Resumo
Este artigo analisa movimentos envolvendo processos de raciocínio matemático mobilizados por estudantes ingressantes no Ensino Superior, cursando a disciplina de Cálculo Diferencial e Integral (CDI), em discussões a partir de uma tarefa de natureza exploratória. A pesquisa é qualitativa, de cunho interpretativo e os dados recolhidos para análise são compostos por (i) protocolos contendo registros escritos das discussões e (ii) áudios das discussões nos pequenos grupos realizados em uma turma regular de um curso de Engenharia. Foram analisadas as discussões de quatro grupos, compostos por 3 estudantes em cada grupo. Os resultados obtidos evidenciaram, ao longo dos trechos de discussão dos grupos, um movimento cíclico, com avanços e recuos, de raciocinar sobre relações matemáticas e desenvolver afirmações. Os estudantes levantaram conjecturas e, ao conjecturar, foram identificados três movimentos distintos, que são: (i) abandonar conjecturas definitivamente ou provisoriamente; (ii) refutar tais conjecturas com justificativas, ou sem justificativas; ou ainda (ii) aceitar as conjecturas buscando reconhecer e explicar a validade (ou não) dessas afirmações justificando. Em alguns momentos, esse movimento culminou com o estender, para situações mais gerais, as regularidades observadas em casos particulares, que conduziu ao processo de generalizar.
Ensino de Matemática; Ensino de Cálculo Diferencial e Integral; Processos de raciocínio matemático; Tarefas exploratórias
Abstract
This article analyzes movements involving processes of mathematical reasoning mobilized by students entering Higher Education, taking the subject Differential and Integral Calculus (DCI), in discussions based on an exploratory task. The research is qualitative and interpretative, and the data collected for analysis are composed of (i) protocols containing written records of the discussions and (ii) audios of the small group discussions held in a regular Engineering class. The discussions of four groups, composed of 3 students in each group, were analyzed. The results obtained showed, throughout the discussion excerpts of the groups, a cyclical movement, with back and forth, of reasoning about mathematical relations and developing statements. Students raise conjectures and, when conjecturing, three distinct movements were identified, which are: (i) abandoning conjectures definitively or provisionally; (ii) refuting such conjectures with justifications or without justifications; or still (ii) accepting the conjectures seeking to recognize and explain the validity (or not) of these statements by justifying them. In some moments, this movement culminated with extending, to more general situations, the regularities observed in particular cases, which led to the process of generalizing.
Mathematical Teaching; Teaching Differential and Integral Calculus; Processes of mathematical reasoning; Exploratory tasks
1 Introdução
A disciplina de Cálculo Diferencial e Integral (CDI) é uma parte integrante e essencial do núcleo básico de cursos de Ciências Exatas no Brasil, em especial das Engenharias, e deve contribuir para a desenvolvimento de processos de raciocínio necessário à formulação e solução de problemas de diversas áreas, à análise e compreensão de fenômenos e sua validação por experimentação e à comunicação eficaz, oral, escrita e gráfica (Brasil, 2019).
Caracterizada pelos altos índices de reprovação, o baixo rendimento acadêmico e as dificuldades enfrentadas pelos alunos que ingressam no Ensino Superior são objetos de investigação por professores e pesquisadores há algumas décadas ( Ghedamsi; Lecorre, 2021 ). Entretanto, o que prevalece ainda, na prática de grande parte dos professores, é uma metodologia de ensino que prioriza aulas expositivas e centradas no professor, com conceitos apresentados como “prontos e acabados”, sem a preocupação em torná-los significativos, priorizando, após a aula, que os estudantes resolvam uma série de exercícios, que, em geral, não exigem criatividade ou protagonismo ( Lithner, 2008 ; Cabral, 2015 ).
Em contrapartida a essa prática, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de graduação em Engenharia ( Brasil, 2019 , p.26) destacam que os saberes dos egressos devem ser “empregados para projetar soluções, para tomar decisões e para desenvolver processos de melhoria contínua”. Além disso, competências serão desenvolvidas “em graus de profundidade e complexidade crescentes ao longo do percurso formativo, de modo que os estudantes não apenas acumulem conhecimentos, mas busquem, integrem, criem e produzam a partir de sua evolução no curso”.
O trabalho com ambientes de ensino e aprendizagem, pautados em episódios de resolução de tarefas exploratórias e trabalho colaborativo entre os estudantes procura alinhar-se a essas Diretrizes. Há alguns anos, esse tipo de trabalho tem sido desenvolvido e investigado em turmas de CDI de cursos de Engenharia, por docentes do grupo de pesquisa do qual os autores fazem parte1. Possibilidades de utilização das tarefas de exploração nas aulas de CDI são discutidas em diferentes trabalhos desenvolvidos (Couto; Fonseca; Trevisan, 2017; Trevisan; Fonseca; Palha, 2018; Trevisan; Mendes, 2018 ; Trevisan; Alves; Negrini, 2021). Algumas investigações já realizadas exploraram aspectos do desenvolvimento do raciocínio matemático nesse contexto durante as discussões matemáticas ocorridas no trabalho com tarefas matemáticas, atrelado às ações do professor na condução de discussões matemáticas (Carneiro; Araman; Trevisan, 2022 ; Trevisan, 2022 ; Trevisan; Araman, 2021 ; Trevisan; Volpato, 2022 ).
