Resumo
Este estudo tem como eixo norteador a teoria crítica da cultura e da modernidade de Walter Benjamin. Partindo da polissemia do conceito de experiência no texto benjaminiano, o autor busca elementos conceituais que auxiliem na elaboração da noção de experiência infantil (composta por um misto de complexidade e sutileza). A análise se desenvolve a partir de textos do próprio Benjamin e de textos de comentaristas da teoria crítica da cultura e da modernidade. Ao apresentar as contribuições de Walter Benjamin para a construção de um olhar diferenciado para a criança e sua educação, o autor conclui enfatizando a importância delas para a área da educação infantil e, de modo mais amplo, para o desenvolvimento da infância contemporânea.
Palavras-chave:
crianças; educação infantil; experiência; infância; Walter Benjamin
Abstract
This article reflects on Benjamin's critical theory of culture and modernity as a contribution for professionals and researchers of child education. Exploring the polysemy of the concept of experience in Benjamin work, it develops the idea of child experience (consisting of a mixture of complexity and subtlety), with the help also of texts produced by the critics of the culture and modernity theory. It ends emphasizing Walter Benjamin's contributions for the childhood education field, seeing it as a relational space that contributes to the development of contemporary childhood.
Keywords:
children; early child education; experience; childhood; Walter Benjamin
Introdução
A inserção da Educação Infantil, como primeira etapa da Educação Básica, não só se configura como um grande avanço das políticas públicas para a infância, mas aponta também para a transição de uma tradição de assistência para a definição do direito da criança de zero a cinco anos a uma educação pública de qualidade, fato que contribuiu paulatinamente, nos últimos anos, para o aumento na produção científica da área.
Desse modo, tanto professores quanto pesquisadores contemporâneos da área da educação infantil buscam formas de reconhecer as especificidades e as peculiaridades que envolvem as relações estabelecidas pelas crianças com o mundo que as circunda e os sentidos que atribuem às suas experiências. Este escrito, por sua natureza ensaística, objetiva apresentar contribuições para esses profissionais, tendo como eixo norteador a teoria crítica da cultura e da modernidade de Walter Benjamin.
Para tanto, o texto está organizado em cinco partes. A primeira seção apresenta e discute a complexidade envolvida na estrutura do texto benjaminiano. A escrita de Walter Benjamin não é marcada apenas pela complexidade e multiplicidade de formas textuais; é igualmente atravessada pela complexidade do seu pensamento. À primeira vista, sua análise denota certo pessimismo diante da modernidade. Entretanto, no que concerne à noção de experiência e ideias sobre criança e infância, o autor apresenta uma visão peculiar que pode direcionar a construção de outra racionalidade, diferente daquela empregada pela modernidade, desde que essas noções sejam analisadas a contrapelo, isto é, de forma crítica, considerando as contradições que lhe são inerentes.
A segunda parte do texto oferece uma breve revisão dos conceitos de experiência presentes na obra de Walter Benjamin. A noção de experiência contida nessa obra sofre variações conceituais, dependendo do período histórico em que ele escreveu, em função das escolas de pensamento nas quais o autor se fundamenta na realização da escrita.
A terceira seção discute a sua visão sobre infância e crianças. Benjamin não toma as crianças como um devir, nem tampouco como sujeitos sociais incompetentes e incompletos; pelo contrário, ele as considera como sujeitos envolvidos pela complexidade da trama social, portanto imersas na problemática histórica de seu tempo.
A quarta seção do texto apresenta a noção de experiência infantil, que parte dos postulados do pensamento benjaminiano, articulando-os com autores contemporâneos que se ocupam do estudo da infância, e outros que seguem na esteira da teoria crítica da cultura. A ideia de experiência infantil parte do pressuposto de que ela se distingue da vivida pelos adultos, na medida em que as crianças possuem formas peculiares de ser e estar no mundo.
Por fim, apresentam-se as considerações finais, enfatizando as contribuições de Benjamin para a área da educação infantil e a necessidade de aprofundar o estudo das contribuições teóricas e metodológicas acerca da teoria crítica da cultura e da modernidade para construir uma educação infantil que se configure como um espaço potencial e relacional que contribui para o desenvolvimento da infância contemporânea.
A complexidade do pensamento e da escrita benjaminiana
Walter Benjamin nasceu em Berlim em 1892. Originário de abastada família de tradição judaica: pai banqueiro e mãe descendente de uma família de grandes comerciantes lhe proporcionaram uma educação opulenta e culta (Galzerani, 2002Galzerani, M. C. B. (2002). Imagens entrecruzadas de infância e de produção de conhecimento histórico em Walter Benjamin. In A. L. G. de Faria, Z. de B. F. Demartini, & P. D. Prado (Orgs.), Por uma cultura da infância: metodologias de pesquisa com crianças (pp. 49-68). Campinas: Editores Associados.). Graduado em filosofia, doutorou-se, em 1919, com a tese O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão. Tornou-se um dos pilares da escola de Frankfurt, mas dela posteriormente se afastou, após uma maior aproximação com o materialismo dialético de Marx. Por sua origem judaica, sofreu os horrores do nazismo, foi exilado da Alemanha, abrigando-se em países como Dinamarca, França e Espanha, onde se suicidou em 1940, devido ao avanço das tropas nazistas, após tentativa frustrada de refugiar-se nos Estados Unidos.
