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Participação política e potência de agir: a produção de saúde ético-política em ocupações estudantis paulistas

Political participation and power to act: the ethical-political health produced by student occupations in São Paulo

Participation politique et puissance d’agir: la santé éthico-politique produite par les occupations juvéniles à São Paulo

Participación política y potencia del actuar: la producción de salud ético-política en las ocupaciones estudiantiles paulistas

Resumo

Os anos de 2015 e 2016 foram marcados politicamente por movimentos de ocupações estudantis pelo Brasil, os quais pautavam a defesa da educação pública e tiveram a autogestão como grande marca organizativa. Este artigo objetiva abordar os processos de produção de potência de agir e saúde ético-política ocorridos durante ocupações estudantis paulistas nos anos de 2015 e 2016. O corpus de pesquisa foi construído por meio de entrevistas, grupos focais e observações participantes com estudantes de quatro cidades: São Paulo, Ribeirão Preto, Catanduva e Barretos. A partir da análise do material, evidencia-se que apesar de os participantes terem sido submetidos a processos de diminuição de potência de agir e a sofrimento ético-político durante os movimentos, lutaram em prol de ideais coletivos, partilha de identidades sociais, humor, espaços lúdicos etc.

Palavras-chave:
movimento social; saúde; subjetividade; participação política; potência de agir

Abstract

The years 2015 and 2016 were politically marked by student occupation movements throughout Brazil, which focused on the defense of public education and stood out due to their self-organization. This paper investigates the production processes of power to act and ethical-political health that took place during the 2015-2016 student occupations in São Paulo. Data was collected by means of interviews, focus groups and participant observations with students from four municipalities: São Paulo, Ribeirão Preto, Catanduva and Barretos. The corpus analysis highlights that although the students were subjected to processes of decreased power to act and ethical-political suffering during the occupations, they fought for collective ideals, shared social identities, humor, play activities, among others.

Keywords:
social movement; health; subjectivity; political participation; power to act

Résumé

Les années 2015 et 2016 ont été marquées politiquement par des mouvements d’occupation juvénile dans tout le Brésil, concernés par la défense de l’éducation publique et qui se sont distingués par leur l’autogestion. Cet article étudie les processus de puissance d’agir et de la santé éthico-politique qui ont eu lieu lors des occupations juvéniles de 201e-2016 à São Paulo. Le données ont été recueillies au moyen d’entretiens, de groupes de discussion et d’observations participantes avec des étudiants de quatre villes : São Paulo, Ribeirão Preto, Catanduva et Barretos. L’analyse du corpus met en évidence que, bien que les participants aient été soumis à des processus de diminution de la puissance d’agir et de souffrance éthico-politique pendant les occupations, ils se sont battus pour des idéaux collectifs, des identités sociales partagées, l’humour, des espaces ludiques, entre autres.

Mots-clés :
mouvement social; santé; subjectivité; participation politique; puissance d’agir

Resumen

Los años 2015 y 2016 estuvieron marcados políticamente por movimientos de ocupación estudiantil en todo Brasil con el objetivo de defender la educación pública, los cuales tenían la autogestión como una marca organizacional importante. Este artículo tiene como objetivo abordar los procesos de producción de potencia del actuar y salud ético-política que ocurrieron durante las ocupaciones estudiantiles paulistas en 2015 y 2016. El corpus de investigación se construyó a través de entrevistas, grupos focales y observaciones participantes con estudiantes de cuatro ciudades: São Paulo, Ribeirão Preto, Catanduva y Barretos. Del análisis del material se observa que a pesar de someterse a procesos de disminución de la potencia del actuar y a sufrimiento ético-político durante los movimientos, los estudiantes lucharon por ideales colectivos, intercambio de identidades sociales, humor, espacios lúdicos, entre otros.

Palabras clave:
movimiento social; salud; subjetividad; participación política; potencia del actuar

A participação política em movimentos sociais é objeto de estudo de várias teorias e disciplinas. A psicologia política e a psicologia social também têm contribuído para o entendimento de tal fenômeno (Roggeband & Klandermans, 2017van Stekelenbeg, J., & Klandermans, B. (2017). Individuals in movements: A social psychology of contention. In C. M. Roggeband & B. Klandermans (Eds.), Handbook of social movements across disciplines (pp. 103-139). New York, NY: Springer.). A partir de referenciais psicossociais, este artigo objetiva discutir a potência de agir e a saúde ético-política de participantes de ocupações estudantis. Assim, este texto terá como foco a análise de vivências que resultaram em diminuição ou aumento da potência de corpos afetarem e serem afetados, bem como da potência de mentes pensarem e entenderem (Espinosa, 2015Espinosa, B. (2015). Ética. São Paulo, SP: Edusp.; Sawaia, 2014Sawaia, B. B. (2014). Transformação social: Um objeto pertinente à psicologia social? Psicologia & Sociedade, 26(2), 4-17. doi: 10.1590/S0102-71822014000600002
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).

Espinosa (2015Espinosa, B. (2015). Ética. São Paulo, SP: Edusp.) defende que

. . . agimos quando ocorre em nós ou fora de nós algo de que somos causa adequada, isto é, quando de nossa natureza segue em nós ou fora de nós algo que pode ser entendido clara e distintamente só por ela mesma. (p. 237)

Segundo o filósofo, quando algo compõe com nosso corpo e/ou mente - bom encontro -, temos nossa potência de agir elevada, o que resulta na alegria e nos afetos dela derivados. Por sua vez, a tristeza é produto de maus encontros, ou seja, ela se dá a partir de encontros que decompõem com nosso corpo e/ou mente e, consequentemente, produzem diminuição da potência de agir, gerando, assim, afetos tristes (Deleuze, 2002Deleuze, G. (2002). Espinosa: filosofia prática. São Paulo, SP: Escuta.; Espinosa, 2015Espinosa, B. (2015). Ética. São Paulo, SP: Edusp.). Sawaia (2014Sawaia, B. B. (2014). Transformação social: Um objeto pertinente à psicologia social? Psicologia & Sociedade, 26(2), 4-17. doi: 10.1590/S0102-71822014000600002
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) fundamenta-se em Espinosa para propor a categoria sofrimento ético- político, vinculada ao sofrimento produzido pela redução da potência de agir e “pela experiência da perda da autonomia de meu corpo e minha alma” (p. 10). Ainda baseadas em Espinosa, Souza e Sawaia (2016Souza, A. S. A., & Sawaia, B. B. (2016). A saúde como potência de ação: Uma análise do coletivo e de Comuna do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Psicologia Política , 16(37), 305-320.) defendem que é por meio dos bons encontros e do aumento da potência de agir que se pode constituir uma saúde ético-política, a qual associa a potência do corpo e da mente a posturas politicamente ativas dos sujeitos.

