Open-access Reconhecimento, Redistribuição e Participação: políticas para uma Educação Matemática em tempos de união e reconstrução

Reconocimiento, Redistribución y Participación: políticas para una Educación Matemática en tiempos de unión y reconstrucción

Resumo

Este texto apresenta uma reflexão sobre contextos, demandas, desafios e anseios que fundamentam expectativas e compromissos de uma Educação Matemática em tempos de união e reconstrução, lema do Governo Federal que se inicia neste ano, 2023, sob o comando do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Apontamos expectativas e compromissos com a promoção de políticas de reconhecimento, de redistribuição e de participação que esperamos assumidas pelo atual Governo. Tais políticas, todavia, demandam e fomentam o engajamento de nossas práticas à justiça social e à construção de um sistema educacional inclusivo, laico, socialmente responsável e atento às possibilidades de ser e de vir a ser de diferentes sujeitos e coletivos sociais que compõem a população de nosso país. Esperamos, assim, que possamos seguir sem soltar a mão de ninguém, olhando para frente, para os lados e para trás, sem hesitar ao dizer: nunca mais!

Palavras-chave: Educação Matemática; Novo Governo; Políticas de reconhecimento; Políticas de Redistribuição; Políticas de participação

Resumen

Este texto presenta una reflexión sobre contextos, demandas, desafíos y angustias que fundamentan las expectativas y compromisos de la Educación Matemática en tiempos de unión y reconstrucción, lema del Gobierno Federal que inicia este año 2023, bajo el mando del presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Señalamos expectativas y compromisos con la promoción de políticas de reconocimiento, redistribución y participación que esperamos sean asumidas por el Gobierno actual. Tales políticas, sin embargo, exigen y alientan el compromiso de nuestras prácticas con la justicia social y la construcción de un sistema educativo incluyente, laico, socialmente responsable y atento a las posibilidades de ser y devenir de los diferentes sujetos y grupos sociales que componen la población de nuestro país. Esperamos, por tanto, poder continuar sin soltar nuestras manos, mirando hacia delante, hacia los lados y hacia atrás, sin dudar en decir: ¡nunca más!

Palabras clave: Educación Matemática; Nuevo Gobierno; Políticas de reconocimiento; Políticas de Redistribución; Políticas de participación

– Quem estará nas trincheiras ao teu lado?

– E isso importa?

– Mais do que a própria guerra.

O célebre diálogo atribuído a Ernest Hemingway nos soa como um alerta. Em tempos de união e reconstrução, lema assumido pelo Governo Federal que se inicia neste ano, 2023, sob o comando do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acreditamos que olhar para o lado, sem deixar de olhar para trás, seja uma tarefa importante e necessária para que o nosso país possa seguir rumos comprometidos com a justiça social.

Apoiando-nos nas advertências de Jurjo Torres Santomé (2017), apresentamos, aqui, nossa expectativa que este Governo, guiado por esse compromisso, aposte em políticas de reconhecimento, de redistribuição e de participação. Todavia, na discussão dessa expectativa queremos posicionar a Educação Matemática ao lado de políticas atuais e futuras que promovam a cidadania e a contrução de um projeto de sociedade solidário, baseado na empatia, na ética, na responsabilidade, na justiça e na inclusão social. Isso supõe assumir posturas e práticas contra o discurso da assepsia e da universalidade do conhecimento matemático, fazendo de nosso trabalho investigativo, de nossa atividade pedagógica e de nossas ações de formação oportunidades e instrumentos de luta contra preconceitos e violências que se originam no desconhecimento e na não aceitação das diversidades.