Para um melhor entendimento dessa questão e ampliação de um modelo previamente proposto neste periódico ( Trevisan; Araman, 2021 ), houve necessidade de aprofundarmos, especificamente, estudos relativos aos processos de raciocínio dos estudantes no contexto do CDI (Lannin; Ellis; Elliot, 2011; Jeannotte; Kieran, 2017 ), em especial, conjecturar, generalizar e justificar, que serão detalhados na continuidade deste texto. Assim, o objetivo deste estudo é compreender os movimentos envolvendo processos de raciocínio matemático mobilizados por estudantes ingressantes no Ensino Superior, cursando a disciplina de CDI em discussões a partir de uma tarefa exploratória . Para a coleta e análise de dados, considerou-se um curso superior de engenharia na disciplina de CDI 1, sob responsabilidade de um dos autores e uma tarefa exploratória ( Ponte, 2005 ), que envolveu a investigação da concentração de uma mistura de água e sal variando com o tempo.
2 Raciocínio matemático e seus processos
Jeannotte e Kieran (2017) esclarecem que, embora as pesquisas no âmbito da Educação Matemática reconheçam a importância do raciocínio matemático, sua definição e seus processos são pouco discutidos. Para essa pesquisa, consideramos a definição de raciocínio matemático proposta por Mata-Pereira e Ponte (2018) e Morais, Serrazina e Ponte (2018), como um conjunto de processos mentais complexos através dos quais se obtêm novas proposições fundamentadas nas proposições conhecidas ou assumidas como verdadeiras.
Considerando nosso foco da análise nesses processos de raciocínio matemático, assumimos, a partir de Jeannotte e Kieran (2017) , que tais processos podem ser organizados em dois grandes grupos: (i) busca por semelhanças ou diferenças, o que inclui conjecturar, generalizar, identificar padrões, comparar e classificar; e (ii) validação, que inclui os processos de justificar e provar. Há ainda, segundo esses autores, o processo de exemplificar, que apoia os dois grupos anteriores. Considerando que conjecturar, generalizar e justificar destacam-se como processos essenciais do raciocínio matemático segundo Ponte, Quaresma e Mata-Pereira (2020), optamos por tomá-los como unidades de análise em nosso trabalho. Detalhamos brevemente esses três processos.
2.1 Conjecturar
Conjecturar, para Jeannote e Kieran (2017, p. 10), é um processo que “infere uma narrativa sobre alguma regularidade com um valor epistêmico de provável”. Para as autoras, conjecturar envolve um processo cíclico de: (i) enunciar uma narrativa; (ii) verificar se ela cobre todos os casos e exemplos; (iii) tentar refutar ou (iv) encontrar um motivo que faça com que a narrativa seja verdadeira, ou tentar modificá-la.
De modo similar, Morais, Serrazina e Ponte (2018) destacam que o processo de conjecturar apoia-se em produzir declarações, denominadas conjecturas, que demandam outras explorações para determinar se são verdadeiras. Para Lannin, Ellis e Elliot (2011), as conjecturas podem também surgir a partir da análise de exemplos específicos ou então de inferências a partir de uma situação específica.
No âmbito do trabalho com tarefas matemáticas, Ponte, Brocardo e Oliveira (2019) relatam que os estudantes requerem um tempo para familiarizar-se com ela e organizar as informações iniciais. Para os autores, essa fase é essencial na formulação de conjecturas, visto que elas podem surgir por “observação direta dos dados, por manipulação dos dados ou por analogia com outras conjecturas”.
Para Jeannote e Kieran (2017), o processo de conjecturar envolve a procura por semelhanças e diferenças, concluindo uma narrativa sobre alguma continuidade com um valor epistêmico de provável e com potencial para argumentação matemática. Assim, a conjectura, estando ela correta ou não, demanda de outros processos de raciocínio. Ponte, Quaresma e Mata-Pereira (2020) destacam que a formulação de conjecturas de natureza mais geral, por sua vez, está interligada com o processo de generalizar, discutido a seguir.
2.2 Generalizar
Generalizar uma conjectura compreende uma mudança do valor epistêmico, de uma conjectura possível para uma regra geral aceita. Esta é uma mudança no que se acredita sobre a afirmação. Se alguém acredita que a conjectura é verdadeira para um caso geral, então a generalização ocorreu. Caso contrário, continua sendo apenas uma conjectura (Jeannote; Kieran, 2017).
Ainda se tratando da caracterização desse processo de raciocínio matemático, uma “generalização envolve identificar semelhanças entre casos ou estender o raciocínio para além do domínio no qual se originou” (Lannin; Ellis; Elliot, 2011, p. 12). Esses autores esclarecem que esse “identificar” envolve notar o que é igual entre diferentes problemas, representações, contextos e situações, enquanto “estender um raciocínio” refere-se a pensar sobre uma relação, representação, regra, padrão ou outra propriedade matemática e enxergá-la num domínio mais amplo.
Mata-Pereira (2012) , apoiada em Galbraith (1995) , destaca que a generalização, enquanto conjectura com características particulares, tem um papel essencial na compreensão da Matemática, pois esse processo de raciocínio é uma das bases da construção da Matemática enquanto ciência. De acordo com a autora, a validade de uma generalização deve ser considerada de acordo com as capacidades, o conhecimento e as competências dos estudantes.
2.3 Justificar
Para Jeannotte e Kieran (2017) , o processo de justificar está ancorado na passagem do provável para o verdadeiro, para o falso ou, até mesmo, para o mais provável. Além disso, “justificar é um processo social e pode assumir dois formatos: (i) justificar a conjectura que surgiu no processo e (ii) relatar a validade que altera o valor epistêmico” ( Jeannotte; Kieran, 2017 , p. 12). O primeiro formato está relacionado à justificativa de uma conjectura que permite mudar o valor epistêmico de provável para mais provável. O segundo tipo de passagem epistêmica está relacionado a uma validação que muda o valor epistêmico de provável para verdadeiro ou falso.
