Resumo
Para o behaviorismo radical, a ética prescritiva lida com dois eixos ou dimensões básicas: (1) os efeitos do que fazemos sobre nós mesmos e sobre os outros; e (2) os efeitos do que fazemos considerados ao longo do tempo. O presente artigo visa apontar como controles verbais progressivamente mais complexos afetam nosso comportamento em relação a esses dois eixos, tomando a ecologia e a economia como exemplos contemporâneos. Conclui-se que tais controles verbais tornam nossas próprias escolhas éticas mais complexas. Culturas que ensinam seus cidadãos a identificar as consequências de longo prazo de suas práticas presumivelmente têm mais chances de sobreviver e de criar sistemas relativamente equilibrados de distribuição de poder.
Palavras-chave:
behaviorismo radical; ética; ecologia; economia
Résumé
Pour le behaviorisme radical, l’éthique prescriptive a deux axes ou dimensions fondamentaux: (1) les effets de ce qu’on fait à soi-même ou aux autres; et (2) les effets de ce qu’on a fait au fil du temps. Cet article se propose d’exposer - avec des exemples actuels de l’écologie et de l’économie - de quelle façon les contrôles verbaux progressivement plus complexes affectent notre comportement en face de ces deux axes. On en conclut que ces contrôles verbaux produisent des choix éthiques plus complexes. Des cultures qui enseignent leurs citoyens que les pratiques culturelles ont des conséquences à long terme peuvent survivre plus longtemps, ainsi que créer systèmes de pouvoir relativement équilibrées.
Mots-clés:
behaviorisme radical; éthique; ecologie; economie
Resumen
Para el conductismo radical, la ética prescriptiva lidia con dos ejes o dimensiones básicas: (1) los efectos de nuestra acción sobre nosotros y sobre otras personas; y (2) los efectos de nuestra acción con el paso del tiempo. Este artículo visa señalar como controles verbales progresivamente más complejos afectan nuestra conducta en relación a estos dos ejes, tomando la ecología y la economía como ejemplos contemporáneos. Concluimos que estos controles verbales tornan nuestras propias elecciones éticas más complejas. Culturas que enseñan sus ciudadanos a reconocer las consecuencias de largo plazo de sus prácticas presumiblemente tienen más chances de sobrevivir y crear sistemas relativamente equilibrados de distribución de poder.
Palabras clave:
conductismo radical; ética; ecología; economía
Abstract
From a radical behaviorist perspective, prescriptive ethics deals with two main axes or dimensions: (1) the effects of what we do over ourselves and over other people; and (2) the effects of what we do considered along the time. This paper aims to describe how progressively complex verbal controls are affecting our behavior in relation to these two axes, taking ecology and economy as contemporary examples. We conclude that such verbal controls are making our ethical decisions themselves more complex. Cultures that prepare its citizens to identify the long-term consequences of its practices presumably have more chances to survive and to create relatively balanced systems of power distribution.
Keywords:
radical behaviorism; ethics; ecology; economy
Interagimos com o mundo e produzimos consequências - nós, os seres vivos, da ameba ao ser humano. Operar no mundo e transformá-lo, como apontou (Skinner, 1981/2007Skinner, B. F. (2007). Seleção por consequências. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 9(1), 129-137. (Trabalho original publicado em 1981).), caracteriza o próprio ser vivo.
A alimentação da ameba envolve processos comportamentais bem conhecidos e relativamente simples. Ela “caça” algas ou plânctons presentes na água. Ao detectar a presença de um plâncton, por exemplo, ela se move em direção a ele, estende partes de seu corpo como se fossem braços - por isso chamadas pseudópodes -, captura o plâncton e o ingere. Uma vez completada a digestão, as substâncias sem valor nutritivo são devolvidas ao ambiente.
O comportamento alimentar simples da ameba opera sobre o ambiente de maneira imediata e o transforma. A ameba se alimenta, aumentando com isso suas chances de sobrevivência, e deixando para si, e para todos os outros seres vivos, um mundo diferente: um mundo com menos um plâncton (e com uma pequena quantidade de dejetos).
Para além desse efeito imediato, há um legado do comportamento da ameba que se estende no tempo. Seu comportamento de ingerir o plâncton é uma pequena parte da história da evolução das espécies por seleção natural. As características fisiológicas e comportamentais da ameba, que favorecem a obtenção e digestão de substâncias nutritivas, presumivelmente, têm maior probabilidade de permanecer em seu patrimônio filogenético; igualmente, tendem a ser favorecidas as características de plânctons que os protejam das investidas de amebas. Vemos, portanto, que mesmo no primeiro e mais básico nível de seleção por consequências é possível identificar duas características importantes do comportamento dos organismos: ele afeta outros organismos além daquele que se comporta; ele tem efeitos estendidos no tempo. Viver é operar: é produzir consequências para si, mas também para outros seres vivos; consequências imediatas, mas também consequências que se estendem no tempo.
Ética descritiva
De que maneira isso interessa à ética?
Há uma parte da ética, normalmente denominada ética descritiva, cujo objetivo é tão-somente explicar o comportamento dos organismos - em especial, é claro, dos seres humanos. Poderíamos afirmar, como via de regra afirmam os filósofos, que o objetivo da ética descritiva é explicar especificamente o comportamento ético, mas teríamos com isso a difícil tarefa de diferenciar comportamento ético de não ético (o que não significaria diferenciar comportamento bom e mau, mas comportamento controlado por variáveis éticas e não éticas). Seria possível usar vários critérios para essa distinção. Mas, além de custosa, a tarefa pode ser pouco útil, ou mesmo contraprodutiva. Do ponto de vista behaviorista radical, o campo da ética descritiva é o campo da seleção do comportamento por suas consequências.
A explicação de (Skinner, 1971bSkinner, B. F. (1971b). Beyond freedom and dignity. New York, NY: Knopf.) para o comportamento ético recorre a três níveis de seleção: filogenético, ontogenético e cultural. Tudo o que fazemos, tudo do que gostamos e que desejamos, para nós e para os outros, é compreensível somente a partir da conjugação dessas três histórias seletivas. Tratar a ética como uma qualidade especial de nosso comportamento - ou como uma característica reservada a apenas parte de nosso repertório comportamental - pode desviar nossa atenção do que de fato importa na ética descritiva: explicar nosso comportamento via seleção por consequências em três níveis conjugados.