As ocupações estudantis paulistas que serão abordadas ocorreram nos anos de 2015 e 2016 na capital e no interior do estado. Em 2015, a pauta primária do movimento era a revogação da proposta - advinda do governo estadual - de reorganização escolar, a qual previa o fechamento de dezenas de estabelecimentos de ensino. As ações se espalharam por mais de 200 escolas paulistas de educação básica. Menos de 60 dias após a primeira escola ser ocupada em Diadema (SP), o então governador Geraldo Alkmin concordou em adiar a reorganização. Por sua vez, o movimento de 2016 buscava prioritariamente barrar a Proposta de Emenda Constitucional nº 241 (PEC 241). As ocupações contra a chamada “PEC do fim do mundo” ocorreram em mais de mil instituições de ensino básico e superior por todo o Brasil. De maneira geral, as ações de 2016 seguiram a forma de organização dos atos de 2015: autogestão, horizontalidade, comissões de trabalho, decisões tomadas por frequentes assembleias etc. Mesmo com o grande movimento nacional de ocupações, a PEC 241 foi aprovada em dezembro de 2016 (Costa & Groppo, 2018Costa, A. A. F., & Groppo, L. A. (Orgs.). (2018). O movimento de ocupações estudantis no Brasil. São Carlos, SP: Pedro & João Editores.).

Este texto representa parte de uma pesquisa de doutorado que analisou experiências de estudantes que participaram de ocupações estudantis paulistas em 2015 ou 2016 (Rosa, 2019Rosa, L. A. (2019). Ocupações estudantis: Um estudo psicopolítico sobre movimentos paulistas de 2015 e 2016 (Tese de doutorado). Repositório institucional da PUC. https://bit.ly/3HVE3wE
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), cuja análise se deu a partir de três dimensões: potência de agir; aprendizado e desenvolvimento; e práxis política. Aqui, o foco será a primeira das dimensões citadas. A concepção de potência de agir agrega um caráter ético-político aos processos de saúde e doença que os participantes vivenciaram durante os movimentos de ocupação. Apoiada em uma definição ampliada de saúde, Sawaia (1995Sawaia, B. B. (1995). Dimensão ético-política do adoecer da classe trabalhadora. In S. Lane & B. B. Sawaia (Orgs.), Novas veredas da psicologia social (pp. 135-146). São Paulo, SP: Brasiliense.) escreve que “promover a saúde equivale a condenar todas as formas de conduta que violentam o corpo, o sentimento e a razão humana, gerando, consequentemente, a servidão e a heteronomia” (p. 157).

Notas metodológicas

O corpus empírico da pesquisa foi construído e trabalhado analiticamente tendo como orientação o materialismo histórico e dialético (Netto, 2009Netto, J. P. (2009). Introdução ao método na teoria social. In Conselho Federal de Serviço Social & Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (Orgs.), Serviço social: Direitos sociais e competências profissionais (pp. 667-700). Brasília, DF: CFEES. Recuperado de https://bit.ly/3Qcx2ev
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; Vigotski, 2004Vigotski, L. S. (2004). Teoria e método em psicologia. São Paulo, SP: Martins Fontes.), ou seja, a partir do material empírico, buscou-se investigar as múltiplas determinações que compõem o objeto de estudo. No entanto, evidencia-se que o corpus é uma produção conjunta entre participantes e pesquisador, ou seja, o material não é entendido como um dado objetivo existente a priori (Gonzalez Rey, 2005González Rey, F. L. (2005). Pesquisa qualitativa e subjetividade: Os processos de construção da informação. São Paulo, SP: Pioneira.). Sua construção aconteceu por meio de três instrumentos principais: grupo focal (Morgan, 1997Morgan, D. (1997). Focus group as qualitative research. Londres, England: Sage.), entrevista semiestruturada (Triviños, 1987Triviños, A. N. S. (1987). Introdução à pesquisa em ciências sociais: A pesquisa qualitativa em educação. São Paulo, SP: Atlas.) e observação participante (Minayo, 2010Minayo, M. C. S. (Org.). (2010). Pesquisa social: Teoria, método e criatividade. Petrópolis, RJ: Vozes.). Os instrumentos foram aplicados durante (observações participantes e grupos focais) e após (entrevistas) os eventos de ocupação.

No processo de pesquisa, foram formados dois grupos focais - um com três e ouro com cinco participantes - com jovens que ocuparam suas instituições de ensino: em cada um deles havia necessariamente apenas estudantes que estiveram em uma mesma ocupação. Nesses grupos foram abordados temas como o início do processo de ocupação, seu desenvolvimento e término; as mudanças - subjetivas e relacionais - que os estudantes atribuem à participação nas ocupações; as expectativas dos alunos sobre os desdobramentos possíveis de suas participações políticas na escola e fora dela.

As entrevistas tiveram como tema geral o processo de práxis política dos jovens nos movimentos de ocupação, assim como outras ações anteriores ou posteriores vinculadas a esses movimentos. Além disso, investigou-se o desenvolvimento dos sentidos sobre política desses jovens, bem como a forma como suas relações - com a família, os colegas, a escola - foram alteradas devido à participação política. O roteiro das entrevistas teve como eixos primários as questões apresentadas acima, mas elas foram conduzidas concretamente para cada um dos entrevistados a partir dos elementos que emergiram no momento da conversa. O pesquisador também esteve presente - como observador participante - em eventos de natureza política, nos quais os jovens colaboradores da pesquisa participavam e/ou dos quais eram organizadores. Objetivou-se, com isso, ter o contato com as práticas políticas concretas dos jovens, enriquecendo assim as informações obtidas por meio das entrevistas e grupos.

Os relatos utilizados neste texto são provenientes de encontros com estudantes que participaram de ocupações estudantis em 2015 ou 2016 na capital ou no interior de São Paulo. As informações referentes a 2015 dizem respeito a ocupações na cidade de São Paulo e Ribeirão Preto. As ocupações nas cidades de Catanduva e Barretos ocorreram em 2016. As informações sobre os participantes estão sintetizadas na Tabela 1.

Tabela 1
Características gerais dos participantes da pesquisa

Resultados e discussões

Adoecimentos e diminuição de potência de agir

São vários os relatos de estudantes que estiveram em ocupações sobre dificuldades relacionadas à manutenção dos espaços, agressões e ameaças, assim como sobre a grande carga de estresse e o esgotamento emocional relacionados aos movimentos (Costa & Groppo, 2018Costa, A. A. F., & Groppo, L. A. (Orgs.). (2018). O movimento de ocupações estudantis no Brasil. São Carlos, SP: Pedro & João Editores.).