Por isso, a primeira expectativa que aqui discutimos está ligada ao fortalecimento das políticas de reconhecimento. Nos últimos quatro anos, assistimos, estarrecidos, ao modo como o Governo Federal da época tratou diferentes sujeitos e coletivos sociais, promovendo ações de exclusão e de extermínio que, em nome de valores morais e direcionamentos econômicos, subjugaram pessoas e seus pertencimentos. Como poderíamos esquecer – se é que devemos esquecer – da violência da máxima meninos vestem azul e meninas vestem rosa, assumida como bandeira pela então titular do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves (hoje, sob investigação do Ministério Público Federal por crimes ambientais, de prevaricação e de genocídio pela condição em que se encontram povos Yanomami)? Na contramão desse discurso reacionário e ofensivo a tantas identidades LGBTQIA+, temos, na atual configuração do Governo Federal, o reestabelecimento do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, comandado pelo advogado, filósofo e professor universitário Silvio de Almeida. Em seu laudável discurso de posse, o ministro enfatizou:

Quero, no entanto, estabelecer aqui um primeiro compromisso. O compromisso deste Ministério com a luta de todos os grupos vítimas de injustiças e opressões, que, não obstante, resistiram e resistirão a todas as tentativas de calar suas vozes. Por isso, permitam-me, como primeiro ato como Ministro, dizer o óbvio, o óbvio que, no entanto, foi negado nos últimos quatro anos: Trabalhadoras e trabalhadores do Brasil, vocês existem e são valiosos para nós. Mulheres do Brasil, vocês existem e são valiosas para nós. Homens e mulheres pretos e pretas do Brasil, vocês existem e são valiosos para nós. Povos indígenas deste país, vocês existem e são valiosos para nós. Pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais, travestis, intersexo e não binárias, vocês existem e são valiosas para nós. Pessoas em situação de rua, vocês existem e são valiosas para nós. Pessoas com deficiência, pessoas idosas, anistiados e filhos de anistiados, vítimas de violência, vítimas da fome e da falta de moradia, pessoas que sofrem com a falta de acesso à saúde, companheiras empregadas domésticas, todos e todas que sofrem com a falta de transporte, todos e todas que têm seus direitos violados, vocês existem e são valiosos para nós. Com esse compromisso, quero ser Ministro de um país que ponha a vida e a dignidade humana em primeiro lugar (ALMEIDA, 2023, s.p, destaques nossos).1

Não apenas o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania assume, no atual Governo, que é preciso reconhecer e declarar o que deveria ser tratado como óbvio. Na reconfiguração ministerial, vemos a ampliação do reconhecimento de grupos sociais antes negligenciados, com a criação ou recomposição do Ministério da Igualdade Racial, sob o comando de Anielle Franco; do Ministério das Mulheres, liderado por Cida Gonçalves, e do Ministério dos Povos Indígenas, presidido por Sônia Guajajara. A (re)ativação desses ministérios e a indicação de mulheres de reconhecidas trajetórias de luta em pautas diversas como titulares dessas pastas prenunciam a elaboração e a implantação de políticas públicas que assegurem o direito de pessoas negras, de mulheres e de indígenas em nosso país e que combatam as diferentes formas de violências que acometem esses grupos sociais.

É nesse sentido que, além de um compromisso, vemos na fala de Silvio de Almeida a síntese de uma simples, valiosa e desafiadora posição que esperamos ver assumida e desdobrada em ações efetivas pelo atual Governo: a promoção de políticas de reconhecimento por meio da Educação. O reconhecimento de diferentes sujeitos e coletivos sociais passa, entendemos, pela construção de um sistema educativo que faça jus a um projeto político de sociedade no qual todas as pessoas possam vivenciar, na escola como espaço de socialização, suas formas de ser, em diversidade: uma escola que ofereça condições reais e potenciais de ser e vir a ser, sem restrições ou proibições morais que nascem de preconceitos enraizados em nosso tecido social, os invisibilizam e os naturalizam; uma escola que se assente na igualdade e na equidade não apenas como ideários, mas como uma prática cotidiana de seus projetos e sujeitos.