A longa história da qual a ameba e o plâncton fazem parte - a história da evolução das espécies por seleção natural - é indispensável para compreender por que nós, seres humanos, fazemos o que fazemos, sentimos o que sentimos, escolhemos o que escolhemos. Afirmar isso não significa subscrever qualquer reducionismo biológico. A seleção natural é apenas a primeira das três histórias seletivas que nos interessam, e cada história seletiva cria as condições para o surgimento da seguinte: a filogênese cria as condições para a ontogênese, e esta para a seleção cultural (Skinner, 1981/2007Skinner, B. F. (2007). Seleção por consequências. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 9(1), 129-137. (Trabalho original publicado em 1981).). A compreensão da interação entre as variáveis relevantes em cada um desses níveis é uma tarefa consideravelmente mais complexa do que explicar o comportamento da ameba - o que, vale dizer, torna a tarefa da ética descritiva igualmente mais complexa, em especial quando tratamos do ser humano.
A evolução de um tipo especial de comportamento operante - o comportamento verbal - acrescenta variáveis especialmente relevantes para a explicação do comportamento ético. Em primeiro lugar, porque a ética descritiva precisa explicar também a ocorrência de certas instâncias de comportamento verbal que costumamos chamar de éticas. Seja ou não possível e útil diferenciar precisamente operantes verbais éticos de não éticos, faz parte dos interesses da ética descritiva saber, por exemplo, por que as pessoas emitem respostas verbais como “bom” e “mau”. Como não existem contingências ou regras universais que estabeleçam quando devemos emitir tais respostas, podemos aprender a emiti-las sob controle de, virtualmente, qualquer circunstância. A qualificação de algum objeto ou evento como bom ou mau comporta sutilezas que exigem a análise funcional cuidadosa de casos individuais, sempre a partir do modelo de seleção por consequências.
Entre muitas outras funções, palavras como “bom” e “mau” podem servir para que uma pessoa ou grupo induza outras pessoas ou grupos a agir de certas formas - o que nos leva à segunda parte da ética, que complementa a ética descritiva.
Ética prescritiva
Supostamente, há limites para o que a ciência pode fazer no campo da ética. A ciência pode nos dizer quais comportamentos ou tendências comportamentais foram selecionados nos três níveis seletivos, e como eles foram selecionados. No âmbito do comportamento verbal, por exemplo, ela pode nos dizer o que as pessoas chamam de “bom” ou “mau”, e por quê. Além disso, ela pode nos ajudar a prever quais comportamentos provavelmente serão selecionados em certos contextos. E ela também pode aumentar, ou diminuir, a probabilidade de diversas classes de comportamentos, caso julgue que isso possa ser bom.
Mas como julgar se algo é “bom”? O conhecimento científico auxilia consideravelmente nossas decisões; mas, por si só, ele não produz - e supostamente não poderá um dia produzir - respostas para essa importante pergunta que insistentemente fazemos: “E agora, o que fazer?”. Ou ainda: “Qual é o bom caminho, ou o melhor curso de ação?”1 1 É preciso notar, porém, que Skinner sugere, em alguns momentos, que a ciência poderia fornecer até mesmos essas respostas. Discutimos o assunto em (Dittrich, 2004, cap. 3). (Harris, 2011) é um exemplo de intelectual contemporâneo que afirma que a ciência pode fundamentar a ética prescritiva. .
Perguntas como essas foram feitas por muitas pessoas antes do surgimento da Filosofia, e continuam sendo feitas por muitas pessoas sem qualquer educação filosófica. Seria absurdo reservar apenas aos filósofos (ou aos que têm educação filosófica) a tarefa de respondê-la. Mas a ética prescritiva é hoje identificada como o campo filosófico no qual essa pergunta é tratada como objeto privilegiado de reflexão.
Costuma-se identificar a ética descritiva como o campo dos fatos, ou daquilo que é - por exemplo, sabemos que certa pessoa ingere bebidas alcoólicas, e diz que as bebidas alcoólicas são boas -; e a ética prescritiva como o campo dos valores, ou daquilo que deve, ou não, ser - por exemplo, alguém afirma que certa pessoa deveria, ou não, ingerir bebidas alcoólicas. (Skinner, 1971bSkinner, B. F. (1971b). Beyond freedom and dignity. New York, NY: Knopf.) e vários outros autores (Garrett, 1979Garrett, R. (1979). Value conflict in a Skinnerian analysis. Behaviorism, 7(1), 9-16.; Graham, 1977Graham, G. (1977). On what is good: A study of B. F. Skinner’s operant behaviorist view. Behaviorism, 5(2), 97-112., 1983Graham, G. (1983). More on the goodness of Skinner. Behaviorism, 11(1), 45-51.; Hocutt, 1977Hocutt, M. (1977). Skinner on the word “good”: A naturalistic semantics for ethics. Ethics, 87(4), 319-338.; Rottschaefer, 1980Rottschaefer, W. A. (1980). Skinner’s science of value. Behaviorism, 8(2), 99-112.; Vargas, 1982Vargas, E. A. (1982). Hume’s “ought” and “is” statement: A radical behaviorist perspective. Behaviorism, 10(1), 01-23.; Waller, 1982Waller, B. (1982). Skinner’s two stage value theory. Behaviorism, 10(1), 25-44.) discutiram essa distinção e suas implicações. Entretanto, não temos aqui o objetivo de retomar tais discussões. Por ora, basta reconhecer que a pergunta básica da ética prescritiva - “O que fazer?” - é obviamente importante, e que não temos respostas prontas para ela.
A filosofia opera, desde os clássicos gregos, por meio de distinções binárias que definem seus campos básicos de interesse: “verdadeiro” ou “falso” (epistemologia, lógica), “belo” ou “feio” (estética) e, por fim, “bom” ou “mau” (ética). A análise do comportamento identifica, em todos esses casos - e em quaisquer outros que se ofereçam à análise -, a presença de reforçadores positivos e negativos. Via de regra, os objetos e eventos que chamamos de verdadeiros, bons e belos são aqueles que reforçam sua produção, e os objetos e eventos que chamamos de falsos, feios ou maus são aqueles dos quais fugimos ou nos esquivamos. As possíveis exceções - e elas certamente existem - merecem análises adicionais, especialmente considerando as complexas variáveis que operam sobre o comportamento verbal - mas o que importa aqui é destacar que a epistemologia, a estética e a ética lidam com o comportamento e com as variáveis que operam seletivamente sobre ele.
Isso não implica reduzir, desprezar ou menosprezar a riqueza da experiência humana. Como (Skinner, 1986/1987aSkinner, B. F. (1987a). What is wrong with daily life in the western world? In B. F. Skinner, Upon further reflection (pp. 15-31). Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall. (Trabalho original publicado em 1986).) insistiu em apontar, podemos passar por diversas experiências em nosso contato com a variedade do mundo - chamando objetos e eventos de belos, prazerosos, transcendentes etc. -, mas esse contato tem também um efeito relevante sobre a forma e a frequência das classes de respostas que compõem nossos repertórios.
