Resumo
Este texto, que é um recorte de uma pesquisa de doutorado, intenciona movimentar diferentes fluxos de pensamentos a partir de uma intercessão fílmica, incitando a pensar uma experiência educativa. Busca dar atenção àquilo que tem a potência de afetar e inquietar em um encontro fílmico, possibilitando a produção de diferentes arranjos e tessituras. A partir das narrativas disparadas pelo atravessamento entre o filme O balão branco e o livro Pedagogia profana (2010), de Jorge Larrosa (com os acadêmicos da Graduação em Artes Visuais da UFSM), foi possível tecer conexões com a docência. As problematizações suscitadas a partir do cruzamento da imagem fílmica selecionada, das narrativas produzidas pelos acadêmicos envolvidos na investigação e dos conceitos operados na pesquisa, especialmente os conceitos dos filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari, agiram como um vetor de ressonâncias, impulsionando, a partir dos ecos repercutidos, a invenção de múltiplas e singulares cenas para a educação.
Palavras-chave pensamento; intercessões fílmicas; ressonância; experiência educativa
Abstract
This paper, which is part of a PhD research, aims to put into movement different fluxes of thoughts by means of a filmic intersection, inciting one to think a educative experience. It aims to attempt to what has the potential to affect and disquiet in a filmic encounter, making the production of different arrangements and textures possible. Through the narrative triggered by the crossing between the movie ‘O Balão Branco’ and the book ‘Pedagogia Profana’ (2010), from Jorge Larrosa (along with the undergraduate students in Visual Arts of UFSM), connections with teaching were possible to be made. The problematizations raised by the intersection among the filmic image, the narratives produced by the students, and the concepts operated in the investigation, especially the concepts from French philosophers Gilles Deleuze and Félix Guattari, acted as a resonance vector, impelling, by means of the resulting echoes, the invention of multiple and unique scenes to education.
Keywords thinking; filmic intersections; resonance; educative experience
O que nos instiga a pensar
Em relação às experiências educativas, que forças fazem o pensamento sair de sua inércia e adquirir potência para provocar encontros, intercessões e ressonâncias?
Deleuze e Guattari (2005) expõem que o pensar não é algo inerente ou adquirido, o pensamento precisa ser provocado, pois somente pensamos quando o pensamento é coagido, forçado. Dessa maneira, necessita ser atravessado e instigado por diferentes fluxos de forças que venham a interromper a apatia e a paralisia que nos aprisionam. Deleuze (2006) evidencia que “o que nos força a pensar é o signo” (p. 91). No entanto, o signo não é o pensamento, e sim o que pode propeli-lo a se desprender de sua estagnação.
“O signo é o objeto de um encontro; mas é precisamente a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele faz pensar” (Deleuze, 2006, p. 91). É nesse campo de confluências que os signos são emitidos, por isso eles não aparecem do mesmo modo e são decifrados de formas distintas, pois dependem da conjuntura e das implicações de cada encontro. É um equívoco confundir o sentido do signo com o “ser” ou o “objeto” que ele estabelece, achando que o segredo do signo está no objeto ou no sujeito.
Por esperar que os objetos e os sujeitos nos desvelem os enigmas que almejamos, passamos a nos frustrar por eles não atenderem ao esperado. Essa atitude nos esquiva de experienciar e de nos entregar intensamente a outros signos. Por isso, certos encontros acabam nos escapando, pela tendência que possuímos a optar pela facilidade das recognições.
A recognição não necessita de esforço, o trabalho é de associação e de reconhecimento, pois se reencontra sempre com o habitual e com o familiar. Além de se unir ao sujeito ou ao objeto correspondente, conecta-se também com valores vigentes e universais instituídos, por isso passa a ser uma operação redundante. O pensamento, entretanto, é violentado, conta com as circunstâncias do instante e com aquilo que impulsiona a pensar. Está aberto ao incomum, ao intolerável, ao extraordinário.
Os encontros fortuitos lidam com a imprevisibilidade, com o não conhecido, com aquilo que não pode ser antecipado, causando o estranhamento. E é justamente esse encontro surpreendente, movediço e oscilante que assegura a premência daquilo que é pensado. Quando estamos à mercê do inesperado em um encontro, distanciamo-nos da realidade costumeira e da referência cognitiva que nos causam segurança, e é essa atmosfera acontecimental que assegura a necessidade do que pensamos.
O desconcerto de sermos afetados por diferentes intercessores (alguém, situações e coisas) nos tira o chão firme, mas nos convida a viajar por caminhos imprevisíveis. Essas experiências, em algumas situações, chegam sem bater à porta e acabam nos arrastando, propiciando um mar de possibilidades. O pensamento sai de sua letargia quando os intercessores em um encontro impulsionam à invenção.
Deleuze (2010) revela que “a criação são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pessoas... mas também coisas, plantas, até animais, .... Fictícios ou reais, animados ou inanimados” (p. 160). Vasconcellos (2006), a partir dos estudos em Deleuze, expressa que “o intercessor é qualquer encontro que faz o pensamento sair de sua imobilidade natural, de seu estupor. Sem os intercessores não há criação. Sem eles não há pensamento” (p. 7).
Dessa forma, passamos a ter interesse em pesquisar como se dá, em experiências educativas, o encontro com alguns intercessores, em especial com as imagens fílmicas. Deleuze (2010) menciona que
no cinema, as imagens são signos .... O cinema faz nascer signos que lhe são próprios e cuja classificação lhe pertence, mas, uma vez criados, eles voltam a irromper em outro lugar, e o mundo se põe a “fazer cinema” [ênfase no original]. (p. 87)
Ao convidar a imagem fílmica para ser um dos nossos intercessores, a intenção é de forçar o pensamento a pensar outras coisas, opondo-se a uma imagem naturalizada, homogeneizada e sentenciosa que o pensamento está acostumado a pensar. O cinema, por ser uma matéria pensante, uma matéria inteligível, pode impulsionar a criação de pensamentos, propiciando atuar no mundo apresentado e ficcionar outras possibilidades.
Dessa maneira, as imagens fílmicas ou os signos fílmicos, na pesquisa, passaram a ser vistos como provocações que impulsionam a contestação dos hábitos do pensamento ainda arraigados e solidificados em nós. Transpor esse estado letárgico do pensamento requer abalos e arrombamento, implica abrir mão das certezas totalizantes e absolutas, colocando-nos diante do extraordinário e do impensável.
