Resumo
Neste artigo abordamos os diferentes deslocamentos da ideia de “recusa”, “renegação” ou “desmentido” (Verleugnung) no texto freudiano. Para promover essa reflexão, discutimos inicialmente as traduções e significados do termo alemão, para depois acompanhar o seu aparecimento na Primeira Tópica e o seu desenvolvimento conceitual na Segunda Tópica. Acreditamos que, embora o conceito de “desmentido” tenha encontrado a sua formulação específica como mecanismo de defesa da perversão fetichista, trata-se de um conceito bem mais extenso, que não se restringe à organização perversa e possui grande valor para a compreensão crítica de certos aspectos da sociedade contemporânea.
Palavras-chave:
psicanálise; Freud; desmentido; fetichismo
Résumé
Cet article aborde les mouvements de l’idée de « refus », « reniement » ou « démenti » (Verleugnung) chez Freud. Pour encourager cette réflexion, on discute d’abord les traductions et les sens du terme allemand, pour, ensuite, accompagner son apparition dans la Première Topique et son développement conceptuel dans la Seconde Topique. On considère que, même si le concept de « démenti » trouve sa formulation spécifique comme mécanisme de défense de la perversion fétichiste, il s’agit d’un concept bien plus approfondi, qui ne se limite pas à l’organisation perverse et possède une grande valeur pour la compréhension critique de certains aspects de la société contemporaine.
Mots-clés:
psychanalyse; Freud; démenti; fétichisme
Resumen
El presente artículo aborda los diferentes desplazamientos de la idea de «rechazo», «renegación» o «desmentida» (Verleugnung) en el texto freudiano. Para promover esta reflexión, se discuten inicialmente las traducciones y significados del término alemán, para a continuación observar su surgimiento en la Primera Tópica y su desarrollo conceptual en la Segunda Tópica. Creemos que, aunque el concepto de «desmentida» haya encontrado su formulación específica como mecanismo de defensa de la perversión fetichista, se trata de un concepto mucho más extenso, que no se restringe a la organización perversa y posee gran valor para la comprensión crítica de ciertos aspectos de la sociedad contemporánea.
Palabras clave:
psicoanálisis; Freud; desmentida; fetichismo
Abstract
In this article we discuss the different displacements of the idea of “refusal”, “denial” or “denial” (Verleugnung) in the Freudian text. To promote this reflection, we first discuss the translations and meanings of the German term, and then analyze its appearance in the First Topic and its conceptual development in the Second Topic. We believe that although the concept of “denial” has found its specific formulation as a defense mechanism for fetishistic perversion, it is a much more extensive concept that is not restricted to perverse organization and is of great value for the critical understanding of certain aspects of contemporary society.
Keywords:
psychoanalysis; Freud; denial; fetishism
Este texto tem o objetivo de propor um estudo teórico capaz de captar os diferentes deslocamentos da ideia de “recusa”, “renegação” ou “desmentido” (Verleugnung) no texto freudiano. Nosso trabalho se justifica pela dificuldade encontrada no momento mesmo da tradução do termo alemão e pela dificuldade conceitual de apreender o seu significado e o seu estatuto teórico no texto freudiano. Além disso, ele indica não só um importante mecanismo de defesa do Eu diante das experiências traumáticas, guardando um lugar decisivo na constituição do psiquismo, como a sua elucidação pode contribuir para a discussão em torno das novas figuras de subjetividade numa sociedade considerada “narcisista” ou “perversa” por alguns autores contemporâneos (Dufour, 2013Dufour, D.-R. (2013). A cidade perversa: liberalismo e pornografia. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.; Lebrun, 2008Lebrun, J.-P. (2008). A perversão comum: viver juntos sem outro. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.).
Para que se cumprisse esse objetivo, optamos por traduzir a palavra alemã por “desmentido” e por subdividir o artigo em três seções: na primeira, faremos algumas considerações acerca das dificuldades de tradução da palavra alemã; na seguinte, registraremos as referências ao “desmentido” (Verleugnung) no período da Primeira Tópica (1900-1920); e na última examinaremos um pouco mais detidamente o conceito de Verleugnung na Segunda Tópica.
O significado de Verleugnung
Antes de abordarmos o uso da palavra Verleugnung na obra freudiana, vamos nos reportar brevemente a sua utilização corrente na língua alemã. Nos dicionários Alemão-Português, como o conhecido Langenscheidt Taschenwörterbuch, é mais comum encontrarmos não o substantivo, mas apenas o verbo verleugnen significando “renegar” ou “desmentir”. No Wahrig: dicionário semibilíngue para brasileiros, por sua vez, a palavra aparece também como “renegar”, mas sua significação é ampliada para “esconder” ou mesmo para “fingimento, dissimulação”, como na expressão reflexiva sich verleugnen lassen (fingir ou mandar dizer que não está), ou ainda como no caso de alguém não ser capaz de lidar com os próprios sentimentos ou crenças, como em sich selbst verleugnen (negar-se a si mesmo) (Irmen & Beau, 1995Irmen, F., & Beau, A. E. (1995). Langenscheidts Taschenwörterbuch der Portugiesischen und Deutschen Sprache (13a ed.). Berlin: Langenscheidt ., p. 1144; Wahrig-Burfeind, 2011Wahrig-Burfeind, R. (2011). Dicionário semibilíngue para brasileiros. São Paulo, SP: WMF Martins Fontes., p. 1139). Em dicionários mais completos, já encontramos o substantivo Verleugnung traduzido para o português como “renegação” ou “retratação” (Dicionário de alemão-português, 2000Dicionário de alemão-português. (2000). Porto, Portugal: Porto., p. 836) ou para o francês como dénégation, reniement, désaveau ou démenti (Grappin, 2007Grappin, P. (2007). Grand dictionnaire allemand-français, français-alemand. Paris: Larousse., p. 854). Nos dicionários Alemão-Alemão aparecem ainda as ações de “encobrir”, “ocultar”, “disfarçar”, “esconder” (verbergen, abstreiten), tanto na tentativa de dissimular algo de si mesmo com relação a outra(s) pessoa(s) como em relação de si a si mesmo (Götz, 2003Götz, D. (2003). Großwörterbuch Deutsch als Fremdsprache. Berlin: Langenscheidt, 2003., p. 1114; Wahrig, 1968Wahrig, G. (1968). Deutsches Wörterbuch: mit einem “Lexikon der Deutschen Sprachlehre”. Gütersloh, Deutschland: Bertelsmann Lexikon-Verlag., p. 3822).