Carolina relata a violência física e as ameaças sofridas durante o movimento estudantil de 2015. Segundo a entrevistada, houve violência policial durante o ato em que participou, a agressão de um colega por um pai de aluno e ameaças muito sérias - envolvendo violência sexual - entre os próprios estudantes. A entrevistada diz que, devido às ameaças, predominou um clima de medo durante os primeiros dias de ocupação, a ponto de serem evitadas atividades abertas à comunidade durante esse período. Os estudantes do Instituto Federal (IF) de Barretos descrevem o medo de que alunos contrários à ocupação entrassem na instituição durante a noite e os agredissem fisicamente.

No IF Catanduva, há várias queixas sobre estresse e esgotamento emocional. Os estudantes falam sobre o quanto as assembleias eram desgastantes, em especial aquelas realizadas conjuntamente a funcionários da instituição. Inclusive, em um dado momento, vários estudantes começaram a apresentar resistências para participar de tais espaços. Os alunos também expõem o quanto eram pressionados, hostilizados e criminalizados por professores e funcionários nesses espaços. A lógica institucional ali presente - que impõe uma evidente diferença hierárquica entre docentes e discentes - intensifica ainda mais a pressão sofrida pelos alunos: algumas das situações poderiam ser caracterizadas como assédio moral. Os estudantes sabem que as hostilizações sofridas na assembleia podem se reverter em perseguições em sala de aula ou em outros espaços da instituição. Alunos de diferentes ocupações relatam conflitos com servidores: “. . . porque, assim, foram duas semanas de ataques cotidianos que causaram uma instabilidade psicológica, instabilidade emocional” (Nino).

O relato de Nino evidencia como o enfrentamento com o diretor da escola gerou um enorme desgaste aos estudantes. O entrevistado diz que os ataques cotidianos provavelmente tiveram efeitos prolongados na saúde de alguns participantes - inclusive na dele. Espertirina fala que ainda na época da entrevista (2018), ela sentia os efeitos da ocupação na postura hostil de alguns professores em relação a ela.

Porém, como já mencionado, não é apenas dos funcionários e gestores das instituições que se originam os conflitos vinculados à ocupação. Há vários ataques entre os próprios alunos, especialmente entre os ocupantes e os contrários ao movimento. Michel fala sobre memes criados por opositores para irritar e perseguir os alunos. Ele destaca apologias ao nazismo e ao porte de armas para matar “esquerdopatas”, além de outras ofensas direcionadas aos participantes do movimento. Pessoas que antes eram “tão de bem”, como diz Eduardo, mostram-se intolerantes e capazes de ofender aquelas do grupo político oposto. Amélia fala sobre como foi difícil ser hostilizada e sua busca por superar as agressões “tentando fazer coisas boas para essas pessoas”. Para ela, a luta era por todas e todos, pela comunidade como um todo; assim, a estudante tem dificuldade de entender a razão dos ataques e do desrespeito perpetrados pelos opositores. Importante lembrar a existência também de falas agressivas e memes advindos dos ocupantes, que tiveram como alvo a oposição ao movimento.

Mesmo após a ocupação, os conflitos permanecem. Paola relata as dificuldades de reaproximação com antigos amigos depois dos conflitos que emergiram durante o movimento. Pessoas que eram colegas ou amigos pouco tempo antes, convertem-se em membros de grupos opostos e mutuamente hostis. Podemos evidenciar, a partir dos relatos, um vigoroso processo de polarização (McAdam, Tarrow, & Tilly, 2002McAdam, D., Tarrow S., & Tilly, C. (2002). Dynamics of contention. Cambridge, England: Cambridge University Press.). As identidades sociais criadas e/ou fortalecidas durante o movimento foram responsáveis por divisões e conflitos diversos entre os estudantes, os quais perduraram inclusive após a ocupação. Segundo Tajfel e Turner (1986Tajfel, H., & Turner, J. C. (1986). The social identity theory of intergroup behavior. In S. Worchel & L. W. Austin (Orgs.), Psychology of intergroup relations (pp. 7-24). Chicago, IL: Nelson-Hall.), a identidade social se refere aos aspectos da autoimagem de um indivíduo, derivados de categoriais sociais das quais ele se considera participante.

Os principais conflitos durante as ocupações ocorreram entre opositores políticos, no entanto, houve também tensões entre os próprios ocupantes. Os entrevistados de Barretos falam sobre os conflitos que havia entre eles durante o movimento. A falta de conhecimento e a dificuldade de lidar com a diferença são colocadas como grandes causas dessas tensões. Os estudantes criam algumas estratégias para gerir esses conflitos: as pessoas que brigam em determinados espaços são banidas daquele local por algum tempo (por exemplo, ficam proibidas de entrar na cozinha); além disso, há também a “salinha da conversa”, para onde os alunos deveriam ir para resolver conflitos.

Várias entrevistas evidenciam que, além das tensões e conflitos, os ocupantes estavam expostos a escassez de horas de sono e a outras situações que produziam grande desgaste físico. Alguns contam sobre momentos em que tentavam dar uma “escapadinha” das ocupações para poder descansar em suas casas. A junção do desgaste físico e psíquico levou em mais de uma ocasião alguns dos jovens a “darem uma surtada”, isto é, ter reações emocionais intensas como choro, grito ou isolamento.

Aí tinha dia que eu explodia de dor de cabeça, que eu explodia para chorar, porque eu não aguentava ficar segurando, sabe? . . . Foi a Espertirina que chegou a chorar, a Marcela chegou a chorar, a Antônia chegou a chorar. (Michel)

O sofrimento ao qual esses jovens estavam expostos pode ser caracterizado como ético-político (Sawaia, 2014Sawaia, B. B. (2014). Transformação social: Um objeto pertinente à psicologia social? Psicologia & Sociedade, 26(2), 4-17. doi: 10.1590/S0102-71822014000600002
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). Eles são hostilizados, atacados e humilhados em razão do lugar social que ocupam, em especial, pela posição e práxis política contra-hegemônicas que realizam naquele contexto. Mesmo que tivessem apoio em suas instituições, ainda há um discurso difundido pelo senso comum que caracteriza participantes de movimentos sociais como baderneiros, vagabundos e criminosos. Uma entrevistada relata uma situação na qual os ocupantes foram chamados de terroristas por pessoas do IF Catanduva e como isso foi muito difícil para ela. Nas entrevistas, evidencia-se como os jovens ficam despotencializados, física e mentalmente, em razão dos conflitos, tensões e cansaços que permeavam as ocupações. Alguns ficam desmobilizados, alguns choram, alguns ficam “putos”, outros precisam ir para a casa, outros ainda torcem para que a ocupação acabe. Os relatos abordam processos de adoecimento ético-político e redução de potência de agir presentes nos movimentos. São vários os afetos tristes suscitados por tais situações, como tristeza, frustração, medo, ódio e vergonha.

A necessidade de lutar

Carolina relata um caso de forte repressão policial durante um ato de rua : “. . . as pessoas correndo e [a polícia] agredindo jornalista. Eu falei:Mano, vou lutar pelo resto da minha vida, sabe?”.