Entretanto, vale ressaltar que “é preciso fabricar seus próprios intercessores” (Deleuze, 2010, p. 160), pois quem elege os intercessores somos nós, a escolha é sempre singular. Por mais que venhamos a oferecer diferentes intercessores para os nossos estudantes, não sabemos se esses serão escolhidos e acolhidos como tal. Para alguns estudantes eles podem fazer sentido, e não fazer nenhum sentido para outros.
Foi pensando nisso que denominamos de intercessão fílmica os encontros com filmes que nos afetaram durante a pesquisa, pois nos instigaram a pensar e problematizar a experiência educativa. Não temos como assegurar que o mesmo ocorreu com os envolvidos no processo, pois o campo de confluências em que cada um estava enredado era distinto. Cada um selecionou seus intercessores, aquilo que realmente fez sentido e o contaminou. Ou, talvez, tenham apenas participado do encontro, não se sentindo contagiados a ponto de fabricá-los.
Cremos que a possibilidade está apenas em oferecer oportunidades de encontros aos nossos estudantes, mas sem a expectativa de que realmente isso possa acontecer com eles. São apenas sementes jogadas ao solo, que podem ou não germinar... E, nesse plantio, talvez venhamos a nos surpreender com o que foi possível nascer “em meio” a tudo isso.
Produzimos e somos produzidos numa multiplicidade, ainda que, por vezes, isso não seja tão visível assim. No nosso caso, os ecos das intercessões fílmicas nos incitaram a pensar a docência, arremessando-nos a uma paisagem problematizadora. Entretanto, não significa que o cinema tenha mais potencialidade para dialogar com as experiências educativas do que outros intercessores. Esta foi, na verdade, uma escolha entre tantas. Poderia ter sido, por exemplo, as pinturas do modernismo, mas não foi.
Com base no que foi exposto, buscamos pesquisar como se dá, nas experiências educativas, o encontro com a imagem fílmica, e o que se produz a partir daí. Não a imagem em si, mas a relação que se estabelece com as imagens e com as implicações do cenário circunstancial de cada encontro.
A imagem é relação, e por isso não se tem como pensar a imagem individualmente, pois ela é aliança. É no emaranhado dos liames produzidos com a imagem fílmica que, talvez, venhamos a ser incitados e contagiados por signos que se encontram neste potente campo de confluências em que estamos enredados.
Por isso, o desafio desta escrita é trazer algumas questões à pauta, para que venhamos a pensar aquilo que tem a capacidade de nos afetar e inquietar em uma intercessão fílmica, fazendo-nos repensar a nossa experiência docente, aquilo que tem a potência de provocar vibrações, ampliando a intensidade do que é experienciado e possibilitando que outras ressonâncias possam ser inventadas.
A pesquisa “em meio” às experiências educativas
Conforme Van Manen (2003), a investigação de uma experiência educativa busca dar atenção ao “campo empírico de la experiencia vivida de forma cotidiana” (p. 9). As vivências do dia a dia do investigador passam a ser o corpus da pesquisa, oferecendo um material frutífero para pensar a educação. É uma pesquisa que oportuniza que cada um apresente o que construiu a partir da sua própria experiência, seja no ambiente acadêmico (como docente, discente e pesquisador) ou pessoal.
É um estudo em que são levadas em consideração as vivências com os indivíduos, as problematizações fomentadas, as narrativas realizadas, a relação com os materiais visuais e textuais e o que foi possível produzir com tudo isso. É nesse campo intenso que múltiplas vozes são atravessadas, que conhecimentos são compartilhados e que outras cenas para a educação são inauguradas.
Quando estamos à espreita dos encontros, passamos a ser “un observador sensible de las sutilezas de la vida cotidiana” (Van Manen, 2003, p. 47). O desafio talvez esteja em descansar o olhar em cada um dos encontros, para que possamos nos colocar em posição de aprender com eles, deixando-nos inundar pelas ocorrências que não conhecemos, que nos causam temor, que nos desafiam a pensar diferente e que fazem tombar nossas certezas e dogmas. Esse é o preço de viver intensamente o vivido...
A pesquisa de uma experiência educativa traz para a discussão a capacidade de visualizarmos e de pensarmos as possíveis paisagens que podemos compor com os incidentes comuns, com o ínfimo, com aquilo que por vezes é desprezado e descartado no nosso cotidiano. Esse pouso demorado faz com que venhamos a entrar em contato com as forças que nos instigam a perpetuar o que fazemos, colocando-nos frente a frente com nossos entraves e limitações.
Investigar a própria experiência educativa oportuniza que pensemos sobre a nossa atuação no espaço pedagógico, passando a dar atenção às ressonâncias propagadas em cada um dos nossos encontros e impelindo a repensar a relação com nós mesmos e com todos os envolvidos no processo educativo.
As inesgotáveis nuances da ressonância
Conforme Conle (2000 citado por Creus, Montané, & Sancho, 2011), a noção de ressonância é vista como “un proceso que hace avanzar la indagación, produciendo más y más historias” (p. 55). As ressonâncias propagadas nos encontros têm a propriedade de se dissipar, de se dispersar, ampliando o campo de atuação. Essa propagação vibratória produz ecos que possibilitam diferentes relações com outros elementos, repercutindo outras composições, para além do esperado.
Quando trabalhamos coletivamente e compartimos impressões e experiências, é possível produzir vibrações de maior amplitude. As ressonâncias repercutidas de um se alastram a outros e se ampliam, misturam-se com outros ecos e acabam produzindo outras coisas, contribuindo para que outros sentidos aos nossos encontros aconteçam.
As sobreposições de narrativas colaboram no processo de investigação, pois os ecos repercutidos em um encontro passam a ressoar outras possibilidades, para além do que é costumeiro. Abrem-se com isso diferentes temáticas, acionando outras relações e problematizações. Creus et al. (2011) definem que a ressonância é uma “estrategia para hacer emerger identificaciones y desidentificaciones, para establecer un proceso de diálogo en el que las situaciones críticas nos permitieran ahondar en la comprensión de diversos sentires y puntos de vista” (p. 68).
As frequências ressonantes variam, pois o movimento oscilatório se deve à intensidade que empregamos em nossos encontros e à energia vibracional que damos para determinadas situações. Podemos ou não aumentar a duração e a intensidade de algo vivido, fazendo com que as ondas se ampliem, retraiam-se ou se neutralizem. A intensidade se refere ao quanto nos permitimos afetar, oscilar e variar, deixando que as ondas vibracionais dos encontros nos toquem por inteiro.
