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A identidade da nova direita brasileira em narrativas de seus militantes

The identity of the Brazilian New Right in its militants’ discourse

L’identité de la Nouvelle Droite brésilienne dans les discours de ses militants

La identidad de la nueva derecha brasileña en las narrativas de sus militantes

Resumo

Em 2013, no Brasil, emergem na cena política diversos agrupamentos políticos identificados com a direita política e unidos contra a esquerda e a permanência do Partido dos Trabalhadores no governo brasileiro. Este estudo investiga esse fenômeno no contexto da região Nordeste do Brasil. Seu objetivo é compreender como a militância de direita, em uma cidade média nordestina, organiza discursivamente uma identidade para si e para os grupos que elegem como antagonistas. Com o uso do método de análise de discurso, o estudo investiga transcrições de entrevistas realizadas com nove membros dessa militância. As categorias conservador, libertário e liberal foram usadas como posições de autoidentificação por esses militantes. O modo como descrevem essas categorias revela a pluralidade da direita, evidenciando as complexas relações e as contradições presentes no seu interior.

Palavras-chave:
identidade; direita; discurso

Abstract

In 2013, Brazil saw the emergence of several political groups identified with right-wing politics and united against the left and the Worker’s Party consecutive administration. This paper investigates the characteristics of this phenomenon in northeastern Brazil to understand how right-wing militancy discursively organizes its identity and that of groups it chooses as antagonists. Based on discourse analysis, the study analyzes transcripts of interviews conducted with nine members of this militancy. Categories such as conservative, liberal and libertarian were used by the interviewees as self-identifying positions. How they describe these categories reveals the plurality of the political right, highlighting its complexity and contradictions.

Keywords:
identity; right-wing; discourse

Résumé

En 2013, le Brésil a vu l’émergence de plusieurs groupes politiques identifiée à la politique de droite et unis contre la gauche et l’administration du Parti des Travailleurs. Cet article étudie ce phénomène dans le nord-est du Brésil pour comprendre comment le militantisme de droite organise discursivement son identité et celles des groupes qu’ils choisit comme antagonistes. Basée sur l’analyse du discours, l’étude analyse les transcriptions d’entretiens menés avec neuf membres de ce militantisme. Les catégories telles que conservateur, libertaire et libéral ont été utilisées comme des positions d’autoidentification. La façon dont ils décrivent ces catégories révèle la pluralité de la droite, soulignant sa complexité et ses contradictions.

Mots-clés:
identité; droite; discours

Resumen

En 2013, varios grupos políticos surgieron en la escena política de Brasil identificados con la derecha política y unidos contra la izquierda y la permanencia del Partido de los Trabajadores en el gobierno brasileño. Este estudio investiga este fenómeno en el contexto de la región Nordeste de Brasil con el objetivo de comprender cómo la militancia de derecha, en una ciudad del Nordeste de tamaño mediano, organiza discursivamente una identidad para sí misma y para los grupos que eligen como antagonistas. Utilizando el método de análisis del discurso, este estudio analiza las transcripciones de entrevistas realizadas con nueve miembros de esta militancia. Las categorías conservador, liberal y libertario fueron utilizadas por los militantes como categorías de autoidentificación. La forma en que los militantes describen estas categorías revela la pluralidad de la derecha, destacando las complejas relaciones y contradicciones presentes dentro de ella.

Palabras clave:
identidad; derecha; discurso

Introdução

Este estudo objetiva compreender como militantes de direita, em uma cidade média nordestina, constroem a identidade da direita e daqueles que elegem como seus antagonistas no campo político. Especificamente, é um estudo que tem interesse em identificar e analisar os conteúdos que esses militantes usam para constituir a direita política e os seus antagonistas e as subcategorias que criam quando dividem e fragmentam a direita. Um estudo que procura identificar e analisar as histórias e linhas argumentativas que constroem com a mobilização dessas categorias e as diferentes ações que realizam por meio desses processos discursivos.

Trata-se de uma investigação cujo foco é o processo de identificação de coletividades e não o processo de identificação de indivíduos. Como afirma Jenkins (2004Jenkins, R. (2004). Social identity. Abington, England: Routledge.), os dois processos devem ser diferenciados. De fato, dizer “nós somos liberais”, “eles são comunistas” não é a mesma coisa que dizer “eu sou liberal”, “ Paulo é comunista”. Os dois processos são sociais em todos os seus aspectos - e como tais, marcados pela negociação e pelo conflito - mas no primeiro caso são atribuídas discursivamente identidades para coletivos humanos e no segundo caso são atribuídas identidades para indivíduos. Deve-se ressaltar que, nas descrições e narrativas produzidas pelas pessoas em diferentes situações, a construção de identidades coletivas e identidades individuais são processos interdependentes. Só posso dizer quem sou utilizando categorias que indicam entidades transindividuais, coletivos humanos - só posso dizer que sou liberal ou que sou tímido porque as categorias liberal e tímido são reconhecidas como categorias que nomeiam pessoas que compartilham algo em comum. Por outro lado, quando digo “eu sou tímido” não deixo de afirmar a existência dessa categoria de pessoas, os tímidos, embora esteja querendo falar mais de mim do que deles.

Nos últimos anos, uma direita agressiva e heterogênea, uma direita que perdeu a vergonha de dizer seu nome (Cepêda, 2018Cepêda, V. A. (2018). A nova direita no Brasil: Contexto e matrizes conceituais. Mediações, 23(2), 75-122. Recuperado de https://bit.ly/3nAOfRQ
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; Maitino, 2018Maitino, M. E. (2018). “Direita, sem vergonha”: Conformações no campo da direita no Brasil a partir do discurso de Jair Bolsonaro. Plural, 25(1), 111-124. doi: 10.11606/issn.2176-8099.pcso.2018.149018
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; Quadros & Madeira, 2018Quadros, M.P.R., & Madeira, R. M. (2018). Fim da direita envergonhada? Atuação da bancada evangélica e da bancada da bala e os caminhos da representação do conservadorismo no Brasil. Opinião Pública, 24(3), 486-522. doi: 10.1590/1807-01912018243486
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), vem formulando com notável sucesso uma identidade coletiva para si própria no espaço público brasileiro.

No ano de 2013, essa nova direita se move para o centro da cena política brasileira. Os protestos iniciados pelo Movimento Passe Livre, um movimento de esquerda, naquele ano, são hegemonizados por grupos de direita e tornam-se um grande movimento contra o Partido dos Trabalhadores (PT), então no poder (Brugnago & Chaia, 2015Brugnago, F., & Chaia, V. (2015). A nova polarização política nas eleições de 2014: Radicalização ideológica da direita no mundo contemporâneo do Facebook. Aurora: Revista de arte, mídia e política, 7(21), 99-129. Recuperado de https://bit.ly/3NEftS9
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; Abreu & Allegretti, 2016Abreu, J. M., & Allegretti, G. (2016). Comportamento político violento e avanço global da direita: Uma análise do caso brasileiro. Crítica e Sociedade: Revista de Cultura Política, 6(2), 88-121. Recuperado de https://bit.ly/3afT9AO
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).

Esses grupos passam a atuar também, com grande eficácia, nas redes sociais, combatendo o Partido dos Trabalhadores e pautas de esquerda de uma forma geral (Abreu & Allegretti, 2016Abreu, J. M., & Allegretti, G. (2016). Comportamento político violento e avanço global da direita: Uma análise do caso brasileiro. Crítica e Sociedade: Revista de Cultura Política, 6(2), 88-121. Recuperado de https://bit.ly/3afT9AO
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), estando intimamente relacionados com o atual avanço da direita e da ultradireita em todo o mundo (Finguerut & Souza, 2018Finguerut, A., & Souza, M. A. D. (2018). Que direita é esta? As referencias a Trump na nova direita brasileira Pós-Michel Temer. Revista Tomo, (33), 229-270. Recuperado de https://bit.ly/3IbOa0z
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; Santos & Tanscheit, 2019Santos, F., & Tanscheit, T. (2019). Quando velhos atores saem de cena: A ascensão da nova direita política no Brasil. Colombia Internacional, 99, 151-186. doi: 10.7440/colombiaint99.2019.06
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).