No âmbito da Educação Matemática, as políticas de reconhecimento podem se situar na adoção e na radicalização de uma posição anunciada pela professora Gelsa Knijnik, em 2004, no VIII Encontro Nacional de Educação Matemática: toda política de conhecimento é, no limite, uma política de identidade. Reconhecer que os conceitos, os procedimentos, as informações, os ideais, os valores e as decisões que assumimos, cotidianamente, no espaço escolar e universitário estão vinculados aos modos como privilegiamos ou silenciamos certas identidades é uma primeira tarefa necessária a nós, pessoas e grupos organizados da Educação Matemática, demandando, fundamentando, articulando, operacionalizando, avaliando e propondo novas ações do atual Governo. Essas ações e nossa inserção nelas devem estar atentas à diversidade das identidades que compõem o público da Educação Básica e do Ensino Superior no Brasil e às demandas e contribuições dessa diversidade na proposição, na reformulação, no desenvolvimento e na avaliação de políticas educacionais.

Como campo de pesquisa e de práticas pedagógicas, a Educação Matemática deve incorporar, em seu discurso e nas outras formas de sua realização, o óbvio a que se referiu Silvio Almeida. É preciso estar atento – e forte, para citar Gil e Caetano, ecoando na voz de nossa eterna Gal Costa – aos modos como determinados conteúdos intencionam formas de ser como mais adequadas do que outras, combatendo direcionamentos identitários e discursos conservadores, que se delinearam nos últimos quatro anos e que se alinharam às políticas educacionais do superado governo.

Em uma reportagem divulgada na página do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA)2, que exalta e reproduz integralmente uma entrevista3 que concedeu a um veículo de comunicação – de credibilidade questionável4, diga-se de passagem –, Marcelo Viana, ex-diretor-geral do Instituto, discute o que chama de descolonização da matemática. Em um momento da conversa, o entrevistador afirma: “Ou seja: não importa se o aluno vai aprender com as cerâmicas marajoaras ou com as calçadas de Lisboa, contanto que aprenda a mesma coisa”. Como reação, Marcelo Viana diz: “Exatamente. Faz parte do DNA da matemática que ela seja universal. Isso a torna uma ciência exata, útil e extremamente flexível”. Mais à frente, o entrevistador comenta: “A impressão é de que o anseio das ciências humanas por ‘desconstrução’ [da matemática] parte de um certo preconceito com as exatas, como se o matemático fosse alheio à realidade, pensando só em ‘caixinhas’”. A esse comentário, o entrevistado responde: “É a mesma sensação que eu tenho e isso é um tanto pedante” (IMPA, 2021, s.p.).

A entrevista de Viana não traz uma argumentação consistente ou qualquer embasamento científico para a perspectiva de conhecimento e de conhecer que ele assume (ou para amparar sua crítica a outras perspectivas); apesar da fragilidade teórica e empírica das considerações que veicula, a entrevista está noticiada na página de um importante Instituto de Pesquisa do país, o IMPA. O discurso de seu ex-diretor nos mostra como a ausência de uma reflexão sobre a constituição e a participação da matemática e de suas práticas em uma sociedade marcadamente excludente leva à incompreensão e ao acobertamento da matemática como elemento de uma estrutura de poder: alçada à condição de geneticamente universal, essa matemática, cotidianamente, confere àqueles que a ela se alinham, e mais ainda, aos que a produzem, dominam e controlam sua circulação, privilégios materiais e simbólicos, ao mesmo tempo em que silencia indivíduos e coletividades, especialmente por meio de práticas educativas que, por se acreditarem veículo de um conhecimento supostamente genérico, absoluto e a-histórico atribui aos artefatos socioculturais de nosso país e de suas comunidades o lugar do tanto faz no âmbito pedagógico.