Guerra Neto (2001) declara que, “para que a ressonância se faça, são imprescindíveis duas dimensões ou dois princípios que são o da atração e o da afinidade” (p. 71). Pensamos que a ressonância acontece mesmo em encontros em que não haja afinidade, e a aproximação, a relação ou a simpatia não estejam presentes. Não é somente nas identificações, mas também nos estranhamentos que as ressonâncias podem nos afetar com maior potência. A incompatibilidade pode ressoar com maior intensidade, fazendo desestabilizar nossas certezas e nos incitar a pensar outras possibilidades.
Observamos que Gilles Deleuze e Félix Guattari operaram com o conceito de ressonância em suas obras, principalmente quando vão fazendo relações e dialogando com todos os conceitos trabalhados, pois cada conceito acaba ressoando no outro. Percebemos também que eles têm a propriedade de movimentar outras vibrações no mesmo conceito, embora contraditórias, pois, a partir da trama de outros elementos com o conceito anteriormente desenvolvido, vão-se compondo outros arranjos, e outras ressonâncias são alastradas. Eles nos vão oferecendo, a cada página, novas indagações, diferentes tessituras e material para pensarmos a própria vida. Como observa Deleuze (2010),
a ressonância não se baseia em pedaços que lhe seriam fornecidos pelos objetos parciais, nem totaliza pedaços que viriam de outro lugar. Ela extrai seus próprios pedaços e os faz ressoar segundo sua finalidade específica, mas não os totaliza, visto que se trata sempre de um “corpo a corpo”, de uma “luta” ou de um “combate”. [ênfases no original]O que é produzido pelo processo de ressonância, na máquina de fazer ressoar, é a essência singular, o ponto de vista superior aos dois movimentos que ressoam, em ruptura com a cadeia associativa que vai de um a outro. (p. 144)
As diferentes ressonâncias fazem movimentar o exercício do pensamento, pois “o pensar passa a ser uma exposição às forças, ao acaso, algo que se dá no intervalo, no entre, no espaçamento” (Levy, 2011, p. 128). Estar à espreita dos encontros na experiência educativa, estando atento às ressonâncias propagadas, pode levar a pensar diferentes questões, ampliando as possibilidades para a vida e inventando outras maneiras de existir.
Pensando dessa forma, utilizamos nesta pesquisa uma intercessão fílmica da nossa experiência educativa que aconteceu no primeiro semestre de 2013 e foi compartilhada com os acadêmicos das disciplinas do Estágio Supervisionado III e IV do Curso de Graduação em Artes Visuais, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Parece-nos ser interessante lançar um olhar atento a essa experiência, pois as ressonâncias repercutidas nesse encontro continuam a nos provocar, desafiando-nos a pensar e inventar outras.
Nosso objetivo foi dar atenção ao que era possível pensar e produzir a partir desse encontro, preocupando-nos que essas experiências não servissem apenas como suporte reflexivo, mas que elas pudessem ser pensadas como disparadoras de inquietações. Para tanto, além da imagem fílmica, mais dois intercessores estiveram imbricados na nossa pesquisa, mobilizando-nos a pensar a experiência educativa: as narrativas dos acadêmicos envolvidos na investigação e os conceitos dos teóricos utilizados, especialmente os dos filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari.
As narrativas dos acadêmicos, em relação ao encontro, foram pensadas como impulsionadores de problematizações, e os conceitos tiveram a intenção de tensionamento, quando operados junto com a intercessão fílmica, as narrativas dos acadêmicos e também coadunados ao deslocamento e à produção de nosso próprio pensamento.
É nesse emaranhado de relações que a potência inventiva para pensar outras vias para a docência pode acontecer e ressoar, colocando-nos em contato com o extraordinário, com o impensável, pois, no momento em que o pensamento é arrombado e provocado, hábitos do pensamento são contrariados e forçados a sair do seu estado apático e indiferente.
Nessa direção, optamos pela perspectiva narrativa, com o propósito de atender aos anseios da investigação, possibilitando que se estabelecesse “a experiência como pauta de discussão ou como focos de investigação” (Oliveira, 2011, p. 178).
Quando estudamos as narrativas de outros, passamos a transitar em mundos que desconhecemos, pois se entrelaçam pensamentos e impressões diferenciadas. Essa multiplicidade contribui para que novas composições sejam acionadas, possibilitando outras produções de sentidos.
A importância das narrativas está naquilo que elas nos provocam a pensar e nas outras conexões que elas nos desafiam a realizar. Por isso, é possível dizer que, ao fazer a opção por uma investigação de caráter narrativo, também estamos levando em consideração o cruzamento e o compartilhamento, pois tanto os colaboradores como o investigador estão envolvidos neste processo.
O ressoar da intercessão fílmica...
Ao vislumbrar a intercessão fílmica como impulsionadora para nos fazer pensar a docência, ou, quem sabe, o impensável da docência, passamos a expor um encontro que ocorreu quando compartilhamos experiências educativas com três acadêmicos do Estágio Supervisionado III e quatro acadêmicos do Estágio Supervisionado IV.
Essa intercessão, em especial, desafiou-nos a ir em busca de alguns conceitos para dar conta das exigências que o filme e as narrativas dos acadêmicos suscitavam, impulsionando a debruçar-nos mais demoradamente nos estudos sobre o cinema, especialmente nas obras Imagem-movimento (1983) e Imagem-tempo (1990), de Gilles Deleuze.
Esta colocação reafirma a implicação da teoria e da prática, pois, devido à premência do momento, sentimos ora a necessidade de buscar conceitos para compreender o que está acontecendo na investigação, ora a teoria estudada faz com que o nosso olhar fique mais atento e se direcione para determinadas coisas que, talvez, ficariam imperceptíveis se não houvesse o chamamento da teoria. Teoria e prática vão se atualizando intensamente no decorrer da pesquisa.
Optamos por explorar um filme que se distanciasse das experiências escolares, pois acreditamos que dessa forma outros signos poderiam estar imbricados, acionando o pensamento a fazer outras relações com a docência. A escolha do filme O balão branco (1995), produzido no Irã com direção de Jafar Panahi e roteiro de Abbas Kiarostami, partiu da intenção de explorar imagens fílmicas que suscitassem diferenças e não similaridades, abrindo mão das relações de reconhecimento e de associação. As imagens fílmicas que nos incitam a sair da posição cômoda de reconhecimento em que muitas vezes nos encontramos, que nos incomodam pelas lacunas e pelos vazios produzidos em cena, que nos tocam a ponto de acionarmos “lençóis de passado” (Deleuze, 1990) e que nos instigam a atualizar esses lençóis no presente, são as que nos levam a ter sensações e experiências estrangeiras e insólitas.