Não apenas chamamos objetos ou eventos de “bons” ou “maus”, mas usamos estas próprias palavras como estímulos reforçadores ou punitivos (Skinner, 1953/1965Skinner, B. F. (1965). Science and human behavior. New York, NY: Collier-Macmillan. (Trabalho original publicado em 1953)., p. 324). Tanto filósofos quanto leigos em filosofia costumam chamar tais comportamentos de “atribuir valores” - o que significa, mesmo etimologicamente, tão-somente dizer que algo é bom ou mau. Essa nomeação pode ter várias funções. Uma delas é gerar em outras pessoas disposições favoráveis ou desfavoráveis em relação aos objetos ou eventos em questão - ou, em outras palavras, alterar a probabilidade de certas classes de respostas nas relações que as pessoas estabelecem com esses objetos ou eventos.
Tais processos comportamentais são relevantes, em primeiro lugar, para a ética descritiva. Podemos perguntar não apenas por que uma pessoa chama um objeto ou evento qualquer de “bom” ou “mau”, mas também, por exemplo, por que ela busca criar em outras pessoas disposições favoráveis em relação a tais objetos ou eventos. Questões como essas podem, em princípio, receber respostas descritivas satisfatórias por meio da aplicação do modelo de seleção por consequências a instâncias particulares (esse mesmo modelo impede respostas genéricas, aplicáveis a todos os casos e a todas as pessoas). Voltemos ao exemplo da pessoa que ingere bebidas alcoólicas com frequência. Ela pode também dizer que bebidas alcoólicas são “boas”, assim como induzir outras pessoas a ingeri-las; como também pode dizer que são “ruins” e induzir outras pessoas a não ingeri-las. Supostamente, é possível compreender por que ela faz isso conjugando variáveis filogenéticas - características orgânicas podem fazer o álcool produzir nela efeitos que não produziria em outras pessoas -, ontogenéticas - por exemplo, ingestão de álcool em ocasiões prazerosas, reforçamento social da ingestão -, e culturais - por exemplo, ampla disponibilidade e fácil acesso a bebidas alcoólicas, valorização da ingestão como prova de virilidade em certas culturas etc. Mas podemos dar ainda um passo atrás e notar que situações como essa dão margem a um outro tipo de questão: o que devemos considerar bom? Vejamos outros exemplos: uma pessoa tenta convencer outra a furtar um medicamento de uma loja pertencente a uma grande rede varejista. Seria esse conselho, e o próprio furto, bom ou mau? Por quê?; um grupo de “justiceiros” captura um adolescente que cometeu um furto e o acorrenta nu a um poste. Isso é bom ou mau? Por quê?; encontramos diversas posições sobre a prática do aborto em nossa sociedade. Ele deveria ser permitido? Apenas sob algumas circunstâncias? Por quê?
São esses os tipos de questões que interessam à ética prescritiva: por que devemos, ou não, fazer isso ou aquilo? Supostamente, não há respostas empíricas para esse tipo de questão2 2 Ver, porém, a nota de rodapé 1. . A despeito disso - ou mesmo em função disso - as culturas humanas evoluíram até o ponto de empregar grande parte de seu tempo e de seus recursos para responder exatamente a questões como essas - se não por outro motivo, porque elas são inescapáveis. A alternativa seria o irracionalismo, um retorno à mera animalidade. As amebas vivem suas vidas sem qualquer necessidade de se preocupar com problemas dessa natureza. A exemplo do que ocorre conosco, tudo o que elas fazem produz consequências estendidas no tempo, para elas e para “os outros”, mas isso não parece criar para elas qualquer problema ético, qualquer necessidade de legislar e julgar, de classificar coisas e eventos como “bons” ou “maus”. O que nos diferencia delas?
Eis um tipo de resposta comum na psicologia e nas ciências humanas: ao contrário das amebas, nós temos consciência. Essa não é uma resposta satisfatória, conquanto não especifique o que é “ter consciência”. A praxe dos analistas do comportamento, quando chamados a explicar o “significado” de termos referentes a supostos fenômenos mentais, é identificar as circunstâncias que controlam a emissão de tais termos (Skinner, 1945/1972bSkinner, B. F. (1972b). The operational analysis of psychological terms. In B. F. Skinner, Cumulative record: A selection of papers (pp. 370-384). New York, NY: Appleton-Century-Crofts. (Trabalho original publicado em 1945).). Com isso, eles produzem interpretações plausíveis, não essencialistas e úteis3 3 Sobre a utilidade dessas interpretações, ver (Strapasson, Carrara e Lopes Júnior, 2007). sobre esses termos, identificando processos comportamentais como seus “referentes”. Os “significados” possíveis de tais termos correspondem às situações que podem controlar sua emissão.
O “comportamento consciente” pode ser interpretado de diversas formas, mas a definição mencionada com mais frequência pelos analistas do comportamento aponta para a importância das comunidades verbais no “tomar consciência” - de si mesmo, dos outros e do mundo4 4 Para uma excelente explanação sobre o assunto, ver (Zilio, 2011). . É possível, dentro da análise do comportamento, propor a existência de formas não verbais de consciência - como faz (Zilio, 2011Zilio, D. (2011). Consciência verbal, não-verbal e fenomênica: uma proposta de extensão conceitual no behaviorismo radical. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 13(1), 4-19.) -, mas a importância do comportamento verbal para compreender as relações comportamentais, via de regra chamadas “conscientes”, é evidente. Estar consciente, verbalmente, é ser capaz de descrever verbalmente.
Conforme apontado no modelo de seleção por consequências proposto por (Skinner, 1981/2007Skinner, B. F. (2007). Seleção por consequências. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 9(1), 129-137. (Trabalho original publicado em 1981).), o comportamento verbal estende consideravelmente os horizontes de nossa experiência, colocando nosso comportamento como um todo sob controle de variáveis que não poderiam atuar de outra forma - ou, dito de maneira coloquial, “tornando-nos conscientes” dessas variáveis.
Ética prescritiva no behaviorismo radical
De um ponto de vista behaviorista radical, a ética prescritiva lida com dois eixos ou dimensões básicas: os efeitos do que fazemos sobre nós mesmos e sobre os outros; e os efeitos do que fazemos considerados ao longo do tempo. Em qualquer circunstância na qual nos perguntemos, individualmente ou em grupo, “o que fazer?”, a resposta deve fazer referência aos efeitos desse fazer sobre nós mesmos - agora e no futuro - e sobre os outros - agora e no futuro.