Uma fração radical dessa nova direita ascendeu ao poder no Brasil na eleição presidencial de 2018 com a vitória de Jair Bolsonaro. Trata-se de um agrupamento político de ultradireita que integra em uma só pauta um mercado livre de intervenções estatais e interferências do Estado na vida dos cidadãos quando se trata de conservar valores e práticas tradicionalmente associados à direita, que deve sua vitória em parte à desqualificação da política tradicional produzida pela Operação Lava Jato e à estratégia do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) de chegar mais rapidamente ao poder por meio do impeachment da presidente Dilma Rousseff (Santos & Tanscheit, 2019Santos, F., & Tanscheit, T. (2019). Quando velhos atores saem de cena: A ascensão da nova direita política no Brasil. Colombia Internacional, 99, 151-186. doi: 10.7440/colombiaint99.2019.06
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).

Nesse avanço sobre os espaços ocupados pelo inimigo tradicional, os diferentes grupos de direita aqui descritos disputam a hegemonia no interior da direita, num cenário marcado por processos retórico-discursivos de construção de identidades. Neste estudo, a construção retórico-discursiva de identidades em narrativas de militantes dessa nova direita é analisada por meio do método de análise de discurso desenvolvido por pesquisadores da psicologia social discursiva (Antaki & Widdicombe, 2008Antaki, C., & Widdicombe, S. (2008). Identity as an achievement and as a tool. In C. Antaki, & S. Widdicombe (Eds.), Identities in talk (pp. 1-14). Thousand Oaks, CA: SAGE.; Billig, 1987Billig, M. (1987). Arguing and Thinking: A Rhetorical approach to social psychology. Cambridge, England: Cambridge University Press.; Potter, 1998Potter, J. (1998). La representación de la realidad: Discurso, retórica y construcción social. Barcelona, España: Paidós Ibérica.; Potter & Wetherell, 1987Potter, J., & Wetherell, M. (1987). Discourse and social psychology: Beyond attitudes and behaviour. Thousand Oaks, CA: SAGE .; Stokoe, 2015Stokoe, E. (2015). Identifying and responding to possible-isms in institutional encounters: alignment, impartiality and the implications for communication training. Journal of Language and Social Psychology, 34(4), 427-445. doi: 10.1177/0261927X15586572
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; Wetherell & Potter, 1993Wetherell, M., & Potter, J. (1993). Mapping the language of racism: Discourse and the legitimization of exploitation. New York, NY: Columbia University Press.; Wetherell, 2008Wetherell, M. (2008). Subjectivity or psychodiscursive practices? Investigating complex intersectional identities. Subjectivity, 22, 73-81. doi: 10.1057/sub.2008.7
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; Whitehead, 2015Whitehead, K. A. (2015). Everyday antiracism in action: Preference organization in responses to racism. Journal of Language and Social Psychology , 34(4), 374-389. doi: 10.1177/0261927X15586433
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), perspectiva teórico-metodológica que evidencia em suas análises o caráter construtivo e constitutivo da linguagem em uso, além de lançar luzes sobre a capacidade da linguagem para criar e estabilizar identidades, mas também para produzir desestabilização e fragmentação de identidades estabelecidas.

Ao colocar em foco a produção discursiva da identidade em narrativas de militantes da nova direita brasileira, este estudo, simultaneamente, coloca o foco sobre o modo como essas pessoas pensam, afinal, atividades como categorizar, narrar, descrever e argumentar são inequivocamente pensamento em ação (Billig, 1987Billig, M. (1987). Arguing and Thinking: A Rhetorical approach to social psychology. Cambridge, England: Cambridge University Press.).

Entender como militantes dessa nova direita brasileira pensam, como estão dialogando com os discursos - discurso conservador, discurso liberal, etc. - que orientam o modo como procuram entender o mundo é um passo fundamental para a formulação de novas questões de pesquisa. Além disso, permite que pesquisadores e a sociedade de uma forma geral ampliem a sua compreensão sobre esse importante ator político, a nova direita brasileira, vendo-a representada por seus militantes.

Processos ou atos discursivos de categorização como os exemplificados acima, “nós somos liberais”, “eles são comunistas”, “eu sou liberal”, “Paulo é comunista” etc., são centrais nesse processo simultaneamente epistemológico e ontológico por meio do qual as identidades são construídas, afinal as identidades passam a existir por meio de atos de categorização repetidos continuamente na vida social. Esta investigação abordará a categorização a partir das contribuições de psicólogos sociais discursivos (Antaki & Widdicombe, 2008Antaki, C., & Widdicombe, S. (2008). Identity as an achievement and as a tool. In C. Antaki, & S. Widdicombe (Eds.), Identities in talk (pp. 1-14). Thousand Oaks, CA: SAGE.; Billig, 1987Billig, M. (1987). Arguing and Thinking: A Rhetorical approach to social psychology. Cambridge, England: Cambridge University Press.; Potter, 1998Potter, J. (1998). La representación de la realidad: Discurso, retórica y construcción social. Barcelona, España: Paidós Ibérica.; Potter & Wetherell, 1987Potter, J., & Wetherell, M. (1987). Discourse and social psychology: Beyond attitudes and behaviour. Thousand Oaks, CA: SAGE .; Stokoe, 2015Stokoe, E. (2015). Identifying and responding to possible-isms in institutional encounters: alignment, impartiality and the implications for communication training. Journal of Language and Social Psychology, 34(4), 427-445. doi: 10.1177/0261927X15586572
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; Wetherell & Potter, 1993Wetherell, M., & Potter, J. (1993). Mapping the language of racism: Discourse and the legitimization of exploitation. New York, NY: Columbia University Press.; Wetherell, 2008Wetherell, M. (2008). Subjectivity or psychodiscursive practices? Investigating complex intersectional identities. Subjectivity, 22, 73-81. doi: 10.1057/sub.2008.7
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; Whitehead, 2015Whitehead, K. A. (2015). Everyday antiracism in action: Preference organization in responses to racism. Journal of Language and Social Psychology , 34(4), 374-389. doi: 10.1177/0261927X15586433
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), que têm investigado continuamente a categorização e evidenciado que ela pode ser entendida como uma atividade de manipulação ontológica (Potter, 1998Potter, J. (1998). La representación de la realidad: Discurso, retórica y construcción social. Barcelona, España: Paidós Ibérica.) - na qual as categorias se apresentam em definições, histórias e linhas argumentativas que inevitavelmente constituem, de maneira conflituosa e agonística, identidades para pessoas e coletivos humanos.

Método

Participantes, instrumento e procedimentos

Participaram da pesquisa que originou este estudo nove militantes de grupos de direita, maiores de 18 anos, moradores de uma cidade média com mais de 300 mil habitantes, uma das mais importantes cidades do interior do Nordeste.

Os militantes foram acessados por meio da amostragem em bola de neve, uma amostragem não probabilística, usada para investigar grupos de difícil acesso (Vinuto, 2014Vinuto, J. (2014). A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: Um debate em aberto. Temáticas, 22(44), 203-220. Recuperado de https://bit.ly/3Rctt8B
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). Inicialmente, foram contactados informantes-chave de muita visibilidade social e, a partir deles, outros militantes foram localizados. Quando abordados pelos pesquisadores, os militantes, na maior parte dos casos, demonstraram um visível interesse em falar sobre si mesmos e sobre o movimento político do qual faziam parte.