Todo(a) pesquisador(a) que se ocupe em sintetizar a teoria benjaminiana tem de considerar a sua densidade teórica, epistemológica e estilística, pois não há, nela, conforme Löwy (2002)Löwy, M. (2002). A filosofia da história de Walter Benjamin. Estudos Avançados 16(45), 199-206. "um sistema filosófico: toda sua reflexão toma a forma do ensaio ou fragmento – quando não se trata da citação[itálicos no original] pura e simples, com passagens retiradas de contexto e colocadas a serviço de sua própria dinâmica" (p.199). Assim, "qualquer tentativa de sistematização é, portanto, problemática e incerta" (Löwy, 2002, p.199).
De acordo com Andreia Meinerz (2008)Meinerz, A. (2008). Concepções de experiência em Walter Benjamin. Dissertação de mestrado em Filosofia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 81 p., uma das formas de compreender a riqueza da teoria benjaminiana consiste em perceber a diversidade de formas literárias que compõem sua obra: textos ensaísticos, monográficos, aforismos, críticas, resenhas e cartas, para citar apenas algumas formas textuais presentes na escrita desse autor. Outra riqueza de expressão de sua obra são as bases epistemológicas de seus pensamentos. Trata-se de um filósofo de extensa capacidade reflexiva e pouco (ou nada) ortodoxo, um marxista com densa inspiração humanista, que apreciava a ponderação teológica (Kramer, 1998Kramer, S. (1998). Produção cultural e Educação: algumas reflexões críticas sobre educar com museus. In S. Kramer, & M. I. Leite (Orgs.), Infância e produção cultural (pp. 207-223, Série Prática Pedagógica). Campinas: Papirus.).
Sônia Kramer (1998)Kramer, S. (1998). Produção cultural e Educação: algumas reflexões críticas sobre educar com museus. In S. Kramer, & M. I. Leite (Orgs.), Infância e produção cultural (pp. 207-223, Série Prática Pedagógica). Campinas: Papirus. considera que o projeto benjaminiano consistia em encontrar o todo "numa obra, num objeto, num indivíduo, num fragmento, numa insignificância" (p. 211). Na visão de Pereira (2012)Pereira, R. M. R. (2012). Um pequeno mundo próprio inserido em um mundo maior. In R. M. R. Pereira, & N. M. R. Macedo. Infância em pesquisa (pp. 25-57). Rio de Janeiro: NAU., os escritos de Benjamin possibilitam descobrir "pistas metodológicas" (p. 28). Segundo a autora, um programa de pesquisa baseado nesses postulados possibilita o acesso aos fragmentos característicos do cotidiano, pormenores que, de forma miniaturizada, são pedaços das grandes transformações. Segundo Pereira (2012)Pereira, R. M. R. (2012). Um pequeno mundo próprio inserido em um mundo maior. In R. M. R. Pereira, & N. M. R. Macedo. Infância em pesquisa (pp. 25-57). Rio de Janeiro: NAU., são esses fragmentos, muitas vezes despercebidos, esquecidos ou banalizados, que "aguçam a percepção humana e demandam a esta, intermitentes questões" (p. 28).
Assim, devido à abrangência e à complexidade contidas nos escritos de Walter Benjamin, faz-se necessário compreender que os textos do início de carreira portam uma essência fortemente marcada pelo idealismo alemão, enquanto as obras da maturidade bebem na fonte do marxismo, conforme sugere Michael Löwy (2002)Löwy, M. (2002). A filosofia da história de Walter Benjamin. Estudos Avançados 16(45), 199-206.:
Na literatura sobre Benjamin, deparamo-nos, frequentemente, com dois erros simétricos, que devem ser evitados a todo custo: o primeiro consiste em dissociar, por meio de uma operação (no sentido clínico do termo) de "corte epistemológico", a obra de juventude "idealista" e teológica da "materialista" [grifos no original] e revolucionária da maturidade; o segundo, em contrapartida, encara sua obra como um todo homogêneo e não leva absolutamente em consideração a alteração profunda trazida, por volta dos anos 20, pela descoberta do marxismo. Para compreender o movimento [itálico no original] do seu pensamento, é preciso, pois, considerar simultaneamente a continuidade de certos temas essenciais e as diversas curvas e rupturas que pontilham sua trajetória intelectual e política (p. 199).
Entretanto, é incontestável a fervorosa crítica que Benjamin vai construindo, ao longo da arquitetura de seus escritos, em relação à modernidade. Sua análise consiste em uma severa crítica ao discurso de progresso que marca a modernidade, o que, na perspectiva benjaminiana, nada mais é do que um discurso de barbárie. Oswald (2008)Oswald, M. L. M. B. (2008). Infância e história: leitura e escrita como práticas de narrativas. In S. Kramer, & M. I. Leite (Orgs.), Infância: fios e desafios da pesquisa (pp. 57-72, Série Prática Pedagógica). Campinas: Papirus. aponta uma interessante síntese do pensamento benjaminiano:
Analisando criticamente a modernidade, Benjamin (1985; 1987) vai relacionar a ânsia do progresso e do desenvolvimento ao empobrecimento da experiência humana e à alienação da linguagem. A construção dessa relação é fruto de sua crítica à concepção evolucionista de história, ... como um tempo contínuo que caminha inexoravelmente para o futuro.
Nessa perspectiva, o passado seria o antigo, o velho, o bárbaro, algo que precisa ser substituído pelo novo, pelo progresso (p. 66).
