Open-access Educação Matemática, escola e justa raiva: problematizando emaranhamentos

Mathematical Education, School, and Righteous Anger: Problematizing Entanglements

Resumo

Este artigo visa articular algumas das incursões teóricas do grupo História da Educação Matemática em Pesquisa (HEMEP) na direção de produzir interferências em discursos naturalizados socialmente e que constroem uma escola, uma matemática e um professor (homem-branco-hétero-cis). A partir de narrativas produzidas por meio da metodologia da história oral, nos colocamos a exercitar um movimento difrativo lendo textos, slogans e narrativas através uns dos outros. Este texto afirma a potência da produção e mobilização de narrativas de estudantes e professores de Matemática na denúncia de modelos escolares excludentes e na busca pela organização coletiva em torno da escola como espaço de luta.

Escola; Narrativas; Luta; Educação Matemática

Abstract

This article aims to articulate some of the theoretical forays of the História da Educação Matemática em Pesquisa (HEMEP) towards producing interferences in socially naturalized discourses that construct a school, mathematics, and a teacher (white-heterosexual-cisgender male). Drawing from narratives produced through the methodology of oral history, we engage in a diffractive movement by reading texts, slogans, and narratives through one another. This text asserts the power of producing and mobilizing narratives from mathematics students and teachers in denouncing exclusionary school models and in the pursuit of collective organization around the school as a space of struggle.

School; Narratives; Struggle; Mathematical Education

1 Introdução

As autoras se conheceram em 2005 no Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da UNESP de Rio Claro e firmaram uma parceria que segue ativa ainda hoje enquanto docentes do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática do Instituto de Matemática da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Nesta universidade, as autoras, junto a Thiago Pedro Pinto, criaram o Grupo História da Educação Matemática em Pesquisa - HEMEP em 2011 e seguem atuando em parcerias com o Grupo de História Oral e Educação Matemática.

O HEMEP organiza-se em reuniões semanais para estudo e discussão de pesquisas sobre História e Filosofia da Educação Matemática, além de planejamento de ações de extensão vinculadas à produção de narrativas. Dois são os projetos em andamento desse grupo atualmente: i) Práticas Sociais, [M]atemáticas e Escola: entre perspectivas decoloniais e terapias desconstrucionistas que tem como objetivo praticar no espaço de pesquisa da educação matemática um movimento de descolonização do projeto intelectual/civilizatório de caráter disciplinar que permeia as salas de aula escolares, nas quais alimentamos uma única imagem de Matemática, para ampliar as significações das matemáticas para além das estruturas curriculares rígidas da escola moderna e ii) Narrativas de professores que ensinam matemática: formação e atuação, visando investigar aspectos da formação e atuação de professores que ensinam matemática, a partir da constituição de narrativas em momento de entrevistas, para repensar conceitos pré-estabelecidos sobre a docência e o cotidiano escolar e universitário.

De forma específica, este artigo visa articular algumas de nossas incursões teóricas na direção de produzir interferências em discursos naturalizados socialmente, que constroem uma escola, uma matemática e um professor (homem-branco-hétero-cis). A produção dessas interferências é um recurso metodológico potente para perturbação de identidades e tem sido problematizado via seu caráter difrativo (Murris et al., 2022).

Este texto é orientado pela perspectiva pós-humanista de Karen Barad (2014) que exercita uma política difrativa de mapeamento de efeitos de diferença, buscando uma leitura através e não em oposição. Nosso movimento neste artigo é de mapear efeitos de performances de escolas em seu emaranhamento com pesquisas que temos orientado em Educação Matemática e seus diálogos com teóricos e experiências de professores de matemática em atuação e/ou formação. A “leitura através” proposta por Barad (2014, p. 175) afirma que “Subjetividade e objetividade não são opostas uma à outra; objetividade não é não-subjetividade”1.

Não pretendemos produzir ou partir do princípio de que trabalhamos com unidades fixas ou bem delineadas a serem analisadas. Segundo Barad (2014, p. 176)

[...] esse jogo de in/determinação, desestabiliza o binário eu/outro e a noção do eu como unidade. O eu em si é uma multiplicidade, uma sobreposição de seres, devires, aqui e lá, agora e então. Superposições, não oposições. [...] Os emaranhamentos não são unidades. Eles não apagam as diferenças; pelo contrário, os enredamentos implicam diferenciações, e as diferenciações implicam enredamentos. Um movimento - cortar junto-separado. [...] A diferença não é um conceito universal para todos os lugares e tempos, mas é em si uma multiplicidade dentro/de si mesma. A própria diferença é difratada. A difração é uma questão de diferenças em todas as escalas, ou melhor, na criação e recriação de escalas (espaço-tempo-matéria). Cada pedaço de matéria, cada momento de tempo, cada posição no espaço é uma multiplicidade, uma sobreposição/emaranhamento de partes (aparentemente) díspares. Não é uma mistura de partes separadas ou uma indefinição de fronteiras, mas na densa rede de suas especificidades, o que está em questão são suas historicidades materiais únicas e como elas se tornam importantes. Em outros lugares, dentro aqui. Superposições2.