Consultando os dicionários de psicanálise, vemos no já clássico Vocabulário de psicanálise de Laplanche e Pontalis (1970Laplanche, J., & Pontalis, J.-B. (1970). Vocabulário da psicanálise. São Paulo, SP: Martins Fontes.) que o termo utilizado em francês foi déni, traduzido para o português como “recusa (da realidade)”. O livro indica, ainda, outras traduções, como a inglesa (disavowal) e a espanhola (renegación). Ora, tal diversidade já evidencia as diferentes possibilidades de tradução, mesmo porque no final do verbete os autores dizem preferir o termo francês déni ao invés de dénégation ([de]negação) por ser mais forte e ter certa nuança de ilegitimidade, como na expressão “recusa do que é devido” (Laplanche & Pontalis, 1970Laplanche, J., & Pontalis, J.-B. (1970). Vocabulário da psicanálise. São Paulo, SP: Martins Fontes., pp. 562-565).
Surpreendentemente, David Zimerman (2001Zimerman, D. E. (2001). Vocabulário contemporâneo de psicanálise. Porto Alegre, RS: Artmed.) em seu Vocabulário contemporâneo de psicanálise, remetendo a Laplanche e Pontalis, opta, na nomeação de seu verbete, pela palavra “(de)negação” com o prefixo destacado de modo a marcar diferença em relação à simples “negação” e enfatizar a pluralidade de significados como “renegar”, “denegar”, “retratar”, “desmentir” (Zimerman, 2001Zimerman, D. E. (2001). Vocabulário contemporâneo de psicanálise. Porto Alegre, RS: Artmed., p. 98). Por sua vez, no Dicionário Internacional da Psicanálise, dirigido por Alain de Mijolla (2005Mijolla, A. (Org.). (2005). Dicionário internacional da psicanálise: conceitos, noções, biografias, obras, eventos, instituições. Rio de Janeiro, RJ: Imago ., p. 478), o autor do verbete sobre o conceito freudiano utiliza déni (de realité) ou désaveau, tendo ficado a tradução para o português como “desmentido [da realidade]”. Por outro lado, em seu Dicionário de psicanálise, Roudinesco e Plon (1998Roudinesco, E., & Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.) reiteram o termo déni. Entretanto, nesse caso, o termo é traduzido para o português como “renegação”, e não “recusa”, indicando para o espanhol desmentida. Além disso, os autores observam que “em 1967 o psicanalista francês Guy Rosolato propôs traduzir Verleugnung por désaveau [desmentido, retratação] (em vez de déni)” (p. 656). No Dicionário de psicanálise, dirigido por Roland Chemama e Bernard Vandermersch (2007Chemama, R., & Vandermersch, B. (2007). Dicionário de psicanálise. São Leopoldo, RS: Unisinos.), a autora do verbete correspondente utiliza novamente o termo déni traduzido para o português como “recusa”, indicando para o inglês disavowal ou denial. Já no Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan, de Pierre Kaufman (1996Kaufmann, P. (Ed.). (1996). Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.), o conceito em português é nomeado como “recusa da realidade” e “renegação” (pp. 213-215), mas a sua leitura deve ser feita em paralelo com o verbete “forclusão” (pp. 446-448), escrito por outro colaborador da obra.
Essa oscilação terminológica parece assinalar não somente a extensão do campo semântico da palavra alemã, mas também a dificuldade de sua determinação conceitual na construção do edifício metapsicológico, mesmo quando Freud a utilizou num sentido mais específico como um mecanismo fundamental para o que seria “a explicação completa” do fetichismo. Ele nunca a definiu com rigor e a manteve associada não só à psicose, mas também à noção de negação referida aos processos inconscientes envolvidos na “reação verbal” ou no juízo negativo, como se vê em Verneinung muitas vezes vertida como “(de)negação” de modo a marcar no prefixo alemão ver- não apenas a negação lógica, mas o seu significado psicológico mais enfático, uma vez que não há em alemão o verbo neinen (Laplanche & Pontalis, 1970Laplanche, J., & Pontalis, J.-B. (1970). Vocabulário da psicanálise. São Paulo, SP: Martins Fontes., p. 373).
Como se vê - e isso é comum em todas as línguas - o termo alemão Verleugnung foi traduzido de diversos modos para o português: “negação”, “renegação”, “recusa”, “desmentido”. No seu utilíssimo Dicionário comentado do alemão de Freud, Louis Hanns (1996Hanns, L. A. (1996). Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago.) decompõe o termo alemão em seu prefixo ver- basicamente designando o prolongamento temporal ou espacial de um fenômeno ou a intensidade de uma ação e o verbo leugnen como “negar”, “desmentir” ou “contestar a veracidade” (pp. 303-313).
Após listar, apontando as suas diferentes conotações, os diversos significados em alemão e em português, como fizemos anteriormente, o autor apresenta uma preciosa série de exemplos de seu uso em Freud (Hanns, 1996Hanns, L. A. (1996). Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago.). Nela, vemos como a noção vai tomando forma na teoria freudiana desde “Sobre as teorias sexuais infantis”, de 1908, quando, ao perceber os genitais de sua irmãzinha, um menino se vê levado a “falsear” ou a “desviar”, “refratar” a sua percepção numa passagem na qual o termo alemão ainda não aparece (Freud, 1908/1999cFreud, S. (1999c). Über infantile Sexualtheorien. In Gesammelte Werke (Vol. 8, pp. 171-188). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1908), p. 178). Posteriormente, ainda na Primeira Tópica, já aparecem tanto o verbo verleugnen quanto o substantivo Verleugnung em contextos diversos, sempre correspondendo à ação de negar.
Na Segunda Tópica a conceituação esboçada no artigo de 1908 é retomada desde “A organização genital infantil” (Freud, 1923/1999f), para, logo depois, em textos como “A perda da realidade na neurose e na psicose” (Freud, 1924/1999hFreud, S. (1999h). Der Realitätsverlust bei Neurose und Psychose. In Gesammelte Werke (Vol. 13, pp. 363-368). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1924)), e “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” (Freud, 1925/1999iFreud, S. (1999i). Einige psychische Folgen des anatomischen Geschlechtsunterschieds. In Gesammelte Werke (Vol. 14, pp. 19-30). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1925)), o termo alemão ser associado ao mecanismo da psicose. Finalmente, no artigo sobre o fetichismo, o seu uso se fixa na explicação da perversão, porém trata-se de uma fixação precária, como se pode constatar no texto freudiano de 1925 “A negação”, inicialmente intitulado Die Verneinung und Verleugnung (A negação e o desmentido), a mostrar ainda certa superposição dos dois mecanismos pertencentes à “lógica da defesa psíquica”, sendo o segundo deles abordado especificamente dois anos depois em Fetischismus (Assoun, 2009Assoun, P.-L. (2009). Dictionnaire des oeuvres psychanalytiques. Paris: PUF., p. 374).