A cena descrita por Carolina durante a entrevista é perturbadora, no entanto, em seu desfecho, a estudante demonstra como emerge de tal cenário hostil sua força para lutar. O choque moral produzido pela situação motiva Carolina a se engajar ainda mais no movimento social. Jasper (2011Jasper, J. M. (2011). Emotions and social movements: Twenty years of theory and research. Annual Review of Sociology, 37(1), 285-303. doi: 10.1146/annurev-soc-081309-150015
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) define choque moral como um forte sentimento proveniente de eventos ou informações que demonstram ao sujeito que o mundo não é como ele esperava, e tal choque pode acarretar a articulação ou reavaliação de princípios morais. Ainda segundo Jasper (2011)Jasper, J. M. (2011). Emotions and social movements: Twenty years of theory and research. Annual Review of Sociology, 37(1), 285-303. doi: 10.1146/annurev-soc-081309-150015
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, a repressão violenta de atos pacíficos é fonte frequente de choques morais, os quais podem potencializar a participação e o engajamento no protesto. A violência sofrida por Carolina corresponde a uma escala que estava fora das expectativas da jovem: ela não esperava que a Política Militar (PM) pudesse ser tão truculenta contra um protesto pacífico de estudantes em defesa de suas escolas. No entanto, os ataques policiais não a fazem desistir, ao contrário, produzem nela forte motivação para continuar na luta.

Espertirina diz que não havia “momentos de saúde” na ocupação, mas que os jovens continuavam lá pela força de seus ideais e pela certeza da necessidade de lutar por suas causas.

Então assim, às vezes, tava esgotada ali de lidar com pressão psicológica de aluno babaca e de professor babaca o dia inteiro e aí . . . eu pensava: “Cara, tá todo mundo aqui se ajudando. A gente tá dando o melhor de si. Todo mundo fazendo o que pode e o que não pode pra tá aqui. Isso tem que continuar!”.

As pessoas que se encontravam em posições de referência dentro das ocupações acabavam por vivenciar algumas situações de desgaste específicas. Ocupantes do IF Catanduva falam sobre como sentiam a necessidade de serem fortes para poder motivar os colegas e continuar a luta. Mesmo defendendo que não havia lideranças no movimento, esses estudantes sentem-se responsáveis por manter o ânimo dos outros. As decisões eram tomadas coletivamente em assembleia ou reuniões abertas, no entanto, um grupo de pessoas se tornou a referência durante o processo. No que tange à discussão sobre liderança, destacamos a posição de Hardt e Negri (2017Hardt, M., & Negri, A. (2017). Assembly. New York, NY: Oxford University Press.):

A liderança, então, se ainda tem um papel, deve exercer uma função empreendedora, não dando ordens aos outros ou agindo em seu nome ou mesmo afirmando representá-los, mas como um simples operador de reunião dentro de uma multidão que é auto-organizada e coopera em liberdade e igualdade . . . Empreendedorismo nesse sentido deve ser um agente de felicidade. (p. XVIII, tradução nossa)

Os estudantes que exerciam as funções de liderança não objetivavam tomar decisões em nome do movimento, mas priorizavam agenciar as relações e motivar os outros participantes. São agentes de felicidade à medida que se esforçam para produzir bons encontros e manter a potência de agir dos colegas elevada, ou seja, buscam gerar afetos alegres.

Coletivo como promotor de potência de agir

Os trechos de entrevistas que abordamos acima relatam várias dificuldades, desgastes e conflitos enfrentados pelos estudantes durante as ocupações. No entanto, durante nossas conversas com os participantes há uma predominância de bom humor, e muitos falam de como sentem saudades do movimento. Começam a emergir contextos que podemos entender como promotores de saúde e potência de agir. Fernando dá algumas pistas sobre possibilidades de promoção de saúde e destaca a importância dos cuidados mútuos nesse processo: “Então, era importante a gente se cuidar dentro do movimento, porque a única coisa que temos dentro do movimento somos nós mesmos; então, se a gente não cuida de nós mesmos, a gente não cuida do movimento”.

Michel defende que era “quase impossível desmobilizar” o grupo militante, dada a sua forte união, e relata como havia motivação mútua entre eles. A criação e o fortalecimento de vínculos entre os ocupantes são tema de vários relatos. Carolina diz como se encheu de entusiasmo diante da multidão que acompanhava o jogral entoado por ela e suas amigas. A estudante se fortalece ao se sentir parte daquele coletivo. Nino fala da importância de se reconhecer em seus companheiros de luta. Entrevistados do IF Catanduva destacam a relação estabelecida entre os estudantes do ensino médio e superior.

As distâncias e possíveis hierarquias que separavam os alunos do ensino médio e do superior no IF Catanduva são enfraquecidas, pois naquele momento todas e todos possuíam uma mesma identidade partilhada e dividiam os mesmos objetivos e dificuldades. As relações estabelecidas são vistas como energizantes, inspiradoras e divertidas. Rosa (2017Rosa, L. A. (2017). Potencial terapêutico da participação em movimentos sociais: Um estudo a partir de militantes do MST. Saúde & Transformação Social, 8(1), 72-83.) defende que a participação em movimentos sociais pode promover fatores terapêuticos presentes em terapias de grupo, ou seja, destaca o potencial de promoção de saúde da participação; não só física e/ou mental, mas também saúde ético-política (Souza & Sawaia, 2016Souza, A. S. A., & Sawaia, B. B. (2016). A saúde como potência de ação: Uma análise do coletivo e de Comuna do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Psicologia Política , 16(37), 305-320.), que produz resistência e motivação para os militantes permanecerem em suas lutas.

Entrevistadas de Catanduva contam sobre a importância da convivência com os pares durante a ocupação. Os fortes vínculos que se criaram entre os participantes do movimento foram fonte de possibilidades de práxis política, aprendizado e potência. Amélia diz sentir muita falta do convívio proporcionado pela ocupação. Paola destaca como grande ponto positivo do movimento as relações humanas produzidas. Espertirina cita a relevância do acolhimento mútuo entre os pares.

