Open-access Fixação e regressão como conceitos fundamentais da filosofia psicanalítica declinista da história de Freud

Fixation and Regression as fundamental concepts of the declinist psychoanalytic philosophy of Freud’s history

Fijación y Regresión como conceptos fundamentales de la filosofía psicoanalítica declinista de la historia de Freud

Fixation et régression comme des concepts fondamentaux de la philosophie psychanalytique décliniste de l’histoire de Freud

Resumo

Este artigo reflete sobre a noção antropológica de animatismo, um estádio pré-animista da humanidade, à qual Freud recorreu em Totem e tabu. Com ela, ampliou seu objetivo de revelar a origem da religião e da moralidade, estendendo-o à origem e ao destino da humanidade. Objetivo que também perseguiu em interlocução com as teorias psiquiátricas da hereditariedade e da degeneração dos séculos XVIII e XIX. Teorias concebidas por Tissot, Pinel, Lucas, Morel, Esquirol, Magnan, Legrain, Charcot, entre outros, sumariamente apresentadas neste artigo. Por fim, este artigo também apresenta e põe em discussão algumas obras de Freud, nas quais as teorias da hereditariedade e da degeneração foram ressignificadas sob as de fixação e regressão, ampliando os fundamentos do que seria sua filosofia psicanalítica declinista da história, reveladora de um novo sentido e direção tanto para a origem, quanto para o destino da humanidade.

Palavras-chave: Freud; psicanálise; filosofia da história; hereditariedade-degeneração; fixação-regressão

Abstract

This article reflects on the anthropological notion of animatism, a pre-animist stage of humanity, to which Freud resorted in Totem and Taboo. With it he broadened his aim of revealing the origin of religion and morality, extending it to the origin and destiny of humanity. An objective that he also pursued in dialogue with the psychiatric theories of heredity and degeneration of the 18th and 19th centuries. Theories conceived by Tissot, Pinel, Lucas, Morel, Esquirol, Magnan, Legrain, Charcot, among others, are briefly presented in this article. Finally, this article also presents and discusses some works by Freud, in which the theories of heredity and degeneration were resignified under those of fixation and regression, expanding the foundations of what would be his declinist psychoanalytic philosophy of history, revealing a new meaning and direction for both the origin and the destiny of humanity.

Keywords: Freud; psychoanalysis; philosophy of history; heredity-degeneration; fixation-regression

Resumen

Este artículo reflexiona sobre la noción antropológica de animatismo, etapa preanimista de la humanidad, a la que recurrió Freud en Tótem y tabú. Con ella amplió su objetivo de revelar el origen de la religión y la moral, extendiéndolo al origen y destino de la humanidad. Un objetivo que también persiguió en diálogo con las teorías psiquiátricas de la herencia y la degeneración de los siglos XVIII y XIX. En este artículo se presentan brevemente las teorías concebidas por Tissot, Pinel, Lucas, Morel, Esquirol, Magnan, Legrain, Charcot, entre otros. Finalmente, este artículo también presenta y discute algunos trabajos de Freud, en los que las teorías de la herencia y la degeneración fueron resignificadas bajo las de la fijación y la regresión, ampliando los fundamentos de lo que sería su filosofía psicoanalítica declinista de la historia, revelando un nuevo sentido y dirección tanto para el origen como para el destino de la humanidad.

Palabras clave: Freud; psicoanálisis; filosofía de la historia; herencia-degeneración; fijación-regresión

Résumé

Cet article reflète sur la notion anthropologique d’animatisme, un stade préanimiste de l’humanité auquel Freud a fait recours dans son texte Totem et Tabu. Avec cette notion, il amplifie son objectif de révéler l’origine de la religion et de la moralité afin d’aussi aborder l’origine et le destin de l’humanité. Cet objectif a été poursuivi dans un dialogue constant avec les théories psychiatriques de l’hérédité et de la dégénérescence du XVIIIe et du XIXe siècle. Les théories conçues par Tissot, Pine, Lucas, Morel, Esquirol, Magnan, Legrain, Charcot, entre autres, seront brièvement présentées dans cet article. Enfin, cet article propose aussi de présenter et mettre en débat quelques travaux de Freud, où les théories de l’hérédité et de la dégénération ont été resignifiées pour ce qui est des concepts de fixation et de régression, élargissant ainsi les fondements de ce qu’on pourrait appeler sa philosophie psychanalytique décliniste de l’histoire, une philosophie révélatrice d’un nouveau sens et d’une nouvelle direction concernant l’origine et le destin de l’humanité.

Mots-Clés: Freud; psychanalyse; philosophie de l’histoire; heredite-degeneration; fixation-regression

Introdução

A loucura fala da linguagem do grande retorno: não o retorno épico das longas odisseias, no percurso indefinido dos mil caminhos do real, mas o retorno lírico por uma fulguração instantânea que, amadurecendo de repente a tempestade da realização, ilumina-a e tranquiliza-a na origem reencontrada. . . . Tal é o poder da loucura; enunciar este segredo insensato do homem, segundo o qual o ponto último de sua queda é sua primeira manhã, que sua noite termina na mais jovem luz, que nela o fim é o começo. (Foucault, 1972/2004, p. 511)

Em pesquisas anteriores, investiguei com mais profundidade a noção de “animatismo”, à qual Freud recorreu mencionando-a duas vezes em Totem e tabu (1913), além de referência indireta em Neurose de transferência: uma síntese (1915). Noção que emprestou do etnólogo Robert Marett (1866-1943), para quem se tratava de um estádio pré-animista da humanidade. Com este recurso, Freud ampliou seu objetivo anunciado na obra de 1913, que era o de revelar por meio de seu método de investigação psicanalítico a origem da moralidade e da religião, estendendo-o, de maneira não declarada, à origem e ao destino da humanidade.

Segundo esta noção, a origem da humanidade teria sido marcada por um ponto de inflexão, por um evento extraordinário e ruptivo que teria provocado o abandono de um certo estado de natureza. Poderia ter sido, como disse Freud, um evento geológico-climático seguido de um processo civilizatório cujo sentido uma filosofia psicanalítica da história poderia revelar. Um processo cuja característica fundamental é a de manifestar uma evolução histórica orientada por uma tendência de regresso ao estado abandonado, ao qual os homens estariam desde então fixados e destinados a voltar, pode-se dizer, com a expectativa de a ele voltar.