Via de regra, consideramos eticamente melhores, ou eticamente mais bem educadas, as pessoas que “têm consciência” de que seu comportamento tem efeitos não apenas para elas mesmas, mas também para outras pessoas; e tem efeitos não apenas imediatos, mas estendidos ao longo do tempo. A mera “consciência”, porém, não garante a ocorrência de comportamentos que chamaríamos de éticos - pois, como sabem os analistas do comportamento, há diferenças funcionais relevantes entre dizer e fazer (Beckert, 2005Beckert, M. E. (2005). Correspondência verbal/não-verbal: pesquisa básica e aplicações na clínica. In J. Abreu-Rodrigues, & M. R. Ribeiro (Orgs.), Análise do comportamento: pesquisa, teoria e aplicação (pp. 229-244). Porto Alegre, RS: Artmed.). Popularmente, isso se traduz em expressões como “você é o que faz, não o que diz”, “falou da boca para fora”, “falar é fácil” etc.5 5 Para analistas do comportamento, o falar também é um fazer – mas isso não tira o sentido dessas expressões.
Contudo, qualquer expansão dos horizontes éticos da humanidade nas duas dimensões apontadas há pouco ocorre necessariamente em função de controles verbais cada vez mais complexos. Sem eles, seria impossível que a humanidade se aproveitasse da descoberta dos efeitos de longo prazo de suas práticas para replanejá-las.
A educação é parte fundamental de qualquer processo de planejamento cultural. Educar eticamente uma criança consiste, em grande parte, em apontar verbalmente os efeitos imediatos e atrasados do que ela faz para ela e para os outros. Ela prefere um doce a uma fruta, mas pode com isso prejudicar sua saúde. Ela fica com um brinquedo apenas para si, mas impede outras crianças de brincar. Ela faz o que tem vontade, “sem pensar”, mas magoa seus pais, arrisca sua integridade física, coloca outras crianças em risco etc. Mães e pais sabem perfeitamente quantas vezes situações como essas se repetem. A educação ética é um processo exigente - e que continua, é claro, mesmo na ausência dos pais. De fato, é um processo ao qual todos nós estamos submetidos durante a totalidade de nossas vidas. O que fazemos na vida adulta continua tendo efeitos não apenas para nós, mas também para os outros, agora e no futuro. O controle verbal por agências organizadas, para além da família, dá continuidade ao processo de expansão de nossos horizontes éticos. A escola, o governo, a religião, a ciência, a mídia e vários outros grupos, organizados ou não, apontam para os outros e para o futuro, de diferentes modos e com diferentes objetivos.
Embora a educação ética nesses moldes não seja uma prática recente, a ciência e a tecnologia dão hoje uma visibilidade inédita às conexões entre o que fazemos e os efeitos disso para nós e para os outros, agora e no futuro. Estamos plenamente preparados, em termos filogenéticos, para ser afetados pelos efeitos imediatos do que fazemos, especialmente sobre nós mesmos. Quanto mais os efeitos do que fazemos se estendem temporalmente, e quanto mais afetam pessoas que não nos são próximas, maior a probabilidade de ignorá-los - isto é, maior a probabilidade de que não afetem nosso comportamento.
Comportamento verbal e expansão de horizontes éticos
Até poucos séculos atrás uma pessoa poderia se referir genericamente à “humanidade”, mas o que ela sabia sobre a humanidade era limitado por sua mobilidade geográfica e pelo pouco que ouvia e lia - quando sabia ler - sobre outros povos. Ninguém, é claro, pode conhecer “a humanidade” em sua totalidade - e, nesse sentido, o conceito será sempre abstrato -, mas, hoje, um cidadão médio pode “ter consciência” da humanidade de formas que seriam impossíveis há alguns séculos.
Isso só foi possível mediante de várias inovações científicas e tecnológicas produzidas ao longo da história humana: o livro, a imprensa, o rádio, a televisão, o computador, a internet etc. Criações como essas fizeram crescer ainda mais o controle verbal sobre nosso comportamento, superando facilmente barreiras geográficas, antes intransponíveis, e ampliando os horizontes de nosso falar e escrever, de nosso ouvir e ler6 6 Paralelamente aos avanços científicos e tecnológicos, é possível apontar o crescimento da alfabetização e o avanço dos regimes políticos democráticos como aspectos relevantes para a potencialização dos efeitos do controle verbal sobre nosso comportamento. Embora os desafios ainda sejam muitos, as taxas mundiais de alfabetização têm melhorado sensivelmente nas últimas décadas (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization [UNESCO], 2012). Na Antiguidade grega e romana, a alfabetização era extremamente rara, restrita a elites políticas e religiosas (Harris, 1991). A alfabetização tem importância crucial para o desenvolvimento de vários aspectos relevantes do comportamento humano (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization [UNESCO], 2003); e a análise do comportamento, vale notar, tem dado contribuições importantes para este campo (Mauad, Guedes, & Azzi, 2004; De Rose, 2005). A democracia, por sua vez, pressupõe a livre circulação de informações e opiniões, o confronto entre elas, a liberdade para avaliá-las, discuti-las etc. Na prática, diversas variáveis tornam o processo menos livre e transparente do que seria desejável, mas o contraste com o que ocorre em regimes totalitários é óbvio. . A deposição de um presidente, um desastre natural, um julgamento relevante, a morte de uma celebridade: sabemos de imediato, acompanhamos ao vivo, repercutimos e opinamos. Ouvimos e lemos, falamos e escrevemos sobre esses e incontáveis outros assuntos; influenciamos e somos influenciados via comportamento verbal. Vivemos, em suma, o que se convencionou chamar de “Era da informação” (Alberts & Papp, 1997Alberts, D. S., & Papp, D. S. (Orgs.). (1997). The information age: An anthology on its impacts and consequences. Washington, DC: National Defense University.) - e a informação é comportamento verbal.
Parte da informação a qual temos acesso por meio de tais avanços é de origem científica. O grau de qualidade da divulgação científica realizada pela mídia é muito variável e merece a atenção da própria comunidade científica7 7 Ver, por exemplo, (Goldacre, 2013). . Deixando à parte tal discussão, não resta dúvida sobre o fato de que a mídia detém um poder considerável de transformar comportamentos via práticas verbais - e ela pode fazer isso com os mais variados interesses.
Ocasionalmente, a mídia busca transformar comportamentos “trazendo o futuro para o presente” - isto é, tornando evidente o que de outro modo jamais seria: as relações entre o que fazemos agora e os efeitos disso para os outros e para o futuro. A ciência tem um papel especialmente relevante ao apontar para as evidências de tais relações, mas a ponte entre o mundo acadêmico e o grande público, geralmente, é construída pela divulgação científica. Se, como diz (Skinner, 1977/1978bSkinner, B. F. (1978b). Human behavior and democracy. In B. F. Skinner, Reflections on behaviorism and society (pp. 3-15). Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall. (Trabalho original publicado em 1977)., p. 14), “as pessoas agem para melhorar práticas culturais quando seus ambientes sociais as induzem a isso”, a divulgação científica é sem dúvida uma parte importante desse processo de indução8 8 Cabe notar, porém, que isso não é suficiente para “melhorar práticas culturais”. (Skinner, 1971b, 1977/1978b) insistiu quanto ao fato de que não basta evidenciar os efeitos postergados do que fazemos: é preciso criar contingências presentes que induzam comportamentos possivelmente benéficos para o futuro das culturas. Contudo, a mídia pode também influenciar o próprio processo de “criar contingências presentes”. .