O filme . balão branco, um longa-metragem com duração de 85 minutos, conta a história de uma menina chamada Razieh, que no decorrer das festividades do ano novo na Pérsia insiste para sua mãe lhe dar um lindo peixinho dourado e gordo. Como a família estava passando por dificuldades financeiras, a mãe da garotinha nega seu pedido. O irmão, vendo a tristeza da irmã, resolve interceder junto a sua mãe, convencendo-a a dar o dinheiro para que ela pudesse comprar o tão desejado peixe. Razieh sai de casa com o dinheiro na mão em busca do seu peixe dourado e a partir desse momento passa a viver uma grande aventura durante o seu caminho até a loja. O que poderia ser um trajeto simples passa a ser um percurso repleto de paradas, obstáculos, frustrações, desafios e superações.
Além do filme, procuramos facultar mais um elemento nesse encontro, explorando o cruzamento de um novo intercessor, o livro Pedagogia profana (2010), de Jorge Larrosa. Buscamos, com isso, dialogar com diferentes signos e produzir singulares desdobramentos, visando à composição de inusitados arranjos. O propósito era que os conceitos e os signos implicados no livro tivessem o papel de tensores, incitando a pensar a docência através de uma maior gama de perspectivas.
Isso foi possível porque, durante o semestre, o grupo se propôs a estudar semanalmente cada capítulo da obra Pedagogia profana. Quando solicitamos que assistíssemos ao filme, já havíamos trabalhado com todo o livro, o que contribuiu sensivelmente no diálogo entre filme, livro e docência.
À vista disso, lançamos o seguinte questionamento: que ressonâncias são possíveis de serem cruzadas e inventadas, a partir do encontro com o filme O balão branco, com os conceitos trabalhados no livro Pedagogia profana e com a docência?
O atravessamento desses três elementos foi intenso, reverberando potentes problematizações, como será possível constatar mais adiante. No entanto, pudemos também detectar o quanto ainda temos dificuldade em fazer movimentar os diferentes elementos envolvidos em uma multiplicidade. Ainda é um desafio mover-se “rizomaticamente” (Deleuze & Guattari, 1995), pois temos introjetada uma visão estruturada e arbórea, “primeiro isso”, “depois aquilo”. O desafio está em se deixar surpreender pelas alianças e pelas composições que os possíveis elementos implicados sugerem e tensionam, permitindo evadir-se, extravasar e romper nessas conexões.
A seguir, exploramos as narrativas de alguns acadêmicos a partir do encontro com o filme O balão branco, o livro Pedagogia profana e a docência, que nos parecem repercutir ecos, incitando-nos a pensar e produzir diálogos com determinados conceitos. Para tanto, alguns pontos de força passaram a ser ativados e problematizados: Quando os lençóis de passado são evocados, A problematização das verdades, “Entre casa e peixinho existe o mundo”, “Viajar por entre capítulos e páginas”, O que o silêncio tem a nos dizer? e O movimento silencioso da imagem.
Quando os lençóis de passado são evocados
Ao ver ‘O Balão Branco’ sou jogado por mil pensamentos. Fecho os olhos e ainda posso sentir forte os cinco reais cerrados na minha mão. Uma tarefa tão simples, que era comprar pão no supermercado da outra quadra, podia ser uma aventura gigantesca quando se tinha 6 anos e vizinhos que te abordavam no meio do caminho para te agredir. Às vezes voltava para casa sem pão nem dinheiro, mas com um silêncio.
Sou jogado também para o Marrocos, ano de 2011, momento em que estava numa terra sem leis, entre serpentes, ilusionistas e um povo sofrido, que tinha nos turistas a sua fonte de renda. Só naquele país tive o tal choque cultural, foi quando as minhas percepções viraram de ponta cabeça, o mesmo olhar assustado de turista era o da criança perdida com seu aquário, entre muçulmanos, Islã, África e deserto. (Acadêmic@ 01 Estágio Supervisionados IV)
O pensar não é uma faculdade natural, pois resulta de forças que invadem e ocupam o pensamento, apoderando-se dele. Essas forças fazem o pensamento sair de seu natural estupor, forçando-o a se desprender de sua letargia costumeira. O filme O balão branco possibilitou isso, pois impulsionou o acadêmico 01, do Estágio Supervisionado IV, a pensar sobre a própria vida.
A partir da narrativa desse mesmo acadêmico, observamos as inúmeras relações que podem ser suscitadas em uma intercessão fílmica. “Um acontecimento, mesmo breve, mesmo instantâneo, se prolonga” (Deleuze, 2010, p. 203). O encontro com o filme possibilitou esse prolongamento, pois seus signos fílmicos produziram ecos e se propagaram, a ponto de os lençóis de passado serem evocados.
Inventou-se um fio condutor que passou a tecer diferentes relações, comunicando-se transversalmente entre as diversas camadas de passado. Segundo Deleuze (1990), os acontecimentos “não param de ser remanejados conforme pertencem a este ou àquele lençol de passado, a este ou àquele contínuo de idade, todos coexistentes” (p. 146).
O tempo significa a coexistência de todos os lençóis ou camadas de passado. Os lençóis de passado são lembranças puras e não podem ser confundidos com as imagens-lembrança. No entanto, é “a partir dos lençóis de passado que as imagens-lembrança nascem” (Machado, 2010, p. 278) e se tornam possíveis.
Pelbart (2010) expõe que Deleuze vê o tempo como uma multiplicidade, um gigantesco folheado ontológico, um plano das coexistências virtuais. Nesse plano, “o tempo não ‘passa’ [ênfase no original], mas conserva-se como virtualidade disponível em todos os seus pontos para atualizações diversas e segundo as mais insólitas conexões” (p.186).
Nesse folheado ontológico, “cada lençol de passado tem sua distribuição, sua fragmentação, seus pontos brilhantes, suas nebulosas, em suma, uma idade” (Deleuze, 1990, p. 150). É por isso que uma imagem do presente pode acionar os pontos brilhantes de uma camada de passado em fração de segundos, pois elas coexistem, tornando possíveis as imagens-lembrança. Na colocação “ainda posso sentir forte os cinco reais cerrados na minha mão” é possível observar o lençol que se conservou no tempo e que necessitava apenas ser impulsionado a vir à tona, pois “não é mais o futuro e o passado que subvertem o presente existente, é o instante que perverte o presente em futuro e passado insistentes” (Deleuze, 2011, p. 170).