Hopkins e Reicher (2015Hopkins, N., & Reicher, S. (2015). The psychology of health and well-being in mass gatherings: A review and a research agenda. Journal of Epidemiology and Global Health, 6(2), 49-57. doi: 10.1016/j.jegh.2015.06.001
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) argumentam que, diferentemente do que muitos teóricos defendem, os movimentos de massa podem ter potenciais de promoção de saúde. Esses potenciais derivam das mudanças relacionais, cognitivas e emocionais que surgem no momento em que um grupo de pessoas passa a compartilhar a mesma identidade social. Os entrevistados de Barretos relatam uma situação em que o coletivo acolheu José. Diante de um momento de especial fragilidade, em que o aluno, que ocupava uma posição de liderança, tem dúvidas sobre a continuidade da ocupação, e seus companheiros se mobilizam para acolher e motivar o amigo. As pessoas dizem o que pensam sobre a situação, mas também respondem afetivamente à dificuldade de José, em um abraço coletivo. Certamente foi um momento de bom encontro entre José e seus pares, o qual proporcionou aumento de potência e promoção de saúde:

Um corpo crescente de pesquisas mostra como a identificação social compartilhada em um grupo leva a um maior senso de apoio social dos outros, o que leva a uma maior sensação de que é possível lidar com circunstâncias difíceis, diminuindo o estresse e resultando em melhor bem-estar físico e mental. . . . De fato, tal é a escala dessa evidência que os psicólogos sociais se referem à construção da identidade compartilhada como a base de uma cura social. (Hopkins & Reicher, p. 52, tradução nossa)

Evidencia-se o processo de cura social quando os estudantes proporcionam cuidados uns aos outros para superarem momentos de dificuldade. A forte identificação social que compartilham - elaborada durante o processo de ocupação - faz essas pessoas se sentirem emocionalmente ligadas, acolhidas e responsáveis umas pelas outras.

Ao se compartilhar determinada identificação social com um grupo, a percepção sobre a realidade pode sofrer alterações substanciais (Hopkins & Reicher, 2015Hopkins, N., & Reicher, S. (2015). The psychology of health and well-being in mass gatherings: A review and a research agenda. Journal of Epidemiology and Global Health, 6(2), 49-57. doi: 10.1016/j.jegh.2015.06.001
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). Os entrevistados ressignificam as situações de dificuldade e tensões a partir do grupo ao qual pertencem, sendo capazes de elaborar, inclusive com humor, situações de forte conflito. Eles têm objetivos comuns e coletivos que lhes são de enorme valia. Isso faz que seu sofrimento tenha sentido e que sejam motivados a suportá-lo.

Entre os relacionamentos e vínculos produzidos durante as ocupações, um se destacou entre nossos entrevistados: Paola e Chaveiro passaram a namorar após o movimento. Além das vitórias ditas materiais, o processo de ocupação do IF Catanduva produziu também um relacionamento amoroso e vários vínculos de amizade. Sawaia (2009 citada em Souza & Sawaia, 2016Souza, A. S. A., & Sawaia, B. B. (2016). A saúde como potência de ação: Uma análise do coletivo e de Comuna do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Psicologia Política , 16(37), 305-320.) fala sobre a multitudo como a união entre corpos e mentes poderosos e capazes de resistir e lutar contra tiranias:

Essa união de corpos e mentes constitui o sujeito político coletivo, a multitudo . . . categoria política fundamental, pois como afirma Espinosa, o desejo de resistência nasce do sentimento de indignação. Mas resistir não é só se indignar. O direito de derrubar a tirania depende da força para fazê-lo. Essa força, em situação de desmesura do poder, depende de uma potência de agir coletiva conquistada pela união de conatus, a qual por sua vez, é favorecida quando a lógica dos afetos permite a percepção da amizade e generosidade como algo útil. (p. 309)

Os relatos trabalhados durante este tópico demonstram como, durante os processos de ocupação, a lógica dos afetos ali presente favorecia que a amizade e generosidade fossem entendidas e sentidas como úteis e potencializadoras. Podemos dizer que a partir da união de diversos conatus estudantis foi produzida potência de agir coletiva durante os movimentos.

Humor e potência de agir

Além das possibilidades de promoção de saúde que o compartilhamento de identidades sociais e a pertença a um coletivo trazem, podemos também perceber nos relatos momentos que poderiam ser chamados, em sentido amplo, de potencializadores, terapêuticos ou promotores de saúde ético-política.

Espertirina defende a importância dos momentos de conversa e humor que existiam durante a ocupação. Segundo a entrevistada, muitas vezes era difícil conseguir participar de atividades de lazer ou mesmo ter tempo para desabafar com as amigas. Assim, ela ressalta que entre e durante as atividades eles eram capazes de criar tais espaços de conversa e humor para poder “dar uma descontraída”. Marcela defende que alguns momentos noturnos eram importantes para lidar com os desgastes e o estresse sofridos durante o dia, pois, naqueles espaços, os estudantes se reuniam para conversar e brincar sobre os fatos ocorridos. Segundo ela, falar das situações e rememorar coletivamente os momentos tensos os ajudava a não “internalizar as coisas” e a deixá-las “mais leves”. Porém, os estudantes não só contavam o que havia ocorrido, como também os relatos eram permeados por elementos cômicos produzidos pelos próprios narradores ou pelos ouvintes. Michel conta como eles imaginavam coisas absurdas para criar o efeito cômico sobre determinado evento. Evidencia-se aqui também o protagonismo da imaginação nesse processo.

As sátiras, o bom humor, as brincadeiras e as “zoeiras” foram muito presentes durante o processo da ocupação em Catanduva e durante as entrevistas. Aparentemente, por questões diversas - idade, identidade coletiva, lugar social, o contexto da ocupação etc. -, o humor desempenhou um papel importante no drama subjetivo (Vigotski, 2000Vigotski, L. S. (2000). Manuscrito de 1929. Educação & Sociedade, 21(71), 21-44. doi: 10.1590/S0101-73302000000200002
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) daqueles jovens, se fazendo presente em diversos momentos e cumprindo uma função de elaboração de vivências conflituosas em vários contextos.

E [a assembleia] era ao mesmo tempo desgastante, mas ao mesmo tempo a gente ficava olhando e rindo porque os servidores tinham umas coisas… . . . O bom da ocupação é que a gente conseguia achar coisa engraçada em tudo e acho que isso deixou mais leve. (Marcela)

As elaborações humorísticas dos eventos não aconteciam apenas quando os jovens estavam relembrando os fatos, mas também durante os próprios momentos de tensão, em assembleias, por exemplo. A organização do drama subjetivo desses jovens permitia que eles estivessem praticamente imunes à restrição de seu humor a determinados espaços e tempos ou aos discursos que pudessem qualificá-lo como infantil, imaturo e inapropriado para “discussões sérias”. O papel subjetivo predominante do humor no senso comum hegemônico não é de protagonismo, ou seja, normalmente, em sociedades com orientações judaico-cristãs ocidentais, o humor é restrito a espaços, momentos e até indivíduos específicos. Situações e pessoas nas quais assume maior protagonismo - sem estar vinculado a uma posição profissional específica - são usualmente encaradas como, de certa forma, insanas ou infantis. No entanto, durante a ocupação, o humor se manifestava mesmo em momentos de tensão e tomadas de importantes decisões: “A gente procurava graça até na hora da tragédia [risos de todos]” (Espertirina).