Trazendo o futuro para o presente: ecologia
A produção científica no campo da ecologia, especialmente no que diz respeito à influência humana sobre o aquecimento global, ilustra tais fatos. Os seres humanos jamais estabeleceriam “espontaneamente” qualquer relação causal entre suas práticas de produção e consumo e o aquecimento global. A ciência é uma prática cultural especial exatamente porque descreve relações causais que não são evidentes. Ela esclarece relações complexas entre variáveis, e com isso conecta fatos que poderiam, de outro modo, parecer independentes. Os dados atualmente produzidos pela ciência ecológica dão uma dimensão inédita à nossa comunidade, à nossa responsabilidade compartilhada: insinua-se, cada vez mais claramente, a conclusão de que tudo o que fazemos individualmente afeta todos os outros seres humanos ao longo do tempo.
Mas seria de fato “tudo”? Não seria essa afirmação meramente retórica, uma hipérbole?
Viver implica consumir recursos, e isso independe do sistema econômico em vigor. “Consumir” significa, literalmente, desgastar, destruir ou eliminar algo com que temos contato - como faz a ameba em relação ao plâncton. Nesse sentido, todos nós sempre vivemos, desde a aurora da vida e da humanidade, em “sociedades de consumo”. Consumimos recursos, in natura ou manufaturados, quando nos alimentamos, quando fazemos nossa higiene, quando nos locomovemos, quando nos divertimos, quando relaxamos, quando dormimos - algo que nem sempre foi óbvio para os seres humanos, e a “tomada de consciência” sobre tal fato emergiu, em especial nas últimas décadas, especialmente por conta do comportamento verbal de cientistas e divulgadores da ciência.
A ciência ecológica nos lembra continuamente que, como seres vivos, somos consumidores, e que isso tem consequências estendidas no tempo para nós e para todos os outros consumidores, humanos ou não. Ao assim fazer, a ciência ecológica acaba por nos tornar responsáveis pelos outros e pelo futuro - mesmo em momentos íntimos, até então insuspeitos -, exatamente porque evidencia o fato de que jamais deixamos de ser consumidores, desde que estejamos vivos. Em uma era que celebra a individualidade e a autonomia, a ecologia dissolve os limites entre ética pública e privada, e nos lembra que somos todos responsáveis pelo futuro do que é público.
A despeito disso, cabe lembrar que a mera apresentação de tais fatos só produz efeitos relevantes sobre o comportamento de pessoas cujas histórias seletivas as predispuseram a tanto. A descrição das conexões entre nosso comportamento e seus efeitos de longo prazo é uma variável importante, mas insuficiente para produzir alterações comportamentais relevantes em nossas culturas. Características dos diferentes casos devem ser avaliadas para explicar variações nas probabilidades comportamentais. Consequências que nos afetam diretamente, sejam naturais ou planejadas, produzem efeitos comportamentais mais sólidos do que os produzidos por meras descrições - mas mesmo emergências ecológicas concretas podem produzir tais efeitos apenas momentaneamente, como ilustra (Diamond, 2005Diamond, J. (2005). Colapso: Como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso (A. Raposo, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Record., p. 505):
Quando a cidade de Tucson no Arizona passou por uma grande seca na década de 1950, seus cidadãos alarmados juraram que iriam cuidar melhor de sua água, mas logo voltaram aos seus hábitos perdulários de cultivar campos de golfe e regar jardins.
É obviamente preferível - e atualmente necessário - que alterações comportamentais ecologicamente relevantes ocorram de forma preventiva, e não apenas durante crises localizadas. Assim, iniciativas de planejamento cultural devem contemplar a utilização de consequências imediatas contingentes a comportamentos que favoreçam a sustentabilidade. Conforme apontou (Skinner, 1971aSkinner, B. F. (1971a). A behavioral analysis of value judgments. In E. Tobach, L. R. Aronson & E. Shaw (Eds.), The biopsychology of development (pp. 543-551). New York, NY: Academic Press., p. 551), “trabalharemos pela sobrevivência de nossa cultura, se o fizermos, por causa dos reforçadores pessoais que são efetivos por causa de nossa dotação genética, conforme eles venham a emergir naturalmente ou como parte de nosso ambiente cultural”.
Trazendo o futuro para o presente: economia
As conexões entre ecologia e economia são evidentes, porque a economia estuda padrões de produção e consumo, e são esses padrões que geram os efeitos ecológicos de longo prazo dos quais hoje estamos cientes. Numa época em que as relações econômicas - a produção e troca de reforçadores - alcançam uma complexidade inédita, grupos organizados buscam levar as pessoas a utilizar politicamente seu poder de contracontrole como consumidores e cidadãos9 9 Um bom exemplo é a (Ethical Consumer, 1989), sediada na Inglaterra, que apresenta como seu principal objetivo “tornar os negócios globais mais sustentáveis através da pressão dos consumidores”. Ao declarar sua missão, a organização deixa claro que trata o consumo como uma via de ação ética e política: “Em um mundo no qual as pessoas se sentem sem poder político, e no qual os governos estão se tornando menos poderosos do que as corporações, os cidadãos estão começando a perceber que seu voto econômico pode ter tanta influência quanto seu voto político”. Mas, apesar de estimular o consumidor a “afirmar seus valores éticos através do mercado”, a organização reitera que “o consumo ético não substitui outras formas de ação política”, embora seja “uma importante forma adicional para as pessoas exercerem sua influência”. . Somos aconselhados a evitar produtos danosos ao meio ambiente - seja por seu processo de fabricação ou pelos resíduos de sua utilização - e a preferir produtos “ecologicamente corretos”. Somos informados sobre empresas que empregam trabalho infantil ou escravo, ou que expõem seus empregados a condições degradantes e insalubres de trabalho. Somos lembrados a todo instante que decisões que antes pareciam simples e “individuais” estão plenas de implicações éticas. Comprar esse ou aquele sabão em pó, calçado ou automóvel passa a ser também uma questão moral, pois em uma economia capitalista a destinação dada pelos consumidores a seus recursos financeiros determina em grande parte quais práticas de produção serão ou não sustentadas. Para além do comportamento de consumir, porém, formas tradicionais de participação política acessíveis ao cidadão comum também são orientadas por tais grupos organizados - desde demandas por alterações na legislação ambiental até o voto em candidatos comprometidos com a agenda da sustentabilidade.
