Resumo:
Este artigo analisou o processo de construção e execução de uma pesquisa acerca da gravidez na adolescência com jovens do ensino médio no cotidiano de uma escola pública estadual de Fortaleza-CE, a partir de um estudo qualitativo com base na pesquisa-intervenção. Por meio de um curso de extensão para estudantes secundaristas, desenvolveu-se uma pesquisa na escola em que as próprias jovens da escola pública foram copesquisadoras do tema gravidez na adolescência no cotidiano escolar. Utilizou-se as ferramentas metodológicas de diários de campo, questionário on-line e restituição. Os resultados mostraram que há diferenças nos papéis de mãe e pai na adolescência, dificuldades para a conclusão da vida escolar e prejuízos na inserção no mercado de trabalho, principalmente para as meninas. Portanto, a pesquisa possibilitou problematizar o lugar de representatividade das pautas de maternidade e paternidade fomentando espaços de escuta e dialogicidade na promoção da equidade com estudantes que experienciam a maternidade e paternidade.
Palavras-chave: gravidez na adolescência; maternidade; paternidade; escola; pesquisa-intervenção
Abstract:
This article aimed to analyze the process of constructing and conducting research on teenage pregnancy with high school students in the daily life of a public school in Fortaleza, Ceará, based on a qualitative study using the Intervention Research approach. By an extension course for high school students, a research project was developed in the school in which the public school students themselves were co-researchers on the topic of teenage pregnancy in the school environment. The methodological tools used were field journals, online questionnaires, and restitution. Results showed differences in the roles of the mother and father during adolescence, difficulties in completing education, and obstacles in entering the job market, especially for girls. Therefore, this research could question the representation of maternity and paternity issues, promoting spaces for listening and dialogue in the promotion of equity with students who experience parenthood.
Keywords: adolescent pregnancy; motherhood; fatherhood; school; research-intervention
Résumé :
Cet article a analysé la construction et réalisation d’une recherche avec de lycéens sur la grossesse adolescente dans la vie quotidienne d’une école publique de Fortaleza-CE, dès une étude qualitative de recherche-intervention. Avec un cours d’extension pour des élèves du secondaire, une recherche a été menée où les élèves de l’école publique étaient co-chercheurs sur la grossesse adolescente dans l’école. Des journaux de terrain, des questionnaires en ligne et des restitutions ont été utilisés. Les résultats ont montré des différences dans les rôles de mère et de père pendant l’adolescence, des difficultés à mener à terme leur scolarité et des préjudices dans leur insertion sur le marché du travail, surtout pour les filles. Donc, la recherche a permis de questionner la représentativité des enjeux de maternité et de paternité, en favorisant des espaces d’écoute et de dialogue pour promouvoir l’équité avec les étudiants qui vivent la maternité et la paternité.
Mots-clés : Grossesse adolescente; maternité; parentalité; école; recherche-intervention
Resumen:
Este artículo tuvo como objetivo analizar el proceso de construcción e implementación de una investigación con estudiantes de secundaria sobre el tema del embarazo adolescente en la vida cotidiana de una escuela pública de Fortaleza, Ceará (Brasil), basada en un estudio cualitativo de investigación-intervención. A partir de un curso de extensión, se desarrolló una investigación en la escuela donde las propias estudiantes de secundaria fueron coinvestigadoras sobre el tema del embarazo adolescente. Se utilizaron como herramientas metodológicas un cuestionario en línea, diario de campo y restitución. Los resultados mostraron diferencias en el papel de la madre y el padre durante la adolescencia, dificultades para completar la vida escolar y dificultades para entrar en el mercado laboral, especialmente para las chicas. Por lo tanto, esta investigación permitió problematizar el papel representacional de la maternidad y la paternidad, propiciando espacios de escucha y de diálogo para promover la equidad con los estudiantes que experimentan estos roles.
Palabras clave: embarazo adolescente; maternidad; paternidad; escuela; investigación-intervención
Introdução
Este artigo analisou o processo de construção e execução de uma pesquisa acerca da gravidez na adolescência com jovens do ensino médio no cotidiano de uma escola pública estadual de Fortaleza-CE, a partir de um estudo qualitativo com base na pesquisa-intervenção (Aguiar & Rocha, 2007 ; Miranda, El Khouri, Souza Filho, & Oliveira, 2017 ; Miranda, Oliveira, Souza Filho, & Sousa, 2018 ; Rocha & Aguiar, 2003 ) e na pesquisa ação participativa crítica (Torre, Stoudt, Manoff, & Fine, 2017 ). Este estudo é fruto da pesquisa intitulada “Educação, modos de subjetivação e formação de jovens pesquisadores da micropolítica do cotidiano escolar” 1 realizada por pesquisadores(as) de graduação e pós-graduação em Psicologia de uma universidade pública, que tratou de articular pesquisa e extensão, por meio do curso de extensão intitulado “Formação de jovens pesquisadores do cotidiano escolar”. Cadastrado e certificado pela Universidade Federal do Ceará (UFC), o curso foi realizado em uma escola pública, com a proposta de formar jovens pesquisadores(as) do próprio cotidiano escolar, cujos participantes eram secundaristas da escola lócus da pesquisa. Os estudantes participantes do curso deveriam eleger e pesquisar seus temas de interesse, realizando investigações empíricas com a comunidade escolar.