Todos eles foram entrevistados individualmente, com o uso de um roteiro de entrevista semiestruturada. As perguntas norteadoras foram: o modo como definiam a direita; as diferentes correntes de direita no município; os seus adversários; suas estratégias; e temas controversos no debate político nacional. As entrevistas foram gravadas, com autorização dos participantes, e posteriormente transcritas.

Atendendo às determinações do Conselho Nacional de Saúde, o projeto que gerou este relato foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com o número CAAE: 94134218.1.0000.5182. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e estavam cientes, portanto, dos objetivos da pesquisa e da possibilidade de interromper a qualquer momento a sua participação. Todos os participantes eram membros de grupos locais, conservadores e liberais, que organizavam e ainda organizam eventos culturais e políticos de promoção do pensamento de direita. Portanto, na apresentação dos resultados são usados nomes fictícios para todos eles e para as siglas dos grupos locais dos quais eles são membros.

Dos nove militantes, seis são do gênero masculino e três do feminino. Uma militante tem 45 anos, mas os demais têm idades que variam somente de 20 a 25 anos. A filiação religiosa é marcada pela diversidade. Quatro militantes se definiram como católicos, um como protestante, uma como judia, uma como cristã. Dois deles se declararam sem religião, um como agnóstico e o outro como ateu. A escolaridade variou do ensino médio à pós-graduação em nível de mestrado. No que diz respeito à cor/raça, quatro se categorizaram como brancos, dois como pardos e três como negros. Entre os sete militantes que a declararam, a renda familiar mensal, por sua vez, variou de 500 a 20.000 reais, sendo que seis deles possuíam renda familiar mensal inferior a 4.000 reais.

Análise

A análise foi realizada com o método de análise de discurso desenvolvido pelos teóricos da psicologia social discursiva (Antaki & Widdicombe, 2008Antaki, C., & Widdicombe, S. (2008). Identity as an achievement and as a tool. In C. Antaki, & S. Widdicombe (Eds.), Identities in talk (pp. 1-14). Thousand Oaks, CA: SAGE.; Billig, 1987Billig, M. (1987). Arguing and Thinking: A Rhetorical approach to social psychology. Cambridge, England: Cambridge University Press.; Potter, 1998Potter, J. (1998). La representación de la realidad: Discurso, retórica y construcción social. Barcelona, España: Paidós Ibérica.; Potter & Wetherell, 1987Potter, J., & Wetherell, M. (1987). Discourse and social psychology: Beyond attitudes and behaviour. Thousand Oaks, CA: SAGE .; Wetherell & Potter, 1993Wetherell, M., & Potter, J. (1993). Mapping the language of racism: Discourse and the legitimization of exploitation. New York, NY: Columbia University Press.; Wetherell, 2008Wetherell, M. (2008). Subjectivity or psychodiscursive practices? Investigating complex intersectional identities. Subjectivity, 22, 73-81. doi: 10.1057/sub.2008.7
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).

Nem todo o material discursivo gerado pelas entrevistas foi codificado para este estudo. Somente os trechos das entrevistas que formulavam uma identidade para a direita ou para os grupos de direita representados pelos militantes foram objeto de codificação. No caso da psicologia social discursiva, a codificação é uma análise preliminar, guiada pelos problemas de pesquisa, que visa organizar o material em categorias para uma análise mais aprofundada (Potter & Wetherell, 1987Potter, J., & Wetherell, M. (1987). Discourse and social psychology: Beyond attitudes and behaviour. Thousand Oaks, CA: SAGE .).

Resultados

Definindo a identidade da direita e a de seus antagonistas

Os militantes usaram como categorias de autoidentificação os nomes de três grupos ideológicos do campo da direita: liberais, libertários e conservadores. Essas categorias são usadas tanto para nomear o grupo do qual fazem parte quanto para nomear outros agrupamentos de direita.

Três atributos identitários se fizeram presentes nas falas de membros dos três grupos ideológicos quando definiam algum desses grupos ou a direita de uma forma geral: defesa da liberdade; racionalidade purificada de distorção ideológica; tolerância ao contraditório. Um outro conjunto de atributos identitários, a desconfiança em relação à mudança, o apego à hierarquia, o apego à ordem etc., se fez presente somente nas intervenções dos militantes autodenominados conservadores. Serão apresentados primeiramente os três atributos identitários que estão presentes nos relatos de membros dos três grupos e, posteriormente, os atributos que estão presentes somente nos relatos dos autodenominados conservadores.

A defesa da liberdade foi reiteradamente apresentada pelos militantes como um traço identitário próprio da direita, ou de algum dos grupos ideológicos que a constituem, traço que a diferenciaria da esquerda.

Eu me considero um Liberal.... Rapaz, pelo princípio de liberdade, principalmente. Eu não acredito que o Estado deva ser um Estado... como eu posso dizer? Não quero dizer autoritário, mas que tenham certos poderes que não são competências do Estado, e o Estado não deva ter tantos privilégios. Não deva ser um Estado opressor (Gustavo, 25 anos).

Eu acho que é uma coisa muito complexa, mas o que a gente percebe é que depois da fase pós Segunda Guerra, em que a gente teve diversos países entrando nessa vibe welfare state e tal, no Estado do bem-estar social, que o governo vai promover tantas coisas... Eu acho que naturalmente o mundo tá percebendo que não é bem assim. Que existem outras coisas importantes, que não dá simplesmente para o Estado abarcar todas as responsabilidades do mundo e ficar por isso mesmo. Acho que existem escolhas para serem feitas. Ou a gente escolhe por liberdade e desenvolvimento, ou escolhe por ter tudo no papel bonitinho:Ah, você vai ter direito a tudo isso”, e na realidade não tem direito a nada.... A gente começou a disseminar essa nova forma de encarar a política, o Estado, e tudo que ela envolve, de 2014 para 2015. E, desde então, a gente vem compartilhando muitas ideias, como falei anteriormente, desconstruindo os discursos da esquerda (Rafael, 24 anos).

Eu acredito na liberdade em todos os aspectos. Liberdade social, liberdade de você se relacionar com quem quiser, usar o que quiser, liberdade de fazer comércio e trocas com quem você quiser. Então eu sou liberal em todos os aspectos. Por isso me considero liberal (Leonardo, 20 anos).

Tá, a ABC ele tem uma... como foi eu quem fiz a estratégia de comunicação da ABC, a gente é muito voltado para a ideia que a gente quer que as pessoas tenham mindset liberal, o que é que significa? Que a gente quer que as pessoas sejam céticas em relação ao poder, é... que as pessoas se preocupem em defender não só a própria liberdade, mas a liberdade do outro, que é a coisa mais importante pra gente... a gente... até tem uma frase do Joaquim Nabuco, que foi um liberal brasileiro do século XIX, que falava: eduquem... eduquem-se, eduquem seus filhos e o próximo, no amor à liberdade alheia, o único meio de se garantir que a sua própria liberdade não será uma doação gratuita do destino, e tudo mais... então a frase dele é bem bonita, e é bem isso... tipo, toda vibe da comunicação da ABC é tentar fazer com que as pessoas tenham uma mentalidade mais liberal... eu, pessoalmente, eu tenho... eu tenho pautas que pra mim são mais importantes, mas são pautas pessoais minhas, tipo... é uma escala individual de prioridades, por exemplo: acho que a legalização das drogas é a pauta número zero no Brasil, depois... da reforma da previdência, mas isso é uma pauta... um pensamento meu... (Eudes, 22 anos).

