Open-access Escolarização em instituições não escolares: uma análise de experiências em educação com oficinas em um Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico 1

Schooling in non-scholar institutions: an analysis of experiments in education with workshops in a Custody and Psychiatric Treatment Hospital

Resumo

Este artigo analisa a presença de elementos de escolarização em instituições não escolares. Para tanto, lança-se mão de recortes de experiências em educação com oficinas realizadas em um Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, durante o período de fevereiro a dezembro de 2016. Nestes recortes localizam-se os seguintes elementos de escolarização: pedagogização; moralização; participação e democracia; didática; documentarização; vigilância e burocratização. Tais elementos aparecem atuantes no corpo de vários sujeitos envolvidos, e, mesmo onde está presente como um aspecto temporário/parcial, a escolarização mostra-se sempre à espreita, tornando muito frágeis outras experiências em educação e deixando aberta a questão sobre outros modos de educação possíveis.

Palavras-chave Escolarização; instituição não escolar; oficina

Abstract

This paper analyses the presence of schooling elements in non-scholar institutions. Therefore, samples of experiments in education with workshops that happened in a Custody and Psychiatric Treatment Hospital between February and December 2016 are used. In these samples the presence of the following schooling elements takes place: pedagogisation, moralization, participation and democracy, didactic, documentarization, surveillance and bureaucratisation. Such elements show up acting in the body of many subjects involved and schooling appears to be always lurking for, even where it is present as a very temporary/partial aspect, making others educational experiences very fragile and letting open the question about the possibility of others ways of education.

Keywords Schooling; non-scholar institution; workshop

Abertura

No conto de Kafka “Na colônia penal” (2011), um explorador, a convite de seu anfitrião, o comandante, vai à colônia penal para conhecer “um aparelho singular” (p. 29). Essa tecnologia, nova e estranha ao explorador, desenha com agulhas na pele do condenado sua culpa e sua correção – uma sentença, no duplo sentido da palavra –, e tudo se dá sob vários olhos, em um espetáculo de dor e redenção. Kafka anima aí claramente a imagem do suplício, presente nas sociedades ocidentais até pelo menos o início do século XIX. Entretanto, o escritor tcheco também põe em jogo elementos mais ou menos estranhos ao suplício, essa “execução nos velhos tempos” (Kafka, 2011, p. 49): o condenado está animado em subjugar-se ao aparato; a máquina funciona sozinha, não precisa sequer de um público a observá-la ou de um operador que a vigie, ela é sutil, suave… O explorador, estranho à realidade da instituição, queda horrorizado, enquanto os expectadores que vivem na ilha da colônia penal parecem não compartilhar o mesmo sentimento.

Se, por um lado, o processo descrito no conto vibra como algo tão bárbaro aos olhos contemporâneos, enquanto remetente ao suplício (exercício de poder há tanto já abandonado e considerado agora desumano e inaceitável); por outro, o conto, ao permitir ao leitor dramatizar-se como explorador, incita-o à pergunta: qual o nível de estranhamento da sociedade contemporânea em relação aos processos que atuam sobre os corpos e cuja existência é intrínseca a ela (e.g., a disciplina)?

A disciplina, consideravelmente mais sútil que o suplício, enquanto tecnologia que age sobre o corpo, não parece causar aos modernos tanto mal-estar quanto aquilo que está em atuação na colônia penal kafkiana. Essa normalização da disciplina é especialmente patente quando esse tipo de tecnologia se insere nas “colônias penais” contemporâneas. Nelas a disciplina, em seus vários elementos (esquadrinhamento, identificação, classificação, vigilância hierárquica, sanção normalizadora, exame), aparece como normal à instituição, imprescindível à estrutura, indispensável ao bom funcionamento desta máquina de “anatomia política” (Foucault, 2009). E mais: aparece como salutar, eficiente e, em seu humanismo, benevolente para com os sujeitos nela enclausurados. Ela está no cerne da prisão, ou ainda, na capilaridade das instituições prisionais, como demonstram as pesquisas de Foucault, que culminam em sua famosa obra Vigiar e punir (Foucault, 2009). Esta estratégia de poder está em funcionamento em outras instituições; encontram-se processos disciplinares “…nos colégios, muito cedo; mais tarde nas escolas primárias; investiram lentamente o espaço hospitalar; e em algumas dezenas de anos reestruturaram a organização militar” (Foucault, 2009, p. 134). Sua invenção não se trata, é claro, nem de um aparecimento súbito, nem de uma evolução linear, contínua através do tempo ou das instituições,