Muitos estudos (Ferris, 2008Ferris, D. S. (2008). On the program of the coming philosophy (1918). In D. S. Ferris, Introduction to Walter Benjamin (pp. 42-45). Cambridge University Press. United States of America: New York.; Gagnebin, 2011Gagnebin, J. M. (2011). Walter Benjamin ou a história aberta (prefácio). In W. Benjamin, Magia e técnica: arte e política (Obras escolhidas, Vol.1, S. P. Rouanet, trad., 14ª reimpr.). São Paulo: Brasiliense.; Kramer, 1998Kramer, S. (1998). Produção cultural e Educação: algumas reflexões críticas sobre educar com museus. In S. Kramer, & M. I. Leite (Orgs.), Infância e produção cultural (pp. 207-223, Série Prática Pedagógica). Campinas: Papirus.; Meinerz, 2008Meinerz, A. (2008). Concepções de experiência em Walter Benjamin. Dissertação de mestrado em Filosofia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 81 p., dentre outros(as)) apontam como conceito central na obra de Benjamin – seja pela via de uma crítica da cultura e da modernidade, seja pela via da construção de uma filosofia da história, seja no início de sua carreira acadêmica (influenciado pelo idealismo alemão), ou na maturidade de sua escrita (com a assimilação do materialismo histórico) – a noção de experiência, do alemão Erfahrung, que, etimologicamente, significa também viagem (Galzerani, 2002Galzerani, M. C. B. (2002). Imagens entrecruzadas de infância e de produção de conhecimento histórico em Walter Benjamin. In A. L. G. de Faria, Z. de B. F. Demartini, & P. D. Prado (Orgs.), Por uma cultura da infância: metodologias de pesquisa com crianças (pp. 49-68). Campinas: Editores Associados.). E é a partir da metáfora da viagem que vamos buscar as várias noções de experiência presentes na obra de Benjamim.
Sabemos que, conforme sugere Pereira (2012)Pereira, R. M. R. (2012). Um pequeno mundo próprio inserido em um mundo maior. In R. M. R. Pereira, & N. M. R. Macedo. Infância em pesquisa (pp. 25-57). Rio de Janeiro: NAU., a época em que Benjamin viveu – e que lhe é tão frutífera em termos de questões de ordem ética, estética e política – é bem diferente da contemporaneidade, do mesmo modo como as produções culturais atuais são bem diversas em relação às observadas por ele, ao buscar compreender a experiência naquela conjuntura. Para Pereira (2012)Pereira, R. M. R. (2012). Um pequeno mundo próprio inserido em um mundo maior. In R. M. R. Pereira, & N. M. R. Macedo. Infância em pesquisa (pp. 25-57). Rio de Janeiro: NAU., "isto implica dizer que, se por um lado a produção teórica de Benjamin se apresenta ... como uma referência fundamental; por outro, não podemos exigir que responda àquilo que somente se apresenta como questão aos contemporâneos do século XXI" (p. 28). Nesse sentido, o esforço conceitual aqui apresentado objetiva buscar subsídios teóricos para identificar e analisar as contradições existentes em torno da infância contemporânea.
Pensando a multiplicidade de sentidos do conceito de experiência em Walter Benjamin
Em um texto de 1913, cujo título – "Experiência" – já sugere a importância desse conceito para sua teoria, Benjamin aponta a experiência como um problema oriundo do conflito geracional, uma crítica aos adultos que subestimam a capacidade da juventude – e também das crianças – no intercambiar das próprias experiências. Esse texto, publicado no início de sua trajetória acadêmica, configura-se como "uma crítica de como a experiência adulta é divorciada do espírito, introduzindo um conceito que se tornará cada vez mais complexo no decurso da escrita crítica de Benjamin" (Ferris, 2008Ferris, D. S. (2008). On the program of the coming philosophy (1918). In D. S. Ferris, Introduction to Walter Benjamin (pp. 42-45). Cambridge University Press. United States of America: New York., p. 42 – livre tradução).
O problema geracional da experiência não aparece apenas no texto de 1913, mas persiste em outros escritos do autor como em Jogos e brinquedos de 1928, obra na qual Benjamin (1984)Benjamin, W. (1984). Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus. nos apresenta uma precisa diferenciação entre a experiência dos(as) mais velhos(as) e a dos(as) pequenos(as). Enquanto o adulto descreve sua experiência, a criança se fundamenta na repetição típica da brincadeira e dos jogos como forma de elaboração de suas experiências. Segundo o autor, "a essência do brincar não é um 'fazer como se', mas um 'fazer sempre de novo'. Transformação da experiência mais comovente, em hábito". (Benjamin, 1984Benjamin, W. (1984). Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus., p. 75).
No ensaio "Sobre o programa de filosofia futura", de 1918, Benjamin trata a experiência com mais complexidade. Fundamenta-se em Kant para pensar as possibilidades de construção de uma experiência mais ampla (transcendental) que possa ser concebida como forma de conhecimento (Gagnebin, 2011Gagnebin, J. M. (2011). Walter Benjamin ou a história aberta (prefácio). In W. Benjamin, Magia e técnica: arte e política (Obras escolhidas, Vol.1, S. P. Rouanet, trad., 14ª reimpr.). São Paulo: Brasiliense.). Segundo Ferris (2008)Ferris, D. S. (2008). On the program of the coming philosophy (1918). In D. S. Ferris, Introduction to Walter Benjamin (pp. 42-45). Cambridge University Press. United States of America: New York., nesse texto a questão da experiência não é mais vista como um conflito geracional: "Pelo contrário, como o título ... indica, o conceito de experiência é tomado como a questão central a ser estudada na filosofia moderna, para resolver o problema que se coloca no caminho do seu desenvolvimento futuro" (Ferris, 2008Ferris, D. S. (2008). On the program of the coming philosophy (1918). In D. S. Ferris, Introduction to Walter Benjamin (pp. 42-45). Cambridge University Press. United States of America: New York., p. 42 – livre tradução).