Discutimos neste artigo a gravidez na adolescência dentro do território escolar, tema escolhido e desenvolvido por um grupo de alunas, considerando como são produzidas práticas discursivas sobre experiências de maternidade e paternidade durante a vida escolar de jovens estudantes. Partimos da necessidade de desmontar uma lógica sexista de interpretação da temática e de romper com uma naturalização moralista das injustiças sociais que, muitas vezes, recaem sobre a perspectiva do lugar da adolescente gestante/mãe. Como aponta a investigação realizada pelas autoras Gaia, Menezes e Silva ( 2020 ), essa temática também deve compreender uma perspectiva crítica sobre o campo dos direitos sexuais e reprodutivos, que, em suas análises, pontuam uma fragilidade institucional das escolas e de políticas públicas para lidarem com esse tema de forma contextualizada e menos biologicista.
Segundo Zinet ( 2016 ), a gravidez na adolescência é um dos principais motivos pelo qual meninas param de estudar, de acordo com pesquisa realizada em 2016 do Ministério da Educação, Organização dos Estados Ibero-Americanos e Faculdade Latino-Americana de Ciências. De acordo com o referido estudo, enquanto 18,1% das meninas de 15 a 29 anos indicam a gravidez como principal motivo de abandonar os estudos, somente 1,3% dos meninos da mesma faixa etária indicam que interromperam os estudos pela mesma razão. Haja vista esses dados, pode-se considerar que a maternidade e a paternidade na adolescência contribuem para evasão escolar, porém não da mesma forma para indivíduos do gênero masculino e feminino.
Ainda em relação à evasão escolar, Brigagão e Gonçalves ( 2009 ) apontam que é difícil para as jovens meninas assumirem o lugar de “diferente”, “grávida” na sala de aula, e devido ao constrangimento, “optaram” por não frequentar a escola, abandonando-a. Questiona-se se realmente é uma opção não frequentar a escola, ou trata-se de uma ausência de opção devido à falta de acolhimento de sua nova posição de mãe-estudante no ambiente escolar ou devido a não ter com quem deixar o bebê após o nascimento. Outra questão importante a ser considerada diz respeito à insuficiência de creches, pois mesmo que a jovem mãe tenha interesse em dar seguimento aos estudos, se não tiver com quem deixar a criança, ela não consegue (Zinet, 2016 ).
Segundo dados do Ministério da Saúde ( 2020 ), no Brasil, nascem por ano mais de 434,5 mil bebês filhos de mães adolescentes. O referido país registra taxa de 68,4 nascimentos para cada mil adolescentes e jovens mulheres entre 15 e 19 anos, o que é considerado um índice elevado se comparado à taxa mundial de 46 nascimentos. De acordo com a pesquisa Nascer Brasil 2016 do Ministério da Saúde ( 2020 ), 66% das gestações em adolescentes não são planejadas e aproximadamente 75% das mães adolescentes estavam fora da escola, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2013.
Para aumentar a mobilização de crianças e adolescentes em torno da temática, o governo federal instituiu, por meio da Lei n. 13.798, de 3 de janeiro de 2019, a Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência, com o objetivo de disseminar informações sobre medidas preventivas e educativas que contribuam para a redução da incidência da gravidez na adolescência (Ministério da Saúde, 2019 ).
Como parte da ação da Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência, o governo brasileiro lançou a campanha de prevenção à gravidez na adolescência intitulada: “Tudo tem seu tempo: adolescência primeiro, gravidez depois” (Ministério da Saúde, 2020 ). A campanha é voltada para adolescentes, jovens, seus pais ou responsáveis e o objetivo é sensibilizar adolescentes e jovens sobre os riscos e consequências da gravidez na adolescência.
A despeito de muitas ações das políticas públicas que pensam a gravidez na adolescência sob a ótica do controle e de uma forma homogênea, faz-se necessário destacar a pluralidade de experiências de jovens ao serem mães e pais ainda nesse período de suas vidas. Esse fenômeno é permeado por diferentes marcadores sociais, tais como: gênero, raça, classe social, território, escolaridade e geração. Assim, a vivência da maternidade e da paternidade na adolescência é perpassada por vulnerabilidades interseccionais (Crenshaw, 2002 ), que faz desta um fenômeno heterogêneo, com experiências singulares de marginalizações a depender do espaço social ocupado por essa mãe e por esse pai.
Nas sociedades urbanas ocidentais, nas classes sociais média e alta, as motivações da gravidez na adolescência tendem para patologização, pois o projeto de maternidade/paternidade é adiado tendo em vista a valorização da capacitação profissional e acadêmica em busca de independência financeira (Orlandi & Toneli, 2008 ). Por outro lado, nas classes populares, o investimento em um projeto de maternidade e paternidade se torna muitas vezes a grande promessa de satisfação e futuro, tendo em vista a falta de perspectivas escolar ou profissional capazes de apresentar alternativas atraentes para descartar a opção pela maternidade nessa época da vida (Nunes, 2012 ).
As autoras Leite e Bezerra ( 2020 ), em uma análise interseccional, criticam as produções de estigma e discriminações que estruturalmente marcam o corpo da mulher no que tange à maternidade, ou mesmo ao “ideal de mãe” ( 2020 , p. 309) engendrado pelo patriarcado como o reconhecimento perverso de um lugar naturalizado da mulher subalterna e condicionada aos direitos sexuais e reprodutivos chancelados pelas normas sexistas. Não obstante, outras forças como matrizes morais, religiosas e conservadoras maximizam estereótipos e projeções dominantes sobre a vida da mulher que se torna mãe dentro dessa normativa, criando uma significação social de maternidade universal que invisibiliza as múltiplas experiências e experimentações de maternagem vivenciadas nos variados marcadores sociais da desigualdade.