[m]as como uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se repetem, ou se imitam, apoiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um modo geral.

(Foucault, 2009, p. 134)

Assim, essa geografia das instituições disciplinares implica processos que “se recordam, se repetem, ou se imitam, apoiam-se uns sobre os outros” e, ao mesmo tempo, “distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um modo geral” (Foucault, 2009, p. 134). O agenciamento, cujos elementos heterogêneos (discursivos e não discursivos) diferenciam a escola de outras instituições, nomeia-se aqui “escolarização” – uma arte de conduzir as condutas escolares, uma técnica de conduzir escolarmente as condutas.

A escolarização é a modelação de um corpo, a produção de um sujeito. Obviamente não se trata de qualquer sujeito, mas de um sujeito adequado a seu tempo, disciplinarmente útil e dócil, biopoliticamente participativo (Cervi, 2013; Passetti, 2003) e performático (Ball, 2003), no qual as experiências em educação foram sujeitadas ao modelo pedagógico da escola. A sociedade moderna confina, assim, todo um rol de experiências educacionais possíveis em um modelo escolar, produz uma educação, uma formação de sujeitos capaz de, como diz Foucault (2009) acerca da disciplina, aprisionar o corpo através da alma e assim torna mais eficientes os processos de dar forma a um Homo œconomicus. Em detrimento das multiplicidades, a escolarização busca eficiência de resultados, mira uma educação de resultados (Corrêa, 2006).

Essa escolarização, então, sugere os seguintes elementos: produção de resultados, eficiência, recompensa e punição, participação, pedagogização, como modo de conduzir não a criança, mas o infante (o infantilizado, o sem fala, o incapaz, que na lógica herdada do Iluminismo, precisa ser guiado ao esclarecimento da razão), e uma didática, um saber sobre o sujeito escolar.

Quando se segue o movimento da disciplina ao longo dos séculos XVIII e XIX, pode-se ver a produção de um encadeamento de instituições que paulatinamente vão formar uma microfísica do poder capaz de agir sobre os corpos individualizando-os. A disciplina não só vai agir sobre um sujeito-corpo já estabelecido, mas produzi-lo como tal: sujeito de um poder e objeto de um saber individualizantes (Foucault, 2009). Esta microfísica busca tornar tais sujeitos fundamentalmente, economicamente úteis e politicamente dóceis (Passetti, 2003). Tais tecnologias disciplinares ainda se articularão com as dimensões populacionais dos dispositivos de segurança, também em formação nesse período – ambos partes de um modo de governo biopolítico (Foucault, 2008; Passetti, 2003). Nesta articulação, dizem Passetti e Augusto (2008, p. 95):

A prisão assume o lugar da escola e reconhece a sua falha. Escola e prisão são, portanto, instituições que se comunicam, com características arquitetônicas semelhantes, grades, vigias, salas contíguas e geminadas, corredores que facilitam a inspeção e controle, proximidades, isolamentos, reuniões temporárias em pátios.