Nesse ensaio, Benjamin encara a questão das potencialidades e dos limites da produção do conhecimento por meio da experiência, tendo em Kant sua principal fonte de interlocução. Também se ocupa de uma questão que, como ele mesmo afirma, continua sem solução no pensamento kantiano e pós-kantiano: a relação entre conhecimento e experiência (Ferris, 2008Ferris, D. S. (2008). On the program of the coming philosophy (1918). In D. S. Ferris, Introduction to Walter Benjamin (pp. 42-45). Cambridge University Press. United States of America: New York.).
No mesmo ensaio, Benjamin acusa os filósofos que seguiram a linha de Kant de não atentarem para um elemento necessário a toda experiência, a sua continuidade: "no entanto, e no melhor interesse da continuidade da Experiência, a sua representação como sistema de ciências, como aparece nos neokantianos, sofre de graves deficiências" (Benjamin, 1970Benjamin, W. (1970). Sobre el programa de la filosofía venidera. In W. Benjamin, Sobre el programa de la filosofia venidera y otros ensayos. (R. J. Vernejo, trad. espanhol, pp. 8-15). Caracas: Monte Avila., p.12 – livre tradução).
A falha em reconhecer a continuidade das experiências leva a uma relação entre experiência e conhecimento na qual a primeira é sempre considerada inferior ao segundo. Já na visão de Benjamin (1970)Benjamin, W. (1970). Sobre el programa de la filosofía venidera. In W. Benjamin, Sobre el programa de la filosofia venidera y otros ensayos. (R. J. Vernejo, trad. espanhol, pp. 8-15). Caracas: Monte Avila., "a estrutura da experiência se encontra na estrutura do conhecimento, e se desdobra a partir desta última" (p. 11 – livre tradução). Termina seu ensaio enfatizando que "a experiência é a pluralidade uniforme e contínua do conhecimento" (p. 8 – livre tradução). Para Solange Jobim e Souza (2012), o que está em voga nesse texto é que
a compreensão do conceito de experiência é colocada nos termos de uma experiência transcendental. Para Benjamin, transcendental é uma experiência que só a linguagem sustenta, uma espécie de experimentum linguae [itálicos no original] no sentido restrito do termo, onde aquilo que se constata é a linguagem ela mesma (p. 146).
Já nos escritos da década de 1930, dentre eles: Experiência e pobreza(1933) e O narrador (1936); os textos sobre Baudelaire, e os que versam sobre o conceito de história (1940) – influenciados agora pelo materialismo histórico dialético – Benjamin retorna à problemática da experiência, com um novo posicionamento. Por um lado denuncia o definhar da experiência na modernidade e, por outro, esboça simultaneamente, a necessidade de sua reconstrução. Nos dizeres de Gagnebin (2011)Gagnebin, J. M. (2011). Walter Benjamin ou a história aberta (prefácio). In W. Benjamin, Magia e técnica: arte e política (Obras escolhidas, Vol.1, S. P. Rouanet, trad., 14ª reimpr.). São Paulo: Brasiliense.:
de um lado, demonstra o enfraquecimento da Efahrung no mundo capitalista moderno em detrimento de um outro conceito, a "Erlebnis", experiência vivida, característica de um indivíduo solitário, esboça, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a necessidade de sua reconstrução para garantir uma memória e uma palavra comuns, malgrado a desagregação e o esfacelamento social (p. 9).
Nesse sentido, a experiência se torna cada vez mais escassa na modernidade, em função da incapacidade dos sujeitos de narrar acontecimentos memoráveis, dos avanços tecnológicos característicos do progresso, o que acaba por minimizar a memória coletiva deles. Isso ocorre porque a experiência individual em períodos históricos precedentes à era capitalista tornava-se, por meio da articulação entre narrativa e memória, uma experiência coletiva. Segundo o autor, "onde há experiência, no sentido estrito do termo, entram em conjunção na memória certos conteúdos do passado individual com outros do passado coletivo" (Benjamin, 2011bBenjamin, W. (2011b). Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo (Obras escolhidas, Vol. 3). São Paulo: Brasiliense., p. 107). Para Benjamin, a partir da modernidade, a experiência se torna cada vez mais individual, uma "experiência vivida", isolada.
Nesse sentido, percebe-se que experiência, memória e narratividade são conceitos centrais na filosofia de Benjamin. É fato que a experiência será sempre subjetiva – porque sempre singular para quem a viveu e "somente este poderá falar dela 'de dentro' [grifo no original], conferindo-lhe um sentido próprio a partir daquilo que o afetou" (Pereira, 2012Pereira, R. M. R. (2012). Um pequeno mundo próprio inserido em um mundo maior. In R. M. R. Pereira, & N. M. R. Macedo. Infância em pesquisa (pp. 25-57). Rio de Janeiro: NAU., p. 44). Entretanto, ao ser comunicado, o sentido da experiência se torna pleno, já que é no outro – entendido como aquele para quem se narra a experiência – que a narrativa floresce. Desse modo, "o vivido se ressignifica à medida que é 'narrado', uma vez que o narrar não apenas apresenta ao outro uma história vivida, mas reapresenta a quem viveu sua própria experiência" (Pereira, 2012Pereira, R. M. R. (2012). Um pequeno mundo próprio inserido em um mundo maior. In R. M. R. Pereira, & N. M. R. Macedo. Infância em pesquisa (pp. 25-57). Rio de Janeiro: NAU., p. 44).