Nos colocamos, aqui, a mapear os efeitos do que se chama escola nas pesquisas que realizamos/orientamos em Educação Matemática, de forma a ler diferentes performances a partir de teorias e experiências narradas em situações de entrevista com que temos trabalhado nos últimos anos. Entre a afirmação de direções múltiplas, de fronteiras que se sobrepõem, de indeterminações, buscamos perturbar noções fixas de escola, em especial aquelas que a tomam em suposta neutralidade.

Ainda segundo Barad (2014, p. 177),

A existência de indeterminações não significa que não existam fatos, nem histórias, nem sangramento – pelo contrário, as indeterminações são constitutivas da própria materialidade do ser, e alguns de nós vivemos com dor, prazer e também coragem política […]3

2 “Um bom professor, um bom começo”[4]

Assim mesmo, no masculino.

A história da educação no Brasil guarda registros de gênero em diversos argumentos. No início do século XX, em uma declaração de Sampaio Dória de 1917 (Cf. Reis e Sá, 2006), é atribuída ao ensino uma urgência salvadora e ao analfabetismo um monstro canceroso que desviriliza o país. Ainda no século XIX, “propunha-se uma educação mais sofisticada e literária” (Reis; Sá, 2006, p. 17) aos líderes, uma instrução profissionalizante aos trabalhadores e o ensino das primeiras letras ao restante da população (escrever e contar), o que garantiria seu direito a voto no regime republicano5. É importante fazer notar ainda que saber ler permitia a disseminação de símbolos físicos de discursos políticos. Folhetins, jornais, avisos passam a ter um peso diferenciado, uma concretude em comparação ao costumeiro ouvi dizer. No início do século XX, os Grupos Escolares comprometeram-se com a produção e disseminação desses símbolos. Souza (2011) identifica orientações do Grupo Escolar Eliazar Braga de 1920 a 1975 à comunidade de Pederneiras–SP por meio de impressos e fotografias escolares. Instituições como essa participaram ativamente do projeto de extravasar as visões da república para fora do campo da elite em que esta foi pensada, seja por meio dos recém-alfabetizados, seja pela circulação de materiais levados por estudantes para suas famílias, cujos membros não sabiam ler. Carvalho (2006, p. 10) afirma que este extravasamento, “[...] não poderia ser feito por meio do discurso, inacessível a um público com baixo nível de educação formal. Ele teria de ser feito mediante sinais mais universais, de leitura mais fácil, como as imagens, as alegorias, os símbolos, os mitos”.

Nessa direção, e segundo Reis e Sá (2006), nenhum progresso era apresentado como possível sem a educação escolar. Afirmada como modificadora dos defeitos sociais, a escola deveria formar, entre outras coisas, o respeito às autoridades e o amor ao trabalho. Mas essa escola e o direito ao voto que viria com essa escolarização, trazia consigo outra diferenciação no que se refere ao gênero, já que meninos e meninas deveriam estudar em escolas regulares exclusivas e com distintos currículos durante o século XIX. Disciplinas como economia doméstica faziam parte somente do currículo escolar feminino, além do ensino de matemática limitado às quatro operações básicas, enquanto meninos recebiam ensinamentos sobre os conteúdos como geometria e frações. A justificativa para tais diferenciações se dava por um questionamento se haveria mestras em número suficiente para lecionar tais conteúdos, mas o que se vê são alegações sem fundamento para o tratamento desigual. O que a história nos lembra é que essa escola com vista ao progresso já dava ares conservadores ao estabelecer um ensino diferenciado, seja tomando como referência o gênero ou a classe social, como Reis e Sá (2006) explicitaram anteriormente.

Compreender quem a escola excluiu/exclui ao longo da história da educação, também é um exercício fundamental na direção de compreender como ela se afirmou/afirma no mundo, tanto quanto compreender como é feita a inclusão de comunidades a que o direito à educação foi por muito tempo negado. Ao juntar a gênero e classe, a raça e a religião, afirma-se o sentido de uma leitura pela interseccionalidade, que para Akotirene (2020, p. 63), “é antes de tudo, uma lente analítica sobre a interação estrutural em seus efeitos políticos e legais” e não sobre múltiplas identidades. É importante, portanto, que a escola seja pensada não somente pelo que ela foca, por seus objetivos centrais, mas pelas margens que produz e por sua contribuição no projeto político de formar uma mentalidade marginal que aceita mais (como resultado da falta do que tem sido chamado de competência individual) do que questiona.