A restrição do conhecimento matemático a um conjunto de ideias assépticas, gerais e imutáveis, como se não houvesse algo de novo a aprender sobre a matemática com as cerâmicas marajoaras – que, vale lembrar, insistentemente desafiam entendimentos científicos sobre os seus modos de produção –, é confissão da própria cegueira ou leviandade. Quando cientistas do campo da Matemática – e, em eco, professores e professoras que ensinam Matemática – consideram pedante o questionamento que outros pares, como cientistas dos campos das Ciências Sociais e Humanidades, venham a fazer em relação à hipótese da universalidade do conhecimento matemático e de seus modos de produção, apropriação e uso, esquivam-se, como sujeitos e coletividade, do reconhecimento e do compromisso com o enfrentamento do racismo epistêmico incrustrado nos discursos que negam a diversidade e menosprezam o papel dessa negativa na produção das desigualdades.

É com essas preocupações que esperamos do Governo Federal a promoção de políticas que reconheçam sujeitos e coletivos socioculturais diversos, permitindo, em termos materiais e simbólicos, projetos ligados ao ensino de Matemática que enfrentem o discurso reacionário que não vê no conhecimento matemático praticado em escolas e universidades o privilégio de certas identidades – em geral, brancas, masculinas e heteronormativas. É necessário edificar uma Educação Matemática que se coloque a aprender com a diversidade sociocultural de nosso país e que trilhe caminhos para superar a violência e a ineficácia da universalização anunciada pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e pela a Base Nacional Comum para Formação de Professores da Educação Básica (BNC-Formação).

Almejamos do Governo Federal, então, ideários, discursos e recursos para aprender com as cerâmicas marajoaras algo diferente do que se aprende com as cerâmicas de Lisboa: com os corpos que produzem pelas mãos (e pernas, e dorsos…) que modelam, desenham e ornamentam; com as tecnologias que mobilizam; com o flagrante das desiguais condições de acesso ao produzido, que nos obriga a questionar se as mesmas mãos que atualizam o conhecimento ceramista em potes, pratos, vasos e tantas outras peças podem usufruir do que esse conhecimento produz; com a constatação, a análise e a denúncia das condições de trabalho para a produção, muitas vezes servis e com implicações que geram severas assimetrias econômicas e sociais; e com tantos outros elementos de labor e arte, de estética e funcionalidade, de ancestralidade e inovação, de violência e cuidado que nos mostram como ideias e valores matemáticos – tome-se, como exemplo, a simetria – só se configuram como um saber por estarem implicados em formas de fazer e, fundamentalmente, de ser e de vir a ser.

Essa inescapável implicação orienta o papel social, cultural e político da Educação, seja em uma aula de História, ou de Filosofia, de Educação Física, de Marcenaria, de uma Língua Estrangeira… e também de Matemática. Por isso, há muito a se entender sobre o que permite ou interdita a matemática que se pode reconhecer na Ilha de Marajó ou nos gabinetes da Universidade. É nessa direção que se espera do Governo Federal ações para nutrir um sentido de ser matemático(a) ou professor(a) de matemática comprometido com a Educação do povo brasileiro em sua diversidade e em sua constituição identitária, como nos convoca Paulo Freire (2018, p. 241):

[…] eu acredito que é preciso cuidar da especificidade dos intelectuais em um processo de Educação Popular; é preciso aproveitar tudo o que cada um deles sabe, pode e queira fazer bem feito. Deve-se, por exemplo, pedir aos matemáticos: “Venham conosco num sábado para ver como os garotos do povo vendem e como fazem o cálculo sem saber nada da chamada Matemática oficial. Estudem propostas para ver como podemos melhorar o ensino da Aritmética e de outros campos da Matemática em áreas populares”. Se você é matemático ou biólogo, não pode ficar satisfeito somente com as aulas que dá na universidade. Qualquer especialidade pode ser importante para apoiar a Educação Popular, para alcançar uma compreensão mais humanizada e mais científica do que é a identidade cultural do povo.