Trata-se de uma filosofia psicanalítica da história que recebeu, especialmente em Totem e tabu, aportes teóricos de Charles de Brosses (1709-1777) e de Auguste Comte (1798-1857). Mas não só deles, pois àquela altura Freud já se mantinha em “discussão” com as teorias da hereditariedade e da degeneração forjadas pela psiquiatria dos séculos XVIII e XIX. Teorias que receberam contribuições de Buffon, Cuvier e Tissot, alcançando seu ápice com Morel e seus contemporâneos, Pinel, Prosper Lucas, Esquirol, Ribot, Féré, Magnan, Legrain, Charcot, entre outros. Discussão da qual Freud derivou sua teoria da fixação e da regressão.

Tendo antes me dedicado aos aportes de Brosses e Comte, me dedicarei neste artigo a reconstituir um pouco da história da psiquiatria que tão bem preparou o ambiente teórico que Freud encontrou em seu estágio com Charcot no Salpêtrière em 1886. Sem reconhecer nela e em seus autores uma espécie de precursores da psicanálise, farei referência especial a Pinel por ter sido o introdutor do enfoque moderno da alienação mental, considerada um tipo especial de degeneração. Em seguida, me ocuparei de Morel, que sintetizou e consolidou a teoria da hereditariedade e da degeneração de Prosper Lucas (1808-1895), unificador das teorias da aquisição e da transmissão da alienação. Farei ainda referências a Magnan e Legrain. Depois, porei em discussão algumas obras de Freud, nas quais, em referência explícita a Charcot, os temas da hereditariedade e da degeneração foram ressignificados sob os temas da fixação e da regressão. Ressignificação que deu consistência ao que identifiquei como sendo sua filosofia psicanalítica declinista da história, reveladora da origem e do destino da humanidade.

História e legado das teorias da hereditariedade e da degeneração

Começo por lembrar que no campo das ciências médicas, desde o século XVIII, as teorias da hereditariedade-degeneração receberam importante contribuição do protestante calvinista August Tissot (1728-1797), autor de Traité des nerfs et de leurs maladies (1778), para quem sob certas condições ambientais, o homem degenera de um tipo primitivo, obra-prima e síntese da criação. Criacionista-fixista, concebeu o meio social, como disse Foucault (1972/2004), como condição de a priori concreto de toda decadência, individual ou social. Fato notável, pois decorria do fato de que o século XVIII ainda não concebia uma natureza que se degenera, como disse Foucault (1972/2004), sob “o efeito de uma degradação espontânea, de um peso próprio à matéria viva, porém, muito mais provavelmente, sob a influência das instituições sociais em desacordo com a natureza, ou ainda como consequência de uma depravação da natureza moral” (p. 373).

Mas foi Phillipe Pinel (1745-1826) quem deu grande impulso à tese de que a degeneração seria transmitida hereditariamente em uma espécie em um sentido que culminaria em sua extinção. Ele se dedicou, em Traité médico-philosophique sur l’aliénation mentale ou la manie (1801-1809), a um tipo especial de degeneração, a alienação mental, caracterizando a alienação enquanto idéias delirantes, as alucinações, os comportamentos violentos ou as paixões descontroladas. Nesta obra, especialmente na edição de 1809, Pinel (1809), dissertando sobre as causas próprias que determinam a alienação mental, admitiu que possui mais de uma causa, dentre elas as “lesões físicas” e a “disposição originária”1 (p. 10), mas reservou destaque para as afecções morais muito vivas quando contrariadas e, desta forma, fortemente relacionadas à aguda sensibilidade do paciente2. O trabalho por ele realizado junto aos alienados em instituições hospitalares impulsionou o ramo científico da medicina alienista, ao fundar o que recebeu o nome de clínica psiquiátrica enquanto campo de observação, análise e classificação dos fenômenos da alienação, disponibilizando uma semiologia psiquiátrica.

Criou uma abordagem clínica partindo, não de um tipo ideal, mas dos sintomas dos alienados, ou ainda, de tudo o que fosse captado pelos sentidos, como gestos, comportamentos e expressões faciais, para chegar à elaboração de quadros clínicos, praticando a chamada medicina das espécies patológicas, como disse Foucault (1963/1975), “sujeito à prescrição ideal da nosologia”3 (p. 6). Valorizou também a influência das paixões descontroladas e excessivas na alienação possibilitando uma terapêutica concomitante de suas causas físicas e morais. Muitas vezes visto com descrédito, o tratamento da alienação recebeu de Pinel ao menos a expectativa de proporcionar ao paciente a possibilidade de poder voltar a viver adaptado em sociedade, atenuando a estreita relação entre alienação e decadência social.

Na mesma França, as teorias da hereditariedade-degeneração com o objetivo de explicar a alienação mental, tiveram seu ápice na segunda metade do século XIX com Bénédicte-Augustin Morel (1809-1873). Também fez parte de uma tradição que procurava identificar e instituir a alienação como objeto de estudo e de terapia. Em obras de grande legado como Traité des dégénérescences physiques, intellectuelles et morales de l’espèce humaine et des causes qui produisent ces variétés maladives (1857) e Traité des maladies mentale (1860), Morel investigou sua etiologia e seus dispositivos de transmissão hereditária, como Tissot, recorrendo ao criacionismo.

É importante ponderar que, se até então, fatores de diversas naturezas eram considerados como causa da alienação, nesta época, a hereditariedade passou a ser considerada fator essencial para sua explicação, embora o mecanismo de transmissão fosse desconhecido. O que se sabia, ou se considerava, é que, uma vez presente, uma alienação era transmitida com agravamento de uma geração para outra, culminando na extinção de uma linhagem familiar. Seu estudo mostrou que ao ser transmitida assume características fixas e invariáveis entre os descendentes por gerações até à esterilidade e à extinção de sua linhagem.

Morel sustentou duas teses básicas. Primeiramente, a de que as causas morais e físicas atuariam sobre o mesmo local, o sistema nervoso. Em seguida, que o homem criado perfeito por Deus, degenera por causas terrenas adquiridas. Desta forma, a primeira e principal causa de degeneração seria o pecado original, decisivo na instauração da predisposição à alienação mental. O ponto forte de sua teoria e que interessou aos seus contemporâneos e sucessores, foi a consideração da alienação como resultante do afastamento do tipo ideal provocador de um processo degenerativo familiar que alcançaria seu resultado final após a quarta geração, de modo que uma conduta desregrada do avô constituiria a base hereditária para a alienação mental do neto e a dêbâcle total do bisneto.