Punições, recompensas, arquitetura, disciplina aproximam as instituições, e mais, no processo histórico da criação destas instituições em fins do século XVIII, estabelece-se entre elas um movimento que vai da escola à prisão, não o inverso: a “sobra” da escola cabe à prisão. É sobre este “refugo” (biopolítico), estratégico e necessário, que a prisão age. A escola, aposta universal iluminista, é responsável por propagar conhecimento e promover o desenvolvimento pessoal; a prisão, a instituição para os que se desviam desse ideal de sujeito – a instituição dos insuportáveis.

O Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) ocupa um lugar excepcionalmente interessante na geografia das instituições disciplinares, posto que se instala nas fronteiras de pelo menos três delas, a saber: a prisão, o manicômio e o hospital. Situado dentro de um complexo penitenciário e administrado pelo Departamento de Administração Prisional (DEAP), o HCTP encerra sujeitos inimputáveis por seus crimes, dada a constatação de algum “transtorno mental”. Desta feita, a Constituição prevê a tais sujeitos não a aplicação de pena, mas sim de “medida de segurança”, que consiste em uma espécie de tratamento psiquiátrico no qual se fundem saberes médicos, psicológicos e por vezes prisionais, visando garantir o bem-estar e a segurança da sociedade e do sujeito. Algo de prisão, de hospital e de manicômio ao mesmo tempo, porém nenhum deles em específico ou totalmente (Preve, 2010).

Essa natureza quimérica do HCTP – à frente tem forma de hospital, atrás de manicômio, no meio de presídio2 – acentua-se ainda mais no cenário contemporâneo, em que as transformações tendem a embaralhar um pouco a linearidade e a fragmentariedade disciplinar, tão características dos séculos XVIII e XIX, em prol de uma rede de estratégias de poder que se entrecruzam (Deleuze, 2003). Escolariza-se o espaço familiar, assim como a família adentra a escola; os saberes médicos misturam-se aos prisionais, bem como a prisão dissolve-se ao longo do corpo social, uma prisão a céu aberto; economias globais e dispositivos minuciosos vão produzindo uma trama de regime de verdades-estratégias de governo que já não restringe os dispositivos absolutamente às instituições que parecem seu berço (ou domicílio). Na sociedade contemporânea efetua-se uma desterritorialização relativa que multiplica estrias, um fluxo territorializante, i.e., um movimento constante e incessante de transformações que acaba por produzir um efeito de permanência – processo veloz cujo deslocamento escalar é zero.

O caminho da escola à prisão, como ação de uma sobre a “falha” da outra, já é conhecido. Entretanto, neste cenário contemporâneo, de que modo a escolarização habita as instituições não escolares, inclusive a prisão?

Vale ressaltar que, como em várias prisões no país, pode-se encontrar no HCTP salas de aula, com professores frequentes ou esporádicos, formando uma espécie de pequeno-território escolar onde se realiza a educação de jovens e adultos (EJA). Embora a intensidade desse pequeno-território não seja a mesma da escola propriamente dita, os elementos escolares estão presentes e explícitos, permitindo dizer que ali as tecnologias de escolarização são tidas como indispensáveis.

Desta feita, optou-se por focar este texto na escolarização “extrínseca” à escola no interior da referida instituição não escolar, destacando-se os elementos escolares mais ou menos dispersos e dissolutos que se insinuam por outros momentos da instituição. De modo mais específico, utilizaram-se relatos extraídos de vivências em um HCTP por meio de oficinas3 para perseguir a seguinte questão: como, para além da escola, a escolarização habita instituições não escolares?

Nas narrativas e análises presentes neste escrito encontram-se três personagens: o oficineiro, o técnico e o paciente/participante. Isto por dois motivos, primeiro para garantir o anonimato dos envolvidos, segundo porque a análise de quem fala interessa apenas enquanto lugar de enunciação, enquanto sujeito de poder e objeto de saber, e não como indivíduo em suas particularidades.