O compromisso político que alimenta as políticas de reconhecimento nos leva, também, à segunda expectativa que confiamos ao atual Governo, que é a proposição e o fortalecimento de políticas de redistribuição de recursos e de oportunidades. Mesmo sendo muitas dessas políticas previstas no texto constitucional, convivemos, nos últimos quatro anos, com estratégias de deslegitimação, por meio do discurso de uma suposta vitimização – e, mais duramente, pelas tentativas de criminalização – de movimentos sociais e sindicais, além de entidades da sociedade civil, que apresentavam demandas concretas alinhadas a reivindicação de direitos previstos em Lei.

Exemplificamos com um caso emblemático que surge nesse contexto, que se refere à política derivada da chamada Lei de Cotas, Lei nº. 12.711 (BRASIL, 2012), que prevê que metade das vagas em instituições federais de ensino sejam destinadas a pessoas que estudaram em escolas públicas, com recortes à população com baixa renda familiar e a grupos de pessoas negras, indígenas e com deficiência. Alvo constante de críticas por certos grupos que não a validam, sustentando-se no discurso da meritocracia, entendemos que a política de reserva de vagas não pode ser entendida apenas como uma ação de reconhecimento de que um contingente expressivo da população brasileira sofre com os abismos produzidos pela concentração de renda e pelas práticas discriminatórias do racismo e do capacitismo, mas deve ser tomada como política de redistribuição de recursos e de oportunidades entre pessoas de grupos sociais, étnicos, raciais, econômicos e culturais diversos que compõem a nossa população.

Portanto, a Lei de Cotas não se configura como favor ou privilégio: ela é um dispositivo concreto de redistribuição de bens materiais e simbólicos a pessoas que, por condições estruturais do Estado e da sociedade, não possuem as mesmas posições para acessar recursos e oportunidades permitidos pelo Ensino Superior em nosso país. A Lei atende, ainda, a uma necessidade da própria Universidade que não merecerá ser reconhecida como tal se não estiver constantemente comprometida com a incorporação de demandas e contribuições dos diversos grupos que compõem a nossa população.

Nesse sentido, faz-se oportuno destacar que a Lei de Cotas mudou não apenas as feições corporais do conjunto de pessoas com as quais convivemos na Universidade. A diversificação do público das Instituições de Ensino Superior mudou, também, seus modos de indagar, de sentir, de narrar, de pensar, de agir, de conhecer, de pesquisar e de apreciar, enfim, de fazer educação e educação matemática. Tratando de nossa própria atividade profissional na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mesmo reconhecendo que essa instituição não deve ser tomada como um exemplo local, mas nem exatamente típico, vivemos, nos últimos anos, mudanças consideráveis em nosso trabalho na graduação e na pós-graduação com o ingresso de estudantes negros(as), indígenas e com deficiência5. Esses(as) estudantes apresentam problematizações para o ensino e para a pesquisa que, na maior parte das vezes, colocam em evidência como a Educação Matemática pouco se ocupou com pautas sociais e etnicorraciais legítimas que derivassem não só da curiosidade de acadêmicos a partir de seus gabinetes, mas de lutas concretas e urgentes que nascem de pessoas e coletivos que experienciam, cotidianamente, os efeitos excludentes da Educação que praticamos. Uma maior expressividade de intelectuais negros(as), indígenas e com deficiência na Universidade deve ser, por isso, mais do que um sonho: deve ser um projeto a ser fortalecido pelo atual Governo Federal e reivindicado em todas as esferas do espaço público.

Esperamos que políticas de redistribuição de recursos e de possibilidades sejam criadas e/ou fortalecidas de modo a atender mais sujeitos e coletivos sociais, como camponesas, quilombolas, pessoas LGBTQIA+ e outras identidades sociais, étnicas, raciais, geracionais, laborais e territoriais de nosso país. No âmbito da Educação Matemática, acreditamos que um maior investimento em projetos inclusivos – e não apenas meritocráticos, como Olimpíadas e estratégias de melhoramento de scores em avaliações nacionais e internacionais – pode ser um caminho para construir ações educacionais menos voltadas à aquisição de talentos e mais atentas aos contextos, às demandas, às diretrizes, às especificidades, aos desafios e aos anseios de diferentes sujeitos da Educação. Trata-se, então, de construir instrumentos que nos permitam gestar e gerir uma Educação Matemática que respeite, inclua e promova a diversidade, como se espera em uma política de reconhecimento, sem desconsiderar as desigualdades e injustiças que o nosso próprio tecido social produz e perpetua pelos sistemas escolares, redirecionando recursos e oportunidades que possibilitem sua superação.