Franz Fanon (2022, p. 195) delineia a complexidade política da produção de quereres. Em liberdade de produção, alteraremos um trecho de seu livro “Os condenados da terra” como um exercício de leitura difrativa. Afirmamos nós, com suas palavras:

O político brasileiro6 deve se preocupar em criar não professores7, mas sim pessoas8 conscientes que além disso são professores9. Se a docência10 não está integrada à vida nacional, isto é, à construção nacional, se o que se cria são docentes11 nacionais e não pessoas12 conscientes, então logo veremos a docência13 ser apodrecida pelo profissionalismo, pelo comercialismo. A docência14 não deve ser um jogo, uma distração fornecida pela burguesia das cidades. A maior tarefa é compreender a todo momento o que acontece conosco. Não devemos cultivar o excepcional, buscar o herói, outra forma do líder. Devemos erguer o povo, ampliar o cérebro do povo, ocupá-lo, diferenciá-lo, torná-lo humano.

3 Um “não-lugar”

Tem sido fortemente vinculado, no senso comum, que a Educação Escolar deve ser dada de forma apartada a discussões políticas, o que contradiz o que discutimos anteriormente a respeito da intenção inicial da escola. Formado por pessoas sem nenhuma formação educacional, o movimento escola sem partido foi o responsável por disseminar muitas dessas falácias que se diziam preocupadas com a doutrinação da escola brasileira e que parecem fomentar essa separação entre escola e política. O movimento é descrito, segundo o site oficial, como uma “iniciativa conjunta de estudantes e pais preocupados com o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao superior” (Movimento Escola Sem Partido, 2014) As acusações de doutrinação e contaminação política se apoiam na ideia de que é possível desequilibrar o “jogo político em favor de um dos competidores” o que, por si só, indica a crença na existência de um equilíbrio de poder e da neutralidade de certas práticas. No entanto, o que vemos em relação à educação escolar brasileira é um reflexo da própria sociedade na qual determinados grupos possuem privilégios sobre os outros.

A escolha de que matemática é privilegiada no currículo escolar, ou quais histórias devem ser contadas no ambiente escolar por si só é ideológica. Gonzalez (2020, p. 68) em um texto de 1983, que assusta pela atualidade da discussão, vai dizer que as “práticas educacionais, assim como textos escolares, são marcadamente racistas. E isso sem levar em conta o sexismo e a valorização dos privilégios de classe.” Ora, manter, portanto, o equilíbrio de poder e a neutralidade das práticas escolares é manter a imagem de uma sociedade brasileira democrática, onde todos são iguais perante a constituição, o que sabemos na prática ser muito diferente. Nossa sociedade, marcadamente racista, trata de forma desigual sujeitos brancos e negros, e ignora os privilégios do primeiro grupo que, dominante, detém o controle sobre os meios de produção. É o mito da democracia racial que Lélia denunciava há mais de quarenta anos, e que nas últimas décadas ganhou as mídias e redes sociais. A autora vai dizer ainda que a manutenção da estrutura econômica da sociedade como está interessa ao sistema como um todo, e mesmo os brancos que não possuem controle sobre os meios de produção recebem os dividendos do racismo no Brasil, o que parece justificar (porém, não deveria), a adesão de parte da população aos ideais da escola sem partido.

Essa crença na existência de uma escola apartada de discussões políticas se relaciona ainda com a confusão que se faz entre política e partido político. Se por um lado política pode ser entendida como um modo como a sociedade tem se organizado ao longo do tempo (o que nos coloca, necessariamente, como seres políticos), política partidária é aquela vinculada a partido político que nos leva à interpretação sobre como as lideranças têm se organizado na contemporaneidade, visando ascender ao poder a partir da disputa de votos. Em entrevista em agosto de 2013, Vladimir Safatle reafirma como políticos os corpos, sinalizando que a força da experiência democrática seria a “ausência de medo em relação à sua própria recriação contínua”. Ao analisar as manifestações que ocorreram no Brasil em 2013, Safatle questiona os partidos políticos como monopólio da representação política, uma vez que as pessoas “não querem submeter a sua capacidade crítica e a sua indignação a um cálculo tático eleitoral” (Saflate, 2013, p.15).

Sermos políticos não implica necessariamente na filiação ou defesa de algum partido político e confundir tais aspectos parece ter como única função esvaziar qualquer iniciativa que se faça de problematizar o modo como as coisas têm sido organizadas.