Assim, o processo de justificar solicita que o estudante não apenas mostre que uma afirmação é verdadeira ou falsa, mas que forneça razões pelas quais ela é verdadeira ou válida em todos os casos possíveis. No processo de justificar, os alunos “não apenas desenvolvem suas habilidades de raciocínio, mas também seu entendimento conceitual” (Morais; Serrazina; Ponte, 2018, p. 556).
Mata-Pereira (2018) alerta que nem todas as justificações apresentadas em sala de aula têm natureza puramente matemática. Apoiada nos estudos de Brousseau e Gibel (2005) , a autora organiza três tipos de justificativas: (i) não formal – não é apresentada rigorosamente pelo estudante, mas pode ser atribuído às suas ações; (ii) formal incompleta – apresenta pressupostos com base apenas em componentes da situação; (iii) formal completa – está apoiado em uma sequência de encadeamentos interligados, com referência esclarecedora e que evidencie elementos da situação. Embora se baseie amplamente na situação, justificativas do tipo (iii) acontecem especialmente em situações de validação, enquanto tipo (ii) ocorre em momentos de formulação e tipo (i) é decorrente de circunstâncias em que o estudante não utiliza, de maneira consciente ou explícita, um processo de justificar.
A autora ainda apresenta, a partir de uma ampla literatura, vários níveis de complexidade de uma justificativa: (i) nível 0 – não justificar, se as justificações dos alunos não incluem uma justificação; (ii) nível 1 – autoridade externa, ocorre quando as justificações dos estudantes se apoiam em outra pessoa, por vezes no professor ou em materiais de referência; (iii) nível 2 – evidência empírica, ocorre quando a justificativa é baseada em casos particulares; (iv) nível 3 – justificação dedutiva, que considera três distinções, que são: (a) coerência lógica, ocorre quando baseada em princípios lógicos; (b) exemplo genérico, quando é dedutiva, mas formulada considerando um exemplo ou caso particular; e (c) procedimento ou propriedade, se baseada em argumentos dedutivos independentes de casos particulares ou exemplos.
3 Procedimentos metodológicos: contexto, participantes e métodos utilizados
Os participantes do estudo foram estudantes ingressantes em um curso superior de Engenharia de uma Universidade Federal do estado do Paraná, Brasil, que cursaram a disciplina de CDI1 (sob responsabilidade de um dos autores) no 1º semestre de 2019. A disciplina era ofertada no 1º semestre do curso, simultaneamente à Geometria Analítica e Álgebra Linear, e contemplava o estudo de funções, limites, derivadas e integrais de uma variável real, com uma carga horária de 90 horas e seis aulas semanais de 50 minutos. Em geral, um quarto dos encontros da disciplina foi dedicado ao trabalho com episódios de resolução de tarefas.
Para o desenvolvimento da tarefa aqui analisada, que ocorreu em um desses episódios – 3 horas-aula de 50 minutos – ao final do primeiro mês de aula, os 30 estudantes presentes naquele dia estavam organizados em grupos de três estudantes. Considerando os conteúdos propostos no planejamento semestral do professor da disciplina, neste momento, os estudantes já haviam estudado modelos de funções polinomiais e limites de sequências numéricas, e o desenvolvimento da tarefa antecedeu intencionalmente a extensão desse conceito para o caso de funções de domínio real, no caso estudo de limites no infinito.
Como discutido por Abreu e Reis (2011 , p.445), “independente de qual maneira ou até o mesmo qual público pretendemos alcançar, o conceito de limite é, em si, complexo ao ser ensinado”. A intenção com proposição da tarefa era que os estudantes pudessem explorá-lo de forma mais intuitiva – ligada a uma “compreensão imediata” do assunto (Abreu; Reis, 2021), no contexto de uma situação aplicada, antes que sua definição formal (usando épsilons e deltas) fosse sistematizada pelo professor.
Em um primeiro momento, os grupos trabalharam de forma autônoma e colaborativa, com algumas intervenções pontuais do professor à medida que acompanhava o trabalho dos grupos. O foco das análises está neste primeiro momento e, sendo assim, a coleta dos dados foi realizada por meio da gravação em áudio e posterior transcrição das discussões realizadas entre os estudantes nesse momento. Na continuidade, houve uma discussão coletiva, mediada pelo professor a partir das resoluções dos estudantes.
Pelas suas características, a tarefa foi considerada como exploratória ( Ponte, 2005 ), sendo aberta, em que é claramente dito o que é dado e o que é pedido, e de desafio reduzido, conforme enunciada a seguir: Um tanque contém 5000 litros de água pura. Uma mistura contendo 750 g de sal diluídos em 25 litros de água é bombeada para o tanque a cada minuto. Investigue como se comporta a concentração da solução no tanque para valores de tempo "muito grandes" (baseada em Santos e Bianchini (2002) ).
Nessa tarefa, é possível analisar: (i) a quantidade de sal (em gramas) como função do tempo (em minutos), no caso ℚ1(t) = 750 t ; (ii) a quantidade de água (em litros), também como função do tempo (em minutos), no caso ; e (iii) a concentração da mistura (em gramas por litros), em função do tempo (em minutos), no caso . Para valores muito grandes de tempo (desconsiderando o volume do tanque que contém a mistura), a concentração tende a se tornar cada vez mais próxima de 30 . Matematicamente, esse comportamento refere-se ao cálculo de . Para valores muito grandes de tempo (desconsiderando o volume do tanque que contém a mistura), a concentração tende a se tornar cada vez mais próxima de 30 . Matematicamente, esse comportamento refere-se ao cálculo de .