Outros sentidos e marcadores são configurados quando há a intersecção entre a adolescência e o fenômeno da gravidez, sendo a escola uma instituição coprodutora e reprodutora desses significados, sobretudo porque espera-se, idealmente, pelo conjunto de normativas referentes ao direito educacional pautados na faixa etária, que essas experiências de maternidade e paternidade não ocorram em paralelo ao processo de escolarização (Gaia et al., 2020 ). A compreensão da adolescência enquanto uma fase do desenvolvimento é um emblema de imaginários que incidem nesse movimento, de acordo com Ponciano, Lima, Lima, Santos e Ferro ( 2019 ), uma vez que muitos são os significados atribuídos a esse fenômeno pautados em discursos tutelares que visam normatizar a adolescência como um único modo de ser, de tal forma que vivências que fujam a essas expectativas, nesse caso, a gravidez dita “precoce”, são atrelados a sentidos negativos (Menezes, Leite, Barbosa, & Adrião, 2012 ).
A escola é tradicionalmente vista como uma instituição balizada por objetivos normatizadores que atua em conformidade com as normas sociais hegemônicas (Gaia et al., 2020 ; Rohr & Schwengber, 2013 ), sendo a cisheteronormatividade uma das forças que compõem esse movimento. Essa perspectiva tutelar incide na delineação das formas de abordar questões que tangenciam o campo das sexualidades no âmbito escolar, sendo a gravidez e o planejamento familiar hegemonicamente manejado a partir de perspectivas moralizantes que identificam o adulto como o sujeito detentor de direitos reprodutivos e sexuais (Gaia et al., 2020 ).
Nesse sentido, alguns estudos apontam que pouco se é abordado sobre essa temática nas escolas e que, quando feita, a abordagem é manejada majoritariamente a partir de uma perspectiva biologizante, com foco no sistema reprodutivo e com vistas à prevenção, seja de infecções sexualmente transmissíveis (IST), seja de gravidez, não levando em consideração a complexidade de experiências sexuais, que não se resumem à procriação (Gaia et al., 2020 ; Menezes et al., 2012 ; Rohr & Schwengber, 2013 ).
Metodologia
Tipo de pesquisa
Operamos nessa experiência sob uma perspectiva de pesquisa qualitativa, por meio de uma pesquisa-intervenção (PI) aliada à pesquisa ação participativa crítica (CPAR) para apresentar um processo de pesquisa realizado por estudantes secundaristas em uma escola pública de ensino médio em Fortaleza-CE, que teve como dispositivo o curso de extensão anteriormente mencionado.
Chamamos de PI essa modalidade de pesquisa participativa que contrapõe uma suposta neutralidade do pesquisador inserido em campo, e a ruptura entre objeto e sujeito, promovendo uma relação em que intervenção e pesquisa estão imbuídas no mesmo processo de construção do conhecimento. Na PI, as análises coletivas são produzidas entre todos que se envolvem no processo, das quais são legitimadas na partilha das experiências com as instituições, grupos e sujeitos envolvidos (Aguiar; Rocha, 2007 ; Rocha; Aguiar, 2003 ).
Buscamos descentralizar do(a) pesquisador(a) a condição de intervenção sobre a realidade, de modo a construir uma pesquisa que seja política, implicada e que também esteja centrada na realidade da comunidade (Santos & Barone, 2007 ). A PI pretende desenvolver possibilidades de romper com modos de produzir pesquisa hegemônicos e baseados em uma neutralidade, em que o pesquisador já surge como sujeito que intervém sobre a realidade pesquisada (Kastrup, 2008 ; Lourau, 1993 ; Paulon, 2005 ).
Em nossas experiências anteriores com a PI, buscamos produzir análises partilhadas e deslocamentos na investigação de demandas e questões-problemas em torno do cotidiano escolar juntamente com professores e jovens estudantes (Miranda et al., 2017 , 2018 ). Nesta pesquisa, aliamos a PI com uma discussão sobre a radicalização do caráter participativo e a emergência da produção de saberes de grupos e subjetividades marginalizadas por meio da CPAR. Esta é também uma modalidade de pesquisa participativa centrada na construção e processualidade de pesquisas em que os interesses, desenho e desfecho sejam construídos e analisados com os(as) participantes, uma vez que estes passam a ser co-pesquisadores(as) (Torre et al., 2017 ; Miranda, Fine, & Torre, 2020 ). Com isso, o curso de extensão oferecido aos estudantes secundaristas e realizado no chão de sua escola, era uma forma de compartilhar conhecimentos, fomentando que secundaristas pudessem construir ferramentas de investigação analítica de seus próprios cotidianos. Ainda, o curso foi um agente de transformação na relação universidade-escola, como forma de descolonização do conhecimento.
A CPAR é um importante aporte teórico-metodológico, pois leva em consideração não apenas os saberes oriundos da academia, mas também os produzidos pelas vivências de todos que compõem a pesquisa enquanto princípios éticos e epistemológicos para a produção de saberes (Torre, 2014 ). Reconfigura-se as práticas de pesquisar SOBRE para um pesquisar COM, trazendo camadas invisibilizadas e marginalizadas para a possibilidade de produzir uma pesquisa. Assim, tensionamos a relação universidade-escola na formação de pesquisadores em psicologia conjuntamente com os(as) agentes escolares (estudantes e professores), reterritorializando os desafios e questões contemporâneas emergentes em territórios educacionais/escolares para atuação da “ psi ” no cotidiano escolar (Miranda et al., 2018 ).