As estratégias de tais grupos não estão isentas de críticas. Fazer que as pessoas expandam seus horizontes éticos, “tenham consciência” dos efeitos do que fazem para os outros e para o futuro, pode ser importante - mas será suficiente? Em que medida isso altera, por exemplo, o comportamento de consumir? Consumir é uma classe ampla e multideterminada de comportamentos10 10 Ver, por exemplo, (Foxall, Oliveira-Castro, James, Yani-de-Soriano e Sigurdsson, 2006). , e talvez as más condições de trabalho enfrentadas pelos operários chineses que fabricam um tablet, mesmo que nos sensibilizem, não sejam suficientes para alterar nossas decisões enquanto consumidores. Não somos obrigados a buscar informações sobre o processo de fabricação do que compramos, e seria mesmo impossível fazer isso em relação a tudo o que consumimos. Ninguém nos criticará diretamente por comprar este ou aquele produto, mesmo que seja danoso, pois é nosso direito enquanto consumidores. Podemos mesmo fazer isso sem sair de casa - e, afinal, não pedimos para que as coisas fossem como são: não somos pessoalmente responsáveis pelas mazelas do sistema produtivo, e não autorizamos ou compactuamos com qualquer forma de injustiça - e além disso, precisamos do produto, queremos o produto, e é ele que está diante de nossos olhos, com seu design arrojado, sua embalagem luminosa e suas qualidades edulcoradas pelo marketing - não a história de sua produção ou os subprodutos de seu consumo. Esse é um bom exemplo do que os marxistas querem evidenciar quando mencionam as “contradições do capitalismo”. Empresas não são instituições beneficentes. Elas fazem o que as contingências vigentes em economias capitalistas as direcionam a fazer: maximizam o retorno financeiro para seus acionistas, dentro, e eventualmente fora, dos marcos legais que regulamentam sua atividade (Diamond, 2005Diamond, J. (2005). Colapso: Como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso (A. Raposo, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Record., p. 577).
A estratégia de evidenciar para os consumidores os processos envolvidos na produção e consumo de certos produtos se apoia nas próprias “leis do mercado”: se um conjunto significativo de consumidores deixa de comprar certo produto e ainda faz propaganda negativa sobre ele - o que pode ser, nos dias atuais, potencializado pela comunicação online -, a empresa que fabrica o produto pode dar atenção ao problema tão-somente para manter sua clientela - e, com isso, sua receita11 11 Dentre os inúmeros exemplos nos quais essa estratégia funcionou ou tem funcionado, o da empresa estadunidense de equipamentos esportivos Nike é especialmente emblemático (Birch, 2012). A análise de questões como essa pode se estender – como frequentemente faz – até a discussão sobre modelos políticos e econômicos. Estratégias como essas não estariam apenas mascarando o verdadeiro problema – isto é, a própria existência do modelo capitalista? As tentativas de estatização completa da atividade econômica aparentemente tiveram resultados negativos em vários países, e se fizeram acompanhar por regimes políticos pouco afeitos à democracia. Isso, é claro, não impede a defesa de versões renovadas de socialismo. Pessoas que adotam essa postura podem mesmo afirmar que qualquer coisa que se faça a fim de tornar a vida das pessoas melhor e mais feliz em sociedades capitalistas acabará por aprofundar e disfarçar as injustiças do capitalismo – e, conforme observamos alhures, “um marxista sempre pode afirmar que a ruína do capitalismo está próxima; basta para isso que o capitalismo exista” (Dittrich, 2010, p. 49). Para tais pessoas, é provável que somente a reformulação radical dos fundamentos políticos e econômicos das economias nacionais – talvez de todas elas – seja aceita como solução de longo prazo. . O sucesso dessa estratégia é variável em cada caso, mas o “voto econômico” parece uma opção evidente de contracontrole por parte de cidadãos organizados em relação a práticas culturais cujos efeitos danosos sejam claros.
Controle, contracontrole e o “quarto estado”
Em economias de mercado regulamentadas e fiscalizadas por órgãos estatais, naturalmente nos voltamos para as empresas e para os governos quando estamos, por qualquer motivo, interessados na economia e em seus efeitos coletivos ao longo do tempo. Skinner - mencionando também a religião - se mostrou bastante pessimista quando a tais agências:
Governos, religiões e sistemas capitalistas, tanto públicos quanto privados, controlam a maioria dos reforçadores da vida cotidiana; eles devem usá-los, como sempre fizeram, para seu próprio engrandecimento, e não têm nada a ganhar renunciando a seu poder. (1987bSkinner, B. F. (1987b). Why we are not acting to save the world. In B. F. Skinner, Upon further reflection (pp. 1-14). Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall., p. 7)
Os detentores do poder econômico, os que têm dinheiro, vão continuar a usá-lo para produzir lucros rápidos, sem qualquer preocupação com os problemas globais. ... Quanto aos políticos, eles estão sempre preocupados com a próxima eleição e, portanto, indispostos a pregar sacrifícios hoje para preservar o futuro. (1983Skinner, B. F. (1983). Estado de alerta máximo. Veja, 15 de Junho, pp. 3-6. (entrevista)., p. 4)
Diante desse quadro, (Skinner, 1983Skinner, B. F. (1983). Estado de alerta máximo. Veja, 15 de Junho, pp. 3-6. (entrevista)., p. 4; 1989Skinner, B. F. (1989). A new preface to Beyond Freedom and Dignity. In B. F. Skinner, Recent issues in the analysis of behavior (pp. 113-120). Columbus, OH: Merrill., p. 120) apontou a importância de instâncias de contracontrole, que ele denominou coletivamente como “quarto estado” - em oposição aos três “estados” clássicos: governo, economia e religião. (Skinner, 1987bSkinner, B. F. (1987b). Why we are not acting to save the world. In B. F. Skinner, Upon further reflection (pp. 1-14). Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall., p. 8) menciona cientistas, intelectuais, professores e jornalistas como componentes desse “quarto estado”, designando-os também como os “não comprometidos” (uncommited). Há que se notar que, atualmente, novos e importantes atores sociais se juntam ao quarto estado, no Brasil e em outros países. A presença e influência de organizações não governamentais é cada vez mais evidente, e tem crescido consideravelmente o contracontrole em relação a órgãos tradicionais da imprensa, com o surgimento de grupos alternativos de jornalismo e opinião. Vários desses grupos e organizações surgem a partir de insatisfações que emergem da sociedade civil, representando um sinal saudável de avanço na dinâmica de controle e contracontrole nas sociedades democráticas.