Assim, Morel compreendeu a degeneração da espécie humana como um desvio malsão de um tipo ideal, e este operando como sua pré-formação. Já na introdução do Traité des maladies mentales (Morel, 1860), resistente a qualquer possibilidade epigenética de evolução humana, declarou que a degenerescência, termo criado por ele, consistia em “desvios mórbidos do tipo normal de humanidade” 4 (p. II). Sendo este um desdobramento do primeiro tratado, reafirmou o caráter fixo e essencial da criação, cujo tipo ideal servia como referência para o diagnóstico e o tratamento dos alienados. Assim, Morel admitiu a transmissão hereditária tanto de características físicas quanto morais por meio de uma condição disposicional do paciente. Disposição que, no entanto, carecia de outro fator desencadeador da alienação.

Prestigiando a investigação etiológica, Morel desprestigiou as classificações nosológicas das patologias mentais baseadas em sintomas. Em seu lugar, ampliando em muito o objeto da psiquiatria, recorreu a dados biográficos-familiares do paciente, lhes concedendo um lugar central em seu diagnóstico, recurso que preenchia o vácuo até então existente de informações precisas sobre as localizações anatomopatológicas. Ele foi também o introdutor, nas obras de 1857 e 1860, da noção de dissimilaridade, que ajudou a explicar o fato de as mesmas causas produzirem efeitos diferentes. Esta noção, segundo Caponi (2012):

Não se limita a identificar patologias que se repetem por gerações, mas supõe a transformação das degenerações nas sucessivas gerações, um pai alcoólatra pode ter filhos delinquentes ou com diversos estigmas psíquicos, sem necessariamente ser alcoólicos. O postulado da herança dissimilar permitia ampliar indefinidamente o número de patologias mentais hereditárias. (p. 525)

Deste modo, especialmente a introdução do termo degenerescência, que Morel criou para descrever um campo intergeracional mórbido da alienação, alterou as formas de se conceber a causa das patologias mentais, assim como seu tratamento. Distinguindo “causa disposicional” de “causas ocasionais”, pode também distinguir “degenerescência hereditária mórbida” de “degeneração hereditária ordinária”. Enquanto a degeneração hereditária ordinária se dava em função da descendência de transformações que poderiam ser revertidas quando alteradas as condições ambientais, a degenerescência hereditária mórbida seria irreversível, constituindo a modalidade mais importante e grave das doenças psiquiátricas. Nas considerações preliminares de seu tratado, definiu a degenerescência hereditária mórbida como um afastamento do tipo ideal da humanidade, causador da interrupção de seu desenvolvimento físico e mental. Incurável, cabia ao alienista atuar de maneira preventiva mais do que curativa. Noção que repercutiu em Freud até seu célebre questionamento de 1937.

Se o leitor antevê algum tipo de afinidade com Freud, leve em conta que, curiosamente, a teoria da hereditariedade-degenerescência de Morel (1857) manifestava um tipo de astúcia conservacionista da natureza, pois, a eliminação de uma linhagem resultava num efeito seletivo e purificador da criação. Segundo ele,

a esterilidade é o fenômeno patológico, muito feliz mesmo, que completa a série de suas transformações degenerativas que seguem uma causa cujos efeitos nada evitou, nem do ponto de vista da higiene moral, nem do ponto de vista da higiene física5. (p. 13)

Como diz Pereira (2008), “tratar-se-ia, portanto, de uma forma encontrada pela natureza para eliminar os vícios desenvolvidos e acumulados por uma geração” (p. 492). Ponto de vista que pressupõe a harmonia da natureza e a unidade da espécie criada. Deste modo, Morel distinguiu o indivíduo, que degenera e se torna estéril, de sua espécie que se conserva e tem sua integridade preservada pela extinção da linhagem degenerada. Adiante veremos que Freud, apesar de manter a noção de unidade/totalidade na origem, se distinguiu de Morel ao reconhecer que a degeneração se estende às espécies e à civilização.

Voltando a Morel, a degenerescência seria assim uma ocorrência a ser valorizada em sua função higienista, mas também poderia ser evitada pela ciência médica. Com este intuito, Morel (1857) sustentou que o recolhimento a uma instituição hospitalar, privando o paciente de liberdade, seria fundamental para impedir que constituísse num “ponto de partida para posteriores degenerações”6 (p. 13). Mais tarde, esclareceu que “dir-se-ia que se estabelece uma espécie de compensação entre as diversas causas da loucura, o que significa que se o nível dos loucos sobe em alguns aspectos, cai em outros”7 (Morel, 1860, p. 109), recusando a possibilidade de uma degeneração geral da civilização. Para ele, o equilíbrio seria possível desde que pudesse prevenir ou impedir a procriação de alienados, evitando que, predispostos, dessem sequência à cadeia degenerativa de transmissão hereditária.

Nesse caso, é importante destacar que, longe de sustentar o ponto de vista de uma degeneração inexorável e irreversível da civilização, Morel admitia a possibilidade de uma profilática educação moral das massas. Em Naissance de la clinique, Foucault (1963/1975) esclarece que, na passagem do século XVIII ao XIX, a medicina se dedicou mais à normalidade do que à saúde. Assumindo uma postura normativa, ela se encarregou de definir o que seria o “homem modelo”8 (p. 35). Exercendo grande influência, continuou Foucault, “ sobretudo nas ciências humanas”9 (p. 36), oferecendo a elas, e às demais, o princípio do normal e do patológico.

A influência de Morel se estendeu a discípulos que, no entanto, reviram suas teses, como Valentin Magnan (1836-1916). Este, já sob influência do evolucionismo, revisou tanto sua teoria da degenerescência quanto da hereditariedade, prestigiando a transmissão da diferença em detrimento da semelhança de caracteres. Distanciando-se do fixismo de Morel deu um sentido novo à tese da herança dos caracteres adquiridos. No entanto, como disse Coffin (2018), “a hereditariedade limita o destino do paciente e, portanto, determina sua doença”10 (p. 137), cuja força ecoou em Freud.

Na construção deste sentido novo, em Considérations générales sur la folie des héréditaires ou dégénérés (1887), Magnan aderiu ao associacionismo, ao admitir, apoiado em Hughlings Jackson (1835-1911), que o cérebro evoluiu se subdividindo em vários sistemas hierárquicos, que vão do simples ao complexo, do rígido ao lábil, do automático ao voluntário, postos em comunicação por fibras de associação. Também partidário do localizacionismo cerebral, postulou para cada região uma competência precisa que permitiria seu funcionamento adequado. Consideração que trouxe consigo uma concepção de degeneração não mais como desvio ou afastamento de um tipo ideal, mas enquanto dissolução da hierarquia dos sistemas neurais que passariam a funcionar em sentido inverso ao indicado pela evolução. Como diz Changeux (2008), “a dissolução causada por uma lesão ou pela doença procede dos centros mais elevados para os mais resistentes, menos complexos, mais automáticos” (p. 181).