São inegáveis as potencialidades das políticas de redistribuição e de reconhecimento para a Educação e para a Educação Matemática. Ações como a demarcação de terras indígenas, o reconhecimento de territórios quilombolas ou a organização dos povos do campo na defesa do direito à terra, ao trabalho e à justiça, além das lutas desses coletivos por uma escola que atenda a suas especificidades, tendem a fortalecer a construção de projetos pedagógicos – nas unidades e nos sistemas escolares, e também em cursos de formação de professoras(es) – que sejam orientados à transformação da realidade educacional brasileira. A consolidação das demandas desses sujeitos sociais na Universidade, por exemplo, tem contribuído com a democratização do acesso ao Ensino Superior público, tornando a formação de professores/as que ensinam matemática mais abrangente, inclusiva e potencialmente aberta à participação de grupos historicamente marginalizados que, por razões socioeconômicas e culturais, se defrontam com maiores dificuldades de acesso e de permanência no Ensino Superior.

Por isso, apontamos, ainda, uma terceira expectativa em relação ao novo tempo de união e reconstrução, que é a ampliação de políticas de participação. Fomentar políticas de participação é, entendemos, falar de cidadania e, para Santomé (2017), falar de cidadania é sublinhar a condição idiossincrática das relações entre as pessoas. Assim, trata-se de criar condições específicas de compartilhamento de experiências, de valores, de responsabilidades e de anseios para orientações e decisões que qualifiquem o nosso convívio republicano em uma perspectiva de vivência coletiva do espaço público.

Na contramão dessa compreensão, assistimos, nos últimos quatro anos, ao desmonte de conselhos que acolhiam segmentos da sociedade civil na definição de iniciativas e decisões governamentais em diferentes áreas, como saúde, educação, direitos humanos e meio ambiente. Sustentados pelo discurso da eficiência e da impessoalidade, a extinção ou o esvaziamento desses conselhos impediu a ampla participação popular em assuntos públicos que, devemos reconhecer, foram tomados por setores neoliberais, conservadores e religiosos fundamentalistas, criando verdadeiras barreiras de colaboração, de organização e de ação para debater questões e problemas urgentes à sociedade.

O resultado das eleições em 2022 nos mostrou, contudo, que esse cenário pode ser mudado por ações do atual Governo, mas, também e de maneira mais qualificada, pelo voto popular. Temos nas esferas federal e estadual, hoje, a ocupação de cargos eletivos por mulheres trans e por pessoas indígenas, negras e religiosas não fundamentalistas, que carregam em seus corpos e experiências a luta pela participação de seus segmentos em discussões e decisões sobre temas públicos. Se a batalha pela participação de sujeitos e coletivos sociais está apenas no início, esperamos do atual Governo a capacidade de recompor conselhos com ampla presença da sociedade civil.

No âmbito da Educação Matemática, é imprescindível manter atenção constante aos grupos com os quais nós ou o atual Governo dialogamos para a construção de nossos projetos, buscando relações com setores mais politizados e comprometidos socialmente. Essa atenção tem a ver com a construção de laços que nos possibilitem interrogar, de modos radicalmente democráticos, aquilo a que nos dispomos – como práticas de ensino e de pesquisa, currículos, metodologias, formação de professoras(es) etc. –, investindo na ampliação do interesse e das formas de participação de famílias, de estudantes e de outros coletivos sociais em fóruns de decisão ligados ao nosso campo de atuação.