Local de pesquisa
A escola pública que habitamos está localizada no centro da cidade e é caracterizada pelo ensino regular da base comum do ensino médio. Funciona nos três turnos e congrega aproximadamente 2 mil estudantes, além de 200 professores(as) efetivas e temporárias. A relação dos(as) pesquisadores(as) da universidade com a escola é fruto de uma parceria de coabitação de espaços de reivindicação de direitos sociais e, em um destes, o projeto do “Curso de Formação de Jovens Pesquisadores da Micropolítica do Cotidiano Escolar” 2 foi divulgado publicamente. Na presença da gestão escolar, foi firmada a adesão e o acolhimento da proposta para realização do curso na escola.
Participantes
Os agentes participantes dessa experiência foram cinco estudantes de graduação e seis de pós-graduação em Psicologia de uma universidade pública, além de 36 alunos(as) do 2° ano do ensino médio da escola. Esses(as) alunos(as) formaram duas turmas, uma no turno da manhã e outra no da tarde, e dividiram-se em subgrupos nas seguintes temáticas: gravidez na adolescência, pressão pré-vestibular, desgaste na vida acadêmica, racismo, saúde mental, preconceitos e aprendizagem.
Os grupos construíram as pesquisas desde a escolha do objeto à construção da justificativa e pergunta de partida, produção de instrumentos, escolha dos(as) respondentes e análise dos dados, em parceria com o grupo de pesquisadores universitários. Neste artigo nos referimos, especialmente, ao grupo de pesquisa intitulado “O hoje afetando o amanhã” que investigou a temática da gravidez na adolescência e foi composto por quatro meninas de 16 anos de idade.
Instrumentos de pesquisa
Ao longo do curso utilizamos diferentes instrumentos de pesquisa que orientaram o percurso formativo, sendo eles: o diário de campo, o formulário e a restituição à comunidade escolar. A seguir, teceremos uma breve discussão sobre cada um deles.
O diário de campo foi importante na produção de sentidos, pois nele registramos impressões e afetos (Oliveira, 2014 ) acerca dos momentos com os(as) estudantes secundaristas durante o curso. Ele foi ainda uma estratégia utilizada pelos grupos de estudantes secundaristas, espaço em que eram compartilhados pensamentos e sentimentos relacionados à temática escolhida, justificativa de pesquisa e construção de categorias de análise dos dados. Dessa forma, o diário, ao atuar como companheiro de pesquisa, foi um dispositivo analítico do processo (Miranda et al., 2020 ).
Outro instrumento foi o questionário on-line no Google Forms, escolhido pelos estudantes como ferramenta de produção de dados, pela possibilidade de ter um maior número de respondentes. Na pesquisa “O hoje afetando o amanhã” foram feitas 20 perguntas, sendo 15 de múltipla escolha e cinco discursivas, respondidas por alunos(as), gestão escolar, professores/as e pais de estudantes, de modo a garantir diferentes momentos da vida escolar, além de uma perspectiva intergeracional. Ao todo, o formulário obteve 59 respostas.
Após a análise coletiva dos dados, foram realizadas duas restituições com a comunidade escolar: uma com os(as) professores(as) do Projeto Diretor de Turma (PDT) 3 e outra com estudantes representantes de turmas da escola. A restituição mostrou-se essencial no processo de construção da pesquisa, pois foi através dela que a comunidade escolar tomou ciência do que estava sendo feito e dos dados produzidos pelos(as) estudantes, coletivizando os resultados das pesquisas construídas por eles(as). É por meio da restituição que se produzem deslocamentos entre pesquisadores(as) e participantes, abrindo percursos éticos, movimentando os espaços e ampliando o conceito de a quem se destinam os resultados da pesquisa (Almeida, César, Luciano, & Carvalho, 2018 ).
Após a realização do curso de extensão e dos momentos de restituição com a comunidade escolar, transcrevemos o conteúdo gravado de cada encontro que tivemos com a escola. Como corpus deste trabalho, temos as falas ao longo do curso que atravessaram a temática da gravidez na adolescência, os diários de campo e as respostas ao formulário do Google Forms.
Análise de dados
Realizamos uma Análise de Conteúdo (Bardin, 2011 ). Para tal, elegemos, com as estudantes que pesquisaram sobre a gravidez na adolescência, analisadores da pesquisa, isto é, acontecimentos que produzem análise e constituem o processo investigativo (Lourau, 1993 ). Foram produzidas reflexões oriundas das respostas dadas ao questionário, estas que indicavam implicações de estudantes, professores(as) e gestão com a temática e adensaram as discussões de preparação para a restituição dos resultados da pesquisa. Ainda, nós, do grupo de pesquisa universitário, realizamos processo semelhante com o conteúdo narrativo dos diários e das transcrições dos encontros do curso de extensão, refletindo, por meio da construção de analisadores, sobre a processualidade das atividades de pesquisa e sobre as inquietações do grupo de estudantes secundaristas ao longo da produção da pesquisa “O hoje afetando o amanhã”.
Para operacionalizar o tratamento do material transcrito, utilizamos o recurso do software Atlas Ti 8.4.2 para gerenciar e categorizar nossos dados. Orientados pela análise do conteúdo, primeiramente fizemos uma leitura fluida do material, depois criamos categorias baseadas em enunciados que se articulavam e, por último, codificamos o material. Dessa forma, na seção a seguir apresentamos as análises produzidas tanto do processo de construção da pesquisa acerca gravidez na adolescência, quanto o resultado do Google Forms aplicado na pesquisa e a restituição dos doados à comunidade escolar.