Também é possível analisar a situação numérica (por exemplo, considerando valores inteiros e positivos de tempo) e graficamente, como representado na Figura 1 . Na tabela apresentada nesta figura, foi incluída uma coluna para a variação da concentração, entre dois instantes de tempo sucessivos (positivos e inteiros), com quatro casas decimais. Quando truncados, os primeiros valores da tabela podem sugerir (incorretamente), que essa variação é constante.
O estudo que deu origem a este artigo foi desenhado como uma pesquisa qualitativa, de cunho interpretativo ( Bogdan; Biklen, 1994 ). O material produzido e recolhido continha fotos dos registros escritos e áudios de discussões em pequenos grupos, enviados voluntariamente pelos próprios alunos diretamente para o Whatsapp do professor da disciplina da pesquisa. Essa coleta de dados tem respaldo conforme projeto aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade.
Uma primeira etapa do trabalho de análise consistiu em organizar esse material e selecionar quais desses materiais efetivamente poderiam ser analisados, descartando arquivos que estavam corrompidos, registros escritos não legíveis e registos em áudio inaudíveis. Foi considerado o material de 4 grupos, pois estes apresentavam uma melhor qualidade nos áudios, sendo possíveis a transcrição na íntegra, em articulação com os protocolos produzidos. Neste artigo, identificamos os estudantes pelas letras iniciais dos nomes fictícios atribuídos a cada um deles, e Prof para o professor.
De posse da transcrição das discussões ocorridas nos grupos, com base nas etapas presentes no modelo de Powell, Francisco e Maher (2004), inicialmente o material foi ouvido e transcrito integralmente; em seguida, os momentos significativos foram identificados e selecionados para posterior análise.
Para análise desses dados, no intuito de compreender os movimentos envolvendo processos de raciocínio matemático mobilizados pelos estudantes nas discussões da tarefa, e considerando que conjecturar, generalizar e justificar destacam-se como processos essenciais do raciocínio matemático (Ponte; Quaresma; Mata-Pereira, 2020), foi elaborado um modelo que organiza movimentos envolvendo tais processos ( Figura 2 ), que emergiram dos dados, de forma indutiva ( Bogdan; Biklen, 1994 ). Em especial, no caso do processo de justificar, inspirados em Mata-Pereira (2018) , procuramos reconhecer características das justificativas elaboradas pelos estudantes (com autoridade externa, uso de exemplo genérico, evidência empírica ou coerência lógica), porém sem classificá-las em níveis.
4 Apresentação e análise de dados
A transcrição e análise completa dos áudios pode ser consultada em Negrini (2022) . Nesse artigo, trazemos apenas alguns recortes representativos, para cada um dos quatro grupos em análise, no intuito de destacar os processos de raciocínio mobilizados pelos estudantes na resolução da tarefa e, com base no modelo proposto, evidenciar os principais movimentos identificados envolvendo tais processos.
4.1 Grupo 1
Os estudantes B, F e E inicialmente formularam algumas conjecturas iniciais acerca da concentração da mistura de água e sal, realizando cálculos para diferentes valores de tempo, no intuito de compreender o enunciado da tarefa. Destaca-se aqui um trecho na qual identificamos uma conjectura justificada com coerência lógica, a partir da fala do estudante E, quando esclarece para seus colegas como se comporta a concentração e como teria feito os seus cálculos.
E: Então o que acontece é o seguinte, tem 5000 litros no tanque, aí fala que a cada minuto entra 25 litros que é jogado ele tem 750 gramas de sal. Aí o que eu fiz, eu peguei e multipliquei essa concentração de sal, por exemplo, aqui fala que por minuto será diluído 25 litros e 750 gramas de sal. Aí por exemplo, em 20 minutos será despejado na caixa 500 litros né? Aí soma mais o que já tinha que é 5000 aí vai ser 5500, aí a concentração de sal seria 20 vezes 750 que dá 15 kg, aí você divide 15000 pelo total de litro que é 5500. Quanto mais tempo jorrar a água dentro do tanque vai aumentar a concentração de sal, porque a água que tá entrando, tá entrando com 750 gramas de sal. Só se ele falar que a partir de 1 hora vai entrar só água, aí vai começa a descer, mas como sempre entra sal então vai aumentar cada vez mais. Infinitamente.
(Excerto da fala do estudante E, 2019).
Em um momento da discussão marcado pelas intervenções do professor, os estudantes apresentam justificativas para conjecturas até então elaboradas. Porém, elas emergem apenas pela presença de uma autoridade externa.
Prof: E como essa relação vai se comportando? Quando eu combino os dois?
E: A gente calculou a concentração de sal por litro.
F: Porque a água ela vai aumentar linear.
B: Isso ele é constante, porém a quantidade de sal que vai caindo ela sempre vai deixando a água do tanque mais salgada. Embora seja pequena essa diferença a longo prazo vai ter um momento que a água vai ficar bem salgada, com bastante quantidade de sal.
(Diálogo entre Professor e estudantes, 2019).
Por fim, o grupo elabora conjecturas atreladas a representações gráficas com auxílio do Geogebra, e apresenta dificuldades em chegar a uma generalização. Finalizam elaborando e validando uma conjectura de que a concentração uma hora vai se estabilizar , com a justificativa empírica de que, no cálculo, há um valor 5000 no denominador.
B: Pelo o que eu estou entendendo ele vai começar assim né, bem lentamente e vai subindo, mas acho que ele não chega estabilizar.