Kupermann (2010Kupermann, D. (2010). Humor, desidealização e sublimação na psicanálise. Psicologia clínica, 22(1), 193-207. doi: 10.1590/S0103-56652010000100012
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) defende a existência de um forte vínculo entre o humor e o processo de sublimação. O psicanalista escreve que “a guinada promovida pelo dito humorístico do previsível desespero paralisante para a elaboração criadora pode ser ilustrada pelo refrão popular: seria trágico… se não fosse cômico” (Kupermann, 2010Kupermann, D. (2010). Humor, desidealização e sublimação na psicanálise. Psicologia clínica, 22(1), 193-207. doi: 10.1590/S0103-56652010000100012
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, p. 203). Presumivelmente, o humor é, para os entrevistados, uma forma de elaborar e lidar de maneira saudável com experiências perturbadoras e emocionalmente desgastantes.

O humor também pode fortalecer laços identificatórios entre membros de determinado grupo, em especial quando elegem um bode expiatório comum para ser o alvo da troça (Kupermann, 2010Kupermann, D. (2010). Humor, desidealização e sublimação na psicanálise. Psicologia clínica, 22(1), 193-207. doi: 10.1590/S0103-56652010000100012
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). Relatos da ocupação em Catanduva abordam como um servidor que havia atacado e pressionado os estudantes se transformou em alvo de suas brincadeiras, materializadas em memes. Essas brincadeiras são entendidas apenas por aqueles que fazem parte do grupo, o que fortalece ainda mais a identidade social (Tajfel & Turner, 1986Tajfel, H., & Turner, J. C. (1986). The social identity theory of intergroup behavior. In S. Worchel & L. W. Austin (Orgs.), Psychology of intergroup relations (pp. 7-24). Chicago, IL: Nelson-Hall.) e coletiva (Sandoval, 2001Sandoval, S. A. M. (2001). The crisis of the Brazilian labor movement and the emergence of alternative forms of working-class contention in the 1990s. Psicologia Política, 1(1), 173-195.) dos ocupantes. Pessoas que não participam do grupo não entendem as piadas e podem achá-las até “pesadas” e “pervertidas”. Além de reforçar processos identificatórios, o humor - entendido como processo social - pode também ser uma maneira de questionar formas de sociabilidade vigentes. Segundo Kupermann (2010)Kupermann, D. (2010). Humor, desidealização e sublimação na psicanálise. Psicologia clínica, 22(1), 193-207. doi: 10.1590/S0103-56652010000100012
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A enunciação de um chiste detém, muitas vezes, a função de denunciar as hipocrisias e os engessamentos vigentes, promovendo uma desterritorialização nos estilos de existência constituídos, abrindo a via para a ventilação do pensamento e para a criação de modos de sociabilidade até então inéditos. (p. 197)

Muitas das brincadeiras e piadas que os ocupantes fazem envolvem sátiras às regras e relações instituídas dentro do IF Catanduva. São comuns relatos sobre os estudantes rirem das posturas e posições dos professores. Nas entrevistas aparecem algumas vezes falas sobre como a assembleia dos alunos era muito mais organizada que a dos professores, ou mesmo como os estudantes tinham mais informações que muitos docentes e gestores. A principal crítica feita é às hierarquias estabelecidas na instituição, as quais envolvem poder e saber. Os jovens se negam a obedecer ou acreditar nos professores apenas pelo cargo que ocupam. Ao contrário, se colocam em posição crítica e debatem os discursos produzidos pelos servidores do IF, além de fazerem piadas sobre esses discursos.

Speier (1998Speier, H. (1998). Wit and politics: An essay on laughter and power. The American Journal of Sociology, 103(5), 1352-1401. doi: 10.1086/231355
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) escreve que piadas políticas podem tanto atacar os fracos e derrotados como ser fontes de resistência a partir do ataque aos poderosos. As piadas e o humor são entendidos pelo autor como possíveis instrumentos políticos, armas que podem ser agressivas e defensivas. Durante a ocupação do IF Catanduva, o humor teve caráter de resistência - com faces agressivas e defensivas. Além disso, como já abordamos, mecanismos humorísticos foram responsáveis pelo fortalecimento de identidades sociais e coletivas entre os ocupantes.

Ainda segundo Speier (1998Speier, H. (1998). Wit and politics: An essay on laughter and power. The American Journal of Sociology, 103(5), 1352-1401. doi: 10.1086/231355
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), o humor não possui propriedades apenas pragmáticas - como quando as piadas são usadas como armas -, mas também pode conter elementos curativos. Michel relata como eles conseguiam elaborar os momentos de grandes tensões produzindo humor sobre as próprias situações de dificuldade. Outros relatos também destacam a importância desse tipo de elaboração para a manutenção da potência de agir dos jovens. Nas palavras de Speier (1998)Speier, H. (1998). Wit and politics: An essay on laughter and power. The American Journal of Sociology, 103(5), 1352-1401. doi: 10.1086/231355
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: “O humor não muda as circunstâncias que ele ilumina, embora seja capaz de diminuir o descontentamento e até o desespero que essas situações produzem” (p. 1358, tradução nossa). Nesse sentido, o humor certamente foi um instrumento que possibilitou que os ocupantes mantivessem o movimento mais saudável e potente.

Momentos de produção de potência de agir

Mesmo existindo casos em que os jovens sentiam necessidade de se afastar das ocupações, a maioria dos desgastes físicos e psíquicos era gerida dentro do próprio movimento. Há relatos de diversas atividades e situações que são descritas pelos entrevistados como bons encontros, ou seja, produtores de potência de agir e de saúde ético-política. Vários jovens falam sobre a importância dos momentos lúdicos durante o movimento: os jogos e brincadeiras desempenharam uma função de crucial relevância durante os movimentos de ocupação. Segundo os entrevistados de Catanduva, era nesses momentos que eles podiam descansar e, principalmente, conseguir algum alívio das tensões e conflitos cotidianos. Jovens de idades diversas se juntavam para partilhar momentos de lazer e ludicidade.

Os estudantes de Barretos falam sobre as oficinas de que participaram e os momentos de conversa que dividiam. As oficinas eram ministradas em geral pelos próprios ocupantes, ou seja, os jovens se organizavam para desenvolver atividades diversas, e os papéis de professores e alunos eram alternados entre os membros do movimento. As oficinas são descritas como espaços importantes para o alívio das tensões acarretadas pela práxis política dos estudantes. Situações de conversas informais também são destacadas como produtoras de saúde. Assim como Espertirina fala sobre a importância dos momentos de conversar sobre “assuntos aleatórios”, Zezinho relata como havia “briga” para decidir quem ficaria no turno da vigia da madrugada na ocupação do IF Barretos. Segundo os entrevistados, todos queriam ficar “batendo papo” durante a madrugada, pois era o momento de acolhimento, diversão e fortalecimento de vínculos. Amélia defende a necessidade de quebrar o monopólio da seriedade: “Aquilo [ocupação] era sério pra caralho, mas se a gente só ficasse sério todo o tempo aquilo ia cansar . . . a gente ia achar bosta e já ia querer ir embora”.