Foi, pela primeira vez, em Recherches sur les centres nerveux. Pathologie et physiologie pathologique (1876), que Magnan considerou que o sistema nervoso teria adquirido com o tempo órgãos e funções hierárquicas, de modo que a degeneração corresponderia a uma subversão de hierarquia entre as funções superiores e as inferiores, ou seja, uma descoordenação dos centros cerebrais que cederia lugar e primado às funções primitivas. Sendo assim, tanto a ocorrência como a transmissão hereditária de uma alteração desta ordem corresponderiam a um movimento contra evolutivo, tornando o alienado inapto para a sobrevivência. Um tipo de sobrevivência e coexistência de centros que inspirou Freud na concepção estrutural de seu aparelho psíquico.

Além disso, vale levar em conta que, a partir de 1882, Magnan escreveu vários artigos em coautoria com Charcot, especialmente sobre perversões sexuais. Interpretaram os comportamentos sexuais anormais, por exemplo, a homossexualidade ou inversão sexual, como degeneração e seus praticantes como degenerados, no interior de um movimento evolutivo que, em condições normais, seria dirigido à procriação. Criaram a especialidade dedicada à patologia sexual, antecipando Freud, conferindo à sexualidade um lugar central e privilegiado na produção de patologias mentais. Mas foi em Des anomalies, des aberrations et des perversions sexuelles (1885), que Magnan incluiu a inversão sexual na condição de interrupção de um movimento evolutivo que, também para ele, teria a esterilidade como consequência. Ela foi caracterizada como inversão do sentido evolutivo genital, que Freud (1905, 1938) mais tarde nomeou curso ordenador da sexualidade, no qual também identificou a homossexualidade como inversão, portanto apenas suscetível de reeducação e não de regeneração, em face da irreversibilidade da evolução.

Depois dele, Paul-Maurice Legrain (1860-1939), em De la dégénérescence de l’espèce humaine, sa définition, ses origines (1892), também reviu e alterou seu sentido, ao deixar de considerar a degeneração como um fenômeno de desvio de um tipo ideal do passado. Juntos, deslocaram a perfeição da natureza/criação para outro tempo e lugar que não sua aurora gloriosa, mas seu futuro incerto. Para eles, o degenerado se apresentava como um acidente em um mundo em progresso explicado pelo evolucionismo da época, pelo associacionismo e pelo positivismo. Mundo este que, no entanto, era também para eles causa de degeneração. Como disse Legrain (1892), uma patologia mental fazia parte “d’un mouvement de progression en arrière” (p. 5), pois não consistia num desvio de origem, mas de finalidade.

Sendo este, em linhas gerais, o ambiente teórico que Freud encontrou em seu estágio com Charcot, passo à análise de algumas de suas obras nas quais se posicionou em relação às suas teorias da hereditariedade e da degeneração, ao mesmo tempo em que concebeu a sua própria.

Aos cuidados de Freud

Os argumentos que serão apresentados foram encorajados pela observação de Hochmann (2018) de que, “na verdade, as relações entre psicanálise e hereditariedade mórbida permanecem ambíguas, mesmo sob a pena de Freud”11 (p. 201). Uma observação que se justifica mesmo levando em conta que Freud foi um dentre aqueles que, desde a publicação dos tratados de Morel, não se cansaram de revisar a etiologia, as classificações e as terapias destinadas à alienação. Como eles, Freud começou por questionar a hereditariedade, especialmente quanto à importância causal que lhe atribuía Charcot. Questionamentos que trouxeram uma compreensão nova sobre a alienação que, no entanto, como veremos, preservaram uma característica própria das ciências da vida que, como diz Canguilhem (1977/2000), consiste em “uma disciplina que não desligou do seu passado”12 (p. 122).

Talvez seja mais correto reconhecer desde já que Freud, além de ter ressignificado o ponto de vista de Charcot e o de Morel, tenha também produzido uma reversão do sentido histórico que ele indicava. O que teve início em obras como o verbete “Histeria” (1888) e o obituário “Charcot” (1893), mas de maneira mais contundente, no artigo “A hereditariedade e a etiologia das neuroses” (1896). Continuou em “Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses” (1905-1906), “Algumas idéias sobre desenvolvimento e regressão-etiologia” (Conferência XXII, 1917), “Os caminhos da formação dos sintomas” (Conferência XXIII, 1917b), além de “Ansiedade e vida instintual” (Conferência XXXII, 1933). Lembrando que se trata de um recorte estratégico de obras que expõem suas críticas e formulações, mas sobretudo, suas hesitações e suas convicções teóricas que tenho a pretensão de reunir sob um fio condutor.

Dois anos depois de estagiar sob orientação de J. M. Charcot (1825-1893), autor de Leçons sur les maladies du système nerveux (1872-1887), Freud redigiu o verbete “Histeria” seguindo de maneira prudente os ensinamentos recebidos, mas já manifestando independência. No entanto, seguindo os códigos sociais da comunidade médica, como o de não confrontar diretamente os mestres, se posicionou favorável à noção de grande hystérie de Charcot e Paul Richer.

Tratava-se de um type crônico de quatro fases regulares; epileptoide; grandes movimentos; atitudes passionais e delírio. Desencadeada após um traumatismo sofrido por um paciente predisposto, era explicada por Charcot pelas noções de hereditariedade e de famille névropathique. Um quadro sintomático extremamente abrangente, que incluía ataques convulsivos, zonas histerógenas, distúrbios da sensibilidade e da atividade sensorial, paralisias e contraturas. Segundo Charcot, ocorrências sem lesões orgânicas, cuja terapêutica se dava por meio da sugestão hipnótica.

Refletindo sobre sua etiologia, Freud (1888/1969) admitiu que ela “deve ser buscada inteiramente na hereditariedade: os histéricos sempre têm uma disposição hereditária para perturbações da atividade nervosa” (p. 86), sendo frequentemente membro de uma família neuropática, condição que poderia ser constatada empiricamente. Deste modo, qualquer outro fator seria considerado secundário, pois, segundo Charcot, seriam meros agents provocateurs, responsáveis por apenas desencadear sintomas naqueles que já possuíssem alguma disposição. Entre tais agentes, o principal deles era o trauma acompanhado de afetos intensos.

Apesar de etiologicamente secundarizados por Charcot, Freud resgatou a importância dos agentes provocadores, considerando que sem eles a disposição hereditária talvez não fosse suficiente para a eclosão da histeria. Deste modo, fatores como intoxicação, alcoolismo, fortes emoções, acidentes ferroviários, a vida sexual, entre outros, seriam responsáveis, mais do que pela eclosão, pelo desenvolvimento da disposição que, sem eles, talvez se mantivesse inativa.