E: Põe um número absurdo; sei lá, tipo1 ano.
F: Faz por exemplo, por tempo e concentração de sal, vai ser mais ou menos assim....
B: Um dia tem 1040 minutos, vezes 365 dá 525600 minutos. Vezes 750, é 394.200.000, no caso seria 394,2kg né? Dividido por 13.045.000.
F: Acho que eu sei, porque na fórmula tem que esse sobre 5000 né? Chega uma hora que vai estabilizar...
(Diálogo entre os estudantes, 2019).
4.2 Grupo 2
Em um primeiro momento, no grupo por V, L e P, destaca-se um movimento de elaborar diferentes conjecturas e justificativas. Em especial, no trecho a seguir, V conjectura a respeito da concentração a longo prazo, e justifica com coerência lógica, ao dividir 750 por 25:
V: Vamos nas ideias iniciais que a gente teve? A primeira delas é de que você vai adicionar segundo o exercício, 25 litros de água que é bombeado para o tanque a cada minuto. Então, de 1 em 1 minuto, você vai ter a entrada de 750 gramas de sal, diluídos em 25 litros de água que são bombeados para dentro do tanque que já tem 5000 litros de água. A ideia inicial é de que a concentração ela começa pequena depois ela tende a um determinado valor. Seria 30, é porque 30 gramas por litro seria a concentração que você teria, que é de 750 gramas para cada litro dentro dos 25 que é adicionado.
(Excerto da fala do estudante V, 2019).
Essa justificativa, porém, não é aceita pelos demais integrantes, que apontam a necessidade de elaborar uma fórmula . Nesse processo, há indícios de uma tentativa de generalização, com a procura de expressão que represente a concentração como função do tempo. Para validar a expressão encontrada pelo grupo, um dos estudantes sugere utilizarem o Geogebra.
V: Vamos usar o Geogebra aqui para ver se deu certo que a gente pensou...Vamos colocar aqui como entrada em função de x .
P: Dai x seria a concentração por tempo né
V: , olha como é pequena a variação de tempo dele, nossa... vai ficar muito perto de 0, não vai ter um momento que ele vai chegar perto daquele valor que a gente quer.
P: Só isso? De 0?
V: Não, ele não tá em 0 aqui. Tá em um valor muito perto. Tá vendo que aqui ele já tá longe do eixo?
P: Mas será que isso aqui está certo?
L: Eu acredito que sim, porque a concentração vai ser minúscula. Vai ser sempre minúscula, você vai dividir em kg por 5000 litros.
(Diálogo entre os estudantes, 2019).
Nesse momento, os estudantes parecem ter elaborado corretamente uma generalização, expressa algebricamente, para a concentração como função do tempo, porém apresentam algumas dificuldades em compreender a representação gráfica. Pelo fato do gráfico parecer uma reta com valores de tempo relativamente pequenos, os alunos parecem invalidar a conjectura de que a concentração se estabiliza a longo prazo.
4.3 Grupo 3
Em um primeiro momento, no grupo formado por M, C e J, o estudante M sugere que concentração será 30 g/L a longo prazo, e que esse valor nunca será alcançado. Reconhecemos a partir dessa fala, a formulação de conjectura plausível (cujo valor foi obtido, possivelmente, da divisão de 750 por 25). Entretanto, o grupo não parece estar muito convencido disso, e opta por calcular a concentração para valores de tempo individuais, na tentativa de validar essa conjectura.
M: O que tá adicionando é 25 litros, e 750 gramas de sal. Dá 30 gramas por litro, tipo tende a ser isso a longo prazo, mas nunca vai chegar.
J: Isso sempre vai ser constante, só que a diferença vai ser o que vai adicionar, no caso.
C: Essas 30 gramas por litro sempre vai ser constante?
J: É, o que vai alterar é a concentração dos 5 mil litros. Porque vai aumentando, vai ser 5025 litros e assim por diante a cada minuto.
(Diálogo entre os estudantes, 2019).
Os estudantes então calculam os valores de concentração para valores de tempo correspondentes a 1 e 2 minutos (uso de exemplos particulares). Por meio desse raciocínio, o grupo poderia obter uma generalização para o cálculo da concentração como função do tempo; porém, essa ideia não foi explicitada ou justificada nessa etapa da discussão. Os valores obtidos da divisão da quantidade de sal (750 vezes o tempo), pela quantidade de água (25 vezes o tempo, mais 5000) foram simplesmente “aceitos” como corretos pelo grupo, sem passar por algum processo de validação. A discussão prossegue:
M: Com um minuto dá 0,14 gramas por litro, daí vai aumentando né.
C: E em 5050, o que acontece?
J: 1500 gramas para 5050 litros.
M: É, dobrou praticamente [o grupo registra, em uma tabela, o valor 0,29].
J: Só que, no caso, ele quer para quantidades muito grandes.
M: Sim, dá para gente fazer.
C: Coloca aí para 30 minutos. Dá para fazer 30 vezes 25, mais os 750.
M: É 3,9.
C: Ele vai aumentando né, até o infinito.
J: Não.
M: Até o trinta né?
J: Na verdade ele nunca vai chegar ao trinta.
C: Trinta é o limite, né?
(Diálogo entre os estudantes, 2019).
Dos valores obtidos, reconhecemos no trecho acima a formulação de duas novas conjecturas: (i) o valor da concentração está aumentando, e (ii) o valor da concentração praticamente dobrou. Essa segunda conjectura, em princípio, parece ser abandonada; já a primeira procura ser validada na continuidade da discussão, por meio do cálculo do valor da concentração no tempo 30 minutos (outro exemplo).