Em nosso país, a partir do impacto da obra lacaniana e seu empenho de construir uma teoria geral das estruturas clínicas, a Verleugnung aparece como “a operação fundamental de todas as formas de perversão”, propondo a sua designação francesa como démenti e a diferenciando nitidamente de outras operações psíquicas como o “recalque” (Verdrängung; refoulement) e a “rejeição” ou “forclusão” (Verwerfung; forclusion) (Evans, 2000Evans, D. (2000). Diccionario introductorio de psicoanálisis lacaniano. Buenos Aires: Paidós., p. 168). Não obstante, não vamos abordar aqui a conceituação lacaniana, pois nos limitaremos a percorrer alguns textos freudianos para localizar as diferentes movimentações do termo.
A Verleugnung na Primeira Tópica
Ao menos duas aparições do termo Verleugnung em textos anteriores a 1914 merecem um comentário. A primeira aparece no livro Psicopatologia da Vida Cotidiana (Freud, 1905), e, no segundo caso, embora não encontremos o termo, nos deparamos com a ideia da recusa da realidade no texto “Formulações sobre os dois princípios do Funcionamento Mental” (1911).
Na seção VII do livro Psicopatologia da vida cotidiana, intitulada “O esquecimento de impressões e intenções”, mais precisamente na primeira parte, Freud (1905/1999bFreud, S. (1999b). Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie. In Gesammelte Werke (Vol. 4, pp. 29-145). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch. (Trabalho original publicado em 1905)) apresenta vários casos de esquecimento do conteúdo de diálogos. O primeiro se refere a uma experiência vivida por ele mesmo, quando pretendeu relatar para um parente uma cena ocorrida algumas semanas antes, em que ficou irritado com sua esposa porque ela estava explicitamente escutando a conversa de um senhor vienense com o seu vizinho em uma situação pública. No entanto, no momento em que relata o acontecido, ele se esquece do conteúdo da conversa daquele senhor; uma amnésia por ele atribuída a considerações relativas à pessoa de sua esposa (Freud, 1905/1999bFreud, S. (1999b). Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie. In Gesammelte Werke (Vol. 4, pp. 29-145). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch. (Trabalho original publicado em 1905), p. 151).
Após esse relato de uma cena cotidiana, seguem-se outras cenas de esquecimento, mas o mais interessante é a descrição de um esquecimento de Freud associado a uma hipótese relevante para a construção do edifício teórico psicanalítico. Freud (1905/1999bFreud, S. (1999b). Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie. In Gesammelte Werke (Vol. 4, pp. 29-145). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch. (Trabalho original publicado em 1905)) conta que observou para um amigo (Fliess) que “esses problemas neuróticos só poderão ser resolvidos quando nos basearmos integralmente na hipótese da bissexualidade originária do indivíduo” e o seu interlocutor responde: “isto foi o que eu lhe disse há dois anos e meio” (Freud, 1905/1999bFreud, S. (1999b). Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie. In Gesammelte Werke (Vol. 4, pp. 29-145). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch. (Trabalho original publicado em 1905), pp. 159-160). Esse esquecimento atinge em cheio a grande ambição freudiana, o desejo de originalidade.
Os exemplos se multiplicam: o esquecimento de nomes, o apagamento de impressões penosas, os depoimentos nos tribunais, o descarte das objeções de outros pesquisadores no caso do trabalho científico e mesmo o encobrimento de recordações dolorosas para o sentimento de um povo na gênese de suas tradições. Como se vê, a Verleugnung, definida como esquecimento motivado por representações e afetos penosos, associa-se intimamente ao recalque e o seu alcance é universal: não atinge apenas pessoas neuróticas, mas também as pessoas sãs; e não apenas os indivíduos, mas também a própria gênese da moralidade, uma vez que Freud (1905/1999bFreud, S. (1999b). Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie. In Gesammelte Werke (Vol. 4, pp. 29-145). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch. (Trabalho original publicado em 1905)) reafirma “uma completa analogia” entre a formação das tradições de um povo e as recordações infantis de um indivíduo (p. 164).
A propósito desse “empenho defensivo elementar” contra representações aflitivas, que evidencia o nexo entre memória e afetividade, Freud evoca numa nota acrescentada em 1919 um aforismo de Nietzsche extraído de Além do bem e do mal: “‘eu fiz isso’ diz minha memória. ‘Eu não posso ter feito isso’ diz meu orgulho, e permanece inflexível. Por fim - cede a memória” (Nietzsche, 1886/1992Nietzsche, F. (1992). Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro (2a ed.). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1886), p. 68, citado por Freud, 1905/1999bFreud, S. (1999b). Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie. In Gesammelte Werke (Vol. 4, pp. 29-145). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch. (Trabalho original publicado em 1905), p. 162). A citação de Nietzsche nessa passagem reforça não apenas o caráter universal do mecanismo defensivo, mas seu papel preponderante na formação da consciência moral. Não obstante, o triunfo da consciência moral não pacifica os afetos penosos e apenas desdobra em outro nível o conflito das forças psíquicas e, por isso, a defesa deve lidar com os remorsos (Reue) e as censuras provenientes da própria consciência moral (Gewissensvorwürfe) (Freud, 1905/1999bFreud, S. (1999b). Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie. In Gesammelte Werke (Vol. 4, pp. 29-145). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch. (Trabalho original publicado em 1905), p. 163).
Não deixa de ser significativo o aparecimento do nome de Nietzsche, cuja morte em agosto de 1900 desencadeou uma enxurrada de publicações sobre ele, passando a ser estudado nas universidades alemãs (Nolte, 1995Nolte, E. (1995). Nietzsche y el nietzscheanismo. Madrid: Alianza Editorial., p. 10). Desse modo, a sua autoridade em ascensão respaldava a concepção freudiana. No mesmo sentido podemos interpretar o súbito aparecimento do nome “do grande Darwin”, que “lançava mão de anotações das objeções feitas ao seu trabalho científico” (Freud, 1905/1999bFreud, S. (1999b). Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie. In Gesammelte Werke (Vol. 4, pp. 29-145). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch. (Trabalho original publicado em 1905), p. 164). Essa “regra de ouro” utilizada por Darwin bem poderia servir para o próprio Freud, que pouco antes havia dado como exemplo de esquecimento um episódio em relação a Fliess envolvendo a questão da bissexualidade.