Mesmo assim, Freud (1888/1969) não deixou de considerar a histeria como uma patologia disposicional que, como disse, “em numerosos casos . . . é, por certo, simplesmente sintoma de profunda degeneração do sistema nervoso, que se manifesta em perversão moral permanente” (p. 88). Em todo caso, a histeria exigia tratamento. Quanto a isto, Freud reconheceu que se pode “instituir medidas profiláticas” (p. 90), além de recomendar “remover o paciente de suas condições habituais e isolá-lo do círculo em que ocorreu o ataque” (p. 91). Recomendou a internação em casas de saúde, visando, além do isolamento de familiares, a possibilidade de manter o paciente sob influência do médico, concedendo importância à sugestão e, como concebeu mais tarde, à transferência.

Ao final do verbete, Freud admitiu que as causas da histeria se situariam “na vida ideativa inconsciente” (p. 93) do paciente13, de modo que o acesso à ela pela hipnose possibilitava a investigação de sua história, assim como uma intervenção terapêutica. Um tipo de investigação em acordo com o ideário da psiquiatria positivista do século XIX, que era o de tomar o paciente na condição de objeto de investigação, do qual se extrai o conhecimento possibilitador da intervenção. Para Freud, por sua vez, a investigação possibilitava também a identificação do trauma que teria fundado uma disposição no paciente. Neste momento, provavelmente às voltas com a teoria da sedução, visava encontrar, como relatado mais tarde no caso Emma (1895), um trauma sexual tornado disposicional na infância da paciente ressignificado na adolescência.

Anos depois, Freud (1893/1969) redigiu o obituário Charcot . Depois de um início laudatório, retomou a questão da etiologia da histeria com maior distanciamento de seu mestre. Lembrou que ele considerava “a hereditariedade como causa única” (p. 30), o que implicava que “consequentemente, a histeria seria uma forma de degeneração, [de] um membro da famille névropathique”“ (p. 30). De fato, denunciou mais uma vez que “Charcot superestimou a hereditariedade como agente causativo . . . não deixou espaço algum para a aquisição da doença nervosa” (p. 31)14. Deste modo, para qualquer fator além dela, não restaria senão a condição secundária de agente provocador. Novamente com objetivo de torná-lo relevante, Freud pôs em questão o estatuto da disposição hereditariedade, denunciando seu caráter fourre-tout, a condição de petição de princípio que possibilitava sua extensão etiológica indiscriminada a todo tipo de patologia psíquica ou física.

Por sua vez, Freud recomendou a investigação do que chamou de causas específicas da histeria, da neurastenia e da neurose de angústia e obsessiva. Para ele, seriam causas relacionadas à vida sexual do paciente, atual ou passada. Como se vê, a vida sexual, antes inserida entres os agentes provocadores, passou a ganhar destaque como causa específica. De posse dela, distinguiu as neuroses atuais das neuroses de defesa. Identificou o coito interrompido como causa da neurose de angústia e a masturbação como causa da neurastenia. Desta forma, relativizou mais uma vez o estatuto causal da hereditariedade considerando que ela apenas poderia tornar o paciente sensível à contingência de sua vida sexual. Portanto, deixando de ser um destino, ela seria insuficiente para determinar, por si só, o desenvolvimento da histeria sem a ocorrência de uma causa específica.

Três anos mais tarde, em A hereditariedade e a etiologia das neuroses, dirigindo-se mais uma vez a Charcot, Freud reapresentou suas objeções à etiologia das neuroses, para em seguida apresentar a sua própria. Reiterou que Charcot considerava a hereditariedade a causa verdadeira e indispensável das afecções nervosas, cabendo às demais causas a condição de agentes provocadores. Reiterou também a frequência exagerada com que certas afecções eram explicadas pela presença de disposições hereditárias. Criticou mais uma vez a noção de família neuropática que, como disse, acabava por esconder uma gradação na medida em que opunha radicalmente as famílias saudáveis às degeneradas. Por fim, lembrou que distúrbios nervosos ocorrem igualmente em pessoas sadias, membros de famílias sadias. Criticou a distinção de Morel entre hereditariedade similar e dissimilar, pois, se a primeira faz algum sentido, por sua coerência interna, a segunda seria insustentável, pois é justamente nesta modalidade que a classificação das patologias fracassa.

A importância desta crítica é que ela mostra que, na verdade, ambas fracassam na medida em que deixam de explicar a “escolha da neurose”. Sem ser confundida com uma opção consciente, uma tal escolha consiste na forma particular pela qual um sintoma apresenta ou representa uma patologia. Quando pensado em analogia com a fala, o sintoma se apresenta como uma significação e se sujeita à interpretação. Neste caso, vê-se a novidade introduzida por Freud ao se dirigir ao paciente e ao processo de produção de sentidos que este instaura entre patologia e sintoma.

Nesta condição, um sintoma não poderia ser determinado por uma disposição hereditária que lhe imprimiria uma gramática rígida. Para Freud (1896/1969), seria outro o fator a realizar esta tarefa, chamou-o desta vez “etiologia específica” (p. 145), sem a qual, continuou, “a hereditariedade nada poderia ter feito” (p. 141). Para ele, a negligência em relação à etiologia específica decorria do deslumbramento da comunidade médica com a noção de disposição hereditária.

Dito isto, Freud apresentou os resultados de sua investigação que consistia na identificação de três classes etiológicas: precondições, causas concorrentes ou auxiliares e, por fim, causas específicas. Argumentou que, nas grandes neuroses, a precondição continua a ser “poderosa em todos os casos e até indispensável na maioria deles” (p. 146), ou seja, dispensável em pelo menos alguns casos, portanto, nem tão poderosa. Além disso, continuou, “não poderia prescindir da colaboração das causas específicas” (p. 146). Sem estas, continuou, as precondições “não produzem nenhum efeito patológico manifesto” (p. 147). Contudo, prudente, admitiu que elas, apenas em função de sua intensidade, funcionariam como dínamo no desenvolvimento da histeria.

Mas até mesmo o fator quantitativo das precondições foi por ele relativizado, ao refletir sobre a ocorrência de todas as combinações entre uma precondição forte ou fraca e uma causa específica também forte ou fraca. Ora, uma poderosa causa específica torna irrelevante a precondição, seja ela forte ou fraca, pois uma poderosa causa específica não só favorece, mas fortalece até mesmo uma precondição fraca. Em suma, sem recusar completamente a precondição, Freud induziu o leitor a pensar que tudo, ou quase tudo, o que um histérico precisou para adoecer é de uma causa específica forte.