Em síntese, a obra de Benjamin se configura como uma espécie de denúncia que se alarga em cada um dos seus escritos, sendo abordada de forma sempre mais aprofundada e extensa na crítica à modernidade: a transformação generalizada dos seres humanos em fantoches automatizados (Jobim e Souza, 2012).
Entretanto, não só o pessimismo para com a modernidade marca a tessitura do texto benjaminiano. Obedecendo a sua proposta de analisar a história a contrapelo, percebe-se em sua crítica uma visão positiva, no sentido de construção de novas racionalidades a partir da modernidade. Ou seja, ao fazer uma denúncia acerca da decadência da experiência no mundo moderno, Benjamin anuncia também a sua reformulação. Nesse sentido, o que está em xeque nessa insinuação é que a reconstrução da experiência requer uma reformulação da narratividade e da memória coletivas. Mais ainda, sua visão sobre a infância nos conduz à construção de outro olhar sobre as crianças e suas experiências.
Algumas considerações sobre a infância em Walter Benjamin: outra via de compreensão do mundo infantil
A teoria de Benjamin contribui para a conformação de um olhar diferenciado para a criança e a infância, diante do pessimismo presente em sua crítica à vida moderna.
Em Infância em Berlim por volta de 1900, livro dedicado ao filho Stefan, do mesmo modo em que o escritor, no alto de seus 40 anos, mergulhado em memórias da própria infância, recupera o mundo cultural da época, também evoca o modo de ver das crianças, suas sensibilidades e seus valores, numa espécie de relato de criança que assiste à cultura e à história de seu tempo à margem do mundo social adulto. Galzerani (2002)Galzerani, M. C. B. (2002). Imagens entrecruzadas de infância e de produção de conhecimento histórico em Walter Benjamin. In A. L. G. de Faria, Z. de B. F. Demartini, & P. D. Prado (Orgs.), Por uma cultura da infância: metodologias de pesquisa com crianças (pp. 49-68). Campinas: Editores Associados. destaca que, nesse texto, Benjamin
tece relações entre diferentes dimensões espaço-temporais e culturais, para oferecer historicamente um quadro social mais amplo, sem abrir mão de sua singularidade. Traz à tona o perfil cultural de uma classe burguesa em relação com outras personagens de outras classes sociais. Produz, pois, uma transformação radical da visão clássica da autobiografia, já que focaliza não apenas lembranças pessoais, mas a vibração de uma memória pessoal e coletiva. Não fala dele apenas. Fala de um nós, na relação com os outros. Rememora a criança que foi articulada a outros personagens. Criança na relação com crianças, com adultos, situados em diferentes categorias sociais (p. 59).
Em textos como Uma pedagogia comunista (1929) e Programa de um teatro infantil proletário (1928) percebe-se que Benjamin não vê a criança de maneira romantizada, referindo-se a ela como um ser envolvido pelas questões culturais, sociais e históricas de seu tempo. Nos dizeres do autor: "a criança proletária nasce dentro de sua classe. ... Desde o início, ela é um elemento dessa prole, e aquilo que ela deve tornar-se não é determinado por nenhuma meta educacional doutrinária, mas sim pela situação de classe" (Benjamin, 1984Benjamin, W. (1984). Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus., p. 90). No caso da educação das crianças, Benjamin (1984)Benjamin, W. (1984). Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus. aponta uma consonância com o discurso educacional contemporâneo, postulando que "as crianças ... ensinam e educam os atentos educadores" (p. 88). E mais, a criança deve ter o direito, principalmente quando inserida em contextos educacionais, de viver a plenitude de sua infância, pois "a pedagogia proletária demonstra sua superioridade ao garantir às crianças a realização de sua infância" (Benjamin, 1984Benjamin, W. (1984). Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus., p. 87).
Isso pode ser constatado em textos nos quais Benjamin trata da questão dos brinquedos e do brincar. Ele analisa a história cultural dos brinquedos e enfatiza que, a partir do século XIX, os brinquedos artesanais são paulatinamente substituídos por industrializados. Em ambos os casos (com brinquedos artesanais ou manufaturados), as crianças brincam ao seu modo e, muitas vezes, promovem algum tipo de mudança de função do brinquedo (Bolle, 1984Bolle, W. (1984). Benjamin e a cultura da criança. In W. Benjamin, Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação (pp. 13-16). São Paulo: Summus.) – entendido como um suporte para a brincadeira. E é a criança quem escolhe seus brinquedos por conta própria, não raramente entre os objetos mais insignificantes para os adultos. É desse ponto de vista que "as crianças fazem história a partir do lixo da história".
Walter Benjamin ainda adota em seus textos uma postura reflexiva em relação à criança e à sua educação. Em Brinquedos e jogos: observações sobre uma obra monumental, ele defende que "o mundo da percepção infantil está marcado, por toda parte, pelos vestígios da geração mais velha, com os quais a criança se defronta" (Benjamin, 1984Benjamin, W. (1984). Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus., p. 72). O autor advoga ainda que as crianças elaboram uma forma simbólica de relação com o mundo que lhes é próprio, embora em relação direta com a cultura adulta. Em Canteiro de obras, Benjamin (1984)Benjamin, W. (1984). Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus. defende que
as crianças formam seu próprio mundo de coisas, mundo pequeno inserido em um mundo maior. Dever-se-ia ter em mente as normas desse pequeno mundo quando se deseja criar premeditadamente para crianças e não se prefere deixar que a própria atividade – com todos os seus requisitos e instrumentos – encontre por si mesmo o caminho até elas (pp. 77-78).