Resultados e discussões
A pesquisa “O hoje afetando o amanhã”: coletivizando análises
Nessa subseção, será discutido o processo de construção da pesquisa sobre gravidez na adolescência no cotidiano escolar, elemento central deste artigo. O grupo pensou a temática a partir de diferentes questões, mas que buscavam abordar a relação entre as atitudes de adolescentes na fase escolar e suas perspectivas de futuro. Para auxiliar na delimitação do tema foi construída a capa do diário de campo, customizada a partir de signos que representavam o pré-vestibular, gravidez e pré-conceito e dimensionaram as temáticas abordadas pelas pesquisadoras secundaristas. As narrativas escritas correspondiam ao registro dos momentos de discussão do grupo, as inquietações tanto individuais quanto coletivas das integrantes, bem como um espaço livre para escrituras. Na Figura 1 , visualizamos a capa customizada pela equipe do grupo “O hoje afetando o amanhã”.
Tanto a capa do diário de campo como o próprio nome escolhido pelo grupo abordam as vicissitudes de uma gravidez na adolescência. Da imagem recortada de uma revista que representa adolescentes saem muitas setas, uma destas é direcionada para o enunciado “vestibular” como o caminho a ser seguido por essa faixa etária, entretanto, aponta também para o enunciado “paralisado” em ligação à imagem de uma mãe. Essa cena demonstra esse hoje que afeta o amanhã, sobretudo para a mulher, como o próprio título escolhido por elas para a sua pesquisa, a gravidez na adolescência afetando e paralisando o caminho à universidade e ao futuro.
Ainda, cada grupo participante do curso de extensão recebeu a tarefa de produzir textualmente uma justificativa para suas pesquisas. Esse movimento foi importante para a construção de um território inventivo da pesquisa (Kastrup & Passos, 2013 ), já que o grupo teve que dialogar, tensionar e coletivizar o interesse com o tema, que a partir de cada experiência individual se mostrava como um analisador de como o grupo percebia a importância da pesquisa para além de uma necessidade de relatoria de dados. A respeito da justificativa do tema, o grupo de estudantes registrou o seguinte relato no diário de campo:
Escolhemos o tema porque nossos assuntos coincidiram e aborda o fato de que todos passamos por processos, de maneiras diferentes, com problemas diferentes, resultando em consequências diferentes. Por exemplo: pressão social, gravidez na adolescência e ansiedade, diante da desigualdade social. No caso da gravidez e a forma que ela afeta a vida da adolescente, sendo de forma precoce, acarretando preconceito e julgamentos variados . (Diário de campo do grupo “O hoje afetando o amanhã”)
Ao longo do processo, observamos, participamos e dialogamos com as pesquisadoras-secundaristas acerca da construção do processo da pesquisa, de modo que a horizontalidade do processo não estava somente na oferta de um curso de extensão para jovens estudantes, mas na possibilidade emergente de uma troca de relações de saberes desprovida de hierarquias sedimentadas pelos especialismos acadêmicos, cuja visibilidade se fortalece com a discussão dos dados da pesquisa construídos através de formulário on-line. Na seção a seguir apresentaremos as respostas recebidas no questionário.
Dados construídos a partir do questionário
No total, houve 59 respondentes, sendo 76,3% do gênero feminino, 22% do gênero masculino e o restante (1,7%) escolheu não se identificar. A maioria dos respondentes tinha idade entre 14 e 17 anos (81,4%) e conhece alguma menina que engravidou entre 12 e 18 anos (89,8%). É válido destacar o significativo interesse do gênero feminino pela temática que se expressa tanto na formação de um grupo de pesquisa formado exclusivamente por estudantes que se identificam com o gênero feminino quanto com a maior participação desse público nas respostas ao formulário.
Essa afetação do gênero feminino em relação à gravidez na adolescência também é percebida quando perguntado acerca da crença de que meninas que engravidam na adolescência têm dificuldade de concluírem os estudos, tendo respostas concentradas entre “concordo” (42,4%) e “concordo totalmente” (28,7%). Esses dados parecem ratificar a representação de prejuízo de que a gravidez acomete vidas juvenis, especialmente das meninas-mães, que tanto são destacadas nas perguntas realizadas nos questionários, em que são referenciadas em detrimento dos pais do bebê, quanto nas respostas de justificativas aos itens escolhidos, implicando uma ordem de gênero pautada pela heteronormatividade, colocando a ênfase da gravidez na adolescência sobre a menina (Menezes et al., 2012 ).
Por outro lado, quando questionados se meninas que engravidam durante a adolescência têm menos chance de entrar no mercado de trabalho, 16,9% concordam totalmente, 28,8% concordam e 32,2% não concordam, nem discordam. Jovens que engravidam na adolescência têm mais dificuldade em criar o(a) filho(a) por não ter boas condições financeiras e não conseguir emprego se mostrou em dados de 93,2% das respostas. Um paralelo pode ser feito entre essa noção de que jovens mães têm dificuldade de ingresso no mercado de trabalho e inacessibilidade a empregos que tenham boa remuneração e as taxas elevadas de abandono escolar em virtude da gravidez na adolescência (Brigagão & Gonçalves, 2009 ; Zinet, 2016 ), inviabilizando o ingresso dessas adolescentes no ensino superior, em muitos casos, necessário para obter melhor retorno financeiro e mais oportunidades de trabalho.