Mesmo quanto às suas próprias classes etiológicas, Freud (1896/1969) desvalorizou as que chamou de causas concorrentes ou auxiliares qualificando-as como banais, uma vez que intoxicações, esgotamento físico, acidentes traumáticos, esforço intelectual, seriam incapazes de influenciar a escolha da neurose. Considerando-as irrelevantes em relação à causa específica, assumiu a responsabilidade de melhor defini-la. Desconhecida ou simplesmente negligenciada por muitos médicos, a causa específica poderia ser facilmente encontrada, disse ele mais uma vez, na “vida sexual do sujeito” (p. 148), contemporânea ou passada.

Desta forma, estabeleceu relações da vida sexual do paciente, como disse, “em todos os casos de neurose” (p. 149). Dito isso, passou a estabelecer relações diretas, que alegou ter descoberto clinicamente, entre neurastenia e masturbação. Já a neurose de angústia seria consequência da abstinência sexual e do coito interrompido. Como se vê, tanto a neurastenia como a neurose de angústia poderiam “prescindir da cooperação de uma disposição hereditária” (p. 150), concluiu. Contudo, sem deixar de admitir que “quando a hereditariedade está presente, o desenvolvimento da neurose é afetado por sua poderosa influência” (p. 150). O mesmo valendo para a histeria e a neurose obsessiva.

Valendo-se do novo método da psicanálise que atribuiu pela primeira vez a Joseph Breuer, disse ter encontrado em todos os casos “a ação de um agente que deve ser aceito como causa específica da histeria” (p. 151). Nos estertores de sua teoria da sedução, tratava-se ainda de uma experiência precoce e passiva da vida sexual. Mais precisamente, tratava-se de um abuso sexual cometido por um adulto sobre uma criança em idade entre oito e dez anos. Importante lembrar que a partir dessa idade já não operaria como causa específica da histeria. Assim, o trauma da sedução ganhou a condição de um fator disposicional na medida em que deixa, como disse, “uma marca indelével na história clínica” (p. 152) do paciente. A consequência foi que enquanto etiologia específica passou a ter a mesma abrangência explicativa, o mesmo caráter fourre-tout da disposição hereditária que denunciou em Charcot.

No entanto, depois de ter renunciado à sua “Neurótica” (cartas a Fliess de 02/05 e 21/09/ 1897), em Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses, Freud (1905/1969) anunciou com todas as letras o que chamou de “disposição sexual constitucional da criança” (p. 263), desta vez justificada por uma novidade clínica. Ao perseguir os rastros dos traumas psíquicos, admitiu que encontrava sempre experiências traumáticas da infância do paciente relacionadas à vida sexual. Contudo, reconheceu que não havia distinguido perfeitamente, como disse, “as ilusões de memória dos histéricos sobre sua infância e os vestígios de eventos reais” (p. 260).

Admitiu ter finalmente compreendido que uma lembrança de sedução pode servir ao rechaço de algo distinto dela na vida pregressa do paciente. Neste caso, o alegado trauma rememorado, de origem externa, encobriria sua atividade interna, à qual o paciente respondeu com repressão e recalque, interrompendo sua atividade sexual infantil. Advertido, Freud transferiu ao fantasiar a mesma dignidade causal na aquisição da doença nervosa antes atribuída à sedução, o que não só corrigiu os equívocos anteriores, mas trouxe consigo igual, ou maior, poder de explicação acerca da escolha da neurose, dali em diante justificada na sexualidade infantil como causa específica disposicional15.

Sob esta nova ótica, o relato da sedução pelo paciente passou a ser entendido como fantasioso e encobridor, possivelmente construído a partir da adolescência, não sobre eventos passivos de sedução, mas sobre as atividades sexuais da infância, o que implicou em retroceder na atribuição da sexualidade à uma fase mais precoce da vida do paciente e, portanto, ainda mais universalizável. Com esse deslocamento, Freud (1905/1969) substituiu os “traumas sexuais infantis”, como ele mesmo disse, pelo “infantilismo da sexualidade” (p. 261).

O caráter pretérito e disposicional das causas específicas ultrapassou o aspecto ontogenético em direção ao filogenético, ao considerar a fantasia arcaica, de ocorrência ancestral. Nesta condição, segundo Hochmann (2018), Freud teria “desenvolve assim uma nova versão do pecado original”16 (p. 213), ao postular, ao modo de um mito de origem, um evento excepcional de ocorrência histórica, transmitido aos descendentes que o recapitulam em fantasia. Em suma, a tradicional disposição hereditária foi substituída pelo que Freud (1905/1969) nomeou “constituição sexual” (p. 262), relegando a experiência traumática a uma condição secundária de causa concorrente ou auxiliar. Como se pode ver, o resultado da identificação de uma “disposição sexual constitucional da criança” (p. 263) foi a imputação de um caráter patológico e degenerativo à sexualidade humana.

Esta imputação ficou mais evidente na Conferência XXII, intitulada “Algumas ideias sobre desenvolvimento e regressão-etiologia”. Freud começou por refletir sobre a noção evolutiva da sexualidade rumo à uma finalidade reprodutiva17. No entanto, um percurso que, segundo ele, tem como vicissitudes a inibição, a fixação e a regressão. Explicou que no curso evolutivo da sexualidade humana alguns estádios ficam retidos, enquanto outros avançam até seu objetivo final reprodutivo. Neste caso, a fixação da libido consistiria no “retardamento de uma tendência parcial num estádio anterior” (Freud, 1917/1969, p. 344). Além disso, continuou, mesmo “as partes que prosseguiram adiante podem também, com facilidade, retornar retrocessivamente a um desses estádios precedentes” (p. 344).

Se antecipando, dirigiu a si mesmo as críticas que, no passado, dirigiu a Charcot, se perguntando se para entendermos os fenômenos da fixação e da regressão, “deveríamos considerar a natureza da frustração, ou a característica peculiar daquelas pessoas afetadas pela frustração?” (p. 348). De fato, perguntou se seria possível a ocorrência de uma regressão ao ponto de fixação sem a ocorrência de uma frustração da libido. Em resposta, emulando Charcot, indicou que sim, argumentando que um ponto de fixação “exerce a mais poderosa influência sobre a vida mental” (p. 346).