Evidencia-se nessa passagem a intensidade do tempo, pois se passa a deslindar um tempo não linear, não cronológico, uma vez que as regiões virtuais do passado podem ser evocadas de acordo com as circunstâncias do momento. Deleuze (1990) expõe que a instalação em um lençol de passado pode acarretar duas situações: “ou descubro ali o ponto que procurava, que vai, portanto, se atualizar numa imagem-lembrança .... Ou não descubro o ponto, porque ele está em outro lençol que me é inacessível, pertence a outra idade” (p. 150). A citação de Deleuze faz pensar que nem sempre os lençóis de passado serão acionados, pois isso depende da interferência de determinados fatores: acessibilidade ou nebulosidade de cada camada.
Assim, ao encontrar o que se deseja, o afeto e a relação com essa camada de passado se renovam, prolongando-se para o presente sensações atualizadas. Esse estiramento para o presente permite a mistura de outros elementos, a variação e a invenção de outros modos de viver.
Pelbart (2010) destaca que
não se trata de um passado a descobrir, mas a inventar segundo o dobramento a que estará submetido e que o irá situar num feixe de relações insuspeitado. [ênfases no original]Diríamos que o tempo, como matéria-prima aberta, é como uma massa a ser incessantemente moldada, ou modulada, estirada, amassada, comprimida, fluidificada, densificada, sobreposta, dividida, distendida etc. O tempo liberado do presente, do presente atualizado, do movimento, da sucessão, significa que essa massa torna-se disponível a uma pluralidade processual que não cessa de fazê-la variar. (pp. 19-20)
A fluidez e a flexibilidade do tempo permitem um fluxo de forças vacilante, movediço e distendido, e é nessa agitação e coexistência dos tempos que temos a possibilidade de produzir e de produzir-nos, de variar, de inventar outros de nós mesmos. A comunicação transversal com os lençóis de passado não tem a intenção de buscar nessas camadas a essência do que somos hoje, e sim o que é possível invencionar com esses lençóis a partir do presente. Não se trata de ser um menino aos 6 anos, um turista em 2011, uma criança com um aquário ou um acadêmico do Estágio Supervisionado. Somos uma multiplicidade, um folheado, por isso podemos ser o acadêmico que é criança, é turista, é menino, é ilusionista, é serpente, é deserto, é balão branco.
A problematização das verdades
A experiência pela qual passamos de uma leitura em comum aconteceu como Larrosa descreve: “(...) como um dos jogos possíveis do ensinar e do aprender” (2010, p. 139). Nossa leitura foi a mesma, mas as interpretações de cada um foram múltiplas, os conceitos e as verdades foram questionados. (Acadêmic@ 01 Estágio Supervisionado III)
Deleuze (2010) comenta que “temos sempre as verdades que merecemos, em função dos procedimentos de saber ..., dos mecanismos de poder, dos processos de subjetivação ou de individuação de que dispomos” (p. 149). Portanto, ao reconhecer que a verdade está imbricada em jogos de poder e de interesse, discursos verdadeiros e não verdadeiros podem ter sido produzidos em uma época.
Gilles Deleuze (1990) acentua que o “tempo sempre pôs em crise a noção de verdade. Não que a verdade varie conforme as épocas. Não é o mero conteúdo empírico, é a forma, ou melhor, a força pura do tempo que põe a verdade em crise” (p. 159). A noção de verdade fica estremecida com um pensamento do tempo não linear, não evolutivo e não totalizante, pois, se determinados acontecimentos não tiveram seu lugar no tempo, porque chegaram com atraso ou foram desprezados, negados e descartados, é possível questionar se no presente coexistem passados obrigatoriamente verdadeiros. Isso nos leva a reconhecer que a história poderia ter sido escrita de forma totalmente diferente.
Para que possamos pensar sobre isso, talvez a “falsificação” seja uma questão a ser explorada nas experiências educativas. A “potência do falso” avilta a verdade, pois salienta e faz pensar a coexistência de passados não obrigatoriamente verdadeiros, já que permite a presença de diferentes alternativas, de outras possibilidades. Para Deleuze (2010), “a potência do falso é o tempo em pessoa, não porque os conteúdos do tempo sejam variáveis, mas porque a forma do tempo como devir põe em questão todo modelo formal de verdade” (p. 89).
A literatura e também o cinema se movimentam, a todo instante, na potência do falso, em que verdades permanentes são questionadas, possibilitando a problematização da verdade como “modelo”. E nessa trama “o falsário não pode ser reduzido a um mero copiador, nem a um mentiroso, pois o que é falso não é apenas a cópia, mas já o modelo” (Deleuze, 1990, p. 178).
Nas experiências educativas, o diálogo com a potência do falso nas intercessões fílmicas possibilita o questionamento do que é dado como verdade. Devido às narrações falsificadoras fugirem do sistema do juízo e do arbitramento, os envolvidos se sentem mais à vontade para pensar em outras alternativas, em outras possibilidades, em outras maneiras de viver. A verdade não necessita ser conhecida ou reconhecida, nem mesmo reprisada, precisa sim ser provocada e produzida, lembrando a todo momento que ela é e será sempre provisória.
Nietzsche diferencia a vontade de verdade e a vontade de potência. A vontade de verdade se baseia na convicção de uma verdade preexistente, enquanto a vontade de potência se apoia na ausência desse mundo: portanto, cabe inventá-lo. Na vontade de potência, a potência “é o poder de afetar e de ser afetado, a relação de uma força com outras” (Deleuze, 1990, p. 170).
Além de afetar e ser afetado, a vontade de potência consiste também em engendrar fabulações e inventar mundos onde qualquer possibilidade de julgamento é anulada. Estabelecer relações entre a vontade de potência e as potências do falso, nas experiências educativas, possibilita pensar outros caminhos talvez ainda não trilhados, com a intenção de potencializar outras construções de sentidos para a educação, para a docência.
“Entre casa e peixinho existe o mundo”
Poderia muito bem se contentar com peixes dourados magrelos, mas não, era preciso sair do conforto de casa para ir buscar aquele peixe, gordinho e dourado como um troféu, mas entre casa e peixinho existe o mundo, e o mundo também é lição de casa, daquelas que a gente aprende e não esquece, mesmo que tenha sofrido para terminar.