A qualidade de ser política é inerente à sua natureza. É impossível, na verdade, a neutralidade da educação. E é impossível não porque professoras e professores “baderneiros” e “subversivos” o determinem. A educação não vira política por causa da decisão desta ou daquele educador. Ela é política. Quem pensa assim, quem afirma que é por obra deste ou daquele educador, mais ativista que outra coisa, que a educação vira política não pode esconder a forma depreciativa como entende a política. Pois é na medida mesma em que a educação é deturpada e diminuída pela ação de “baderneiros” que ela, deixando de ser verdadeira educação, passa a ser política, algo sem valor (Freire, 2021, p. 107-108).

Denominar a educação como neutra nada mais é que um modo de naturalizar um complexo sistema de categorização social e os esforços para não haver questionamentos sobre o que está posto. Exemplo disso é a imagem historicamente construída da Matemática como neutra e universal e, portanto, inquestionável e o uso social que se faz dessa construção: essa ciência é sistematicamente mobilizada em discursos politicamente orientados e, muitas vezes, lamentavelmente distorcidos para dar confiabilidade e segurança em relação ao que é afirmado.

Recentemente presenciamos esse uso inquestionável da matemática (ou de uma matemática inquestionável) em um gráfico exibido pelo Ministério da Ciência e Tecnologia em pronunciamento no dia 19 de outubro de 2020. Mais especificamente, o gráfico aparece quando se fala da confirmação da eficácia do medicamento Nitazoxanida para a redução de carga viral do coronavírus. Este gráfico, contudo, era genérico, comprado na internet e, portanto, não tinha ligação com o estudo anunciado naquele pronunciamento. Deixaremos para o leitor análises outras sobre preservação do ineditismo ao omitir metodologias e dados da pesquisa versus anúncio do resultado qualitativo dos estudos. Nosso ponto aqui é o uso da matemática como um pseudo pano de fundo que se coloca e é produzido para colocar em primeiro plano a confiabilidade no que é dito.

Figura 1
– Distorção de informações

Em nota de esclarecimento divulgada às 22 horas do mesmo dia, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI)

[...] esclarece que o gráfico utilizado no vídeo apresentado no evento de anúncio dos resultados dos ensaios clínicos com a Nitazoxanida não faz parte dos dados do estudo e aparece apenas de forma ilustrativa.

O resultado qualitativo apresentado hoje é, obviamente, baseado em dados e estudos completos de posse dos pesquisadores responsáveis.

No momento, o MCTI e os coordenadores do estudo não podem divulgar ainda os números e cálculos do estudo para preservar seu ineditismo, já que ele foi submetido a uma revista internacional, o que limita a publicação.

Entretanto, a Covid-19 continua a avançar no Brasil e, no papel de médicos e cientistas, foi feita a decisão de não omitir o resultado qualitativo de um estudo de extrema importância, que pode ajudar a salvar vidas enquanto aguardamos a vacina. Depois da publicação do artigo científico, faremos uma apresentação técnica para os interessados, mostrando todos os números, cálculos, equações, métodos etc. (Grifos nossos)16.

O uso claramente manipulado da matemática reafirma a inerência da educação como algo político e sua força para validar ou invalidar informações. Um(a) sujeito(a) questionador(a) pode desmantelar a avalanche de informações sem fundamento que tem habitado nosso cotidiano, mas ao se projetar sobre a escola uma ideia de neutralidade, mina-se toda a sua potência como um lugar de formação crítica e questionadora. A manipulação de dados e as consequências da falta do acesso significativo à verdade tem representado uma crise contemporânea que prejudica nossos esforços contra injustiças.

[...] não somente se apresentam inverdades às pessoas como também essas inverdades são apresentadas de uma forma que as habilita a ser comunicadas do modo mais eficaz. Quando o consumo cultural coletivo da desinformação se alia às camadas e mais camadas de mentiras que as pessoas contam em sua vida cotidiana, nossa capacidade de enfrentar a realidade diminui severamente, assim como nossa vontade de intervir e mudar as circunstâncias de injustiça (hooks, 2017, p. 45).

Mas se por um lado a Educação, e por consequência a escola, a matemática, tem uma intenção política bem delineada de manutenção social, por outro há muitos questionamentos que possibilitam torcê-la e colocar em foco a criticidade. Esse contramovimento, no entanto, surge a partir das perspectivas de educadores que durante o último século, têm afirmado a potencialidade de desenvolvimento de um pensamento crítico no contexto escolar. A educação como uma forma política de intervenção no mundo é discutida por Freire (2021), que afirma que somente quando não houver discordâncias sobre os modos de vida do indivíduo e do coletivo, se poderá pensar em uma educação neutra. Enquanto a fome e a miséria do mundo continuarem sendo entendidas como fatalidades, não se pode pensar em uma educação neutra.