O relato de Gustavo, um militante liberal, descreve a relação entre Estado e liberdade, e sugere que a intervenção estatal termina por reduzir a liberdade. No segundo relato, Rafael, um liberal, representa o seu grupo político como parte de um movimento que visaria “desconstruir os discursos de esquerda” e estabelecer uma nova forma de encarar política e Estado. Seu ataque ao welfare state ecoa a conhecida aversão de um autor neoliberal, o Hayek (1944/2010)Hayek, F. A. (2010). O caminho da servidão. São Paulo, SP: Instituto Ludwig von Mises Brasil. (Trabalho original publicado em 1944), às sociais-democracias, que eram descritas por ele como um caminho para o socialismo e, portanto, como um caminho da servidão, da perda da liberdade.

Nessas falas, há todo um trabalho no sentido de construir o Estado como uma entidade ominosa por meio da manipulação de diferentes categorias. O Estado é “opressor”, tem privilégios injustificáveis, é excessivamente interventor, é totalitário, ubíquo, pois objetiva abarcar “todas as responsabilidades do mundo” - diminuindo ou eliminando a autonomia dos indivíduos.

Na narrativa de Rafael, desenvolvimento não significa diminuição da desigualdade por meio de políticas públicas, afinal: “Ou a gente escolhe por liberdade e desenvolvimento, ou escolhe por ter tudo no papel bonitinhoAh, você vai ter direito a tudo isso, e na realidade não tem direito a nada”.

As falas seguintes, de Leonardo e Eudes, ressaltam outras dimensões da liberdade além da dimensão econômica. Leonardo, que se autocategoriza acima como liberal - mas que em outros momentos da entrevista se define como um libertário anarcocapitalista, argumentando que todo libertário é também um liberal - afirma que acredita na liberdade em todos os seus “aspectos”, liberdade para “se relacionar com quem quiser, usar o que quiser”. Segundo Eudes, a organização liberal na qual milita teria como objetivo disseminar o ceticismo em relação ao “poder”. Citando um ícone do liberalismo brasileiro, Joaquim Nabuco, afirma que a liberdade de cada um está relacionada à liberdade do próximo, e, por isso, devemos educar os nossos filhos no “amor à liberdade alheia”. Eudes conclui seu raciocínio afirmando “que a legalização das drogas é a pauta número zero no Brasil, depois... da reforma da previdência”.

Ambos estão, abertamente ou tacitamente, ressaltando dimensões da liberdade - o uso e o comércio de drogas sem criminalização pelo Estado, as relações sexuais e amorosas entre pessoas do mesmo sexo sem que isso resulte em violência por parte da sociedade - que são alvos das tentativas de controle da direita ultraconservadora no Brasil e nos Estados Unidos (Finguerut & Souza, 2018Finguerut, A., & Souza, M. A. D. (2018). Que direita é esta? As referencias a Trump na nova direita brasileira Pós-Michel Temer. Revista Tomo, (33), 229-270. Recuperado de https://bit.ly/3IbOa0z
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).

Outro traço identitário construído nos argumentos dos militantes é o da racionalidade, a capacidade de ver o mundo de maneira objetiva, livre de ideologias que distorcem a realidade.

Eu vejo particularmente, tem as pessoas também que tentam distorcer a realidade das outras. Eu vejo muito assim... cheguei no ponto que vejo que toda ideologia é uma forma de enxergar a realidade de uma forma distorcida, né? Isso acaba gerando uma certa loucura nas pessoas, porque, em termos científicos-médicos, uma pessoa que não consegue enxergar a realidade é esquizofrênica, e a gente vive numa sociedade esquizofrênica onde simples atos podem ser considerados absurdos.... E hoje em dia, devido à ideologia, as pessoas consideram coisas normais algo absurdo. Não faz sentido. Então, lutar contra essas pessoas que tornam a sociedade doente também é um dos meus objetivos enquanto pessoa (Rafael, 24 anos).

Além de ter estudado mais, além de compreender a cultura do país, além de ter visto tudo de uma forma objetiva, não subjetiva, que eu acredito que a esquerda vê muito de uma forma subjetiva, infelizmente, alguns aspectos... até o próprio capitalismo diz:ah, não deu certo”. Deu certo, o problema é Estado.... Por isso que eu digo: eu estou desmistificando, muitas vezes, o que é conservadorismo, o que é livre iniciativa, o que é propriedade. Porque as pessoas ainda estão meio naquele movimento arcaico de não entender.... Então, é uma missão muito grande para mim, mas eu me encontrei muito no liberalismo (Pedro, 22 anos).

E a questão do Instituto mesmo é... uma possibilidade brilhante de restaurar o que nós perdemos nas últimas décadas, que a revolução cultural comunista tenha deixado nessas últimas décadas, onde o espectro da esquerda e da inteligência esquerdista tomou toda a frente de batalha, entende? ... Então, nosso objetivo maior é restaurar a inteligência da população brasileira, tendo em vista que cada uma dessas pessoas também protagonize com pessoas libertas do lodaçal alienante, podemos assim dizer. Alienante, pois a corrente que vem sendo apregoada, ela vai contra o espírito da inteligência e a questão do caráter em si (Paulo, 25 anos).

Rafael, Pedro e Paulo constroem uma linha argumentativa em que um conceito ocupa um lugar central, um conceito que se assemelha superficialmente - pelo uso de termos como “ideologia” e expressões como “distorcer a realidade” - ao conceito de ideologia de Marx e Engels (1932/2007Marx, K., & Engels, F. (2007). A Ideologia Alemã. São Paulo, SP: Boitempo . (Trabalho original publicado em 1932), p. 94), formulado assim por esses autores: “em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmara escura”. Com eficácia retórica, esses militantes usam esse conceito, formulado por eles principalmente por meio de imagens e metáforas, para atacar o marxismo.

Para Rafael, os indivíduos ou grupos mobilizados pela ideologia seriam afetados por uma espécie de psicopatologia que produziria uma distorção no modo como representariam a realidade. Rafael está falando tacitamente do pensamento de esquerda. A estratégia discursiva apresentada por ele reproduz uma estratégia antiga na direita brasileira: a psicopatologização do pensamento de esquerda. Antes do golpe militar de 1964, o discurso anticomunista já representava o comunismo como uma psicopatia (Motta, 2000Motta, R. P. S. (2000). Em guarda contra o perigo vermelho: O anticomunismo no Brasil (1917-1964) (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo. Recuperado de https://bit.ly/3P6uOMA
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). No discurso da nova direita que emergiu na praça publica a partir de 2013, termos que indicam psicopatologia são amplamente utilizados nas redes sociais para identificar o pensamento de esquerda, como se pode ver em Delcourt (2016Delcourt, L. (2016). Um TeaParty tropical: A ascensão de uma “nova direita” no Brasil. Lutas Sociais, 20(36), 126-139. Recuperado de https://bit.ly/3P3Sl0E
https://bit.ly/3P3Sl0E...
).

Para libertar o povo brasileiro da ilusão em que estaria mergulhado, os participantes se apresentam como combatentes contra a ideologia da esquerda; sendo assim, a luta da direita teria por objetivo “lutar contra essas pessoas que tornam a sociedade doente”, segundo Rafael. Pedro afirma lutar contra o modo subjetivo de ver o mundo que seria próprio da esquerda; como alguém que está “desmistificando, muitas vezes, o que é conservadorismo, o que é livre iniciativa, o que é propriedade”, ou seja, como alguém que luta para desfazer os erros, as ilusões e as farsas supostamente produzidas pela esquerda sobre essas questões. Enfim, como alguém que combate um “movimento arcaico” que não consegue ver o mundo corretamente.