O grupo opta então por obter uma representação algébrica para a concentração da mistura como uma função do tempo. Há um movimento de formulação e reformulação de conjecturas que se intensifica na tentativa de expressar algebricamente a concentração como função do tempo. Entretanto, não há uma preocupação do grupo, nesse trecho da discussão, em justificar suas conjecturas. O trecho a seguir ilustra esse fato. Nele, o estudante J procura relacionar, aparentemente de forma arbitrária, os valores presentes no enunciado da tarefa (25, 750 e 5000). Tais hipóteses são refutadas pelo próprio estudante J, sem uma justificativa mais elaborada, e também por C pelo fato de as fórmulas sugeridas levarem a valores de concentração muito grandes (ou seja, cuja ordem de grandeza não condiz com valores obtidos anteriormente).
J: Pode ser 25 vezes 750... Não! ?
C: Não.
J: Mas, e se colocar 0,3?
M: É que o x tem que ser minuto né.
J: é eu acho que vai ser .
[silêncio]
J: Ah não! Não tem nada a ver. Deve ser alguma coisa parecida com isso, mas não sei o que está errado.
M: O que você falou [dirigindo-se ao estudante C].
C: Vai dar um valor muito grande, eu acho.
(Diálogo entre os estudantes, 2019).
Ao longo da discussão, o grupo assume como válida a conjectura de que a concentração, a longo prazo, aproxima-se do valor 30 g/L, e tenta incorporar esse valor em sua expressão algébrica, como evidenciado a seguir:
C: Pensa bem, sempre tá aumentando 25 de um para outro.
J: Certo.
C: Então vai ser 5000 + 25 , esse 25 tenho quase certeza que ele existe, vezes o tempo. Não! Calma.
J: Acho que vai ser assim, , por que é concentração?
M: Não! A concentração não vai mudar.
C: 25 vezes o tempo. Então, t=1 , temos 5025. Beleza. Isso a gente achou, agora a gente tem que achar uma fórmula para aplicar na concentração. Será que eu divido alguma coisa?
J: Mais 750t ?
C: Agora como que a gente achou essa concentração. Essa concentração de 30gramas por litro?
(Diálogo entre os estudantes, 2019).
Temos, nesse trecho, que os estudantes são capazes de representar, de forma independente, como funções do tempo, tanto a quantidade de sal (750 vezes o tempo) quanto a quantidade de água (25 vezes o tempo, mais 5000), indicando processos de generalização mobilizados.
4.4 Grupo 4
Assim como nos grupos anteriores, os estudantes R, G e M inicialmente elaboram algumas conjecturas em relação à concentração da mistura de água e sal, mas na maioria das vezes essas conjecturas não trazem justificativas. Porém, no caso desse grupo, em especial, observamos um movimento de conjecturar se intensificando, e começa a se destacar um processo de generalizar. O trecho a seguir ilustra essa característica:
M: É, a gente tem que achar a função pra poder jogar um número bem lá na frente.
G: Faz aí mais uns três tempos...
[Realizando cálculos no caderno].
R: Eu acho que vi um padrãozinho, mas vamos esperar. Que aqui ó...
M: De lá para cá dá 15 de novo. Daqui para cá e daqui para lá dá 15. Eu adoro quando dá certo.
R: Vai fazer mais?
G: É, só manter constante.
R: Um leve padrão. Acho que agora a gente tem que bolar uma função. Porque daí a gente faz o limite, quando o t tende ao infinito.
G: Vai chegar uma hora que essa concentração vai manter né? Porque sempre vai tá acrescentando mais água então a concentração nunca vai ser...
M: É porque se tivesse acrescentando só sal uma hora ia saturar, mas está adicionando diluído em água então por mais que ela aumente, não vai crescer pra sempre, ela vai ficar tipo meio que...
G: É ela não vai cair...
M: É, ela não cai.... ela vai subir... aí sei lá como ela vai... tem que tentar fazer o...
R: Formulinha.
(Diálogo entre os estudantes, 2019).
Ao longo do trecho, frases como Estou vendo um padrãozinho ou vamos encontrar uma função dão indícios do início de um processo de generalizar, embora nesse trecho ainda estejam elaborando conjecturas e testando a concentração para valores de tempo diferentes. Na continuidade, evidencia-se um processo de generalização, no qual os estudantes realizam tentativas de encontrar uma relação algébrica para a concentração, como exemplificado a seguir:
M: É... 5000 + 𝑡. 25 , porque quando o t é zero fica 5000, t1 é 1 vezes 25, t2... Mais 750 vezes o t também.
G: Ficaria 5000 mais a constante.
M: Não, 5000 é a constante.
R: Tá bom, vai ficar então 5000 + 25𝑡 + 750𝑡
G: Então a gente tem que fazer... vamos supor, coloca t valendo 3... porque se a gente colocar, por exemplo o t valendo 4 a gente tem que encontrar 0,58, se encontrar tá valendo entendeu?... ai você vai tirar a prova. A gente vai tirar prova da fórmula. A gente vai jogar t igual a 4 e se encontrar 0,58 a fórmula bate, se não, tem alguma coisa errada. Entendeu?
R: Vamos trocar t aqui por 4 e tem que encontrar quanto?
G: Tem que encontrar 0,58.
R: Como você vai encontrar 0,58 somando 5000 + 25.4 + 750 vezes?
M: Não, 0,58 não, por que isso é da concentração... A gente tem que fazer uma fórmula...
R: A concentração vai ser a massa dividida pelo volume. A massa vai ser 750. t e o volume vai ser 5000 + 25. 𝑡 . Então fica
M: É eu acho que é isso.