Um importante e urgente passo nessa direção foi dado em menos de cem dias de trabalho do atual Governo, quando a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), do Ministério da Educação, e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, anunciaram o reajuste e a ampliação das bolsas de graduação e de pós-graduação6. Sem reajuste desde abril de 2013, os valores das antigas bolsas produziam, além da limitação financeira, um desinteresse de estudantes pela ciência, pela tecnologia e pela inovação, minando a participação estudantil nos espaços decisórios da Universidade e enfraquecendo as políticas de permanência de estudantes com condição de vulnerabilidade socioeconômica. As consequências desastrosas dessa falta de reconhecimento da contribuição de estudantes para a construção da qualidade da pesquisa de nosso país foram duramente sentidas nos últimos anos, mas, acreditamos, poderão ser superadas com ações que valorizem e incentivem, inclusive financeiramente, a presença e a participação de estudantes em todas as instâncias da vida universitária, particularmente nos cursos de Pedagogia e nas Licenciaturas. Efeito semelhante no envolvimento da população no projeto educativo do país é visto na reconstrução do Bolsa Família, que retoma a obrigatoriedade da frequência escolar adequada para crianças e jovens beneficiários do programa e incentiva, de forma indireta, a participação das famílias na Educação Básica.

Por fim, destacamos que essas três expectativas – o reconhecimento, a redistribuição e a participação – não devem se distanciar das proposições de políticas e práticas de ensino, de pesquisa e de formação docente, temas caros à Educação Matemática e considerados problemáticos dados o histórico e as implicações que esse componente curricular tem na vida dos sujeitos da Educação Básica e do Ensino Superior.

Os tempos de união e reconstrução que se anunciam exigirão de nós e do atual Governo, fundamentalmente, trabalho. Para o reconhecimento, é urgente o fortalecimento de ideários e discursos como os do respeito, da acolhida e do diálogo das identidades, tratando a Escola e a Universidade como espaços diversos, inclusivos, laicos, socialmente responsáveis e atentos às possibilidades de ser e de vir a ser de crianças, de jovens e de pessoas adultas e idosas. Para a redistribuição, é imprescindível nosso engajamento em políticas de modo a operacionalizá-las, capilarizá-las, constante, coerente e propositivamente avaliá-las, atualizá-las e aperfeiçoá-las, sensíveis e atentas(os) à identificação de novas demandas e à acolhida de novas contribuições e em contínuo diálogo com diferentes sujeitos e coletivos sociais. Para a promoção da participação, são indispensáveis a escuta e a inserção orgânica das demandas, dos questionamentos e das propostas produzidas nos projetos pedagógicos de escolas e de cursos de formação de professoras(es), levando a uma formação imersa na diversidade e que possibilite ampliar a nossa compreensão da sociedade brasileira e de nós mesmas/os em sua composição e transformação.

Que possamos seguir sem soltar a mão de ninguém, olhando para frente, para os lados e para trás, sem hesitar ao dizer: nunca mais!

Referências

  • BRASIL. Lei n. 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Brasília: Casa Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm Acesso em: 5 mar. 2023.
    » https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm
  • FREIRE, P. Pedagogia do Compromisso: América Latina e Educação Popular. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.
  • INSTITUTO DE MATEMÁTICA PURA E APLICADA – IMPA. À Gazeta Viana questiona descolonização da matemática Rio de Janeiro, IMPA, 2021. Disponível em: https://impa.br/noticias/a-gazeta-do-povo-viana-questiona-descolonizacao-da-matematica/>. Acesso em: 5 mar. 2023.
    » https://impa.br/noticias/a-gazeta-do-povo-viana-questiona-descolonizacao-da-matematica/
  • RAHME, M. M. F. et al. Conhecimento e Inclusão Social: ações afirmativas nos 50 anos PPGE-UFMG (1972-2022). Belo Horizonte: Fino Traço, 2022.
  • SANTOMÉ, J. T. Políticas educativas y construcción de personalidades neoliberales y neocolonialistas Madrid: Ediciones Morata, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Abr 2023
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