Para falar da ideologia que falseia a realidade, Paulo usa a metáfora do “lodaçal alienante”, o qual seria produzido pelo discurso dos comunistas, que é inimigo do “espírito da inteligência” e do “caráter em si”. O argumento de Paulo reverbera uma narrativa central no grupo mais extremista entre os que chegaram ao poder com Jair Bolsonaro. Trata-se do grupo que se apresenta como combatente na guerra contra “o marxismo cultural”, grupo representado, nas últimas décadas, por intelectuais de ultradireita como o polemista Olavo de Carvalho, guru de Jair Bolsonaro e de seus filhos, e o General Sérgio Augusto de Avellar Coutinho (Pinto, 2019Pinto, E. C. (2019). Bolsonaro e os Quartéis: A loucura com método. Rio de Janeiro, RJ: Instituto de Economia da UFRJ. Recuperado de https https://bit.ly/3aeKlv4
https://bit.ly/3aeKlv4...
).

Um outro traço identitário que os entrevistados procuram associar à direita é a tolerância ao contraditório, como se pode observar nas falas abaixo.

Eu... eu acho que, com certeza, não são inimigos, mas... acho que adversários. Eu acho que a esquerda é a pessoa... a pessoa (risos), vou dizer a entidade, que a gente tem mais barreira mesmo. As pessoas, às vezes, eles são muito, na minha vivência, eles são muito grossos. Já me chamaram de burra, tá ligado? Porque eu falei que a gente conseguia, a gente não precisava do Estado (Fátima, 21 anos).

Eu acredito que são adversários. Inimigos eu não... espero que no lado de lá não me considere um inimigo, né? A gente considera, dentro da cidade G, a militância de esquerda. Até porque é... já foi provado que é um pessoal muito violento (Gustavo, 25 anos).

Olha, em referência a grupo político todo e qualquer pessoa do PT, PSOL e eu vou falar pessoa não, vou dizer político, porque quanto à pessoa eu posso não conhecê-la pessoalmente então não vou tratar disso... como político, qualquer um de esquerda para mim é adversário... Adversários, assim, os... os políticos que têm ocupação, né assim... político de qualquer partido de esquerda e alguns sindicatos também, porque tem sindicatos que tão realmente aparelhados, então quando acontece esse tipo de coisa de serem aparelhados e tal... e identifico também algumas alas nas universidades que são eminentemente comunistas e petistas que fazem doutrinação em sala de aula... e eu posso falar por que eu já ensinei na universidade pública e eu sei como as coisas funcionam ... (Alice, 45 anos).

Mas eu não consigo eleger inimigos não. A gente tem movimentos antagônicos. Não vou dizer que simpatizo com o Levante ou a UJS. São adversários políticos, no sentido de que eles defendem pautas totalmente contrárias às nossas. Mas eles também são importantes pro debate, no sentido que... às vezes o cara organiza um evento aqui e você fica “ah, não vou deixar que esse cara domine meu espaço, vou fazer um evento também”. Isso ajuda e incentiva você a espalhar suas ideias, mas como inimigos não. Acho esse nome muito forte, muito pesado (Leonardo, 20 anos).

Fátima, Gustavo, Alice e Leonardo respondem a um questionamento sobre os grupos que elegeriam como adversários ou inimigos no município ou na sociedade de forma mais ampla. Todos classificam a esquerda como um grupo adversário, mas não como um inimigo. Essa estratégia de evitar considerar o outro como inimigo é uma maneira de se apresentarem como indivíduos tolerantes, sem ódio. O antagonista, no entanto, é descrito, por alguns deles, como intolerante, como um adversário que trata a direita como um inimigo a ser atacado. Nessas descrições usam categorias como “grossos”, “pessoal muito violento”, ou narram histórias, recurso retórico de reconhecida eficácia e recorrentemente usado nas relações entre grupos (Stokoe, 2015Stokoe, E. (2015). Identifying and responding to possible-isms in institutional encounters: alignment, impartiality and the implications for communication training. Journal of Language and Social Psychology, 34(4), 427-445. doi: 10.1177/0261927X15586572
https://doi.org/10.1177/0261927X15586572...
; Whitehead, 2015Whitehead, K. A. (2015). Everyday antiracism in action: Preference organization in responses to racism. Journal of Language and Social Psychology , 34(4), 374-389. doi: 10.1177/0261927X15586433
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; Wetherell & Potter, 1993Wetherell, M., & Potter, J. (1993). Mapping the language of racism: Discourse and the legitimization of exploitation. New York, NY: Columbia University Press.), em que pessoas ou grupos de esquerda atuam de maneira agressiva ou autoritária: “Já me chamaram de burra”; “tem sindicatos que tão realmente aparelhados”; “fazem doutrinação em sala de aula”.

Como foi dito, um conjunto de atributos identitários são representados como inerentes ao pensamento de direita somente pelos militantes autodenominados conservadores, esse ramo político que descende diretamente da direita (Bobbio, 1995Bobbio, N. (1995). Direita e esquerda: Razões e significados de uma distinção política. São Paulo, SP: Unesp.; Quadros & Madeira, 2018Quadros, M.P.R., & Madeira, R. M. (2018). Fim da direita envergonhada? Atuação da bancada evangélica e da bancada da bala e os caminhos da representação do conservadorismo no Brasil. Opinião Pública, 24(3), 486-522. doi: 10.1590/1807-01912018243486
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). A desconfiança em relação à mudança, o apego à hierarquia, o apego à ordem, a convicção de que as desigualdades são naturais e não elimináveis são alguns desses atributos, próprios da direita conservadora (Bobbio, 1995Bobbio, N. (1995). Direita e esquerda: Razões e significados de uma distinção política. São Paulo, SP: Unesp.), afirmados pelos militantes conservadores.

Particularmente, eu prefiro ser chamado de conservador, no sentido de conservar tudo aquilo que nos foi legado durante dois mil anos de história, no caso, a cristandade. A verdadeira ideia do conservadorismo reside nisso aí, que é a ideia da preservação dos valores perenes da civilização ocidental. Infelizmente, o termo conservadorismo vem sendo reduzido a um clichê, mas eu, particularmente, me considero um conservador da tradição. É mais ou menos isso que eu posso me situar (Paulo, 25 anos).

Eu me considero conservadora nos costumes e liberal na economia.... Conservadora porque eu acredito nos valores tradicionais como família, ligações religiosas, sou antiaborto e... liber... liberd... como é?... Liberal econômica porque eu acredito no livre mercado, acredito em menos intervenção estatal na economia e acredito é... no empreendedorismo como válvula propulsora de mudanças sociais e econômicas.... Eu me preocupo muito com essa agenda... a agenda esquerdista se baseia em desconstrução da família, aborto, liberação de drogas e hedonismo... essas quatro coisas nos levam a um caos... então, eu como uma pessoa de direita, defendo, sim, sua liberdade de viver sua vida do jeito que você quiser... contanto que não incomode ninguém e contanto que eu não seja obrigada a fazer o que você faz... ordem em todos os lugares, respeito à hierarquia, às leis e meritocracia... pronto era o que eu queria dizer (Alice, 45 anos).

Paulo, ex-aluno do Curso Online de Filosofia ministrado por Olavo de Carvalho, se autocategorizou como conservador, deu destaque à pauta de costumes e insistiu na necessidade de conservar valores e instituições. Essa preocupação em manter a tradição é fundamental no discurso conservador. Burke (1790/1997)Burke, E. (1997). Reflexões sobre a revolução em França. Brasília, DF: UnB. (Trabalho original publicado em 1790), criticando a revolução francesa, popularizou a ideia de que as mudanças abruptas são perigosas. Um dos mais influentes teóricos do conservadorismo, Burke tinha uma profunda desconfiança em relação às mudanças radicais e disruptivas que poderiam deslegitimar os valores tradicionais, e essa desconfiança foi reiteradamente formulada nos relatos dos militantes conservadores deste estudo. Nas intervenções de Paulo e Alice, se faz uma defesa enfática da tradição ocidental, da família tradicional e da religiosidade cristã, e, na de Alice, o inimigo de tudo isso é a “agenda esquerdista”.