Pensar criticamente exige um comprometimento docente com a formação daqueles que se colocam sob nossa responsabilidade por qualquer período que seja. bell hooks (2017), na introdução do livro Ensinando a transgredir, relata que durante seu período escolar, vivenciou a transição da integração racial nas escolas, e enquanto estudava em escolas exclusivas para negros, os professores acreditavam que tinham um compromisso político com a educação e, desse modo, pensavam na formação integral desses estudantes. Ao contrário do que acontecia nas escolas integradas racialmente, na qual os docentes tinham como centro de suas práticas a transmissão de informações, a preocupação com o cumprimento da ementa e do conteúdo a serem trabalhados.

Para além da complexidade da situação relatada e das lutas para que fosse possível um ensino integrado, advoga-se pela impossibilidade de uma educação neutra e da necessidade de um compromisso político ao educar. Quando reduzimos a educação à pura informação, quando baseamos nossa pedagogia na transmissão do conhecimento adquirido, estamos concordando com tudo o que está posto no modo como a sociedade se organiza. Concordamos com as desigualdades sociais e contribuímos para manutenção deste mesmo sistema.

[...] a escola mudou radicalmente com a integração racial. O zelo messiânico de transformar nossa mente e nosso ser, que caracterizava os professores e suas práticas pedagógicas nas escolas exclusivamente negras, eram coisas do passado. De repente, o conhecimento passou a se resumir à pura informação. Não tinha relação com o modo de viver e de se comportar. Já não tinha ligação com a luta antirracista (hooks, 2017, p. 12)

A postura política dos educadores que se envolvem na luta antirracista é facilmente reconhecida, o contrário do que acontece com aqueles que ignoram qualquer tipo de desigualdade e dão continuidade ao que se acostumou chamar de transmissão do conhecimento. Especificamente no contexto em que atuamos, quando nos colocamos como professores e professoras de matemática, cuja função é ensinar matemática, instauramos um movimento político de concordância com a conjuntura do contexto social contemporâneo. Se na escola corpos são disciplinados, não há como negar sua participação pela afirmação ou falta de problematização que perpassam:

O vocabulário, por exemplo, [que] me coloca como “Outra” quando nas notícias ouço falarem sobre “imigrantes ilegais”. Discursos [que] me colocam como “Outra” quando dizem que não posso ser daqui porque sou negra. Imagens [que] me colocam como “Outra/o” quando ando pela rua e me vejo cercada por anúncios com rostos negros e palavras apelativas como “Ajuda”. Gestos [que] me posicionam como “Outra” quando na padaria a mulher branca ao meu lado tenta ser atendida antes de mim. Ações [que] me colocam como “Outra” quando sou monitorada pela polícia assim que chego a uma estação de trem. Olhares [que] me colocam como “Outra” quando as pessoas olham fixamente para mim. Toda vez que sou colocada como “Outra”, estou experienciando o racismo, porque eu não sou “outra”. Eu sou eu mesma (Kilomba, 2019, p.79-80).

Esses são exemplos de racismo cotidiano e Grada Kilomba (2019) fala ainda sobre o racismo institucional e o estrutural. Ao falar de suas memórias da escola, uma geografia de exclusão é delineada e essa instituição surge como um espaço em que os alunos negros sentavam-se ao fundo da sala e eram obrigados a usar as mesmas palavras das crianças da frente com a justificativa da professora de que eram todos iguais. Além de ensinar sobre os descobrimentos portugueses e os legados da colonização que modernizaram um país, Kilomba (2019, p. 65) se lembra de que “[...] nos pediram que não perguntássemos sobre nossos heróis e heroínas da África, porque elas/eles eram terroristas e rebeldes. Que ótima maneira de colonizar, isto é, ensinar colonizadas/os a falar e escrever a partir da perspectiva do colonizador”.

A escola como o não-lugar é produzida nos discursos daqueles que detém o poder oficial de decidir o que pode ou não ser dito, ou ainda, sobre o que é a docência e quais as especificidades de sua formação. Projetam uma imagem fixa que pouco tem a ver com o que acontece na escola. Mas nossas escolas, nossas salas de aula são espaços permeáveis que afetam e se deixam afetar pelo que se passa fora. Se tomarmos o conceito de escola como a suspensão de um tempo e um espaço que permite questionar saberes e práticas instituídos, criando outros, podemos afirmar que os corpos que a habitam não estão lá inertes, recebendo os assujeitamentos sem se movimentar. Ao contrário, produzem vidas que escapam dos poderes e produzem subversões. Estudá-las e explicitá-las pode ajudar a perturbar noções fixas de escola e produzir efeitos de diferença. Assim, tomando a escola “como uma montagem provisória de práticas, artefatos, pessoas, saberes, que não se define somente pelas paredes ou pelas formas de regras estatais, mas por complexas interações em várias direções, entre elas as operações para montá-la” (Dussel, 2018, p. 95) colocamos em foco seus efeitos de diferença.