Isso pressupõe que entre si, brincando e nas diversas formas de relações com seus pares, as crianças criam para si um pequeno1 1 Na perspectiva de Benjamin, os conceitos de grande e pequeno não expressam apenas relações de grandeza, mas de poder, provocadas pelas contradições que caracterizam a modernidade e, quiçá, a pós-modernidade. "Há que ponderar que para Benjamin os conceitos de 'pequeno' e 'grande' são desenhados e significados a partir de relações éticas, estéticas e epistemológicas. Expressam não apenas relações formais de grandeza, mas, sobretudo, relações de valor e de poder. Assim, 'pequenos' não são apenas os fragmentos e os detalhes supostamente banais do cotidiano; são também os sujeitos excluídos pelas politicas sociais ou pelos grandes sistemas explicativos. 'Pequenos' [grifos no original] são também as crianças – seja em termos de estatura, seja em termos políticos – uma categoria social então com pouca visibilidade e autonomia" (Pereira, 2012, pp. 29-30). mundo cultural próprio. Mundo esse produzido num fecundo diálogo pelo qual elas não apenas garimpam, no amplo mundo sociocultural dos adultos, aspectos a serem reproduzidos, mas oferecem-nos inovadoras formas ativas, genuínas e interpretativas com as quais percebem e recriam as relações sociais e a cultura. Ou seja, as crianças se sentem convidadas por vários objetos e demais aspectos do mundo cultural, sem depender de qualquer autorização ou solicitar para se relacionar com eles. Desse modo, muitas vezes aquilo que os adultos preparam – julgando ser mais adequados a elas – é o que menos lhes desperta interesse.
É a partir das considerações teóricas de Walter Benjamin sobre a experiência e sobre a criança e a infância que consolidamos os alicerces teóricos da experiência infantil.
Construindo formas conceituais para compreender as especificidades presentes na experiência infantil
A experiência das crianças pressupõe uma distinção daquela vivida pelos adultos – o que é facilmente perceptível na teoria crítica da cultura. Para Benjamim (1984), conforme citado anteriormente, os adultos costumam subestimar a experiência de jovens e crianças. Nas palavras do autor:
A máscara do adulto chama-se "experiência" ... ele sorri com ares de superioridade ... de antemão ele já desvalorizava os anos que vivemos, converte-os em época de doces devaneios pueris, em enlevação infantil que precede a longa sobriedade da vida séria (Benjamim, 1984Benjamin, W. (1984). Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus., p. 23).
Benjamim considera que, na visão dos adultos, quanto mais jovem é o sujeito, mais desmerecida é a qualidade da experiência de suas vivências. Entretanto, o autor demonstra clareza de que os anseios e os interesses das crianças e dos jovens são distintos daqueles que norteiam a maturidade. Atrelado a isso, ainda questiona o fato de que os adultos se esquecem de seus devaneios juvenis, "o que leva a um empobrecimento do diálogo entre gerações uma vez que, se o adulto esquece a criança que foi, a relação que estabelece com as crianças com as quais convive tende a se pautar na premissa da exterioridade" (Pereira, 2012Pereira, R. M. R. (2012). Um pequeno mundo próprio inserido em um mundo maior. In R. M. R. Pereira, & N. M. R. Macedo. Infância em pesquisa (pp. 25-57). Rio de Janeiro: NAU., p. 44).
Na busca de uma compreensão mais acentuada acerca da experiência das crianças, enfrentamos um problema de ordem epistemológica. De que experiência falamos, uma vez que Walter Benjamim (2011a)Benjamin, W. (2011a). Magia e técnica: arte e política(Obras escolhidas, Vol. 1). São Paulo: Brasiliense. já há muito havia denunciado o empobrecimento da experiência? Para ele, com o advento da modernidade, a experiência coletiva, aquela que pode ser narrada pelo sujeito da experiência, foi sendo paulatinamente substituída pela vivência – reação imediata a choques – característica de um sujeito cada vez mais solitário e menos ligado à coletividade (Gagnebin, 2011Gagnebin, J. M. (2011). Walter Benjamin ou a história aberta (prefácio). In W. Benjamin, Magia e técnica: arte e política (Obras escolhidas, Vol.1, S. P. Rouanet, trad., 14ª reimpr.). São Paulo: Brasiliense.).
Outra perspectiva interessante e passível de interpretações múltiplas na obra de Walter Benjamin reside na relação direta entre a experiência e o ato narrativo. Em O narrador, o autor postula que a narração é cada vez mais escassa na contemporaneidade como resultado da pobreza das experiências. Benjamin entende que o ato de narrar é um processo coletivo que exige troca entre os sujeitos (Meinerz, 2008Meinerz, A. (2008). Concepções de experiência em Walter Benjamin. Dissertação de mestrado em Filosofia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 81 p.). Segundo Kramer (2000)Kramer, S. (2000). Leitura e escrita como experiência: seu papel na formação de sujeitos sociais. Presença Pedagógica, 6(31), 17-27., a narrativa possibilita a diferenciação entre vivência e experiência dos homens na modernidade, pois:
Tomamos de empréstimo a denúncia feita pelo filósofo sobre a perda da capacidade de narrar em consequência do definhamento da experiência do homem moderno. Estudamos a distinção que Benjamin estabelece entre vivência (reação a choques) e experiência (vivido que é pensado, narrado): na vivência, a ação se esgota no momento de sua realização (por isso é finita); na experiência, a ação é contada a um outro, compartilhada, tornando-se infinita. Esse caráter histórico, de permanência, de ir além do tempo vivido, tornando-se coletiva, constitui a experiência (pp. 19-20).