Em poucas sentenças, Alice elogia simultaneamente a liberdade econômica (“porque eu acredito no livre mercado”) e manifesta desconforto em relação à liberdade no campo dos costumes (“eu me preocupo muito com essa agenda. . . a agenda esquerdista se baseia em desconstrução da família, aborto, liberação de drogas e hedonismo”). Mas não se trata somente de preocupação, ela apoia um movimento, o bolsonarismo, que é ultraliberal em economia, mas conservador no que diz respeito aos costumes (Reis, 2020Reis, D. A. (2020). Notas para a compreensão do bolsonarismo. Estudos Ibero-Americanos, 46(1), 1-11. doi: 10.15448/1980-864X.2020.1.36709
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), movimento que luta ativamente para impedir, por exemplo, a liberação do uso de drogas ilícitas. E é esse seu apoio à coerção estatal contra as liberdades individuais que ela tenta inutilmente obliterar, ao afirmar que defende “sua liberdade de viver sua vida do jeito que você quiser. . . contanto que não incomode ninguém”,

Seguidora de Jair Bolsonaro, como Paulo, Alice atualiza em sua fala o suposto conservadorismo com o qual o então candidato ganhou a eleição de 2018. Suposto porque alguns autores (Finguerut & Souza, 2018Finguerut, A., & Souza, M. A. D. (2018). Que direita é esta? As referencias a Trump na nova direita brasileira Pós-Michel Temer. Revista Tomo, (33), 229-270. Recuperado de https://bit.ly/3IbOa0z
https://bit.ly/3IbOa0z...
; Lessa, 2020Lessa, R. (2020). Homo Bolsonarus: De como nasceu e se criou o confuso e perigoso animal artificial que encarna momentos arcaicos da sociabilidade brasileira [edição especial]. Serrote, 46-67. Recuperado de https://bit.ly/3OHqqUw
https://bit.ly/3OHqqUw...
; Lynch & Cassimiro, 2021Lynch, C. E. C., & Cassimiro, P. H. P (2021). O populismo reacionário no poder: Uma radiografia ideológica da presidência Bolsonaro. Aisthesis, 70, 223-249. doi: 10.7764/Aisth.70.10
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) não apontam o conservadorismo como um traço inequívoco do movimento bolsonarista.

Lessa (2020Lessa, R. (2020). Homo Bolsonarus: De como nasceu e se criou o confuso e perigoso animal artificial que encarna momentos arcaicos da sociabilidade brasileira [edição especial]. Serrote, 46-67. Recuperado de https://bit.ly/3OHqqUw
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) ressalta os seus traços revolucionários. O bolsonarismo, segundo ele, pretende destruir as normas e instituições que asseguram as liberdades políticas e “devolver a sociedade ao estado de natureza”. A mudança abrupta e violenta já excluiria o bolsonarismo de uma certa tradição conservadora iniciada por Burke (1790/1997)Burke, E. (1997). Reflexões sobre a revolução em França. Brasília, DF: UnB. (Trabalho original publicado em 1790).

Finguerut e Souza (2018Finguerut, A., & Souza, M. A. D. (2018). Que direita é esta? As referencias a Trump na nova direita brasileira Pós-Michel Temer. Revista Tomo, (33), 229-270. Recuperado de https://bit.ly/3IbOa0z
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) e Lynch e Cassimiro (2021Lynch, C. E. C., & Cassimiro, P. H. P (2021). O populismo reacionário no poder: Uma radiografia ideológica da presidência Bolsonaro. Aisthesis, 70, 223-249. doi: 10.7764/Aisth.70.10
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), por sua vez, ressaltam o reacionarismo do movimento bolsonarista, esses últimos usam até o termo “conservadorismo reacionário” para descrevê-lo (Lynch & Cassimiro, 2021Lynch, C. E. C., & Cassimiro, P. H. P (2021). O populismo reacionário no poder: Uma radiografia ideológica da presidência Bolsonaro. Aisthesis, 70, 223-249. doi: 10.7764/Aisth.70.10
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, p. 236).

Fissuras na identidade da direita

Os militantes atribuíram traços à direita de uma forma geral ou à corrente política em que militam no interior da direita, mas amiúde ressaltavam suas diferenças, apontavam tensões, divergências. A direita que representam em suas descrições é heterogênea, multifacetada, marcada por antagonismos internos.

A tensão entre os que se definiram como liberais e os que se definiram como conservadores se apresentou na fala de um militante liberal quando ele questiona o atributo identitário que define o conservadorismo.

Eu me vejo como liberal porque, diferente de conservador, eu não... tenho essa pretensão de querer... conservar instituições, o liberalismo é um pouco mais revolucionário mesmo, até porque quando o liberalismo nasceu ele queria romper com a velha ordem, e acho que o liberal ele continuou com esse desejo de romper com a velha ordem estatal... e até porque hoje você vê quem se denomina como liberal e quem se denomina como conservador, você vê que tem diferença, assim... no mindset é diferente (Eudes, 22 anos).

A reticência dos conservadores em relação à mudança é alvo da retórica de Eudes. Para ele, ao contrário do conservadorismo que visa “conservar instituições”, o liberalismo é “um pouco mais revolucionário”. O mindset - a configuração da mente, a mentalidade - dos dois grupos seria diferente. O conservadorismo é o velho, o apegado ao passado, o liberalismo olha para o futuro, rompe “com a velha ordem”.

A divergência entre aqueles que se definem como conservadores e outros que são definidos como reacionários também foi formulada nos relatos.

O pessoal pensa que direita é uma coisa extrema. Não, a direita é conservadora. Os verdadeiros conservadores, eles prezam pela liberdade individual. Vida, liberdade e propriedade. Então no primeiro momento eu não fui para lá. Eu preciso, além da economia, eu preciso agregar os fatores sociais. Estou falando de que? De liberdade pessoal.... Conheci o liberalismo, e eu não fui para a direita, direita, aquela direita reacionária. Não tô falando nem a direita conservadora, porque ela é totalmente diferente. E principalmente diferente aqui no Brasil (Pedro, 22 anos).

Diferentemente da narrativa de Eudes, em que as categorias liberal e conservador não são inseridas como subcategorias de uma categoria mais ampla (a direita), como se fizessem parte de universos políticos diferentes, na narrativa de Pedro a “direita conservadora” e a “direita reacionária” são subcategorias da “direita”. Trata-se de um processo retórico de particularização (Billig, 1987Billig, M. (1987). Arguing and Thinking: A Rhetorical approach to social psychology. Cambridge, England: Cambridge University Press.), em que as subcategorias “direita conservadora” e “direita reacionária” são diferenciadas no interior da categoria “direita” de tal modo que ela perde a homogeneidade, se torna heterogênea, marcada por diferenças internas. Um processo discursivo que, aqui, tem a função de apresentar a “direita conservadora” como aquela que representa a verdadeira direita.

Trata-se de um processo retórico que foi observado principalmente na fala de alguns militantes filiados a grupos liberais, quando procuraram se distanciar do então candidato a presidente da república nas eleições de 2018, Jair Bolsonaro, que, para alguns, não seria de fato da direita conservadora e sim da direita reacionária.

Não obstante essa identificação de Jair Bolsonaro como reacionário, esses militantes ainda assim o consideraram uma opção menos danosa do que o candidato do PT.

O pessoal foi para o Bolsonaro. Viram o Bolsonaro como único que poderia, digamos que, livrar o país disso. A gente agora está no segundo turno entre Haddad e Bolsonaro. Bolsonaro já fez, infelizmente, alguns comentários de uma infelicidade enorme, né? Ele disse que tem... que pode ter mudado. Eu acredito muito que ele pode ter mudado, eu era um esquerdista/petista e mudei, sou liberal hoje (Pedro, 22 anos).