(Acadêmic@ 01 Estágio Supervisionado IV)
Estranho como o peixinho nos parece maior, mais gordinho, dependendo apenas do ângulo que observamos. Ou o que tanto queríamos se torna quase nada devido a tudo que vivemos ao longo do processo, e aquela conquista é frustrada devido às enormes expectativas que depositamos no porvir. Como Larrosa coloca, o processo de formação é uma viagem em que pode acontecer qualquer coisa, e “na qual não se sabe onde se vai chegar, nem mesmo se vai chegar a algum lugar”.
(Acadêmic@ 02 Estágio Supervisionado IV)
Deleuze (2010) aponta que “não são os começos nem os fins que contam, mas o meio” (p. 205), pois é no “entre” que as coisas acontecem e que os pensamentos se avolumam e ganham velocidade. É preciso levar em consideração que “entre casa e peixinho existe o mundo, e o mundo também é lição de casa”. As aprendizagens acontecem não na origem do mundo, nem no término do mundo, mas nos mundos. É no “entre” que os cruzamentos e as conexões passam a acontecer.
O “entre” pode surgir em qualquer ponto, pois tem uma natureza descentrada. Não deriva de uma unidade e tampouco é direcionado a uma, ele transborda, por isso pode se conectar com qualquer outro ponto. “É como os desvios de um movimento que ocupa o espaço à maneira de um turbilhão, com a possibilidade de surgir num ponto qualquer” (Deleuze, 2010, p. 205).
Nas experiências educativas, desperdiçamos energia, ao nos preocuparmos com o ponto de chegada, ao qual todos os estudantes, depois de um percurso, devem chegar. Tudo que vivenciamos no decorrer do trajeto, por vezes, é desconsiderado, sufocado ou negado. A menina do filme tinha um objetivo, comprar o peixinho dourado. Entretanto, mais importante que isso foram as experiências que ela obteve durante o processo: “entre a casa e o peixinho” muitos encontros aconteceram, com proposições tentadoras, desafiadoras e inusitadas. E foi justamente esse “mundo” que mais reverberou aprendizagens.
Ao assistir ao filme, uma angústia foi tomando conta de nós, perguntamo-nos várias vezes: por que ela não vai direto comprar o peixinho dourado? Por que tantas paradas? Por que ela se dispersa tanto? Ao entrar em contato com esses sentimentos, percebemos o quanto a chegada ao ponto de destino e o cumprimento das metas ainda preponderam em nossa vida, passando a ter mais importância que o processo. Essa colocação não significa que tenhamos que desconsiderar os nossos objetivos e planos, mas junto deles podemos também estar à espreita do que nos acontece no meio do percurso, vivendo intensamente o que os encontros com pessoas, situações e coisas podem propiciar.
“O processo de formação é uma viagem, em que pode acontecer qualquer coisa”, pois se lida com o incontrolável, com o imprevisível. Quando propusemos que os acadêmicos das disciplinas de Estágio Supervisionado III e IV assistissem ao filme O balão branco e fizessem relações com as questões trabalhadas no livro Pedagogia profana (2010) e as experiências educativas, nossa intenção era que esses signos os impulsionassem a pensar sobre a docência.
Entretanto, estávamos apenas lançando convites, possibilidades de encontros, aproximações com signos, pois não tínhamos certeza de que esse endereçamento chegaria ao seu destinatário, que o convite seria aceito e que os encontros e as relações viriam a acontecer. O pensar pode ou não acontecer, visto que depende das contingências de um encontro, das forças implicadas, do quanto nos deixamos violentar pelo impensado do pensamento.
É essa incerteza que nos impulsiona a seguir adiante na docência, é esse espaço desconhecido e desafiador que nos incita a apostar na educação. Gallo (2003) sugere que é justamente aí que se reconhece “a beleza do processo educativo: agimos, sem nunca saber qual será o resultado de nossas ações” (p. 103). É quando percorremos um espaço não familiar que nos sentimos vivos, atuantes, pois não estamos apenas representando as cenas que ensaiamos e reproduzindo as falas que decoramos, mas estamos vivendo intensamente cada encontro.
Deixar-se contaminar pelas surpresas do percurso, pelas sensações que nos são oferecidas, pelo que acontece no “entre” do mundo. pode possibilitar viver, a cada dia, de maneira renovada. E talvez, nesta travessia, venhamos a encontrar outros peixinhos mais gordinhos, coloridos e interessantes.
“Viajar por entre capítulos e páginas”
Esse semestre sem dúvida foi atípico. Inicialmente seria o mais simples, não teria muito o que questionar, pois encontrava-me em fase de conclusão, mas não foi assim. Com a proposta do livro Pedagogia Profana, do Larrosa, pudemos diversas vezes viajar por entre os capítulos e páginas da nossa própria história, fazendo com que aquilo que já estava posto como decidido tomasse novos rumos.
(Acadêmic@ 02 Estágio Supervisionado IV)
Pelbart (2010) explicita que sempre “se busca a origem ou o desfecho de uma vida, num vício cartográfico, mas desdenha-se o meio, que é onde se atinge a maior velocidade. Esse meio é justamente onde os mais diferentes tempos se comunicam e se cruzam”. (p. 113). As velocidades não vão de um passado a um futuro, elas estão sempre no meio, no “entre”.
A leitura e o estudo do livro Pedagogia profana, de Jorge Larrosa, nas disciplinas do Estágio Supervisionado III e IV, propiciaram “viajar por entre os capítulos e páginas da nossa própria história”, pois, ao nos deixarmos atravessar por inesperados fluxos de forças, puderam ser propostos diferentes inflexões e cruzamentos. Ao nos permitirmos afetar pelo que acontece no “entre”, diferentes possibilidades se abriram, incitando-nos a experienciar inimagináveis rotas.
Esse percurso, por vezes, torna-se doloroso, pois as certezas passam a ruir, e a insegurança se faz presente. Deixar-se afetar pelas tempestades do trajeto significa tirar o que há de melhor desse acontecimento. Não consiste em entrar em confronto direto, pois isso poderia causar a destruição, mas aproveitar a força e a intensidade no “entre” dos ventos. Quem sabe, aproveitar apenas uma vaga em uma rajada de ar já seja o suficiente para nos encorajar a pensar a própria vida e nos impulsionar a tomar novos rumos.
O que o silêncio tem a nos dizer?
Desde pequeno fui um grande apreciador do silêncio, acho que sabia me comunicar melhor com olhos do que com a boca. Parecia que ao verbalizar tirava o encanto das coisas, o ruído da fala nunca combinou muito bem com a contemplação do olhar. Larrosa fala sobre o silêncio de uma forma que ainda não havia pensado, sobre aquele silêncio necessário para criarmos um distanciamento de nós mesmos, aquele abrir a boca sem som que nos conecta com o mundo através de outros sentidos, ou até mesmo com novas experiências.