Benjamim (1984)Benjamin, W. (1984). Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus. apresenta-nos outros elementos que possibilitam a distinção entre a experiência dos mais velhos (que denuncia estar em vias de extinção) e a dos pequenos. Ele alega que a repetição tem um lugar fundamental na experiência da criança. Para ele, "a repetição é a alma do jogo, nada a alegra mais do que o mais uma vez... e de fato toda experiência mais profunda deseja insaciavelmente até o final das coisas, repetição e retorno" (Benjamin, 1984Benjamin, W. (1984). Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus., p. 74). Nesse sentido, enquanto o adulto narra sua experiência com êxito, a criança a recria incessante e intensamente: "O adulto, ao narrar uma experiência, alivia seu coração dos horrores, goza novamente uma felicidade. A criança volta para si o fato vivido, começa mais uma vez do início." (Benjamin, 1984Benjamin, W. (1984). Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus., p. 75).
O autor parte do pressuposto de que "toda e qualquer experiência mais profunda deseja insaciavelmente, até o final de todas as coisas, repetição e retorno, restabelecimento de uma situação primordial da qual nasceu o impulso primeiro" (Benjamin, 1984Benjamin, W. (1984). Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus., pp. 74-75). Nesse sentido, a experiência infantil segue o princípio da repetição, pois, de acordo com o autor:
"Es liesse sich alles trefflich schliten könnt mann die Dinge zweimal verrichten" (tudo ocorreria com perfeição, se se pudesse fazer duas vezes as coisas): a criança age segundo esse pequeno verso de Goethe. Para ela, porém, não basta apenas duas vezes, mas sim, sempre de novo, centenas e milhares de vezes. Não se trata apenas de um caminho para tornar-se senhor de terríveis experiências primordiais, mediante o embotamento, juramentos maliciosos ou paródias, mas também de saborear, sempre com renovada intensidade, os triunfos e vitórias (Benjamin, 1984Benjamin, W. (1984). Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus., p. 75).
Santos (2013)Santos, S. V. S. dos. (2013). A gente vem brincar, colorir e até fazer atividade – a perspectiva das crianças sobre a experiência de frequentar uma instituição de Educação Infantil. Dissertação de mestrado em Educação, UFMG, Belo Horizonte., fundamentando-se na teoria crítica da cultura de Benjamin (1970)Benjamin, W. (1970). Sobre el programa de la filosofía venidera. In W. Benjamin, Sobre el programa de la filosofia venidera y otros ensayos. (R. J. Vernejo, trad. espanhol, pp. 8-15). Caracas: Monte Avila., considera que a experiência das crianças é fortemente determinada pela continuidade. Para o autor, a experiência infantil – marcada por um misto de complexidade e sutileza – obedece ao princípio da continuidade tal como Benjamin (1970)Benjamin, W. (1970). Sobre el programa de la filosofía venidera. In W. Benjamin, Sobre el programa de la filosofia venidera y otros ensayos. (R. J. Vernejo, trad. espanhol, pp. 8-15). Caracas: Monte Avila. postula no ensaio "Sobre o programa de filosofia futura". Complexa, pois, na medida em que a criança está imersa em um mundo de relações e as percebe na sua totalidade, sua experiência no mundo não obedece a uma classificação de "níveis didáticos", do menor para o maior, ou do mais simples para o mais complexo. Ao mesmo tempo, a experiência infantil é sutil, pois o que a criança apreende o faz de corpo inteiro; de acordo com seus sentimentos, seus interesses, suas necessidades, nem sempre dominadas e controladas pelos adultos.
Ao analisar as experiências vividas por crianças no interior de uma instituição de educação infantil, Santos (2013)Santos, S. V. S. dos. (2013). A gente vem brincar, colorir e até fazer atividade – a perspectiva das crianças sobre a experiência de frequentar uma instituição de Educação Infantil. Dissertação de mestrado em Educação, UFMG, Belo Horizonte. percebeu que as crianças articulam suas vivências anteriores às vivenciadas na instituição e, também, "às situações previstas ou desejadas por elas de serem vividas em momentos futuros" (p.102). Para o autor, essa peculiaridade da experiência das crianças extrapola o imediato e mobiliza quer situações passadas (pela via da memória) quer futuras, desencadeando ações tanto no campo individual (pessoais) quanto coletivo (dos(as) colegas no grupo de pares) e elas passam a compartilhar, não apenas a experiência atual, mas a anterior e a futura por meio da brincadeira. Assim, observa-se uma expansão das situações – no tocante às experiências das crianças – no tempo e nas relações, à qual o autor denominou "campos de experiência".
Jorge Larrosa (2002)Larrosa, J. (2002). Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação. 19, 20-28., na esteira do pensamento benjaminiano, postula que a experiência é aquilo que nos acontece, aquilo que nos passa, aquilo que nos toca; "não o que passa, que acontece, ou o que toca" (p. 21). O autor afirma que, nessa perspectiva, o sujeito da experiência é entendido como um corpo sensível, "um território de passagem", no qual a experiência é produzida de forma subjetiva. De acordo com ele, o sujeito da experiência seria como "um território de passagem, algo como uma superfície sensível. Que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos" (Larrosa, 2002Larrosa, J. (2002). Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação. 19, 20-28., p. 24).