4 Interferências

Produzir uma leitura através dos modos de se produzir escolas a partir de excertos das entrevistas elaboradas nos trabalhos que orientamos é reafirmar a potência do narrar para explicitar diferenças. Se existe uma escola, uma matemática, um professor (homem-branco-hétero-cis) naturalizados nos discursos, afirmamos veementemente que nossas práticas sociais não são naturais, não são da natureza humana, mas sim acordos produzidos no coletivo, não sendo, portanto, inevitáveis. Se “nos ensinam a crer que a dominação é ‘natural’, que os fortes e poderosos têm o direito de governar os fracos e impotentes” (hooks, 2017, p. 43) que esgarcemos esses ensinamentos até ser possível inaugurar outros modos de dizer e viver. Que esgarcemos o modo explicativo que, muitas vezes, é usado para justificar coisas que deveriam permanecer injustificáveis.

Nacarato, Souza e Silva (2020), ao citarem entrevistas vinculadas a pesquisas do HEMEP, reforçam a ação política de produção do medo como atravessamentos constituintes do espaço escolar. Acordos e trocas envolvendo a criação de cursos de Licenciatura em Matemática no interior de Mato Grosso do Sul, a criação de cursos emergenciais que sob o slogan da qualidade da formação garantiam a certificação de docentes no estado, a luta sindical da categoria docente optando por não afirmar novas e importantes pautas com receio de perderem conquistas anteriores, a ação de formar docentes na prática pela diminuição de autonomia, quando de sua condição de professores convocados (entrada mais comum nos sistemas municipal e estadual de educação) mediante sua instabilidade empregatícia, a ação de formar professores de matemática em cursos de Licenciatura em que posicionamentos como “se você não sabe essa dificuldade, que bom, seu lugar não é aqui” (Oliveira, 2018, p. 146) ou “se fizer do jeito que eu quero vocês vão passar, então […]” (Oliveira, 2018, p. 161), entre outros pontos são reforçados nas vozes de profissionais da educação e professores em formação.

Em Soares (2019, p. 108), temos (Figura 2):

Figura 2
– Eu tinha

Nas perscrutações que temos realizado sobre/com a escola, nossos entrevistados afirmam ter, como a narrativa de Dionésia, e anunciam modos de se fazer presente em uma estrutura que insiste em excluir. Denunciam o excesso de trabalho, e as minúcias do fazer docente que esgota e traz dificuldades,

Como é muito cansativo, é uma profissão que tem tantas dificuldades, que o professor tem que trabalhar dois, três períodos para ganhar o que outros profissionais ganham em um período só... E eles acham que o planejamento está bom, tudo para eles está bom, só para pagar menos. Mas acho que o tempo de planejamento realmente é pequeno, muito pouco, não dá tempo (Reis, 2020, p. 48)17

Ainda: “E para se ter uma vida estável tem que dar muita aula, mas chega uma hora que cansa. Final de ano mesmo, é muito cansativo esse encerramento (Reis, 2020, p. 81)18.

Nomeiam realidades violentas, no contexto da Educação de Jovens e Adultos: “Ela não acreditava que eu podia estudar, não me incentivava e achava que eu não tinha que estudar porque eu era velho. ‘E velho precisa estudar pra que?’”. Mas era um propósito meu, eu queria ser professor (Daniel, 2022, p. 89)19.

E trazem o sentimento de não pertencimento:

Eu entrei na escola em uma turma mais adiantada do que eu, digo ‘a anos-luz de mim’ em relação ao meu aprendizado escolar, e diante disso, eu chorava muito na escola, porque eu não queria ficar naquele ambiente escolar, eu era ‘bicho do mato’. [...] Eu fiz vestibular, passei e fui fazer Matemática. Só que no primeiro ano, você vê que a realidade da vida universitária é outra, eu falei assim: “eu não sei nada, eu sou burra, eu não sei nada”. Eu desisti no primeiro ano. Desisti e fui trabalhar (Daniel, 2022, p. 105)20.

E trazem acolhimentos: “Nunca é um dia igual ao outro. Sempre tem uma coisa diferente, alguma coisa que você precisa correr atrás e buscar trabalhar todo mundo junto. Nunca deixar ninguém para trás. É muito difícil isso (Daniel, 2022, p. 124)21.

De modo ou de outro, falam do que acontece na escola e interferem em modelos prontos de concebê-la, produzindo uma escola viva, com conflitos, que tem se modificado ao longo do tempo.