Desta maneira, “o técnico” engloba diversos funcionários da instituição, não se fazendo clara distinção de função, idade, gênero ou outra característica que não seu lugar de autoridade institucional/científica. Do mesmo modo, “o paciente” ou “o participante”4 designam qualquer sujeito enclausurado na instituição, sendo o primeiro termo utilizado quando a pessoa está unicamente sob o regime da instituição, e o segundo quando se insere nas atividades das oficinas – onde pode receber um tratamento ao menos parcialmente diferenciado daquele demandado pelo regime normal da instituição. Assim como os demais personagens, “o oficineiro” não abarca apenas um indivíduo, mas todos do grupo de pesquisa Geografias de Experiência5 que propuseram atividades na instituição, o que fez variar os contornos das oficinas conforme o oficineiro proponente. Entretanto, nas oficinas aqui relatadas, ao menos um dos oficineiros autores deste artigo esteve presente.

Além disto, todas as oficinas aqui implicadas compreendem uma experiência em educação inspirada nos trabalhos de Guilherme Corrêa e Ana Maria Preve (Corrêa, 2000; Corrêa & Preve, 2011; Preve, 2010). Esse tipo de oficina possui delimitações teórico-metodológicas que passam pela não disciplinaridade, pela horizontalidade das relações, pela não obrigatoriedade de participação e permanência e por uma autonomia na proposição de temas (e seus desdobramentos), de modo a potencializar um aprender com vontade.

Traçadas estas linhas, o presente artigo, no intento de articulá-las para perseguir a questão que o move, compõe-se de três seções. Na primeira expõe-se uma série de relatos de experiências vividas na instituição por conta das oficinas. Esses recortes foram selecionados por portarem indícios e lascas ou mesmo elementos explícitos e diretos concernentes à escolarização, como descrita anteriormente, fora de seu território propriamente escolar.

Em seguida, analisam-se tais recortes cruzando-os de modo a evidenciar os elementos de escolarização presentes nas experiências narradas. Rearranjam-se os trechos conectando-os a partir de sua natureza, funcionamento e/ou intensidade no que tange à escolarização. Nesse ínterim, os relatos acabam desmembrados de sua cadência cronológica e de suas misturas concretas com outros elementos disciplinares (não necessariamente escolares) e não disciplinares para dar lugar a outro agenciamento do corpus documental que torne visível ao leitor os componentes escolares em sua singularidade abstrata, i.e., naquilo que faz desses elementos singularmente escolares – ainda que mantenham no relato múltipla e viva articulação com o não escolar da instituição em questão.

Por fim, na terceira parte retoma-se a problemática inicial, as experiências no HCTP e as análises destas, para então abrir aquilo que poderia ser visto apenas como anedótico ou particular para um agenciamento político com outras dimensões. Não se trata de generalizar a análise fazendo-a válida (quase) universalmente, mas de pôr em jogo suas potências com outros elementos e práticas (discursivas ou não discursivas) contemporâneos. Enfim, trata-se de reabrir a questão inicial, como quem abre uma nova janela de possibilidade.

Recortes de experiências em educação com oficinas

A convite da instituição, o oficineiro participa de uma das assembleias semanais com técnicos e pacientes para ser apresentado a eles, bem como para explicar o trabalho que será desenvolvido ali. Eis a porta por onde entram os projetos que chegam ao HCTP: a assembleia é o modo de inserir quem vem de fora.

Após essa apresentação, as oficinas acontecem em dias e horários independentes das assembleias, cujo protocolo é: (1) leitura de uma mensagem inicial; (2) conversa sobre essa mensagem; (3) comunicação de recados técnicos para os pacientes; (4) inscrições destes para a escrita de cartas; (5) para atendimento odontológico; (6) e para atendimento jurídico; (7) listagem de manutenções necessárias nas enfermarias6; (8) comunicação de recados gerais pelos pacientes; (9) outras informações, incluindo a apresentação do oficineiro. Esse protocolo é executado duas vezes no dia em que acontece, sendo duas assembleias com grupos distintos de pacientes.