Desse modo, ao se pensar a experiência infantil, deve-se conceber a criança como um corpo sensível, que aprende e apreende o mundo à sua volta por meio de experiências sensíveis, isto é, por intermédio de todo o corpo. Agamben (2005)Agamben, G. (2005). Infância e História: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG. corrobora essa perspectiva teórica, ao fazer uma relação entre a noção de infante (etimologicamente aquele que não fala) e a de experiência. Para ele, a experiência, no sentido mais denso do termo, tão escassa nos tempos atuais, não pode existir apenas na linguagem, por meio da palavra. Em seus dizeres: "que o homem não seja sempre já falante, que ele tenha sido e seja ainda in-fante, [itálico no original] isto é a experiência" (Agamben, 2005Agamben, G. (2005). Infância e História: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG., p. 62). Por meio dessa afirmação, percebemos que existe uma distinção entre a experiência dos adultos – cada vez mais minimizada e escassa devido à racionalidade e à técnica características do mundo contemporâneo (Agamben, 2005Agamben, G. (2005). Infância e História: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG.; Benjamim, 1984Benjamin, W. (1984). Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus.) – e a experiência das crianças (mais sensorial, que perpassa o corpo, lugar sensível que expressa o registro da experiência de meninos(as).
Entendemos, a partir disso, que a experiência infantil envolve os sentidos pela via de um corpo sensível, em que aquilo que toca a criança, de certo modo, a modifica, produzindo certos saberes, haja vista que, para Larrosa (2002)Larrosa, J. (2002). Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação. 19, 20-28., o saber da experiência é um saber construído a partir da relação entre os sujeitos e os acontecimentos, em função das respostas dadas pelos sujeitos a esses acontecimentos.
Considerações finais
Partindo do princípio, apresentado no início deste texto, de que diante da complexidade do edifício teórico composto pela textualidade (também complexa) da escrita de Walter Benjamin, toda e qualquer sistematização se torna imprecisa e problemática. A leitura atenta deste autor possibilita a conformação de um olhar diferenciado para a prática pedagógica e a pesquisa científica envolvendo a criança pequena.
Pensar que as crianças edificam um mundo pequeno, enraizado em um mundo maior, pressupõe admitir a competência social das crianças e não considerá-las como seres incompletos e inacabados, nem tampouco como um devir, um vir a ser no futuro. Isso implica na desconstrução e na reconstrução das relações sociais entre adultos e crianças levando à urgência de construção de relações mais atentas às capacidades e às potencialidades das crianças que, cotidianamente, convivem conosco em instituições de cuidado e educação.
Pressupõe também que, se reconhecemos que as crianças constroem um mundo cultural que lhes é próprio, num fecundo diálogo com a cultura e a sociedade adultas, as práticas (tanto pedagógicas, quanto de pesquisa) devem, pelo menos, levar em consideração o ponto de vista infantil. Esse empreendimento demanda a desconstrução de práticas planejadas "para" as crianças e a emergência de práticas "das" próprias crianças ou, pelo menos, construídas com a participação dos(as) pequenos(as). Ou seja, é preciso que o adulto deixe as crianças criarem, no sentido lato da palavra, assumindo-se, como sujeitos de maior plenitude em termos de experiências culturais, o estatuto de mediadores e ampliadores dessas experiências.
Ao considerarmos as experiências infantis – que as distinguem daquelas vividas pelos adultos, em função de suas especificidades (da repetição, da continuidade, da narratividade verbal e corporal dos(as) pequenos(as)) –, não só caminhamos ao encontro do mundo da percepção infantil, mas também construímos um olhar pautado na alteridade da infância, entendendo que as crianças possuem um modo diferente – composto por um misto de complexidade e sutileza (Santos, 2013Santos, S. V. S. dos. (2013). A gente vem brincar, colorir e até fazer atividade – a perspectiva das crianças sobre a experiência de frequentar uma instituição de Educação Infantil. Dissertação de mestrado em Educação, UFMG, Belo Horizonte.) – de atribuir sentidos ao mundo que as circunda. Mais do que isso, a busca pela compreensão das experiências das crianças possibilitaria uma melhor percepção dos seus modos de ser e estar no mundo, o que remete novamente à produção de novas práticas pedagógicas ampliadoras da experiência infantil.
Em suma, o estudo e a leitura, minuciosa e atenta, da obra benjaminiana possibilitam a construção de práticas pedagógicas emancipadoras da infância com que nos relacionamos cotidianamente em espaços públicos de educação e cuidado. Possibilita em síntese, a construção de um espaço diferenciado para a infância contemporânea, que permita à criança experiências reais de vida, na descoberta do mundo, de si própria e do outro. Um espaço que lhe oportunize a exploração do mundo, em vivências reais, de ação e reflexão, de crescimento e desenvolvimento.
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Na perspectiva de Benjamin, os conceitos de grande e pequeno não expressam apenas relações de grandeza, mas de poder, provocadas pelas contradições que caracterizam a modernidade e, quiçá, a pós-modernidade. "Há que ponderar que para Benjamin os conceitos de 'pequeno' e 'grande' são desenhados e significados a partir de relações éticas, estéticas e epistemológicas. Expressam não apenas relações formais de grandeza, mas, sobretudo, relações de valor e de poder. Assim, 'pequenos' não são apenas os fragmentos e os detalhes supostamente banais do cotidiano; são também os sujeitos excluídos pelas politicas sociais ou pelos grandes sistemas explicativos. 'Pequenos' [grifos no original] são também as crianças – seja em termos de estatura, seja em termos políticos – uma categoria social então com pouca visibilidade e autonomia" (Pereira, 2012Pereira, R. M. R. (2012). Um pequeno mundo próprio inserido em um mundo maior. In R. M. R. Pereira, & N. M. R. Macedo. Infância em pesquisa (pp. 25-57). Rio de Janeiro: NAU., pp. 29-30).
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
May-Aug 2015
Histórico
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Recebido
07 Fev 2014 -
Aceito
09 Set 2014