Minha expectativa é que seja algo muito difícil. Eu, particularmente, vou votar no candidato Jair Bolsonaro. Não porque acho ele um mito, ou acho que ele vai salvar a pátria em um cavalo branco. Meu voto é mais antipetista do que pró Bolsonaro, entendeu? Eu diria que é um voto de desespero, tá ligado? É tipo escolher entre câncer e AIDS. Eu digovou em AIDS” (Gustavo, 25 anos).

Bolsonaro, segundo Pedro, pode “livrar o país disso”, ou seja, do PT. Ele diz acreditar que, apesar dos erros, o então candidato pode ter mudado. Gustavo, metaforicamente, compara a escolha entre os dois candidatos, Haddad e Bolsonaro, à escolha entre a Aids e o Câncer.

Divergências entre liberais e libertários também foram explicitadas nas narrativas, como se pode observar na intervenção de Leonardo, o único libertário anarcocapitalista entre os militantes, intervenção que certamente reverbera debate que ocorre nos grupos.

Cara, eu acho que eu não acho que o Estado seja algo extremamente necessário. Eu sou libertário no sentido de que, na sociedade perfeita, dos meus sonhos, não existiria Estado. As relações são voluntárias entre os indivíduos. Mas isso varia um pouco de pessoas pra pessoas. Pra mim, isso é o ideal. O que varia muito entre as pessoas é a metodologia. Tem gente que acha que tem que ter uma revolução pra derrubar o Estado amanhã, tem gente que acha que deve ser gradativamente, enfim. Se existisse um botão para apertar e o Estado acabasse hoje, eu provavelmente apertaria, mas não existe. Então eu acredito em um liberalismo gradativo. Que a gente ocupe os espaços nas instituições. Pé no chão, racional. Não acredito em uns agorismos besta. Tem gente que é libertário hardcore que tem preconceito com quem vota, com quem se candidata.Ah, porque você tá entrando dentro do negócio?”. São os mecanismos que a gente tem, as ferramentas que a gente tem. Estão não tenho nenhum preconceito em relação a isso (Leonardo, 20 anos).

No interior do libertarismo existem divergências acerca da posição do Estado na sociedade. Libertários anarcocapitalistas, inspirados por intelectuais como Hoppe (2014Hoppe, H. (2014). Democracia - O Deus que falhou: A economia e a política da monarquia, da democracia e da ordem natural. São Paulo, SP: Instituto Ludwig von Mises Brasil .) e Rothbard (2010Rothbard, M. N. (2010). A Ética da Liberdade. São Paulo, SP: Instituto Ludwig von Mises Brasil .), pregam a extinção do Estado. Mas há posições mais flexíveis. Libertários minarquistas, neoliberais defensores do Estado mínimo, como Mises (2010Mises, L. V. (2010). Ação humana: Um tratado de economia. São Paulo, SP: Instituto Ludwig von Mises Brasil .), entendem que o Estado deve se ocupar somente de justiça e segurança.

Leonardo se descreve como um pragmático que, embora tenha o fim do Estado como um ideal, uma posição verdadeiramente anarcocapitalista, entende que esse processo pode ser gradativo, sem irrupções revolucionárias. Ao se posicionar como alguém que sonha com uma sociedade sem Estado nenhum, ele se diferencia dos liberais minarquistas, que aceitam um Estado mínimo que garanta somente a segurança e a propriedade, mas também se diferencia dos libertários “hardcore” que são tacitamente assemelhados aos militantes de esquerda, tal como representados tacitamente nos relatos anteriormente analisados, em que militantes de direita se definem como anti-ideológicos. Esses libertários “hardcore” seriam utópicos, sem objetividade, não pragmáticos, desconectados do mundo real.

Discussão

Este estudo identificou um conjunto de traços identitários acionados por militantes de direita para definirem o grupo de direita no qual militam e a direita de uma forma geral. Traços identitários como libertarismo, anti-ideologismo, conservadorismo nos costumes e tolerância são apresentados de uma forma geral como definidores daquilo que eles são.

Somente um deles manifesta um posicionamento efetivamente anarcocapitalista de abolição total do Estado, tal como pontificado por intelectuais anarcocapitalistas como Hoppe (2014Hoppe, H. (2014). Democracia - O Deus que falhou: A economia e a política da monarquia, da democracia e da ordem natural. São Paulo, SP: Instituto Ludwig von Mises Brasil .) e Rothbard (2010Rothbard, M. N. (2010). A Ética da Liberdade. São Paulo, SP: Instituto Ludwig von Mises Brasil .). Para os demais o Estado é representado como necessário, ainda que com tons de uma estadofobia abrandada, constituída por meio de descrições em que ele aparece como um agente perigoso e limitador de liberdades.

Esse posicionamento é coerente com os princípios e com a história do liberalismo, movimento que se fundamenta numa relação antagônica com o Estado (Merquior, 2014Merquior, J. G. (2014). O Liberalismo: Antigo e Moderno. São Paulo, SP: É Realizações.). No século XX, esse antagonismo, como ressaltam Dardot e Laval (2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, SP: Boitempo.), é amplamente discutido na obra de pensadores neoliberais associados à Escola Austríaca e à Escola de Chicago, pensadores cujas teorias estão presentes de diferentes formas no léxico que os militantes desta pesquisa mobilizam para falar da realidade social.

Um padrão se apresenta de maneira inequívoca em suas intervenções. Elas são organizadas retoricamente para apresentar o pensamento de esquerda como intolerante, atrasado, pré-moderno, como anti-iluminista, e o pensamento de direita como a antítese de tudo isso. Essa imagem da esquerda como anti-iluminista é construída algumas vezes tacitamente, algumas vezes de maneira explícita. De uma forma ou de outra, os grupos que se encontram no lado esquerdo do espectro político são construídos assim quando os militantes afirmam que pessoas e grupos de esquerda são ideológicos, apegados ao erro, à ilusão e ao irracionalismo, que são intolerantes sectários, sempre dispostos a acionar táticas agressivas, violentas e até totalitárias contra os adversários para obliterar o livre debate.

Como mostram Billig et al. (1988Billig, M., Condor, S., Edwards, D., Gane, M., Middleton, D., & Radley, A. (1988). Ideological dilemas: A social psychology of everyday thinking. Thousand Oaks, CA: SAGE .), características como intolerância, irracionalidade, ausência de objetividade, arcaísmo, dentre outras, foram usadas pelos filósofos iluministas como tijolos na construção da identidade do velho mundo que queriam derrotar.

Após a revolução francesa, revolução que constitui os termos direita e esquerda com o sentido atual, o velho mundo intolerante e arcaico que aqueles filósofos derrotaram ficou associado para muitos às fracões mais conservadoras da direita política.

Aqui os militantes de direita procuram mudar as posições dos dois grupos políticos nessa dicotomia iluminismo-anti-iluminismo. Essa mudança de posição que eles querem realizar - posicionar a direita como sinônimo de esclarecimento, tolerância e modernidade e a esquerda como sinônimo de obtusidade, totalitarismo e arcaísmo - não é nova, pelo menos no meio intelectual. Trata-se de uma estratégia recorrente na direita do século XX, em autores ligados à tradição liberal como Hayek (1944/2010)Hayek, F. A. (2010). O caminho da servidão. São Paulo, SP: Instituto Ludwig von Mises Brasil. (Trabalho original publicado em 1944) e Popper (1945/1974)Popper, K. R. (1974). A sociedade aberta e seus inimigos. São Paulo, SP: Edusp. (Trabalho original publicado em 1945), só para citar dois nomes.