De acordo com Skinner, os “não comprometidos” “têm pouco ou nenhum poder, e, portanto, pouco ou nada a ganhar do presente” (1973/1978aSkinner, B. F. (1978a). Are we free to have a future? In B. F. Skinner, Reflections on behaviorism and society (pp. 16-32). Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall. (Trabalho original publicado em 1973)., p. 28). Eles compartilham um desprendimento em relação ao presente, e estão, portanto, “livres para considerar um futuro mais remoto” (1987bSkinner, B. F. (1987b). Why we are not acting to save the world. In B. F. Skinner, Upon further reflection (pp. 1-14). Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall., p. 08), mas “apenas até o ponto em que não sejam controlados pelos interesses correntes de um governo, religião ou sistema econômico” (1973/1978aSkinner, B. F. (1978a). Are we free to have a future? In B. F. Skinner, Reflections on behaviorism and society (pp. 16-32). Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall. (Trabalho original publicado em 1973)., p. 28). Políticos, empresários e religiosos também podem fazer parte desse grupo, mas “apenas até o ponto em que não estejam comprometidos com suas respectivas instituições” (1987bSkinner, B. F. (1987b). Why we are not acting to save the world. In B. F. Skinner, Upon further reflection (pp. 1-14). Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall., p. 08). Obviamente, a dupla tensão entre consequências imediatas e de longo prazo, e entre consequências individuais e coletivas, constitui o contexto para a análise de Skinner sobre os “não comprometidos. São com essas consequências que diferentes pessoas e grupos estão ou não “comprometidos” - ou melhor, é sob controle direto ou indireto delas que pessoas e grupos agem.
Assim como podemos ser céticos em relação a empresas e governos, podemos e devemos ser céticos quanto ao grau de “descompromisso” de qualquer pessoa ou grupo supostamente pertencente ao “quarto estado”. O próprio Skinner apontou que esse ceticismo é quase inevitável, dada uma história contínua de uso do poder, em todas as suas formas, para a satisfação de interesses pessoais e de curto prazo:
Uma consideração desinteressada das práticas culturais, a partir da qual sugestões de melhoria possam emergir, ainda é considerada impossível. Este é o preço que pagamos pelo fato de que os homens (1) têm tão frequentemente aperfeiçoado seu controle sobre outros homens para propósitos de exploração, (2) têm tido que promover suas práticas sociais com justificações espúrias, e (3) têm tão raramente partilhado das atitudes do cientista básico. (1961/1972aSkinner, B. F. (1972a). The design of cultures. In B. F. Skinner, Cumulative record: A selection of papers (pp. 39-50). New York, NY: Appleton-Century-Crofts. (Trabalho original publicado em 1961)., p. 48-49)
Apesar de tal ceticismo, não resta dúvida sobre a importância da existência e crescimento de instâncias de contracontrole em sociedades democráticas, a fim de evitar a excessiva concentração de poder. Agentes estatais sempre praticaram corrupção ativa e passiva, e agentes do mercado sempre buscaram produzir lucro, eventualmente contrariando o interesse público, dentro ou fora dos marcos legais estabelecidos. Órgãos do quarto estado não estão livres de seus próprios compromissos, e talvez eles nem sempre coincidam com o interesse coletivo de longo prazo. É razoável sugerir, portanto, que a principal exigência a ser feita tanto a governos e empresas quanto aos órgãos do quarto estado seja aumentar continuamente o grau de transparência de suas atividades. Votações secretas, financiamentos não declarados e “fiscalizações” com critérios obscuros minam e enfraquecem o equilíbrio nas relações de controle e contracontrole entre cidadãos e instituições públicas e privadas. A manutenção desse equilíbrio, ao evitar a excessiva concentração de poder, pode garantir a sobrevivência das culturas democráticas.
Conclusão
O progresso da ciência e da tecnologia potencializou não só os efeitos de longo prazo do que fazemos, mas nossa própria consciência sobre tais efeitos. Na chamada “Era da informação”, controles verbais progressivamente mais complexos, em grande parte produzidos pela ciência e dispostos pela mídia, vêm ampliando nossos horizontes éticos - e com isso tornando igualmente mais complexas nossas decisões éticas. Tais controles verbais evidenciam as conexões entre o que fazemos individualmente ou em grupo e os efeitos disso para nós e para outras pessoas ao longo do tempo.
Desde as análises iniciais de (Skinner, 1953/1965Skinner, B. F. (1965). Science and human behavior. New York, NY: Collier-Macmillan. (Trabalho original publicado em 1953).) sobre fenômenos sociais e culturais, a análise do comportamento tem insistido sobre a importância de considerar tais efeitos no planejamento cultural. Obviamente, a análise do comportamento não está sozinha ao fazer isso, e a existência de práticas culturais que apontam para a importância do planejamento das próprias culturas não é casual. A evolução das culturas, construída a partir das heranças filogenéticas e ontogenéticas de seus membros, dá continuidade a processos seletivos que produzem uma “progressiva sensibilidade dos organismos e das pessoas às consequências de suas ações” (Abib, 2001Abib. J. A. D. (2001). Teoria moral de Skinner e desenvolvimento humano. Psicologia: Reflexão e Crítica, 14(1), 107-117., p. 111) e uma “educação para o autocontrole” (p. 116), que reflete tal sensibilidade.
Culturas que ensinam seus cidadãos a identificar as consequências de longo prazo de suas práticas presumivelmente têm mais chances de sobreviver e de criar sistemas relativamente equilibrados de distribuição de poder por meio de práticas de controle e contracontrole. Órgãos do chamado “quarto estado” têm papel importante na manutenção desse equilíbrio, em especial quando pressionam empresas e governos para que sejam transparentes em suas atividades - mas a exigência de transparência deve se estender aos próprios órgãos do “quarto estado”. Tanto quanto possível, devemos tornar explícitos os compromissos de todos os atores que compõem o jogo de forças das sociedades contemporâneas, visando produzir algum equilíbrio entre interesses privados e públicos, imediatos e de longo prazo. O esclarecimento das “motivações” que controlam o comportamento de tais atores exige a análise das contingências comportamentais das quais fazem parte.
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1
É preciso notar, porém, que Skinner sugere, em alguns momentos, que a ciência poderia fornecer até mesmos essas respostas. Discutimos o assunto em (Dittrich, 2004Dittrich, A. (2004). Behaviorismo radical, ética e política: Aspectos teóricos do compromisso social, vol. 1. (Tese de doutorado). Universidade Federal de São Carlos. Recuperado de http://www.dfmc.ufscar.br/uploads/publications/4ef37629b6495.pdf
http://www.dfmc.ufscar.br/uploads/public... , cap. 3). (Harris, 2011Harris, S. (2011). The moral landscape: How science can determine human values. New York, NY: Free Press.) é um exemplo de intelectual contemporâneo que afirma que a ciência pode fundamentar a ética prescritiva.