Nessas passagens do texto freudiano nos deparamos com diversos elementos interessantes: o aparecimento do termo Verleugnung ainda sem determinação conceitual mais precisa; o seu alcance universal reiterando a tese fundamental acerca da continuidade entre o normal e o patológico; o papel do esquecimento defensivo na gênese da consciência moral; a possibilidade de recorrer a tal mecanismo para a compreensão da dinâmica da formação cultural de um povo. Gostaríamos de ressaltar dois pontos: em primeiro lugar, o trecho no qual aparece a Verleugnung como mecanismo defensivo ocorre na sequência da menção acerca da teoria da bissexualidade, e, em segundo, o alcance universal do mecanismo também se associa ao seu fracasso, como vimos no caso dos novos tipos de sofrimento produzidos pelo triunfo da consciência moral.
No primeiro caso, deve-se recordar o papel controvertido da teoria da bissexualidade no desenvolvimento da teoria freudiana e todo o imbróglio desencadeado pela acusação de plágio feita por Fliess a Freud. A ideia mítica do andrógino encontrou nos desenvolvimentos da embriologia uma justificação científica no último quartel do século XIX, tendo sido um de seus propositores justamente Wilhelm Fliess, amigo íntimo e interlocutor científico de Freud. A bissexualidade natural não era apenas um assunto científico a interessar biólogos e sexólogos, mas tornou-se tema de acirrado debate cultural numa sociedade que se deparava com o declínio do patriarcado.
No contexto do abandono da teoria da sedução, Freud abraça a teoria da bissexualidade de Fliess, porém se distanciando da bissexualidade biológica para enfatizar o seu caráter de organização psíquica, de disposição inconsciente, e tomá-la como desencadeador do recalque (Roudinesco & Plon, 1998Roudinesco, E., & Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar., pp. 71-74). A questão torna-se fundamental, pois diante da diferença sexual o sujeito se vê obrigado a fazer uma “escolha” por meio do recalque de um dos componentes constitutivos da bissexualidade.
Os sintomas neuróticos seriam o preço a pagar pela escolha feita, como pode ser ilustrado pela tortura da consciência moral (como ressaltado anteriormente nesse texto). Portanto, o fracasso do recalque em afastar as representações e afetos penosos ligados à bissexualidade já sugere o recurso de um mecanismo defensivo mais efetivo para lidar com a bissexualidade e o desafio da diferença sexual, ou seja, um mecanismo que viria suprir a força insuficiente do recalque das tendências bissexuais constitutivas do ser humano (Sulloway, 1981Sulloway, F. J. (1981). Freud biologiste de l’esprit. Paris: Arthème Fayard., pp. 173-175).
Nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, Freud (1905/1999bFreud, S. (1999b). Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie. In Gesammelte Werke (Vol. 4, pp. 29-145). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch. (Trabalho original publicado em 1905)) propõe a ideia da pressuposição por parte do menino de que todas as pessoas conhecidas possuem uma genitália como a sua. Somente seria possível desistir dessa convicção após “duras lutas internas” relativas ao “complexo de castração” (Kastrastionskomplex). Ele conclui essa passagem afirmando que no lugar do pênis perdido das mulheres surgem “formações substitutivas” (Ersatzbildungen) relevantes na configuração de diversas perversões (Freud, 1905/1999bFreud, S. (1999b). Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie. In Gesammelte Werke (Vol. 4, pp. 29-145). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch. (Trabalho original publicado em 1905), pp. 95-96). Deve-se ressaltar, entretanto, que toda essa parte relativa às investigações sexuais infantis foi acrescentada em 1915, após a introdução da problemática do narcisismo e do início de encaminhamento para a Segunda Tópica e, por conseguinte, em direção à elaboração mais detalhada da estrutura e do papel do Ego. Essa observação já tinha sido feita na discussão do caso do “Pequeno Hans”, quando afirma que reconhecer a ausência de pênis em sua irmãzinha teria sido “um choque violento em sua visão de mundo” (Freud, 1909/1999dFreud, S. (1999d). Analyse der Phobie eines Fünfjährigen Knaben. In Gesammelte Werke (Vol. 7, pp. 243-377). Frankfurt am Maim: Fischer Taschenbuch. (Trabalho original publicado em 1909), p. 341).
Essas questões anunciadas nas considerações sobre as investigações sexuais infantis só puderam ser enfrentadas na Segunda Tópica após o aparecimento da teoria do narcisismo e da reelaboração da bissexualidade à luz da concepção fálica, como se pode ver tanto em “A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade”, de 1923, e no “Fetichismo”, de 1927, que abordaremos mais detidamente adiante.
Num pequeno mas importante texto de 1911, “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental”, Freud aborda a relação do Eu com a realidade perturbadora. O texto se inicia com a seguinte afirmação: “toda neurose tem como resultado e, portanto, provavelmente, como propósito arrancar o paciente da vida real, aliená-lo da realidade” (Freud, 1911/1999eFreud, S. (1999e). Formulierungen über die zwei Prinzipien des psychischen Geschehens. In Gesammelte Werke (Vol. 8, pp. 230-238). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1911), p. 230). O autor prossegue dizendo que o tipo mais extremo dessa alienação ocorre na psicose alucinatória, embora “todo neurótico faça o mesmo com algum fragmento de realidade”.
Nessa passagem a tendência de se alienar da realidade aproxima a neurose da psicose e, em ambos os casos, esse “apartar-se da realidade” decorre de seu caráter insuportável (unerträglich). No entanto, deve-se ressaltar que essa observação já foi feita por Pierre Janet a determinadas condições básicas (Grundbedingungen) que Freud explicita em relação à gênese da neurose como o “processo de recalque” (Verdrängungsprozess), para logo em seguida atribuir o afastamento da realidade em alguns casos de psicose ao “desmentido do acontecimento que provocou a loucura”.
Nessa passagem não encontramos o substantivo, mas o verbo “desmentir” conjugado com modal na forma passiva e fortemente associado ao mecanismo da psicose (Freud, 1911/1999eFreud, S. (1999e). Formulierungen über die zwei Prinzipien des psychischen Geschehens. In Gesammelte Werke (Vol. 8, pp. 230-238). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1911), p. 230). Certamente essa passagem não nos permite supor que o termo usado já indica uma clara determinação conceitual. Na verdade, Freud interpreta essa ação de afastar um acontecimento perturbador da ação do princípio de prazer-desprazer em seu desdobramento como princípio de realidade.