Ainda em relação ao abandono escolar, de acordo com a pesquisa, 94,9% considera a gravidez inesperada na adolescência preocupante e alguns respondentes justificaram afirmando que a gravidez “atrapalha” a vida das jovens que não terminam os estudos porque precisam cuidar dos(as) filhos(as). A gravidez/maternidade “atrapalha” também devido à falta de estrutura financeira e psicológica, falta de apoio da família, do parceiro e ao preconceito da sociedade.
A respeito da relação entre gravidez na adolescência e evasão escolar e de como isso acontece no cotidiano escolar em que as jovens pesquisadoras estudam, pode-se ressaltar o seguinte diálogo:
Beatriz: “Eu acho que muita gente desistiu o ano passado por causa disso”.
Maria: “Exatamente”.
Beatriz: “Umas três garotas, tipo, engravidaram e por conta disso chegavam dizendo que não querem mais estudar, que sofreu preconceito, que todo mundo olhava torto”.
Isabelle: “Até mesmo também em casa, a gente não sabe como é que elas ficam em casa com a família e se a família aceita. Elas irem para escola com mais esse peso é muito mais complicado ”. (Diálogo entre as integrantes do grupo “O hoje afetando o amanhã” – nomes fictícios)
Quando perguntado no formulário se o(a) respondente considera que a escola deve dar apoio a essas jovens que engravidam na adolescência, 94,8% responderam que sim e indicaram algumas formas de como a escola poderia ajudar, tais como: aulas/palestras sobre Educação Sexual; apoio e suporte emocional/psicológico; oferecer grupo de apoio e assistência a essas jovens; acolher sem julgamentos, com diálogo e orientação; oportunizar a estudar em casa e fazer provas; possibilitar um horário mais flexível para sair da aula quando necessário ou ir no contraturno assistir aula, caso não possa ir no turno regular; e incentivar para que a jovem não desista dos estudos.
Em relação ao apoio escolar, os programas que tratam de prevenção e são difundidos para e pelas escolas por meio de políticas do Ministério da Saúde ( 2019 , 2020 ), não dão conta do que é necessário para amparar a permanência de adolescentes que engravidam na adolescência, em especial as meninas, que são mais atingidas pelo processo, como indicam dados de pesquisa do próprio Ministério da Saúde ( 2020 ), apontado na introdução deste artigo. Corroborando o diálogo entre as integrantes do grupo “O hoje afetando o amanhã” Beatriz, Maria e Isabelle e a pesquisa do Ministério da saúde ( 2020 ) que colocam o gênero feminino como o mais atingido pelas consequências da gravidez na adolescência, quando perguntado quem é o mais afetado por tal questão, 91,5% respondeu a mãe, 8,5% avós e ninguém apontou o pai como o mais afetado. Percebe-se assim, mais uma vez, a percepção de que a mulher/menina é tida como a responsável pela gravidez precoce, reforçando a ausência de uma equidade de comprometimento das funções materna e paterna na relação conjugal. Essa ideia relaciona-se diretamente com o que é trazido por Leite e Bezerra ( 2020 ) acerca dos estigmas que incidem sobre o corpo da mulher em relação ao maternar, sofrendo uma subalternização e responsabilização exclusiva no que concerne à parentalidade.
Ainda a respeito da “culpabilidade” do gênero feminino pela gravidez precoce e inesperada na adolescência, uma resposta chamou a atenção das jovens pesquisadoras secundaristas, como se nota a seguir:
Esse aqui por exemplo, ó, ‘Hoje em dia, transar é normal e muitas meninas não se preocupam com a sua saúde, pois se o outro tiver com alguma uma doença? Gravidez não é acontecida de repente, até porque tem muitos métodos de prevenção e muitas meninas engravidam e abortam, eu não acho justo, se não quer engravidar porque não se prevenir?’ É o que a maioria da galera pensa, né? E a gente ouve muito comentário assim, ‘Se não queria engravidar porque não se preveniu?’ Então assim, a culpa, geralmente, é sempre da menina porque a menina não preservou, porque a menina não mediu as consequências . (Maria, integrante do grupo “O hoje afetando o amanhã” – nome fictício)
A pesquisa apontou que 100% dos respondentes consideram importante conversar sobre educação sexual na escola para: orientar os(as) jovens a se prevenirem de gravidez precoce indesejada e de IST; quebrar tabus; esclarecer dúvidas, inclusive para atentar para distinção do carinho para o abuso, estupro e o assédio sexual; e oferecer um espaço de diálogo na escola, tendo em vista que para alguns jovens não há abertura para conversar sobre esse assunto com os pais.