G: Agora sim, a gente pode aplicar e ver se vai dar.
M: Deixa eu fazer uma aqui...
R: Faz com 4...
(Diálogo entre os estudantes, 2019).
Inicialmente, o estudante elabora uma conjectura e tenta validá-la para alguns valores de tempo. Após algumas tentativas, o grupo encontra a generalização que buscava, justificando que a concentração vai ser a massa dividida pelo volume e utilizam justificativas com exemplo genérico e, para validá-las, as testam para quantidades de tempo. Finalizando a discussão desse grupo, o professor (autoridade externa) se faz presente, desafiando os estudantes a sintetizar e, principalmente, justificar as conjecturas e a generalização elaborada até aquele momento. No trecho a seguir, o professor instiga o grupo a pensar no comportamento da função a longo prazo:
G: Agora a gente vai ver quando ele tender ao infinito...
Prof: Qual a hipótese de vocês do que acham que vai acontecer?
G: É o que a gente vai ver...
Prof: Mas não tem nenhuma ideia assim, tipo “eu acho que vai acontecer...”
G: Então, por exemplo, como você sempre tá adicionando 25 litros de água ela não chega a saturar, mas em longo prazo...a concentração de sal vai se aproximando....
Prof: De quanto?
R: Agora vamos tentar fazer o limite. Eu não lembro mais a regrinhas certo, vocês lembram?
G: Eu acho que quando tende ao infinito multiplicado por um número muito grande... tende a zero. Também não lembro como colocava.
R: Porque olha, o que vai acontecer este número aqui ele vai ficar muito grande, e essa parte aqui também vai ficar muito grande.
G: E sempre maior... eu acho que ele vai tender a...
R: Olha quando for 1 milhão deu 29,99
M: Então sempre vai aumentar
R: É, mas até qual número? Porque tipo, não passou de 30, mas até qual número que chega?
R: Deixa eu ver 10 elevado a 50 quanto dá... O máximo que vai chegar é 30, porque com 10 elevado a 50 deu 30. E 10 elevado a 9 deu 29,9
M: Aí a gente espera o professor responder pra gente...
R: Eu sei o porquê, porque 750 dividido por 25 é 30. Quando esse t for muito grande. Esse 5000 vai se tornar desprezível, então vai ficar o que? Praticamente 750 dividido por 25 então nunca vai passar de 30 mesmo.
M,G: [palmas].
(Diálogo entre os estudantes, 2019).
Como R diz não se recordar de regras (técnicas) para o cálculo de limites, ele elabora conjecturas sobre o comportamento do numerador e do denominador da expressão (as quantidades de sal e de água, em separado); G parece concordar, e conjectura que a concentração parece tender a algum valor. No intuito de justificar suas conjecturas, testam o valor da concentração para valores de tempo como 1 milhão e percebem que o resultado vai se aproximando de 30. M então questiona os seus colegas de grupo o motivo pela qual o a concentração vai se aproximando de 30.
Finalizando a discussão, o estudante R elabora uma justificativa de evidência empírica, no qual de forma empírica ele valida a conjectura de que o limite da função, quando o tempo tende a infinito, é 30. Ele argumenta que os 5000 litros iniciais para um tempo muito grande vão se tornar desprezíveis na fórmula da concentração fazendo com que ela não passe de 30 gramas de sal por litro. Seus colegas aceitam sua justificava e consideram a tarefa como resolvida, encerrando a discussão com comemorações e palmas.
Neste grupo, diferentemente dos anteriores, reconhecemos uma preocupação mais explícita em justificar suas conjecturas e generalizações e até mesmo um interesse por parte dos estudantes de validá-las. Em sua grande maioria, as justificativas não acompanhavam um teor matematicamente rigoroso, mas, em todas, é possível afirmar que os estudantes desenvolveram satisfatoriamente o raciocínio quando as justificativas eram levantadas, fazendo com que o grupo obtivesse sucesso ao realizar a tarefa.
5 Discussão e considerações finais
No intuito de compreender os movimentos envolvendo processos de raciocínio matemático mobilizados por estudantes ingressantes no Ensino Superior, cursando a disciplina de CDI, a partir de uma tarefa exploratória, analisamos a discussão de quatro grupos de estudantes. Da análise realizada, reconhecemos um movimento cíclico, com avanços e recuos, de raciocinar sobre relações matemáticas e desenvolver afirmações (conjecturar), buscando reconhecer e explicar a validade (ou não) dessas afirmações (justificar).
Para Ponte, Brocardo e Oliveira (2019), a fase inicial de familiarização com a tarefa e organização de informações é essencial na formulação de conjeturas. Essa etapa esteve presente em todos os trechos analisados, com os estudantes enunciando narrativas com valor epistêmico de provável (Jeannote; Kieran, 2017), seja a partir do cálculo de concentração para valores específicos, ou a partir de inferências com base no contexto da tarefa (Lannin; Ellis; Elliot, 2011).
Na elaboração de uma conjectura por um ou mais estudantes, foram identificados três movimentos distintos, a constar: (i) abandonar conjecturas definitivamente ou provisoriamente; (ii) refutar tais conjecturas com justificativas, ou ainda sem justificativas; (iii) aceitar as conjecturas buscando reconhecer e explicar, ou não, a validade (ou não) dessas afirmações – podendo, em alguns casos, levar a um processo de generalizar.