(Acadêmic@ 01 Estágio Supervisionado IV)
No livro Conversações, Deleuze (2010) expõe que “o problema não é mais fazer com que as pessoas se exprimam, mas arranjar-lhes vacúolos de solidão e de silêncio a partir dos quais elas teriam, enfim, algo a dizer” (p. 166). O silêncio, nesse sentido, pode estar relacionado com uma atenção tensionada com um voltar a si mesmo, é um momento de escuta e recolhimento, para que possamos ver o mundo e a nós mesmos de maneira renovada (Larrosa, 2010).
Algumas vezes, quando lemos um livro, uma poesia, observamos uma paisagem ou assistimos a uma cena de um filme, a escuta e o recolhimento se fazem presentes e sentimos a intensidade desse calar. Talvez nesse silêncio encontremos coisas que desconhecíamos, um turbilhão de sensações nunca antes experimentadas, gritos silenciados, palavras ainda não proferidas. E, quem sabe, seja neste momento que passemos a ter algo a dizer, algo não costumeiro, algo incomum. Por isso o silêncio pode ser visto como potência, pois é através dele que podemos ganhar velocidade.
Também o silêncio pode ter intensidade “para criarmos um distanciamento de nós mesmos”, um afastamento por vezes necessário. Ao “abrir a boca sem som”, passamos a fazer conexões “com o mundo através de outros sentidos”. Quantas vezes, ao assistir a um filme, sentimos o nosso coração palpitar, o arrepio da pele, lágrimas escorrendo pela face? Enfim, o nosso corpo passa a ter reações surpreendentes, dando-nos a impressão de que todos os nossos sentidos estão conectados com o mundo. Por vezes, necessitamos do silêncio para prestar atenção a todas essas sensações e experiências que nos envolvem. Esses sentimentos nos impulsionam a pensar outras coisas e, talvez, a ser de outra maneira.
Mas o que o silêncio tem a ver com as experiências educativas? Por que trazer esse conceito nesta escrita?
Temos pensado sobre o exercício do silêncio nas experiências educativas, no esforço em escutar nossos estudantes, no desafio de calar no meio de colocações que estão se direcionando para questões com as quais não concordamos e no empenho em silenciar para que outros pontos de vista venham à tona. Mas o que procuramos trazer para a discussão, neste momento, é um outro olhar sobre o silêncio, o silêncio incômodo, aquele que faz com que venhamos a falar qualquer coisa, somente para não sentir aquele momento constrangedor. Em determinadas situações, atropelamos o pensamento dos nossos estudantes por conta do silêncio que causa angústia e mal-estar.
Certa vez, estávamos assistindo a uma fala do professor Raimundo Martins, na UFSM, quando ele solicitou para o público algumas considerações sobre o vídeo que havia passado, e “aquele silêncio” se fez presente. Alguns segundos, que mais pareciam longos minutos, passaram, e nada – nenhum comentário. Ele se acomodou melhor na cadeira e calmamente comentou: “eu e vocês temos toda a tarde para expormos nossas considerações, não precisam ter pressa, pois sei que necessitam desse silêncio para pensar!1..
Essa fala nos tocou muito, pois pensamos nas vezes em que não demos oportunidade para os nossos estudantes pensarem, por conta da angústia que o silêncio nos causava. Muitas foram as vezes em que respondemos às questões que nós mesmas tínhamos lançado, somente para não dar espaço para o “silêncio”. Por isso, nosso desafio tem sido pensar o silêncio como algo intenso, potente, a partir do qual se ganha velocidade para pensar outras coisas. Trata-se de ver o silêncio como um “voltar a si mesmo”, como “um distanciamento de nós mesmos”, como um momento de tensionamento em que as coisas acontecem; para que, a partir disso tudo, tenhamos “algo a dizer”.
O movimento silencioso da imagem
Ao terminar o filme nada parece fazer sentido, nada... Para uma criança sair de casa já é se aventurar, mesmo que tenha ar de tragédia, atravessando por cobras, contrabandistas e baleias. A busca pelo peixe dourado parece árdua, mas se ali teve analogias ou metáforas, perdi, e aquele balão branco ainda é uma incógnita.
(Acadêmic@ 01 Estágio Supervisionado IV)
Essa colocação nos instiga a pensar no movimento silencioso da imagem, pois a imagem do balão teve a potência de ressoar, alastrando-se ao infinito. Ao término do filme, foram propiciados ao espectador espaços e lacunas para que pudesse fazer suas conjecturas sobre o que pode ter acontecido, ampliando o leque de possibilidades.
A preocupação em apresentar imagens em que tudo é mostrado e explicado nos faz pensar na necessidade que possuímos de direcionar e normatizar o olhar. A premência quanto a apresentar imagens com interpretações e conclusões fechadas pode inibir a criação de outras possibilidades.
As imagens silenciosas podem ser potentes para disparar o pensar, pois oferecem o silêncio necessário para que possamos nos ouvir. É nesse sentido que, no silêncio impactante do final do filme, conseguimos nos escutar. Uma sensação de perplexidade também nos envolveu e passamos a questionar: o que aconteceu? Razieh conseguiu comprar seu peixe tão almejado? Qual o sentido do balão branco na última cena? Um hiato se coloca no fim do filme, e isto parece nos inquietar. Por apresentar um final incerto, sem um “fechamento”, sem um “ponto final”, isso causa um incômodo e nos tira dos eixos.
Paradoxalmente, são essas mesmas sensações de desconforto que também nos capturam e nos fazem pensar nas experiências educativas, movendo-nos a problematizar questões que antes não havíamos percebido.
Por que este sentimento, em que tudo necessita ter um encerramento? Por que precisamos deixar tudo tão amarrado, sem espaços para outros finais, ou melhor, outros “entres” e outras possibilidades? Por que nas experiências educativas necessitamos tudo explicar e arrematar? Por que precisamos fazer o “fechamento” de nossas aulas, como se elas necessitassem de uma conclusão? Não poderíamos deixar ecoando problemas, em vez de encerrar com respostas?
Possíveis desdobramentos
Nesta intercessão fílmica surgiram inusitados diálogos com a docência, pois diversos signos passaram a estar envolvidos e imbricados, oportunizando espaço para outras questões. As condições de emergência envolvidas no encontro passaram a ser responsáveis pelas problematizações fomentadas e, também, pelas alianças e pelos arranjos invencionados.