A escola é uma instituição viva, que está ali aceitando sugestões, mas também com importância fundamental, não só no crescimento, mas na organização da sociedade. A gente precisa ter essa parte social desenvolvida e mostrar para a população que ela só tem a perder se não tiver escola, informação, educação e conhecimento. A sociedade perde com tudo isso (Daniel, 2022, p. 78)22.

Se as narrativas constroem denúncias ao falar de escola, também anunciam, ao fazê-lo, a necessidade e a urgência de se lutar por outros modos de pensar, praticar e, portanto, conceber esse espaço.

Como subverter a escola denunciada por Marina? (Figura 3):

Figura 3
– Fora da risca

5 Direções para as lutas que nos unem

Registrar e publicizar outros modos de dizer escola/docência/educação tem sido um posicionamento político de nossas pesquisas que se colocam em um caminho de escuta questionando “quem pode falar? O que acontece quando falamos? E sobre o que podemos falar?” (Kilomba, 2021, p. 33). Produzimos com essas narrativas presenças ao mesmo tempo que perguntamos sobre as ausências em termos de classe, raça, gênero, etarismo, religião, questionando assim a existência de um sujeito universal que insiste em se fazer presente em discursos sobre a escola e a docência. Pensamos o termo escola no plural, escolas, entendendo que elas são historicamente construídas pela sociedade de cada época, mas também nos colocamos a questionar quem são os sujeitos (as sujeitas) que têm tomado parte dessa construção.

Ainda que seja possível reconhecer as contribuições do que tem sido produzido nos últimos quarenta anos, Gomes (2014) afirma que muitas pesquisas em Educação Matemática que se debruçam a entender a escola e a docência, tem utilizado uma abordagem mais universalista e unificadora do que gostaríamos de admitir. “A formação de professores em nosso país tem sido [...] pensada e debatida de modo muito genérico, como se o professor de Matemática tivesse uma caracterização única e válida em todos os tempos e lugares” (Gomes, p. 14, 2014).

O mesmo parece acontecer com a escola que, tomada como universal por estudos e políticas públicas, instaura um modelo de ser professor, explicitando assim sua faceta política. A educação é política e não somente porque por meio dela é possível formar cidadãos críticos, mas também porque através dela se define um modelo geral do que é ser professor. Se é na escola que se ensina a questionar o modo como as coisas são postas como naturais, basta impor a ela um modelo neutro, utilizando um discurso da própria educação de respeito às individualidades, que toda potência crítica é minada.

Essa constatação somente reforça nossos argumentos da necessidade de se pensar em outra forma de vida e outra possibilidade de escola, o que, como observamos em nossas pesquisas, já vem acontecendo na escola,

[...] é interessante analisar que professores de Matemática podem estar criando seus próprios valores para viver dentro da escola, valores deste mundo, desta vida. Valores que produzem modos de vida outros que talvez não sejam vistos como relevantes, mas que permitem aos professores viverem sem transformar a vida (docente) em um fardo – modos de vida que, muitas vezes, eu percebia como morte em vida, morte severina (Reis, 2020, p. 157-158).

Mas se outros modos têm sido inventados, se perturbações a noções fixas têm sido produzidas, como a escola e a docência insistem em ser tratadas no singular e no masculino? Carneiro (2011, p. 15) ao falar sobre Racismo, Sexismo e Desigualdades no Brasil vai dizer que a participação desigual no gozo pelos direitos humanos para alguns se fundamenta na “prevalência da concepção de que certos humanos são mais ou menos humanos do que outros, o que, consequentemente, leva à naturalização da desigualdade de direitos”. O direito a opinar sobre a escola que queremos, o direito a participar ativamente da elaboração de políticas públicas sobre a formação de professores, ou seja, o direito de ter nossas concepções sobre escola no centro da elaboração dessas políticas.

E se qualquer menção à reivindicação por direitos é lida como um ato de insubordinação, quando não de ingratidão perante àqueles que têm ocupado espaços de poder, nos apoiamos em Fanon (2022) quando ele atribui ao colonialismo a criação do conceito de não violência que consiste em uma maneira de manter o estado das coisas a favor dos dominantes. O discurso pela paz, pela não violência impõe à população os limites do agir e do protesto contra as injustiças. Limita as ações até que elas não representem perigo real à situação colonial, ou seja, perigo real de mudar a estrutura do sistema. “Em sua forma bruta, essa não violência significa, para as elites intelectuais e colonizadas, que a burguesia colonialista tem os mesmos interesses que elas, e que, portanto, é indispensável, urgente, chegar a um pacto para a salvação comum” (Fanon, 2022, p. 58).