Retomando a tese de seu manuscrito de 1895, em seu artigo de 1911, Freud afirma que a crescente significação da realidade externa, além de introduzir um novo princípio, produz a ampliação e sofisticação dos órgãos sensoriais, os quais possibilitam a solidificação das funções de atenção, memória, consciência e, desse modo, há a transformação do eu-prazer (Lust-Ich) em eu-realidade (Real-Ich), sem que ocorra uma total substituição de um pelo outro, pois, afinal de contas, “na realidade a substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade não implica a destituição daquele, mas apenas sua proteção” (Freud, 1911/1999eFreud, S. (1999e). Formulierungen über die zwei Prinzipien des psychischen Geschehens. In Gesammelte Werke (Vol. 8, pp. 230-238). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1911), pp. 235-236).
Por que haveria proteção ou consolidação do princípio de prazer? Porque não basta excluir as representações desprazíveis por meio do mecanismo do recalque, que sempre fracassa e produz novos sofrimentos, quando há a possibilidade de não se deixar arrastar pelas fantasias ou se limitar a mera descarga motora, como sucede durante a dominação do psiquismo pelo princípio de prazer, mas de julgar e alterar a realidade. A contenção da descarga motora como meio de aliviar a tensão abre a possibilidade do processo de pensamento e da ação (Freud, 1911/1999eFreud, S. (1999e). Formulierungen über die zwei Prinzipien des psychischen Geschehens. In Gesammelte Werke (Vol. 8, pp. 230-238). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1911), p. 233). Não obstante, a pulsão sexual permanece por “mais tempo” ou jamais pode ser subtraída do “domínio do princípio de prazer” e, por isso, encontra-se intimamente associada à fantasia.
Desse modo, observa Freud concisamente, “um tipo de atividade do pensar se cindiu (abgespalten), ela permaneceu livre da prova de realidade e permaneceu submetida somente ao princípio de prazer”, essa atividade é o fantasiar (Phantasieren) (Freud, 1911/1999eFreud, S. (1999e). Formulierungen über die zwei Prinzipien des psychischen Geschehens. In Gesammelte Werke (Vol. 8, pp. 230-238). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1911), p. 234). Ora, aqui, ao se ressaltar a natureza autoerótica da pulsão sexual, já se anuncia a teoria do narcisismo, e o uso do verbo abspalten (fender, cindir) anuncia uma de suas consequências: a cisão do eu (Ichspaltung), uma condição estreitamente vinculada ao mecanismo da Verleugnung, tal como seria desenvolvido conceitualmente na Segunda Tópica e tratada no pequeno e inconcluso manuscrito de 1938, justamente intitulado “A cisão do eu no processo defensivo” (Freud, 1940/1999lFreud, S. (1999l). Abriss der Psychoanalyse. In Gesammelte Werke (Vol. 4, pp. 67-138). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1940), pp. 59-62), e no capítulo VIII do “Esboço de psicanálise”, escrito no mesmo ano (Freud, 1940/1999lFreud, S. (1999l). Abriss der Psychoanalyse. In Gesammelte Werke (Vol. 4, pp. 67-138). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1940), pp. 125-135).
A Verleugnung na Segunda Tópica
O conceito de Verleugnung está correntemente associado ao tema da perversão e da clivagem do eu. Vamos abordar também essas significações centrais, sem esquecer a sua ampliação para uma série de outros fenômenos nos quais Freud aponta a incidência da Verleugnung ao inscrevê-la no funcionamento geral do psiquismo, certamente presente nos neuróticos como um dos expedientes por eles usados diante de uma experiência traumática, mas também como um mecanismo comum e de modo algum raro na experiência das crianças.
Essa extensão do conceito não visa diluir a sua especificidade, mas mostrar sua relevância para a crítica social, o que faremos apenas brevemente na conclusão deste artigo. Embora ultrapasse os limites estritos do texto freudiano, acreditamos que tal objetivo não é impertinente se considerarmos não apenas a continuidade entre o normal e o patológico, mas o potencial crítico da psicanálise em relação à cultura, à sociedade e à política.
Passemos, então, à abordagem desses significados no texto freudiano. Antes mesmo de usar a palavra Verleugnung, Freud já havia concebido como um “desmentido” a reação das crianças quando da percepção dolorosa da ausência de pênis na menina, ou seja, quando se dá o encontro perturbador com a verdade da castração. Essa concepção foi sendo formada na elaboração da teoria da sexualidade nos “Três ensaios” de 1905, em “Teorias sexuais infantis”, de 1908, e no “Pequeno Hans”, de 1909.
A Verleugnung, antes de ser o mecanismo específico da perversão na qual está em jogo o desmentido da castração, ocorre comumente na infância em relação à diferença sexual. A mesma ideia é retomada na Segunda Tópica à luz da primazia do falo. Em “A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade”, ao reiterar algumas consequências das pesquisas sexuais das crianças, Freud afirma: “É conhecido como elas reagem frente às primeiras impressões da falta do pênis. Elas desmentem (leugnen), apesar de tudo creem ver um membro, dissimulam a contradição entre observação e prejuízo” (Freud, 1923/1999fFreud, S. (1999f). Die infantile Genitalorganisation. In Gesammelte Werke (Vol. 13, pp. 293-298). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original puglicado em 1923), p. 296).
Na tradução brasileira das Obras completas o editor inglês observa como daquele momento em diante “o conceito de ‘rejeição’ (Verleugnung) passa a ocupar lugar cada vez mais importante nos escritos de Freud. Na presente passagem, a palavra alemã empregada é leugnen, porém depois seu lugar é quase que invariavelmente tomado pela forma afim verleugnen” (Strachey, 1976Strachey, J. (1976). Nota de rodapé. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 19, pp. 155-160. Rio de Janeiro, RJ: Imago ., p. 182). Nota-se aqui como na nota do editor a palavra Verleugnung foi traduzida para o português como “rejeição”.
Tal escolha de tradução foi logo em seguida justificada pelo tradutor brasileiro como recurso para evitar confusão com o verbo alemão verneinen. Porém, na edição castelhana, na tradução da mesma nota para o espanhol consta o termo desconocimiento ou desmentida. Apesar dessa oscilação na tradução, o importante na nota do editor inglês consiste em mostrar como nesse período, apesar de algumas flutuações, vai se consolidando o significado conceitual de Verleugnung.