Reformulando-a, Freud (1917/1969) insistiu na pergunta, se seriam “as neuroses doenças exógenas ou endógenas?” (p. 350). Se elas seriam “o resultado inevitável de determinada constituição, ou são produtos de determinadas experiências de vida prejudiciais (traumáticas). Mais particularmente, são elas causadas pela fixação da libido (e pelos outros aspectos da constituição sexual) ou pela pressão da frustração?” (p. 350). Em resposta, novamente reconheceu “uma preponderância na importância dos fatores predisponentes” (p. 351).

Para finalizar, retomando argumentos de Totem e tabu e Neurose de transferência: uma síntese, Freud (1917/1969) reconheceu “a probabilidade de os impedimentos internos terem surgido de obstáculos externos reais durante os períodos pré-históricos da evolução do homem” (p. 353). Deste modo, as linhas de desenvolvimento do Eu e da libido corresponderiam a heranças de rupturas com um estádio abandonado, ou seja, uma situação que hoje, “contudo, é vocativa” (1917/1969, p. 358), disse ele. A situação que hoje evoca seria justamente aquela em que a libido humana, se satisfazendo consigo mesma, não precisava de objeto externo.

Foi na Conferência XXIII, intitulada “Os caminhos da formação dos sintomas”, que Freud mais uma vez considerou que todos somos neuróticos, contrariando o interesse da psiquiatria clássica que era o de estabelecer a oposição binária entre o louco e o não louco. Uma generalização sustentada no fato de que as condições de instauração da neurose estão igualmente presentes em todos os homens, reafirmando a presença da fixação e da regressão como seus mecanismos constitutivos. Evolucionista à sua maneira, Freud (1917/1969) lembrou ainda que tais condições, “também elas, em alguma ocasião, foram adquiridas” (p. 364), pois, continuou, “sem essa aquisição, não haveria hereditariedade” (p. 364).

Explicando mais uma vez os caminhos da formação de sintomas, retomou o argumento de que diante das frustrações impostas pela realidade a libido insatisfeita se constrange a tomar o caminho da regressão visando encontrar (na verdade, reencontrar) satisfação em um estádio abandonado. Um movimento que, disse ele, apenas “se torna possível pela presença de fixações” (p. 363) que exercem pressão de atração constante. Movimento, continuou Freud (1917/1969), que se dá na direção das “atividades e experiências da sexualidade infantil, as tendências parciais abandonadas, nos objetos da infância que foram abandonados” (p. 363) e que são reivindicadas por uma “disposição inata” (p. 363), concluiu. Em conjunto, mas não equivalentes, com as frustrações da libido, temos o que Freud chamou de “série complementar” (p. 365) na etiologia das neuroses.

Neste caso, a regressão da libido ocorre, como disse, desde “que haja ali algo que exerça sobre ela uma atração” (p. 366). Uma atração exercida por um ponto em que tenha ocorrido, continuou, uma “retenção de determinada quantidade de energia libidinal” (p. 366). Seu poder de atração deriva de um tempo em que narcísica e autorreferente, a “libido não se privava de satisfação” (p. 367). Tempo em que os homens onipotentes “eram felizes” (p. 367), concluiu. Felizes e perfeitos em sua existência embrionária e placentária, ou ainda, em sua existência material animatista, interrompidas por eventos como o parto e era glacial, respectivamente. Eventos perturbadores que teriam ensejado um movimento reativo, como disse Freud (1917/1969), rumo “a um tipo de auto erotismo difuso, do tipo que proporcionava o instinto sexual nas primeiras satisfações” (p. 368). Deste modo, fica evidente que as noções de hereditariedade e de degeneração não foram apenas ressignificadas, mas que, realizando transformações, retificações e substituições, produziu linhas de permanência e de descontinuidade dando lugar às noções de fixação e regressão, proporcionaram um novo sentido à démarche civilizatória.

Por fim, na Conferência XXXII, intitulada “Ansiedade e vida instintual”, sua teoria da fixação-regressão ganhou reforço com a tese da sobrevivência e coexistência dos estádios do curso ordenador da sexualidade, o que se estende às instâncias do aparelho psíquico. Um tipo de arranjo, cujo conflito interno precipita o futuro num passado conservado vivo e operante, projetando a civilização numa economia libidinal produtora de mal estar crescente. Deste modo, diferentemente da hereditariedade-degeneração, por exemplo de Morel, a fixação-regressão passou a anunciar uma degeneração civilizatória, uma progressiva doença nervosa moderna que não deriva de uma desordem estrutural ou desvio evolutivo, mas da expectativa de um “progresso de retorno”, como disse Legrain (1892), “un mouvement de progression en arrière”, em direção à uma existência total perdida nunca alcançada.

Considerações finais

Como se sabe, Freud também ancorou esta economia libidinal em uma noção de natureza emprestada da termodinâmica. Como disse Foucault (1972/2004), ancorada numa noção não criacionista de degradação espontânea, no peso próprio da matéria viva. Assim, se entende seu argumento em favor da volta ao inorgânico (1920) como metáfora fisicalista do regresso estado autoerótico fixado, mas perdido. O que justificou seu argumento (1920, 1930) de que, sem abertura ao exterior, tudo o que vive morre por razões internas, uma vez que “os processos vitais do indivíduo levam, por razões internas, a uma abolição das tensões químicas, isto é, à morte” (Freud, 1920/1969, p. 66).

Isto fica um pouco mais compreensível se levarmos em conta que Freud foi partidário da origem inorgânica da vida e dos organismos vivos. Partidário da emergência inesperada e perturbadora da vida que teria surgido num movimento reativo que procurou, degradando o estímulo sofrido, restabelecer o estádio abandonado. Deste ponto de vista, Freud (1920/1969) enfatizou, também na condição de petição de princípio, aquele que seria o primeiro evento excepcional que teria ensejado a primeira fixação, quando a vida teve início e seu destino mórbido foi sentenciado:

Os instintos da vida foram, em determinada ocasião, evocados na matéria inanimada pela ação de uma força cuja natureza não podemos formar concepção. Pode ter sido um processo de tipo semelhante ao que posteriormente provocou o desenvolvimento da consciência num estado particular da matéria viva. A tensão que então surgiu no que até aí fora uma substância inanimada se esforçou para neutralizar-se e, desta maneira, surgiu o primeiro instinto; o instinto de retornar ao estado inanimado. (p. 49)

Nesta obra, também evocou a tese da fixação ao estado pretérito abandonado e o retorno a ele, declarando que “o objetivo da vida não poderia ser o de alcançar um estado de coisas que jamais tivesse sido atingido” (p. 49), onde se vê como marca d’água a tese schopenhaueriana (1819) do privilégio do primeiro ocupante.