Esse pacto comum nada mais é que um modo de manter as coisas como elas estão. De que a educação continue sendo um modo de acabar com a alfabetização que “desviriliza” o país, aumentando os índices, sem que seja necessário formar cidadãos críticos e questionadores. Argumentamos neste texto pela possibilidade de protestar contra a ilusão de uma educação, uma escola e uma matemática neutras, fixas e apolíticas. Argumentamos contra “a educação que não reconhece na justa raiva, na raiva que protesta contra as injustiças, contra a deslealdade, contra o desamor, contra a exploração e a violência um papel altamente formador” (Freire, 2021, p. 41).

Ao observar os trechos de narrativas aqui mobilizados e, mais profundamente as centenas de entrevistas realizadas pelo HEMEP, percebemos a construção de escolas como organizações de coletivos, como um emaranhamento de relações. É fundamental, pois, que a escola e a matemática possam ser construídas como lugar/linguagem/instrumento de mudança social.

Como Angela Davis afirmou, em entrevista ao Podcast Mano a Mano no dia 28 de outubro de 2022, “[...] não são necessariamente os indivíduos, sejam eles presidentes ou chefes de empresas e corporações, não são tanto os indivíduos que impulsionam o curso da história, são as massas de pessoas que se reúnem em luta” (s.p.).

Pluralizar as narrativas em Educação Matemática não significa necessariamente uma alusão ao aumento da capacidade armamentista quando se aceita a construção social da ideia de que vivemos em uma disputa de narrativas. Pluralizar narrativas nos ajuda a manter atenção à diferença e à importância de sua afirmação durante o repensar da escola e dos projetos educativos que nela (e fora dela) são pensados. Pluralizar narrativas a serem “lidas através” umas das outras pode ajudar no importante exercício de nos mantermos distantes dos projetos que nos trouxeram até aqui.

Trata-se, para o Terceiro Mundo, de recomeçar uma história do homem que considere não só as teses por vezes prodigiosas defendidas pela Europa, mas também os crimes da Europa, dos quais o mais odioso terá sido, no interior do homem, o esquartejamento patológico de suas funções e o esfacelamento de sua unidade; no contexto de uma coletividade, a quebra, a estratificação, as tensões sangrentas alimentadas pelas classes; enfim, na escala imensa da humanidade, os ódios raciais, a escravidão, a exploração e sobretudo o genocídio exangue representado pela segregação de 1.5 bilhão de homens. Portanto, camaradas, não paguemos tributo à Europa criando Estados, instituições e sociedades que nela se inspirem (Fanon, 2022, p. 327).

Referências

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  • 1
    “Subjectivity and objectivity are not opposed to one another; objectivity is not notsubjectivity” (p.175)
  • 2
    This double movement, this play of in/determinacy, unsettles the self/other binary and the notion of the self as unity. The self is itself a multiplicity, a superposition of beings, becomings, here and there’s, now and then’s. Superpositions, not oppositions.[...] Entanglements are not unities. They do not erase differences; on the contrary, entanglings entail differentiatings, differentiatings entail entanglings. One move – cutting together-apart. [...] Difference is not some universal concept for all places and times, but is itself a multiplicity within/of itself. Difference itself is diffracted. Diffraction is a matter of differences at every scale, or rather in the making and remaking of scale (spacetimematterings). Each bit of matter, each moment of time, each position in space is a multiplicity, a superposition/entanglement of (seemingly) disparate parts. Not a blending of separate parts or a blurring of boundaries, but in the thick web of its specificities, what is at issue is its unique material historialities and how they come to matter. Elsewhere, within here. Superpositions. (p.176)
  • 3
    The existence of indeterminacies does not mean that there are no facts, no histories, no bleeding – on the contrary, indeterminacies are constitutive of the very materiality of being, and some of us live our with pain, pleasure, and also political courage […] (Barad, 2014, p.177).
  • 4
    Nome de Campanha vinculada ao movimento Todos Pela Educação de uma organização da sociedade civil, criada em setembro de 2006 no Museu do Ipiranga, São Paulo.
  • 5
    Fundamental lembrar que o direito a voto às mulheres só é garantido em 1932, no artigo segundo do Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro daquele ano.
  • 6
    No original, africano.
  • 7
    No original, esportistas.
  • 8
    No original, homens.
  • 9
    No original, esportistas.
  • 10
    No original, o esporte.
  • 11
    No original, esportistas.
  • 12
    No original, homens.
  • 13
    No original, o esporte.
  • 14
    No original, o esporte.
  • 15
  • 16
  • 17
    Depoimento da Professora Flor.
  • 18
    Depoimento do Professor Cravo.
  • 19
    Depoimento do Professor Maurício.
  • 20
    Depoimento Professora Lucreciana.
  • 21
    Depoimento Professor Adriano.
  • 22
    Depoimento Professor Moacir.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2024
  • Aceito
    01 Maio 2024
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