Bayat (2010Bayat, A. (2010). Life as politics. How ordinary people change the Middle East. Amsterdam, Netherlands: Amsterdam University Press.) defende os potenciais subversivos presentes no divertimento. Segundo o autor a “diversão é uma metáfora para a expressão da individualidade, espontaneidade e leveza, em que a alegria é o elemento central” (p. 138, tradução nossa). Os momentos de diversão são caracterizados por “expressões e práticas geralmente improvisadas, espontâneas, mutáveis e, portanto, imprevisíveis” (p. 138, tradução nossa). Assim, não se trata de tentar determinar e controlar os momentos de divertimento, mas de permitir que haja espaços onde a espontaneidade típica de tais práticas possa florescer.

Os estudantes de Barretos falam da gincana que o IF organizou para tentar produzir momentos de integração e divertimento entre os alunos. Percebemos nos relatos a diferença entre a atividade institucionalmente planejada - “chato pra caramba” - e a espontaneidade advinda do movimento dos alunos, que “funcionou bem melhor que a gincana”. Nas ocupações alguns momentos eram tidos como livres ou de lazer, nos quais os jovens poderiam realizar atividades prazerosas de sua preferência. No entanto, algumas fontes de divertimento surgem de situações inesperadas como, por exemplo, as madrugadas de vigia em Barretos ou os momentos de elaboração de cronogramas de atividades em Catanduva. A diversão transborda para fora das barreiras de tempo e espaço anteriormente previstas pelas regras das instituições e até mesmo pelos ocupantes.

O principal caráter subversivo dos momentos de diversão reside, segundo Bayat (2010Bayat, A. (2010). Life as politics. How ordinary people change the Middle East. Amsterdam, Netherlands: Amsterdam University Press.), na possibilidade de se opor e questionar concepções de mundo rígidas e unitárias. O autor se refere a regimes políticos autoritários, em especial aos fundamentalistas islâmicos, no entanto, consideramos que há elementos pertinentes para reflexões sobre o movimento dos estudantes. Nas ocupações, os momentos de diversão aliviavam as tensões e relaxavam os participantes, mas também eram importantes na constituição e configuração de seus dramas subjetivos e fortalecedores da práxis política. A simples ideia de os estudantes controlarem seu próprio tempo e poderem questionar a rígida divisão entre momentos sérios e momentos de diversão possui um significativo caráter subversivo para a ordem institucional vigente de suas escolas. O divertimento dos jovens era repleto de sátiras à organização e às formas de relações hierárquicas hegemônicas de suas instituições.

Espaços de discussão e palestras também foram entendidos como potencializadores. Alguns entrevistados defendem a importância dos espaços com intencionalidade pedagógica como potencializadores e relaxantes. Relevante destacar a intersecção entre promoção de potência de agir, aprendizado e desenvolvimento. Com base em Espinosa (2015Espinosa, B. (2015). Ética. São Paulo, SP: Edusp.), podemos compreender que o conhecimento pode atuar junto aos afetos quando ele mesmo se torna um afeto. Ou seja, a potência de agir pode ser tocada pelo conhecimento a partir do momento em que vislumbramos aquilo que conduz ao entendimento como bom e útil.

Há também relatos sobre como a própria práxis política pode ser vivenciada como um bom encontro. Amélia conta sobre como tinha prazer, mesmo com as dificuldades do processo, em poder agir em consonância com algo que ela considerava bom para toda a comunidade acadêmica. Ela diz que, quando se lembra do movimento, a imagem que vem com mais força à sua mente é o momento em que a continuidade da ocupação foi votada em assembleia. Embora a votação representasse que a ocupação e os desgastes vinculados a ela continuariam, ou seja, não representava a vitória do movimento, os estudantes descrevem esse momento como de grande alegria. A continuidade da luta é sentida como um bom encontro. Por sua vez, Paola aborda uma situação em que percebeu que havia voz entre seus pares. O sentimento de poder falar, ser ouvida e entendida potencializa a jovem a ponto de ela descrever o momento como o mais marcante da ocupação. Rosa (2017Rosa, L. A. (2017). Potencial terapêutico da participação em movimentos sociais: Um estudo a partir de militantes do MST. Saúde & Transformação Social, 8(1), 72-83.) e Souza e Sawaia (2016Souza, A. S. A., & Sawaia, B. B. (2016). A saúde como potência de ação: Uma análise do coletivo e de Comuna do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Psicologia Política , 16(37), 305-320.) apontam como a promoção de saúde ético-política não se dá apenas nos momentos de vitória de um movimento social, mas como o processo de luta é também permeado de bons encontros. A práxis política está aqui organicamente atrelada à potência de agir dos jovens; ela produz potência assim como a potência de agir possibilita sua continuidade e fortalecimento.

Destacamos o relato de Marina, uma transexual ocupante do IF Barretos, sobre o momento maias marcante da ocupação a seu ver: na ocupação foi a primeira vez em que ela se vestiu de mulher. O espaço produzido pelo movimento proporcionou que Marina fosse capaz de realizar um desejo que não era possível até então em outros espaços. Vestir-se como mulher certamente gerou potência e promoveu saúde em Marina. O campo relacional da ocupação foi responsável pela produção da coragem em realizar tal ato. Assim, percebemos um ciclo virtuoso entre práxis política e produção de potência de agir.

Uma experiência marcante para grande parte dos entrevistados de Catanduva foi a oficina de ioga no final de um dia muito difícil para os ocupantes. Uma das posições trabalhadas tornou-se um tipo de símbolo entre os jovens: a posição do guerreiro (virabhadra). Ao final da oficina, a professora parabenizou a todos e disse: “Vocês conseguiram segurar a posição do guerreiro. Não é para qualquer um. É preciso muita energia interna para isso”. Depois disso, em vários contextos, os jovens realizavam a posição como sinal de força, identificação e humor.