Segundo Reicher e Hopkins (2001)Reicher, S., & Hopkins, N. (2001). Self and Nation. Thousand Oaks, CA: SAGE ., descrever uma identidade é um processo performático e constitutivo, um processo que visa tornar viável, possível, real, um determinado modo de definir o mundo. Todos esses traços identitários mobilizados por esses aplicados militantes de direita, para definir a direita e a esquerda, objetivam tornar inquestionável esse modo de definir os dois grupos, e inquestionável, portanto, o modo de definir a realidade social próprio dessa nova direita brasileira.

Pode-se falar de um modo de definir a realidade próprio dessa nova direita, à medida que alguns conteúdos identitários da direita são mencionados por todos os grupos (o apego ao livre mercado, o pensamento anti-ideológico etc.), mas isso não significa ausência de heterogeneidade. Os militantes deste estudo descrevem as relações entre os diferentes grupos de direita como tensas e marcadas por conflitos.

Formulam discursivamente uma identidade coletiva precária, forjada em parte pelo antagonismo em relação ao inimigo comum (Laclau & Mouffe, 2015Laclau, E., & Mouffe, C. (2015). Hegemonia e Estratégia Socialista: Por uma política democrática radical. São Paulo, SP: Intermeios.), neste caso, a esquerda e o petismo, definidos por esses militantes como antagonistas suficientemente perigosos a ponto de mitigar, mesmo que momentaneamente, as diferenças no interior da direita. Isso pode ser notado em várias intervenções dos militantes liberais quando mencionam as razões do voto em Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018. Se a direita brasileira que se segue ao fim da ditadura militar tinha vergonha de se dizer de direita (Cepêda, 2018Cepêda, V. A. (2018). A nova direita no Brasil: Contexto e matrizes conceituais. Mediações, 23(2), 75-122. Recuperado de https://bit.ly/3nAOfRQ
https://bit.ly/3nAOfRQ...
; Maitino, 2018Maitino, M. E. (2018). “Direita, sem vergonha”: Conformações no campo da direita no Brasil a partir do discurso de Jair Bolsonaro. Plural, 25(1), 111-124. doi: 10.11606/issn.2176-8099.pcso.2018.149018
https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099....
; Quadros & Madeira, 2018Quadros, M.P.R., & Madeira, R. M. (2018). Fim da direita envergonhada? Atuação da bancada evangélica e da bancada da bala e os caminhos da representação do conservadorismo no Brasil. Opinião Pública, 24(3), 486-522. doi: 10.1590/1807-01912018243486
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), os militantes aqui investigados afirmam orgulhosamente a identidade de direita, mas evitam de todas as formas se posicionarem como de extrema direita, reacionários etc., mesmo aqueles alinhados ideologicamente com o atual presidente da república.

Esses militantes adotam em vários momentos um tom evangelizador e até mesmo messiânico, se posicionando como propagadores de uma nova verdade libertadora, como inimigos das falsificações e mentiras disseminadas no mundo pela esquerda. No caso dos liberais, esse fervor evangelizador se manifesta na retórica contra a interferência do Estado na vida privada dos indivíduos, mas principalmente na defesa dos mercados livres e contra políticas públicas estatais que objetivam diminuir desigualdades sociais. Isso representa um enorme desafio para a esquerda e para os setores progressistas da sociedade brasileira, afinal os militantes aqui investigados são predominantemente pessoas das classes médias baixas, pessoas que seriam as mais favorecidas por essas políticas públicas.

No caso dos conservadores, esse fervor evangelizador se evidencia quando se apresentam como inimigos da ideologia e da alienação disseminadas no mundo e particularmente no Brasil pelo “marxismo cultural”, um discurso orientado pela retórica reacionária de Olavo de Carvalho e da extrema direita norte-americana (Pinto, 2019Pinto, E. C. (2019). Bolsonaro e os Quartéis: A loucura com método. Rio de Janeiro, RJ: Instituto de Economia da UFRJ. Recuperado de https https://bit.ly/3aeKlv4
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). O modo como o conservadorismo bolsonarista é posicionado pelos seus militantes, como um inimigo da ideologia e defensor intransigente da objetividade e da verdade, é inconsistente com a prática de produção e disseminação de fake news pelo bolsonarismo nos meios digitais, como se pode ver em Cesarino (2020Cesarino, L. (2020). Como vencer uma eleição sem sair de casa: A eleição do populismo digital no Brasil. Internet & Sociedade, 1(1), 91-120. Recuperado de https://bit.ly/3NHYQVC
https://bit.ly/3NHYQVC...
), Reis (2020Reis, D. A. (2020). Notas para a compreensão do bolsonarismo. Estudos Ibero-Americanos, 46(1), 1-11. doi: 10.15448/1980-864X.2020.1.36709
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) e Lynch e Cassimiro (2021Lynch, C. E. C., & Cassimiro, P. H. P (2021). O populismo reacionário no poder: Uma radiografia ideológica da presidência Bolsonaro. Aisthesis, 70, 223-249. doi: 10.7764/Aisth.70.10
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), e com a tendência desse movimento para tomar como falso tudo o que é dito pelos antagonistas e como verdadeiro tudo o que sai do seu interior (Cesarino, 2020Cesarino, L. (2020). Como vencer uma eleição sem sair de casa: A eleição do populismo digital no Brasil. Internet & Sociedade, 1(1), 91-120. Recuperado de https://bit.ly/3NHYQVC
https://bit.ly/3NHYQVC...
; Lynch & Cassimiro, 2021Lynch, C. E. C., & Cassimiro, P. H. P (2021). O populismo reacionário no poder: Uma radiografia ideológica da presidência Bolsonaro. Aisthesis, 70, 223-249. doi: 10.7764/Aisth.70.10
https://doi.org/10.7764/Aisth.70.10...
).

O anticomunismo presente nessa retórica inflamada sobre os perigos do marxismo cultural é um fenômeno antigo na política brasileira, mas está sempre se renovando de acordo com o momento histórico e político (Motta, 2019Motta, R.P.S. (2019). Anticomunismo, antipetismo e o giro direitista no Brasil. In R.P.S. Motta, E. Bohoslavsky, & S. Boisard (Orgs.). Pensar as direitas na América Latina (pp. 75-98). São Paulo: Alameda.). Nas intervenções de alguns militantes, esse anticomunismo se apresenta também por meio de um recurso retórico de reconhecida eficácia, a representação do adversário político como uma entidade maligna que os trata como inimigos.

Considerações finais

Este estudo evidencia a heterogeneidade da direita que emergiu na cena política em 2013. Pode-se falar até mesmo de direitas, uma vez que, dentro desse grupo multifacetado, princípios como liberdade, por exemplo, não recebem sempre a mesma interpretação.

O estudo revela, além disso, que esses militantes mobilizam argumentos em defesa de seus valores com notável eficácia retórica e num tom bem mais civilizado do que aquele que se pode observar em intervenções de grupos de direita na internet. E eles desenvolvem esses argumentos demoradamente e com evidente necessidade de reconhecimento, para entrevistadores que vinham do meio universitário que eles representavam como hostil ao pensamento de direita.

Novos estudos qualitativos que investiguem de maneira aprofundada o conteúdo e a forma do pensamento de cada uma dessas direitas, os liberais, os conservadores, os anarcocapitalistas, permitirão uma compreensão mais detalhada e sofisticada de cada uma delas e das tensões, contradições e conflitos que as caracterizam.

Alguns desses estudos, com foco em militantes de baixa renda, e colocando em primeiro plano o impacto do pensamento de direita e da interação com grupos de direita na vida pessoal desses militantes, poderiam ajudar a compreender por que eles desprezam a narrativa que advoga a importância das políticas públicas como facilitadoras da ascensão econômica das classes populares e exaltam a narrativa ultraliberal (antiestatal e ultraindividualista) como um caminho não só para a ascensão econômica, mas principalmente para a liberdade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2021
  • Revisado
    22 Maio 2022
  • Aceito
    13 Jun 2022
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