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Ver, porém, a nota de rodapé 1.
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3
Sobre a utilidade dessas interpretações, ver (Strapasson, Carrara e Lopes Júnior, 2007Strapasson, B. A., Carrara, K., & Lopes Júnior, J. (2007). Consequências da interpretação funcional de termos psicológicos. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 9(2), 227-239.).
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4
Para uma excelente explanação sobre o assunto, ver (Zilio, 2011Zilio, D. (2011). Consciência verbal, não-verbal e fenomênica: uma proposta de extensão conceitual no behaviorismo radical. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 13(1), 4-19.).
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Para analistas do comportamento, o falar também é um fazer – mas isso não tira o sentido dessas expressões.
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Paralelamente aos avanços científicos e tecnológicos, é possível apontar o crescimento da alfabetização e o avanço dos regimes políticos democráticos como aspectos relevantes para a potencialização dos efeitos do controle verbal sobre nosso comportamento. Embora os desafios ainda sejam muitos, as taxas mundiais de alfabetização têm melhorado sensivelmente nas últimas décadas (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization [UNESCO], 2012United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. (2012). Literacy rates are rising, but women and girls continue to lag behind. Recuperado de http://www.uis.unesco.org/literacy/Pages/adult-youth-literacy-data-viz.aspx
http://www.uis.unesco.org/literacy/Pages... ). Na Antiguidade grega e romana, a alfabetização era extremamente rara, restrita a elites políticas e religiosas (Harris, 1991Harris, W. V. (1991). Ancient literacy. Cambridge, MA: Harvard University Press.). A alfabetização tem importância crucial para o desenvolvimento de vários aspectos relevantes do comportamento humano (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization [UNESCO], 2003United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. (2003). Literacy as freedom: A Unesco round-table. Recuperado de http://unesco.org.pk/education/life/files/literacy_as_freedom.pdf
http://unesco.org.pk/education/life/file... ); e a análise do comportamento, vale notar, tem dado contribuições importantes para este campo (Mauad, Guedes, & Azzi, 2004Mauad, L. C., Guedes, M. C., & Azzi, R. G. (2004). Análise do comportamento e a habilidade de leitura: Um levantamento crítico de artigos do JABA. Psico-USF, 9(1), 59-69.; De Rose, 2005De Rose, J. C. C. (2005). Análise comportamental da aprendizagem de leitura e escrita. Revista Brasileira de Análise do Comportamento, 1, 29-50.). A democracia, por sua vez, pressupõe a livre circulação de informações e opiniões, o confronto entre elas, a liberdade para avaliá-las, discuti-las etc. Na prática, diversas variáveis tornam o processo menos livre e transparente do que seria desejável, mas o contraste com o que ocorre em regimes totalitários é óbvio.
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Ver, por exemplo, (Goldacre, 2013Goldacre, B. (2013). Ciência picareta (R. Rezende, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.).
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Cabe notar, porém, que isso não é suficiente para “melhorar práticas culturais”. (Skinner, 1971bSkinner, B. F. (1971b). Beyond freedom and dignity. New York, NY: Knopf., 1977/1978bSkinner, B. F. (1978b). Human behavior and democracy. In B. F. Skinner, Reflections on behaviorism and society (pp. 3-15). Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall. (Trabalho original publicado em 1977).) insistiu quanto ao fato de que não basta evidenciar os efeitos postergados do que fazemos: é preciso criar contingências presentes que induzam comportamentos possivelmente benéficos para o futuro das culturas. Contudo, a mídia pode também influenciar o próprio processo de “criar contingências presentes”.
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Um bom exemplo é a (Ethical Consumer, 1989Ethical Consumer. (1989). Our Mission. Recuperado de http://www.ethicalconsumer.org/aboutus/ourmission.aspx
http://www.ethicalconsumer.org/aboutus/o... ), sediada na Inglaterra, que apresenta como seu principal objetivo “tornar os negócios globais mais sustentáveis através da pressão dos consumidores”. Ao declarar sua missão, a organização deixa claro que trata o consumo como uma via de ação ética e política: “Em um mundo no qual as pessoas se sentem sem poder político, e no qual os governos estão se tornando menos poderosos do que as corporações, os cidadãos estão começando a perceber que seu voto econômico pode ter tanta influência quanto seu voto político”. Mas, apesar de estimular o consumidor a “afirmar seus valores éticos através do mercado”, a organização reitera que “o consumo ético não substitui outras formas de ação política”, embora seja “uma importante forma adicional para as pessoas exercerem sua influência”.
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Ver, por exemplo, (Foxall, Oliveira-Castro, James, Yani-de-Soriano e Sigurdsson, 2006Foxall, G. R., Oliveira-Castro, J. M., James, V. K., Yani-de-Soriano, M. M., & Sigurdsson, V. (2006). Consumer behavior analysis and social marketing: The case of environmental conservation. Behavior and Social Issues, 15, 101-124.).
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Dentre os inúmeros exemplos nos quais essa estratégia funcionou ou tem funcionado, o da empresa estadunidense de equipamentos esportivos Nike é especialmente emblemático (Birch, 2012Birch, S. (2012, 6 de julho). How activism forced Nike to change its ethical game. The Guardian. Recuperado de http://www.theguardian.com/environment/green-living-blog/2012/jul/06/activism-nike
http://www.theguardian.com/environment/g... ). A análise de questões como essa pode se estender – como frequentemente faz – até a discussão sobre modelos políticos e econômicos. Estratégias como essas não estariam apenas mascarando o verdadeiro problema – isto é, a própria existência do modelo capitalista? As tentativas de estatização completa da atividade econômica aparentemente tiveram resultados negativos em vários países, e se fizeram acompanhar por regimes políticos pouco afeitos à democracia. Isso, é claro, não impede a defesa de versões renovadas de socialismo. Pessoas que adotam essa postura podem mesmo afirmar que qualquer coisa que se faça a fim de tornar a vida das pessoas melhor e mais feliz em sociedades capitalistas acabará por aprofundar e disfarçar as injustiças do capitalismo – e, conforme observamos alhures, “um marxista sempre pode afirmar que a ruína do capitalismo está próxima; basta para isso que o capitalismo exista” (Dittrich, 2010Dittrich, A. (2010). Análise de consequências como procedimento para decisões éticas. Perspectivas em Análise do Comportamento, 1(1), 44-54., p. 49). Para tais pessoas, é provável que somente a reformulação radical dos fundamentos políticos e econômicos das economias nacionais – talvez de todas elas – seja aceita como solução de longo prazo.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Sep-Dec 2016
Histórico
-
Recebido
19 Fev 2015 -
Revisado
03 Ago 2015 -
Aceito
22 Jan 2016