Como exemplifica o seguinte relato de uma das jovens pesquisadoras, quando discutiam quais dados gostariam de restituir para a escola:
A gente escolheu esses dados porque já deu para ver que realmente é uma coisa bem impactante na vida das pessoas que responderam. E aí a gente estava conversando maneiras de como a gente poderia trazer isso para dentro da escola, porque não é uma coisa que a gente vê, por exemplo, nas aulas de Formação Cidadã, não é uma aula que a gente tenha, que os professores não tem costume de conversar com a gente sobre isso, e muitas adolescentes ele já não tem o auxílio em casa, de orientação de pais para poder conversar sobre o assunto, então seria bem bacana se a escola pudesse mobilizar para falar sobre o assunto . (Lívia, integrante do grupo “O hoje afetando o amanhã” – nome fictício)
Outro dado sobre a importância da Educação sexual é que 98,3% dos respondentes consideram que a conscientização e educação sexual diminuiria a quantidade de jovens grávidas. Essa discussão já estava presente no início da elaboração de temas, contudo apareceu de forma superficial na pesquisa, sempre a delimitando pela via da prevenção, e não por meio das relações de gênero e das questões de sexualidade que permeiam a vida escolar. Isso pode ser percebido também na fala de uma pesquisadora secundarista que compunha outra equipe de pesquisa, enquanto preparavam a restituição à escola, questionou o dado apresentado:
Durante sua apresentação, quando falaram o dado que “100% dos que responderam à pesquisa queriam educação sexual”, (uma pesquisadora secundarista), que era da outra turma, logo virou a afirmar que não eram realmente todas as pessoas da escola que queriam educação sexual, pois muitas pessoas religiosas e com famílias conservadoras estudavam na escola e não queriam que esse conteúdo fosse tratado . (Trecho de diário de campo de uma pesquisadora universitária, 2019)
Portanto, as possíveis práticas em educação sexual são atravessadas por uma multiplicidade de visões acerca de como e quando podem ser trabalhadas as questões de gênero e sexualidade que permeiam a gravidez na adolescência e as vivências juvenis. Ainda assim, na maioria das respostas, a reivindicação por espaços em que se possa estabelecer um diálogo mais amplo e não-biologicista acerca dessas temáticas no cotidiano escolar é apresentada, demonstrando uma preocupação com as reverberações de não as colocar em pauta nesse ambiente (Gonçalves & Miranda, 2022 ).
Restituição da pesquisa e a abertura de novos possíveis acerca da gravidez na adolescência
Após a análise dos dados de pesquisa, realizada em conjunto pela equipe de pesquisadoras da escola e pelos(as) pesquisadores(as) da universidade, iniciou-se o trabalho de compartilhamento e discussão com outros(as) membros da comunidade escolar, em dois encontros distintos: um com os(as) Diretores(as) de Turma e outro com estudantes representantes de turma.
Para o primeiro encontro, as pesquisadoras secundaristas selecionaram dados que consideraram representativos de sua análise e construíram um cartaz para apresentação destes. Já para o segundo, elaboraram uma produção artística de apresentação dos dados realizada junto com outras equipes de pesquisa que compunham a turma, construindo uma encenação em que uma das alunas interpretava estar grávida e compartilhava com a turma e com uma outra aluna, que fazia o papel de psicóloga, as angústias desse momento. A Figura 2 contém uma síntese dos resultados do formulário que foi apresentado no encontro de secundaristas e professores.
No encontro com os(as) professores(as) Diretores de Turmas, os dados da pesquisa mobilizaram falas sobre a educação sexual na escola, bem como sobre as experiências com a gravidez na adolescência no espaço escolar e possibilidades de ação institucional frente a isso. Estes momentos de reflexão sobre a temática a partir dos(as) professores(as) e estudantes foram importantes para produzir deslocamentos de discursos e posicionamentos que dizem sobre as práticas institucionais na escola, e não sobre individualidades. Como elucida a fala de uma diretora de turma professora de Biologia transcrita a seguir:
Na equipe de gravidez na adolescência, eu já tinha comentado no grupo da escola, que a gente precisa ter esse contato, essa discussão. E na biologia, eu trato com os meus alunos. Eu trato da questão da reprodução, eu trato, inclusive, da questão da diversidade sexual. Nós professores ainda não nos apropriamos. Ainda fica a história de que quem é, vamos dizer, população LGBT, é que tem que dominar o assunto. “Eu sou hétero, não. Esse problema não é meu”. É totalmente problema meu, seu e de todo mundo. Nós não podemos ver o outro como diferente e diferente temos que ver, porque cada um tem sua especificação. É um tema muito delicado, né? É um tema que nós temos que ter cuidado . (Fala transcrita de professora)
Essa fala coaduna com a ideia de que pensar educação sexual é para além de um olhar biológico, fazendo-se necessário ampliar as práticas, as discussões e os olhares sobre a articulação da sexualidade e da adolescência, de forma a construir diferentes modos de abordar tal assunto no espaço escolar. Com isso, a ideia é possibilitar um lugar de discussão que transcenda o discurso biomédico da educação sexual, seguindo para uma visão sobre gênero, feminismo e outras formas de experienciar o corpo e a sexualidade.
A partir do exposto, é importante pensar nas diferentes formas de escutar e orientar os(as) adolescentes sobre a temática, entendendo que compete não só ao(à) professor(a) de biologia discutir sobre o assunto, mas a toda a comunidade escolar. Principalmente, essa discussão não deve ser reduzida somente a métodos contraceptivos e médicos sobre a sexualidade, mas sim buscar estratégias que se conectem à complexidade das vivências das juventudes ao experimentarem o exercício do gênero e da sexualidade, fugindo de práticas estritamente moralizantes (Gaia et al., 2020 ; Saito & Leal, 2000 ). Discursos que perpassam o trabalho do(a) professor(a) podem ainda estar ligados a posturas que de algum modo tornam-se repressoras e reproduzem ditos retrógrados que, por vezes, despertam na sala de aula sentimentos contraditórios que se tornam um problema para as discussões relacionadas à Educação Sexual (Silva & Megid Neto, 2006 ).
