Inglaterra.
Christopher vai de porta em porta, em sua rua, perguntando se alguém tem alguma pista a respeito do assassinato de Wellington, o cachorro da vizinha. Passeando no meio da noite em sua rua, Christopher descobre o cadáver de Wellington, assassinado com uma foice. Até que o assassino confesse seu crime! Surpresa: a confissão do assassino implica várias revelações!!! O estranho caso do cachorro morto, de Mark Haddon, não é apenas um romance policial, mas também um estudo sobre o autismo e uma severa crítica das teorias lingüísticas, sobretudo as de Wittgenstein.
O autor descreve com delicadeza a maneira como Christopher descobre o mundo dos adultos, e mesmo o mundo em geral. Trata-se de um estudo sobre os sinais. O que é um sinal, para quem? Eis aqui uma soma de observações sobre as derrapagens das teses de Lacan.
Trata-se de um estudo muito delicado sobre a linguagem. O que quer dizer algo para alguém? Christopher não tem acesso "normal" à linguagem, mas vive no mundo dos sinais, que ele utiliza para questionar a linguagem. Utilizando os sinais, consegue fazer uma longa viagem, descobrir outros crimes, passar em uma prova dificílima de matemática e desistir de ser astronauta. Mas será cientista!
Livro bonito, cheio de ternura. Quando comecei a lê-lo, não consegui mais parar. Lia pelas ruas, entre as sessões, comprei exemplares para distribuí-los entre os amigos, como distribuo estes comentários.
Recebido em 3 de abril de 2006
Aceito para publicação em 23 de novembro de 2006
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
27 Nov 2007 -
Data do Fascículo
2006