Por fim, pode-se dizer que sua filosofia psicanalítica da história não apenas conservou em sua essência aspectos importantes das teorias da hereditariedade-degeneração, mas que lhes acrescentou, por meio de conceitos fundamentais como fixação-regressão, uma finalidade desadaptativa, involutiva, regressiva, numa palavra, declinista, dirimindo toda ambiguidade suspeitada por Hochmann (2018) acerca das relações entre psicanálise e hereditariedade mórbida. De modo que a degeneração, a decadência e o mal estar seriam a manifestação da própria economia da vida levada a seu objetivo.

É verdade que se trata de um ponto de vista que, segundo Kant (1798), consistiria numa irracionalidade por admitir a regressão, que chamou de terrorismo moral, ou a detença, que chamou de abderitismo. No entanto, o declinismo de Freud não consiste num paralogismo ou num desvario, pois não é composto de argumentos destituídos de sentido, nem consiste numa hipótese metafísica delirante. É antes um recurso operatório e regulativo, cuja função heurística de compreensão da condição humana confere-lhe unidade e extensão, restando como uma coerente filosofia psicanalítica da história.

Referências

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  • Morel, B. A. (1860). Traité des maladies mentales. Paris: J. Masson. (Trabalho original publicado em 1860)
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  • Schopenhauer, A. (2016). O mundo como vontade e como representação (Tomo I). Curitiba, PR: Editora da UFPR. (Trabalho original publicado em 1819)
  • 1
    No original: “lésions phisiques” e a “disposition originaire”.
  • 2
    A tempo, informo que depois de Pinel, e antes mesmo de Morel, quem atribuiu um lugar de destaque à disposição hereditária foi Esquirol, especialmente em Des maladies mentales considérées sous les rapports médical, hygiénique et médico-legal (1838). Nesta obra, Esquirol (1838/1858) declarou que as causas são numerosas, que podem ser físicas ou morais, primitivas ou secundárias, mas sobretudo, “prédisposantes ou excitantes” (p. 24).
  • 3
    No original: “soumise à l’ordonnance idéale de la nosologie”.
  • 4
    No original: “déviations morbides du type normal de l’humanité”.
  • 5
    No original: “la stérilité est le phénomène pathologique, très-heureux de reste, qui termine la série de ses transformations dégénératives qui succèdent à une cause dont rien n’a conjuré les effets, ni au point de vue de l’hygiène morale, ni au point de vue de l’hygiène physique.
  • 6
    No original: “point de départ de dégénérescences ultérieures”.
  • 7
    No original: “on dirait qu’il s’établit entre les diverses causes de la folie une sorte de compensation qui fait que si le niveau des aliénés monte par certains de ses côtés, il s’abaisse par d’autres”.
  • 8
    No original: “l’homme modèle”.
  • 9
    No original: “surtout dans les sciences de l’homme”.
  • 10
    No original: “l’hérédité borde le destin du malade et determine donc sa maladie”.
  • 11
    No original: “en fait les rapports entre la psychanalyse et l’hérédité morbide restent ambigus, jusque sous la plume de Freud”.
  • 12
    No original: “une discipline qui ne se coupait pas de son passé”.
  • 13
    Neste caso, assumindo a tese de Charcot relativa ao fato de que os sintomas histéricos prescindem de lesões do cérebro. Tese justificada, em meados do século XIX, pelas descobertas, em trabalho conjunto com Charcot, do fisiologista Charles Brown-Séquard (1817-1894), que, a partir de 1870, demonstrou a impossibilidade anátomo-fisiológica da paralisia histérica. Seus textos foram publicados em Archives de physiologie normale et pathologique, por MM. Brown-Séquard, Charcot, Vulpian, Éditeur Masson (Paris), 1868-1898.
  • 14
    Um ano antes, em Extrato das notas de rodapé de Freud à sua tradução das conferências das terças-feiras de Charcot (1892/1969), Freud já havia apresentado argumento semelhante: “Charcot tinha afirmado que a hereditariedade era a “causa verdadeira” do ataque histérico de um paciente, de sua vertigem e de sua agorafobia. Eu me animo a apontar uma contradição nesse ponto. Com maior frequência, a causa da agorafobia, assim como de outras fobias, está não na hereditariedade, mas nas anormalidades da vida sexual. É até possível especificar a forma de mau uso da função sexual em questão. Esses distúrbios podem ser adquiridos, em qualquer grau de intensidade; naturalmente, havendo a mesma etiologia, ocorrem com maior intensidade em pessoas com disposição hereditária” (p. 181).
  • 15
    Embora este artigo se limite às influências francesas de Freud, é importante registrar que, no que diz respeito à aplicação da hipótese hereditária a assuntos de natureza sexual, tão importante quanto Magnan e Charcot para Freud, foi Richard von Krafft-Ebing. Um dos grandes herdeiros da obra de Morel nos países de língua alemã, cujas influências aparecem especialmente na obra Psychopathia sexualis (1886).
  • 16
    No original: “développe ainsi une nouvelle version du péché original”.
  • 17
    Entre a obra de 1905 e esta de 1917, podemos incluir artigos seminais como “História de uma neurose infantil (1914/1918) e “Um caso de paranoia que contraria a teoria psicanalítica da doença” (1915), nos quais colocou em discussão a noção de inércia psíquica como uma susceptibilidade à fixação, retomando o que já havia dito em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), um fator que reconheceu como desempenhando importante papel na vida de todos os homens indiscriminadamente. A esta dificuldade de conversão da energia psíquica (assim como da energia física), Freud (1914/1969) respondeu recorrendo ao termo entropia que, para ele, “se opõe à anulação do que já ocorrera” (p. 122). Já na obra de 1915, voltando ao tema da inércia psíquica, atribuiu a algumas neuroses o esforço, como disse, “para recuperar uma posição da libido que certa vez foi mantida e subsequentemente perdida” (Freud, 1915/1969, p. 279). Retomou assim a ideia de uma inércia que luta contra as tendências no sentido do progresso e da recuperação do paciente, algo que não é evitado nem mesmo pela instalação do sintoma neurótico. Seu ponto de partida, diz ele, “é a manifestação de vínculos muito antigos -vínculos difíceis de serem desfeitos- entre instintos e impressões e os objetos envolvidos nestas impressões” (p. 279). Como se vê, nestas obras se referiu à fixação, lhe atribuindo a capacidade de paralisar o desenvolvimento dos instintos em causa, mas não o de produzir sua regressão ao estádio fixado. A noção de inércia psíquica também foi tratada em obras como Inibição sintoma e ansiedade (1926), em Análise terminável e interminável (1937) e em Esboço de psicanálise (1938).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Dez 2022
  • Aceito
    02 Abr 2023
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