A pesquisa “O hoje afetando o amanhã” também convocou a escola ao envolvimento com essas questões, tanto de forma a discutir a sexualidade, a maternidade e a paternidade antes do acontecimento da gravidez na adolescência, quanto com o acolhimento do(a) adolescente que está passando pela experiência de maternagem e paternagem no período escolar. Atribui-se à escola, portanto, as formas de expressão de si e de suas sexualidades, desde encontros formais com estas questões, até as conversas de corredor, os namoros e a gravidez (Louro, 2014 ).
Destaca-se a criticidade na análise das estudantes, que traz a importância de pensar o lugar da Educação Sexual no espaço escolar, e de reflexão acerca do lugar da escola nas discussões acerca da maternidade e paternidade entre jovens. Na restituição os próprios professores reconhecem a importância da manutenção do vínculo escolar:
Eu passei por uma experiência na minha turma, né? Desistir por conta da gravidez, desistiu do colégio. Aí nós chamamos os pais para conversar, né? Para motivá-los a, no período da gravidez, ela continuasse, né? Mas o pai [pausa] é porque é muito difícil o diálogo com a família porque o pai disse que não, grávida ela não vem para a aula, disse que ela tem que abandonar os estudos para cuidar do filho. Então, era muito difícil, sabe? Essa relação. Porque muitas vezes a família não dá o suporte . (Fala transcrita de professor)
Ao observarem os dados da pesquisa do grupo, certos(as) professores(as) presentes sentiram que a restituição se dava por meio de uma denúncia e que os dados refletiam o que acontecia no ambiente escolar. Logo, partindo da memória de outras experiências, enunciaram que a gestão e os(as) professores(as) têm lutado contra a evasão escolar, característica muito recorrente nos casos de gravidez na escola. Também afirmaram que os dados seriam um recorte da vivência das(os) estudantes, e que para além de evidenciar o manejo dos(as) professores(as), trata-se de como isso ressoa em toda a comunidade escolar, incluindo gestão, alunos(as) e familiares.
Considerações finais
Nosso interesse de discussão não foi de cercear ou generalizar um debate sobre gravidez na adolescência. Colocamos em pauta o processo de construção de uma pesquisa com jovens estudantes que mobilizou um cenário de reflexão com o interesse em desnaturalizar uma pretensa responsabilização unilateral da maternidade na adolescência, pouco falada, muito invisibilizada e bastante corriqueira nos diversos cotidianos escolares.
A construção de pesquisa foi uma articulação das relações de negociação individual entre as estudantes e alianças coletivas com relação ao objeto de seu desejo: a análise da gravidez na adolescência no cotidiano escolar. Tal pesquisa acabou por discutir o lugar de fala da menina/mulher na escola e suas vivências genderizadas, bem como as dificuldades e representações fatalistas que permeiam a experiência de maternidade durante a vida escolar como fim último da fase escolar, problemas estes que diferentemente não estão agregados à paternidade.
As restituições produziram uma polifonia institucional de vozes que habitavam o território escolar, pois estudantes, professores(as) e gestão escolar se encontraram discutindo horizontalmente e desnaturalizaram coletivamente reflexões acerca da gravidez na adolescência a partir de seus lugares institucionais coabitados por suas experiências de vida e marcados pelos especialismos e redes de poder. A relação mostrou que a discussão sobre os problemas é uma situação de quem habita o território escolar e cria produções de sentido e vivências cotidianas neste.
A experiência do curso de extensão na produção de pesquisas, cujas constituições de temas emergiu da autonomia das jovens secundaristas pesquisadoras, reverberou na função de dispositivo produtor de discursos que tendem a desestabilizar a ordem, a norma, a naturalidade dos fatos e dos discursos. Enquanto pesquisadores(as) universitários(as) de Psicologia, a relação estabelecida entre universidade-escola intensificou a multiplicidade de análises que para nós são essenciais vetores de transformação do espaço e das produções de subjetividades. Portanto, fomentamos a emergência de um debate que abre brechas para pensar o caráter criativo que um dispositivo curso, a produção de pesquisa e o encontro assimétrico das relações de saber na escola entre estudantes e professores(as) permitem inventar novos possíveis de práticas escolares acerca da gravidez de suas estudantes.
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Pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética sob parecer nº 3.227.767.
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Curso cadastrado na Pró-reitoria de Extensão com duração de 30 horas, distribuído em 27 horas presenciais e 3 horas não presenciais e vinculado ao Projeto de Extensão “É da Nossa Escola que Falamos”. Cada atividade presencial teve duração de 2h30 semanais distribuídas em nove encontros. A carga horária não presencial foi distribuída ao longo do curso em atividades on-line e aplicação do instrumento da pesquisa. Os encontros do curso foram gravados em áudio e vídeo. Ementa do curso: A função da escola na contemporaneidade; O direito democrático à pesquisa; O estudante como agente político do cotidiano escolar; O que inquieta os jovens na atualidade; A criação de uma pesquisa feita COM jovens e COM a escola; Como construir um projeto de pesquisa: tema, objeto, objetivos, aporte teórico, metodologia, análise e resultados; Criação de um produto de divulgação da pesquisa.
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O Projeto Diretor de Turma (PDT) é uma ação da Secretaria da Educação do Estado do Ceará para as escolas públicas de ensino médio, cujo objetivo é de que um(a) professor(a) acompanhe uma turma da escola mediando sua relação com a comunidade escolar (Ceará, 2010 ).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Jul 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
07 Jul 2023 -
Aceito
27 Jul 2023