As várias situações abordadas não podem ser entendidas como produtoras do mesmo impacto para todos os sujeitos. Importante destacar que tais experiências devem ser entendidas a partir da vivência (Vigotski, 2010Vigotski, L. S. (2010). Quarta aula: A questão do meio na pedologia. Psicologia USP, 21(4), 681-701. doi: 10.1590/S0103-65642010000400003
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) dos jovens envolvidos. Assim, alguns momentos são marcantes para vários, outros para alguns e ainda outros para apenas uma pessoa. Não devemos esquecer que a vivência é composta pela síntese entre o ambiente externo e o mundo interno dos sujeitos, e é na singularidade dessa relação que os bons encontros emergem. A partir do conceito de vivência, uma fala de Eduardo pode ser relembrada. Ele relata que, mesmo esgotado física e psicologicamente, se deitava para dormir sorrindo. O esgotamento certamente pode ser entendido como mau encontro na maioria das situações; no entanto, podemos perceber que o estudante significa esse cansaço a partir da luta que está sendo levada a cabo. Sentir-se esgotado não é prazeroso por si só, mas a partir do momento em que essa sensação é atrelada a uma identidade social e a um processo de luta cheio de sentido, ela pode ser vivenciada de maneira diversa (Hopkins & Reicher, 2015Hopkins, N., & Reicher, S. (2015). The psychology of health and well-being in mass gatherings: A review and a research agenda. Journal of Epidemiology and Global Health, 6(2), 49-57. doi: 10.1016/j.jegh.2015.06.001
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).

Mesmo diante de tensões e desgastes psíquicos e físicos, os estudantes foram capazes de produzir momentos, relações e ambientes considerados bons encontros, promotores de saúde ético-política (Souza & Sawaia, 2016Souza, A. S. A., & Sawaia, B. B. (2016). A saúde como potência de ação: Uma análise do coletivo e de Comuna do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Psicologia Política , 16(37), 305-320.). Esses bons encontros potencializavam os jovens física e mentalmente, fortalecendo-os para manter sua práxis política e seus aprendizados durante um processo que visava a emancipação de si e do outro. Importante destacar que momentos de práxis política e de aprendizado também podem ser bons encontros, ou seja, potência de agir, e podem estar presentes em uma mesma situação, relação ou ambiente (Rosa, 2019Rosa, L. A. (2019). Ocupações estudantis: Um estudo psicopolítico sobre movimentos paulistas de 2015 e 2016 (Tese de doutorado). Repositório institucional da PUC. https://bit.ly/3HVE3wE
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). Em tais vivências, afetos alegres são produzidos: amor, esperança, generosidade, gratidão, coragem, segurança etc. Ainda que a vivência de cada sujeito seja singular, evidencia-se que determinadas dinâmicas ambientais e relacionais favorecem a imersão de experiências de bons encontros. É impossível prever qual será a vivência dos sujeitos, no entanto, é possível produzir situações que aumentem a probabilidade de realização de bons encontros.

Considerações finais

As ocupações produziram sentimentos diversos nos jovens militantes. Nino relata as dificuldades que por muito tempo teve em falar sobre o processo. A simples lembrança da ocupação é vivenciada como nociva para o estudante. No entanto, nossas entrevistas, observações participantes e grupos focais demonstram como os sentimentos emotivos relacionados àquele momento são predominantemente positivos.

Mesmo com os diversos relatos de desgastes, pressões e cansaços, a maioria dos estudantes diz sentir saudades e fala o quanto foi bom estar naquele movimento. Espertirina evidencia como seus sentimentos emotivos forjados durante o processo são responsáveis por uma ressignificação positiva de espaços físicos do Instituto Federal. Amélia diz não se arrepender de ter participado e Eduardo conta que chega a ter arrepios (de excitação e alegria) quando vê algum material sobre ocupações estudantis. Ao que tudo indica, a experiência de ocupação potencializou e potencializará a práxis política dos jovens ainda por bastante tempo. A positividade emotiva que a experiência carrega aumenta as possibilidades de os entrevistados participarem de outras ações políticas semelhantes ou mesmo se vincularem a grupos políticos que tenham objetivos análogos. Como Sandoval e Silva (2016Sandoval, S. A. M., & Silva, A. S. (2016). O modelo de análise da consciência política como contribuição para a psicologia política dos movimentos sociais. In D. U. Uhr & F. Lacerda (Orgs.), Psicologia, políticas e movimentos sociais. Petrópolis, RJ: Vozes .) defendem, as emoções despertadas durante a ocupação e os sentimentos emotivos decorrentes delas são fundamentais para o processo de conscientização e a futura constituição da práxis política dos jovens.

Como já citamos, nem só de afetos alegres se compuseram as ocupações. Segundo van Troost et al. (2013van Troost, D. M. M., van Stekelenburg, J., & Klandermans, B. (2013). Emotions of protest. In N. Demertzis (Org.), Emotions in politics. The affect dimension in political tension (pp. 186-205). Basingstoke, England: Palgrave.), a raiva é um sentimento central quando se trata de protestos e movimentos sociais. A partir de Espinosa (2015Espinosa, B. (2015). Ética. São Paulo, SP: Edusp.), a raiva ou ira é um desejo proveniente do ódio, que é um afeto triste, porém, como todo desejo, a ira visa o aumento da potência de agir. Certamente os membros das ocupações possuíam raiva ou ódio das propostas estatais que combatiam; desejavam atacá-las e destruí-las.

Entretanto, um movimento que possua apenas a raiva ou ira como motivador, mais cedo ou mais tarde perceberá sua potência de agir tão reduzida que dificilmente conseguirá manter sua campanha. A motivação em participar não deve ser apenas relegada ao objetivo final do movimento, ao seu produto. É necessário que afetos alegres sejam produzidos durante o processo de luta social e política. Segundo van Troost et al. (2013van Troost, D. M. M., van Stekelenburg, J., & Klandermans, B. (2013). Emotions of protest. In N. Demertzis (Org.), Emotions in politics. The affect dimension in political tension (pp. 186-205). Basingstoke, England: Palgrave.) “uma reunião coletiva bem-sucedida de um movimento social é um processo de transformar as emoções como raiva em outras como esperança, entusiasmo e solidariedade” (p. 11, tradução nossa). A partir dos relatos dos entrevistados, podemos perceber que, por meios diversos, os jovens ocupantes foram bem-sucedidos em transformar indignação e raiva em outros sentimentos como solidariedade, esperança e entusiasmo. A motivação não se dá apenas por meio da promessa na vitória do movimento, mas também durante o próprio processo de luta a partir dos diversos espaços de bons encontros produzidos.

As ocupações abordadas foram capazes, de maneira geral, de criar campos de potência de agir, ou seja, espaços e tempos em que potência de agir foi produzida. Em diversos momentos e situações emergiram possibilidades de bons encontros durante os movimentos. Os ambientes físicos e sociais das ocupações não determinavam ou causavam a realização de vivências que geravam aumento de potência de agir e saúde ético-política, mas as favoreciam.

Por fim, encerramos o texto com o relato de Carolina sobre o momento em que foi anunciado o adiamento da reorganização escolar em 2015: “E aí a gente começou a se abraçar e o professor abraçou todo mundo. Aí eu vi a alegria dele assim, sabe? E aí que eu notei:Mano, a gente faz história. A gente faz acontecer as coisas’” (Carolina).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2019
  • Revisado
    14 Mar 2022
  • Aceito
    12 Maio 2022
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