No texto de 1923, a “negação (leugnen) da diferença sexual” é elucidada no contexto do complexo de castração e do primado do falo. No pequeno artigo de 1924, “A perda da realidade na neurose e na psicose”, a tese recentemente proposta acerca da diferença dos níveis de conflito nas duas afecções - na neurose o conflito entre Ego e o Id, e na psicose entre o Ego e o mundo externo (Aussenwelt) - é complementada pelo tipo de perda da realidade e sua compensação, ou seja, por seu resultado final: na neurose há fuga de um fragmento da realidade que passa a ser evitada; na psicose há uma fase ativa de remodelagem da realidade. Em síntese: “a neurose ‘não desmente a realidade’” (Freud, 1924/1999hFreud, S. (1999h). Der Realitätsverlust bei Neurose und Psychose. In Gesammelte Werke (Vol. 13, pp. 363-368). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1924), p. 365); ela não quer saber nada dela. A psicose a desmente e procura substituí-la.
Pouco depois ele atenua a diferença ao indicar na neurose certa substituição da realidade na fantasia, porém volta a diferenciar as duas afecções com base no tipo de reparação alcançado. Na neurose, o fracasso ocorre não tanto na etapa do conflito entre o Ego e a pulsão, mas na segunda etapa, no momento do fracasso do “recalque” (Verdrängung), enquanto na psicose a patologia incide já na primeira etapa quando ocorre o desmentido (Verleugnung) da realidade, ou, como ele pouco antes havia escrito, “o fragmento da realidade rejeitado”, sempre se impondo à vida anímica.
Apesar de as consequências nos dois casos serem semelhantes - o fracasso da reparação ou da solução alcançada -, a força do desmentido produz uma perturbação bem mais severa das funções egoicas. Mas por que isso ocorre? Porque o desmentido já havia sido primitivamente inscrito na própria constituição do Ego e não pode ser simplesmente considerado seu mecanismo. A ideia do desmentido da percepção da ausência do pênis na menina, já assinalada nos “Três ensaios” e retomada na “Organização genital infantil”, será aludida ainda no artigo sobre o masoquismo, quando, ao diferenciar as três formas de masoquismo, coloca o masoquismo erógeno como base para os outros dois tipos.
O seu caráter originário (ursprünglich) pode ser acompanhado pelo desenvolvimento da libido, e o seu momento crucial se dá na fase fálica, da qual advém a castração que deve ser mais tarde desmentida (später verleugnet) (Freud, 1924/1999gFreud, S. (1999g). Das ökonomische Problem des Masochismus. In Gesammelte Werke (Vol. 13, pp. 371-383). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1924), p. 377). Pouco depois, no artigo de 1925 “Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos”, ao estabelecer a analogia entre meninas e meninos com relação à castração, ele afirma que, quando vê a região genital da menina, o menino “não vê nada ou desmente sua percepção” (Freud, 1925/1999iFreud, S. (1999i). Einige psychische Folgen des anatomischen Geschlechtsunterschieds. In Gesammelte Werke (Vol. 14, pp. 19-30). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1925), p. 23).
As duas ocorrências do verbo verleugnen situam a ação no contexto do complexo de castração e, por conseguinte, no contexto da constituição narcísica do Ego. Esse processo, diz Freud, “que eu gostaria de designar como desmentido” não seria nem raro nem perigoso, mas “num adulto poderia introduzir uma psicose” (Freud, 1925/1999iFreud, S. (1999i). Einige psychische Folgen des anatomischen Geschlechtsunterschieds. In Gesammelte Werke (Vol. 14, pp. 19-30). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1925), p. 24). Compreende-se, então, facilmente porque a reiteração da Verleugnung no caso da psicose afeta tão drasticamente as funções egoicas, pois seria a atualização da clivagem constitutiva do Ego, e esta não é mais do que a sua inconsistência estrutural.
Vamos agora acompanhar mais de perto o texto sobre o fetichismo. Freud menciona, após breve referência clínica, duas características “da escolha objetal dominada por um fetiche”. Em primeiro lugar, o fetiche normalmente não suscita sofrimento, sendo antes visto como meio conveniente de realização da vida amorosa. Em segundo lugar, a escolha do fetiche decorre de circunstâncias específicas; depende da singularidade da história individual, como no relato do caso do “brilho do nariz”, da escolha do nariz como fetiche em decorrência de acontecimentos fortuitos, porém marcantes (Freud, 1927/1999kFreud, S. (1999k). Fetischismus. In Gesammelte Werke (Vol. 14, pp. 311-317). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1927), p. 311).
Logo em seguida, ele propõe de modo abrupto um enunciado geral recobrindo todos os casos de fetichismo: “o fetiche é um substituto do pênis” ou, antes, de um pênis muito especial e de grande significação na primeira infância, depois perdido, e que o fetiche deve “preservar do desaparecimento”. Esse “pênis muito especial” não é outro senão o “falo da mulher (da mãe) do qual o fetiche é o substituto” (Freud, 1927/1999kFreud, S. (1999k). Fetischismus. In Gesammelte Werke (Vol. 14, pp. 311-317). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1927), p. 312).
Há, nessa passagem, um deslocamento do vocabulário significativo do ponto de vista conceitual. Não se trata mais de um substitutivo do pênis (Penisersatz) e sim de um substituto para o “falo” (Ersatz für den Phallus). Num primeiro momento pode-se dizer, como Freud o faz, que o fato de a mãe não ter pênis coloca em risco o pênis do menino. No entanto, a angústia suscitada pela percepção e o vigor do mecanismo defensivo parecem indicar na percepção do que falta no outro o reconhecimento do que falta em si mesmo.
Por isso, a solução fetichista, embora pacificadora, não se sustenta inteiramente, e a crença se vê continuamente erodida pela “realidade da falta”: “não é certo que a criança após a observação da mulher tenha salvado inalterada a crença no falo da mulher. Ele conservou-a, mas também a abandonou” (Freud, 1927/1999kFreud, S. (1999k). Fetischismus. In Gesammelte Werke (Vol. 14, pp. 311-317). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1927), p. 313). O deslocamento do pênis para o fetiche, a passagem de um objeto empírico para um substituto que pode ser qualquer coisa assinala a natureza propriamente fálica da falta, ou seja, o seu estatuto universal e, por isso, o fetiche conserva o “horror diante da castração” e a ele “ergue um monumento” (Freud, 1927/1999kFreud, S. (1999k). Fetischismus. In Gesammelte Werke (Vol. 14, pp. 311-317). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1927), p. 313).