O filme O balão branco não tratava propriamente da docência, mas foi um disparador para pensá-la. Além disso, nesse encontro, os acadêmicos também foram instigados a justapor mais um elemento para dialogar com o filme e a docência: o livro Pedagogia profana (2010), de Jorge Larrosa, contribuindo significativamente para um maior número de conexões.
A intenção, ao trabalhar com a imagem fílmica, o livro e a docência, foi incitar a pensar possíveis desdobramentos que não se parecessem com o mesmo, que não fossem substituídos pela metáfora, que não desencadeassem movimentos semelhantes, caindo em um prolongamento do que já existe. O desafio foi pensar em possibilidades provisórias e substituíveis, sempre em vias de ser, em devir.
Para tanto, ao explorar alguns campos de força, buscamos apostar na problematização e no estabelecimento de outros diálogos com as imagens, no desenho de outras paisagens e possibilidades a partir delas, com elas e além delas. Investir na relação com as imagens, sem a preocupação em corresponder, equivaler, interpretar e reproduzir, passa a ser um esforço diário, pois, como Deleuze (1990) explana:
nós não percebemos a coisa ou a imagem inteira, percebemos sempre menos, percebemos apenas o que estamos interessados em perceber, ou melhor, o que temos interesse em perceber, devido a nossos interesses econômicos, nossas crenças ideológicas, nossas exigências psicológicas. Portanto, comumente, percebemos apenas clichês. (p. 31)
Converter as disposições “sensório-motoras” em disposições “óticas e sonoras puras”2 (Deleuze, 1990) requer a criação de maneiras diferenciadas de entendimento, trazendo para o debate as imagens chavões que nos fazem repetir o mesmo e as metáforas que fazem resultar imagens concordantes com o que já existe.
Talvez o desafio maior esteja em problematizar essas imagens que nos são familiares e nos dão segurança, buscando trazer para a discussão uma nova imagem do pensamento, ou melhor, um pensamento sem imagem. Pelbart (2010) coloca que “um pensamento sem imagem é aquele que não obedece a uma imagem prévia do que seja pensar, isto é, a um Modelo prévio que orienta e formata, que determinaria de antemão o que significa pensar” (pp. 28-29).
Ao se deixar violentar pelos signos que o diálogo entre a intercessão fílmica e a docência provoca, oportunizam-se diferentes relações e um alastramento de possibilidades em circuitos cada vez mais amplos. As ressonâncias dissipadas podem ser vistas “como aventuras singulares do pensamento às quais a existência múltipla do cinema deu vida” (Rancière, 2012, p. 17) e têm a propriedade de se renovar a cada novo encontro, pois as relações e as problematizações suscitadas em relação à docência são inexauríveis.
Afinal: algumas questões continuam a ressoar...
Tanto nós quanto os acadêmicos envolvidos nesta investigação colhemos algumas impressões nesta intercessão fílmica, entretanto muitos elementos deixaram de ser percebidos e/ou explorados. Nesse sentido, é importante ressaltar que abarcar a totalidade das problematizações suscitadas a partir de um encontro é e sempre será inexequível, pois sempre ficará algo a ser escrito, a ser dito e a ser visto.
Rilke (2013) acentua também que “as coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou” (p. 12). O que experienciamos nos encontros se mostra, em determinadas situações, no plano do indizível, pois é da ordem do acontecimento.
Ainda que venhamos a retomar a intercessão fílmica, buscando exaurir todas as possibilidades, será sempre um movimento contínuo e inesgotável. Mesmo porque a cada visitação desponta o caráter irreversível de um encontro, pois o campo de confluências será distinto, e não será mais sobre o mesmo indivíduo que os acontecimentos atuarão.
Isso nos permite pensar que a intercessão investigada estará sempre em vias de acontecer, sempre será um convite para que outras narrativas e imagens se aproximem ou saiam de cena, para que diferentes diálogos e cruzamentos possam ser realizados e singulares problematizações possam ser desencadeadas.
A docência seria justamente isso. Um processo ininterrupto, em constante renovação com o vivido. Ou seja, uma oportunidade de nos reinventarmos a cada acontecimento. Uma circunstância favorável a que nos deixemos contagiar e afetar, potencializando a nossa capacidade de agir.
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1
Fala retirada da palestra ‘Teoria em Ato: reflexões sobre uma narrativa’, realizada em novembro de 2013, na Universidade Federal de Santa Maria. O professor Raimundo Martins é docente do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás.
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2
A título de uma maior compreensão, é oportuno diferenciar as disposições “sensório-motoras” das disposições “óticas e sonoras puras”. No livro A imagem-tempo, Deleuze (1990) oferece de forma clara essa diferença: na primeira passa-se a “associar à coisa muitas outras coisas que se parecem com ela no mesmo plano, na medida em que todas suscitam movimentos semelhantes”, e na segunda “sempre elevam a coisa a uma singularidade essencial, e descrevem o inesgotável, remetendo sem fim a outras descrições” (p. 61). As descrições fazem explorar os inexauríveis matizes e facetas da imagem, estas se fixam em algo, demorando-se a ponto de investigar outras perspectivas da mesma coisa.
Referências
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- Deleuze, G. (1990). Cinema 2-A imagem-tempo (E. de A. Ribeiro, Trad.). São Paulo: Brasiliense.
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- Deleuze, G., & Guattari, F. (1995). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 1, A. Guerra & C. P. Costa, Trads.). Rio de Janeiro: Editora 34.
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- Machado, R. (2010). Deleuze, a arte e a filosofia (2a ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
- Oliveira, M. O. de. (2011. Por uma abordagem narrativa e autobiográfica: os diários de aula como foco de investigação. In R. Martins, & I. Tourinho (Orgs.), Educação da cultura visual: conceitos e contextos (pp.175-190). Santa Maria: Editora da UFSM.
- Pelbart, P. P. (2010). O tempo não reconciliado Imagens de tempo em Deleuze São Paulo: Perspectiva.
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- Van Manen, M. (2003). Investigación educativa y experiencia vivida Barcelona: Idea books.
- Vasconcellos, J. (2006). Deleuze e o cinema Rio de Janeiro: Moderna.
Filmografia
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Panahi, J. (Dir.). (1995). O balão branco Irã. Recuperado em 30 de maio de 2013, de https://www.youtube.com/watch?v=_3k7sKDZTtk
» https://www.youtube.com/watch?v=_3k7sKDZTtk
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Jul 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
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Recebido
23 Maio 2017 -
Revisado
31 Out 2017 -
Aceito
12 Jan 2018