Sobre esse processo, Lannin, Ellis e Elliot (2011), destacam que os estudantes generalizam quando se concentram em um aspecto particular de um problema e pensam nele de uma forma abrangente. Assim, em alguns momentos, o processo de conjecturar culminou com estender regularidades observadas em casos particulares (generalizar) para situações mais gerais – por exemplo, a variação da quantidade de água e da quantidade de sal, como funções do tempo e, de forma mais geral, ao final da discussão, da concentração como função do tempo.
Para aceitação de conjecturas, em alguns momentos buscavam motivos que explicassem por que elas eram, ou não verdadeiras (Morais; Serrazina; Ponte, 2018). Sobre o processo de justificar, Mata-Pereira (2018) esclarece que é necessário que os alunos sejam incentivados a apresentar explicações, ainda que sem o rigor associado a demonstração matemática formal. Com base nas características sistematizadas por essa autora, reconhecemos, nos dados coletados, os seguintes tipos de justificativa: (i) com autoridade externa – no caso, o professor; (ii) com evidência empírica – por exemplo, cálculos realizados para valores particulares de tempo; (iii) por coerência lógica – a partir do contexto da situação e (iv) com exemplo genérico – com cálculo do valor de concentração para um valor específico de tempo, mas com reconhecimento de algum padrão que se aplica aos demais.
Em especial, sobre a justificativa com autoridade externa, Mata-Pereira (2012) esclarece que cabe ao professor criar situações que instiguem os estudantes a mobilizar esse processo, sendo necessário, ainda, que compreendam os tipos de justificativas que são válidas matematicamente. Com isso, nota-se que o professor, em alguns trechos do diálogo, assumiu um papel importante nesse sentido.
Com relação ao movimento de conjecturar, quando os estudantes refutam a conjectura, apresentando ou não uma justificativa, destacamos o que ocorreu com o Grupo 2: um estudante afirmou que a concentração nunca superaria 30 g/L; entretanto, essa conjectura foi, inicialmente, refutada sem justificativa.
Outro movimento é quando os estudantes aceitam uma conjectura sem justificativa ou com justificativa. Nesses dois casos, pode-se levar a uma generalização. No Grupo 3 vemos um exemplo quando os estudantes assumem como válida a conjectura de que a concentração, a longo prazo, aproxima-se do valor 30 g/L e elabora uma justificativa por exemplos genéricos fazendo uso de casos particulares, utilizando diferentes valores de tempo e chegando a uma generalização.
Já no Grupo 4, os estudantes conjecturam que a concentração nunca passará de 30 g/L. O grupo valida esse valor com o cálculo do limite da expressão algébrica encontrada, que é aceita por todo grupo com a justificativa com coerência lógica a partir do reconhecimento de um padrão, argumentando que os 5000 litros iniciais para valores de tempo muito grandes vão se tornar desprezíveis na fórmula da concentração. Reconhecemos aqui, também, uma generalização.
A proposta de trabalho com ambientes de ensino e aprendizagem pautados em episódios de resolução de tarefas de natureza exploratória ( Ponte, 2005 ), e trabalho colaborativo entre os estudantes, mostraram-se promissores para emergência desses diferentes tipos de movimento envolvendo processos de raciocínio matemático. As possibilidades de utilização de tarefas desse tipo em aulas de CDI levam os alunos a explorar intuitivamente e organizar matematicamente situações que conduzem à elaboração de conjecturas e generalizações, bem como a busca por justificativas. Em especial, no caso de alunos ingressantes no Ensino Superior, esse tipo de abordagem pode contribuir para minimizar dificuldades ( Ghedamsi; Lecorre, 2021 ), estimulando seu protagonismo e criatividade ( Lithner, 2008 ).
Além disso, a possibilidade de explorar intuitivamente um conceito matemático não se opõe a sua abordagem formal. Pelo contrário, compartilhamos da posição defendida por Abreu e Reis (2011) de uma relação de complementaridade entre esses conceitos, o que indica potencialidades dessa forma de trabalho para a compreensão de conceitos matemáticos.
Consideramos o modelo apresentado para a organização de movimentos envolvendo processos de raciocínio matemático como pertinente, preenchendo uma lacuna no que diz respeito ao conhecimento sobre o raciocínio matemático de estudantes ingressantes no Ensino Superior. Há diversos estudos focados na Educação Básica tanto em nosso grupo de pesquisa (Araman; Trevisan; Paula, 2022; Morais; Araman; Trevisan, 2022 ; Oliveira; Araman; Trevisan, 2022 ;) quanto em âmbito nacional e internacional (Bragg; Hebert; Davidson, 2018; Goos; Kaya, 2020 ; Herbert, 2021 ; Mata-Pereira; Ponte, 2018 ) e, em especial, na identificação dos processos de raciocínio mobilizados pelos estudantes, mas sem uma discussão mais sistematizada sobre movimentos envolvendo tais processos.
Ainda, esse modelo pode contribuir com a organização de práticas de ensino que difiram do método “tradicional” ( Cabral, 2015 ), contribuindo na direção de reconhecer possibilidades para o desenvolvimento do raciocínio matemático no decorrer do trabalho com tarefas de natureza exploratória, ao se constituir como uma ferramenta para selecionar esse tipo de tarefa e organizar aulas no âmbito do Ensino Superior, em especial na disciplina de CDI. Como apontado por Rodrigues, Brunheira e Serrazina (2021), o conhecimento de professores sobre os processos de raciocínio, pode contribuir para reconhecer diferentes nuances entre os processos de raciocínio matemático e, assim, focar nos aspectos essenciais desses processos quando pretendem desenvolver o raciocínio matemático de seus estudantes.
Referências
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1
Raciocínio matemático e formação de professores, https://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/781023 .
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Set 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
14 Mar 2023 -
Aceito
20 Fev 2024