Estamos aqui, certamente, no cerne do mecanismo da perversão fetichista. Ao rejeitar o termo proposto por Laforgue (“escotomizar”), Freud remete esse “processo patológico” ao “recalque” (Verdrängung), “a mais antiga peça da terminologia psicanalítica”, para logo em seguida observar: “com ele se quer separar nitidamente o destino da representação e do afeto e reservar a expressão ‘recalque’ para o afeto” (Freud, 1927/1999kFreud, S. (1999k). Fetischismus. In Gesammelte Werke (Vol. 14, pp. 311-317). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1927), pp. 312-313).
Pode nos chamar atenção a associação do recalque com o afeto quando se sabe que o recalque incide sobre a representação (Vorstellung) e não sobre o afeto, que pode ser apenas inibido ou eliminado pela repressão (Unterdrückung) e não se tornar inconsciente (Laplanche & Pontalis, 1970Laplanche, J., & Pontalis, J.-B. (1970). Vocabulário da psicanálise. São Paulo, SP: Martins Fontes.). Freud completa afirmando que para o destino da representação a designação alemã correta seria “desmentido” (Verleugnung).
Não discutiremos aqui essa dificuldade, limitando-nos a observar que no contexto da explicação do fetichismo se quer enfatizar não a separação entre representação e afeto, com a consequente produção de angústia, como na neurose, mas o desmentido de uma representação relativa ao mundo externo, a uma percepção.
O fracasso do desmentido consiste na impossibilidade de “apagar” completamente (wegwischen) a percepção, como se apaga um desenho de um quadro negro, e por isso o termo “escotomização” é rejeitado. O conflito entre a percepção indesejada e o desejo contrário (Gegenwunsch) produz um compromisso, e este não é da ordem de uma alucinação, como na psicose, mas de uma crença. O desmentido suscita uma crença oscilante e sempre reiterada, cujo objetivo é a manutenção do narcisismo.
Há um entrelaçamento entre verdade e mentira, entre saber e não querer saber acerca da castração feminina e da diferença sexual (Sequeira, 2009Sequeira, V. C. (2009). Pedro e o lobo: o criminoso perverso e a perversão social. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 25(2), 221-228., p. 223). E é justamente essa dinâmica estrutural da crença determinada pela Verleugnung que abre um promissor espaço de crítica social. Disto há indício numa surpreendente passagem do texto freudiano em que, logo após mencionar o medo do menino de ser castrado, o autor afirma que “o adulto viverá mais tarde talvez um pânico semelhante quando é dado o grito de que o Trono e o Altar estão em perigo, e ele levará a consequências ilógicas semelhantes” (Freud, 1927/1999kFreud, S. (1999k). Fetischismus. In Gesammelte Werke (Vol. 14, pp. 311-317). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1927), p. 312). O Trono e o Altar são os pilares da sociedade e, quando eles são abalados, o pânico se dissemina e logo advirão comportamentos irracionais.
Podemos aqui vislumbrar o problema da ideologia e o possível alcance social e político do mecanismo da Verleugnung. O modelo conceitual da perversão fetichista pode ser generalizado, pois a Verleugnung atua em situações traumáticas quando uma realidade insuportável se insinua. Um pouco mais adiante no artigo sobre o fetichismo, Freud relata a sua análise de dois homens jovens que quando meninos de dois e de dez anos haviam “escotomizado” (skotomisiert) a morte do pai amado sem que nenhum deles desenvolvesse uma psicose e conclui: “Aí também uma parte da realidade certamente significativa tinha sido desmentida pelo Ego, como de modo semelhante no fetichista o fato desagradável da castração da mulher” (Freud, 1927/1999kFreud, S. (1999k). Fetischismus. In Gesammelte Werke (Vol. 14, pp. 311-317). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1927), p. 315). Num dos dois casos a “cisão” (Spaltung) foi a base para o desenvolvimento de “uma neurose obsessiva de moderada gravidade” (Freud, 1927/1999kFreud, S. (1999k). Fetischismus. In Gesammelte Werke (Vol. 14, pp. 311-317). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1927), p. 316).
Uma semana após escrever o artigo sobre fetichismo, Freud redigiu algumas observações sobre o humor. Nelas, introduz a ideia de que a ação humorística representa uma tentativa do psiquismo de se livrar de um afeto negativo produzido por alguma situação específica. Como exemplo cita o comentário de um criminoso sendo levado à forca: “Então, a semana começa bem” (Freud, 1927/1999jFreud, S. (1999j). Der Humor. In Gesammelte Werke (Vol. 14, pp. 383-389). Frankfurt am Maim, Deustchland: Fischer Taschenbuch. (Trabalho original publicado em 1927), p. 383). O humor apresenta certo tipo de superioridade do eu, porém uma superioridade rebelde, “não apenas o triunfo do eu, mas também o do princípio de prazer”, forma similar a Verleugnung (Freud, 1927/1999jFreud, S. (1999j). Der Humor. In Gesammelte Werke (Vol. 14, pp. 383-389). Frankfurt am Maim, Deustchland: Fischer Taschenbuch. (Trabalho original publicado em 1927), p. 385).
Parece-nos legítimo, portanto, como também ocorre no “recalque”, a generalização do “desmentido”: mecanismo específico do fetichismo, também presente na neurose “como um processo de amortecimento da memória e da afetividade. . . . como uma espécie de congelamento do afeto” (Borges & Cardoso, 2011Borges, G., & Cardoso, M. (2011). Clivagem mortífera e guardiã de Eros. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 14(4), 599-610., p. 600).
O instigante estudo de Borges e Cardoso mostra como o mecanismo do “desmentido” atua em situações extremamente traumáticas como acontece com pessoas vivendo num campo de concentração, o que exige uma intensa focalização na sobrevivência, quando “o psiquismo tende a operar em regime de funcionamento atrelado ao registro ‘atual’, o que se traduz por superinvestimento da consciência e da atenção, em resposta à exigência de trabalho que a realidade traumática lhe impõe” (Borges & Cardoso, 2011Borges, G., & Cardoso, M. (2011). Clivagem mortífera e guardiã de Eros. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 14(4), 599-610., p. 603).
Como se vê, o mecanismo defensivo desmente a realidade traumática e o faz entorpecendo o pensamento e impossibilitando lidar com a realidade de um modo mais abrangente para deixar lugar apenas ao comportamento reativo e à adaptação pontual e artificial ao quotidiano concentracionário.
Prosseguindo em nossa leitura dos textos freudianos, parece-nos fundamental trabalhar dois textos de 1938, a saber, “A divisão do Ego no processo de defesa” e “Esboço de psicanálise”. O primeiro deles, considerado pelo editor inglês uma continuidade do artigo sobre o fetichismo, é texto brevíssimo e inconcluso. Nele, Freud relata o que teria ocorrido na infância com um de seus pacientes. O ego do menino se encontrou diante do confronto entre uma exigência pulsional de satisfação e um perigo real se a satisfação prosseguisse.
Uma solução poderia ser a renúncia da satisfação, e a outra seria “desmentir a realidade” preservando a satisfação. Os dois caminhos são trilhados ao mesmo tempo: ele “rejeita” (abweist) a realidade com a ajuda de determinados mecanismos e reconhece o perigo proveniente da realidade, assumindo a angústia diante dele (Freud, 1940/1999mFreud, S. (1999m). Die Ichspaltung im Abwehrvorgang. In Gesammelte Werke (Vol. 17, pp. 59-62). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1940), pp. 59-60). Nessa passagem vemos que o mecanismo utilizado não se confunde com o da verdadeira “rejeição” (Abweisung), e sim com o “desmentido”, cujo efeito consiste no afrouxamento da atividade sintética do Ego e na convivência das duas reações antagônicas.
Mas o que seria desmentido? Logo em seguida, no relato de outro fragmento de caso, uma criança ameaçada de castração “certamente desmentira a realidade (hatte verleugnet), mas salvara o seu próprio pênis”. Nesse caso, o “estranhamento” (Abwendung) em relação à realidade não levou a um processo psicótico, porque não significou “contradizer” a realidade mediante a alucinação do pênis, mas apenas um “deslocamento de valor” (Wertverschiebung), ou seja, o encobrimento da realidade por uma crença fetichista (Freud, 1940/1999mFreud, S. (1999m). Die Ichspaltung im Abwehrvorgang. In Gesammelte Werke (Vol. 17, pp. 59-62). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1940), p. 61).
Por que é importante ressaltar isso? Porque o que não se percebeu, a ausência do pênis na mulher, não poderia mesmo ser percebido, pois era da ordem da falta, e a ausência não poderia ser percebida como a presença, apenas significada a posteriori pela ameaça de castração. O “deslocamento de valor” pode ser interpretado como a construção de uma crença fetichista numa realidade não faltosa.
O requisito para isso é justamente a “clivagem do ego” (Ichspaltung), isto é, o enfraquecimento da atividade sintética do ego e, portanto, da atividade judicativa, e implica, de certa forma, a abdicação do pensamento diante do choque traumático. A determinação conceitual da Verleugnung como mecanismo específico da perversão abre também outras e fecundas possibilidades teóricas.
Passemos, então, à consideração do segundo manuscrito inconcluso de 1938, o “Esboço de psicanálise”. O capítulo VIII, intitulado “O aparelho psíquico e o mundo externo”, inicia-se com uma rápida digressão epistemológica, na qual dois pontos podem ser destacados. O primeiro deles reside na afirmação da necessidade de ir além da psicologia da consciência para compreendermos o funcionamento normal da mente.
A insuficiência dos dados da “autopercepção consciente” nos impõe uma dificuldade facilmente compreensível: tudo o que ultrapassa a consciência e a percepção direta só pode ser inferido como correspondente ao “estado de coisas real” que não pode ser conhecido em si mesmo. O segundo ponto consiste em estender a dificuldade específica da psicanálise também às ciências da natureza e na adoção de uma tese geral sobre o conhecimento humano sintetizada na seguinte frase: “o real permanecerá sempre ‘incognoscível’” (Freud, 1940/1999lFreud, S. (1999l). Abriss der Psychoanalyse. In Gesammelte Werke (Vol. 4, pp. 67-138). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1940), p. 127).
Essas passagens podem ser relacionadas a uma afirmação feita no final do mesmo capítulo, em que Freud diz “não se deve crer que o fetichismo represente um caso excepcional com referência à cisão do ego; ele é somente um objeto de estudo especialmente conveniente” (Freud, 1940/1999lFreud, S. (1999l). Abriss der Psychoanalyse. In Gesammelte Werke (Vol. 4, pp. 67-138). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1940), p. 134). O autor prossegue dizendo que o ego da criança lida com o conflito entre o mundo real e as pulsões desagradáveis por meio do “recalque” (Verdrängung) e também do “desmentido das percepções” (Freud, 1940/1999lFreud, S. (1999l). Abriss der Psychoanalyse. In Gesammelte Werke (Vol. 4, pp. 67-138). Frankfurt am Maim, Deutschland: Fischer Taschenbuch . (Trabalho original publicado em 1940), p. 134).
Como relacionar isso às considerações epistemológicas anteriormente citadas? Talvez, do seguinte modo: para além do fetichismo, a Verleugnung é um mecanismo fundamental do conhecimento humano, pois todo ele esbarra no incognoscível. Ou, antes, o incognoscível é uma essencial condição de possibilidade do conhecimento ao mesmo tempo que é também um choque traumático. Daí certa aversão ao conhecimento e sua parcial substituição ou complementação por meio de uma ideologia da completude.
Considerações finais
Procuramos no desenvolvimento deste artigo realizar a leitura atenta do texto freudiano, acompanhando os deslocamentos e oscilações do termo Verleugnung na primeira e segunda tópica. A nossa intenção não se limitou a fazer um estudo exegético, mas também contribuir para a melhor compreensão do conceito em sua abrangência e complexidade.
Acreditamos, e essa foi a motivação originária do nosso estudo, assinalada no início, que a análise textual possa servir de subsídio para uma discussão muito mais ampla, aquela a respeito da relevância da teoria psicanalítica para uma interpretação crítica dos processos contemporâneos de subjetivação. Não obstante, embora instigante, tal tema não poderia ser abordado de modo minimamente rigoroso nos estreitos limites que nos impusemos ao escrever este artigo.
Assim, concluímos que, embora o conceito de “desmentido” tenha encontrado a sua formulação específica como mecanismo de defesa da perversão fetichista, trata-se de um conceito bem mais extenso, não se restringindo à organização perversa e que poderia revelar um grande valor para a compreensão crítica de certos aspectos da sociedade contemporânea. Na primeira tópica a ideia do desmentido aparece vinculada ao tema do esquecimento, mas encontra sua formulação última na segunda tópica, como uma defesa do ego em relação ao fragmento de realidade que se apresenta como insuportável ao sujeito.
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jan-Apr 2018
Histórico
-
Recebido
16 Jun 2017 -
Aceito
03 Set 2017