A mensagem inicial de hoje, de autoria desconhecida, chama-se “Milho Bom” e conta a história de um fazendeiro que ganha todos os prêmios dos concursos de melhor milho. Ao entrevistá-lo e saber que ele compartilha suas sementes com os vizinhos, um jornalista pergunta curioso por quê ele o faz, visto que competia com essas pessoas. O fazendeiro responde que a polinização do milho se dá com auxílio do vento, que leva o pólen de uma plantação a outra; assim, se os vizinhos cultivassem milho de qualidade inferior à de seu, isso degradaria sua própria plantação. Para colher bom milho, então, ele tinha de ajudar os vizinhos a cultivar “milho bom”.

No primeiro grupo, após a leitura do texto, a moral da história é reiterada pela explicação de alguns técnicos, que coordenam a assembleia: é preciso ajudar o próximo para que se possa colher bons frutos, ou milhos, seus bons frutos. À explicação segue-se a pergunta: “Alguém tem algo a dizer?7. O que acompanha a pergunta é um breve silêncio, que perdura até os pacientes levantarem a mão, aguardarem a autorização para falar e, então, arriscarem algumas palavras, as quais, grosso modo, ratificam o discurso do “milho bom”. Entretanto, um destes que falam sugere uma ideia um tanto quanto destoante: “Dá para enxertar uma parreira de uva em uma parreira de maracujá…”. Inicialmente não é dada muita atenção a esta fala, e segue-se ao que os demais têm a dizer; todavia, insistente, o paciente retoma sua ideia: “Eu já vi fazerem, lá no sítio. Você pega uma ponta, corta e emenda na ponta da outra e ela cresce…”. Ele é interrompido por uma advertência de um dos técnicos: “A gente pode experimentar, desde que não seja algo perigoso”. Doravante a assembleia decorre dentro de seus protocolos.

As oficinas funcionam de modo aberto: a participação não é obrigatória, nem mesmo a permanência, o que é reiterado a cada oficina. Pode-se, assim, entrar ou sair a qualquer momento, sem que seja necessário justificar as razões de entrada ou saída. Entretanto, várias vezes se repete a cena de participantes que deixam a oficina alegando “Eu vou só tomar água”, sem voltar mais.

Um requerimento da instituição ao oficineiro é que ele faça uma “lista de chamada” com os nomes daqueles a serem chamados para participar e uma “lista de presença” daqueles que participaram da oficina. A primeira é sugerida pela instituição, a partir de uma avaliação da condição de participação dos indivíduos. Amiúde os funcionários que chamam os nomes fazem algumas alterações na lista, em geral referentes à impossibilidade de participação, mas também para indicar a saída de um paciente, seu envolvimento em outra atividade ou em algum tratamento naquele horário. Por vezes são chamados pacientes que não estão listados, mas que demonstram interesse em participar. A segunda lista, de presença, apesar de inicialmente demandada pela instituição, nunca é feita pelo oficineiro, e após as primeiras oficinas ela não é mais solicitada.

Em uma oficina, a atividade proposta é inventar e escolher um nome para um espaço geográfico imaginário que o grupo está criando sobre uma folha de papel pardo8. Para eleger o nome do lugar, que já tem elementos naturais (rios, florestas, prados…), humanos (casas, hospital, tratamento de esgoto…) e que já está sendo habitado (os participantes imaginam e descrevem como seria vida naquele lugar), propõe-se primeiro uma rodada de sugestões de nomes que não pertençam a nenhum lugar existente; depois, uma rodada de votação.

Na primeira rodada são sugeridos vários nomes ao espaço em criação: “Um bom lugar para se viver”, “Planeta dos prazeres”, “É preciso saber viver”, “Vale das Glórias”, “Legalilândia”, “Universo Mundial” e “Universo Paralelo”). Porém, um dos participantes não segue a lógica em curso no grupo, pois, malgrado as explicações de que os topônimos não deveriam ser já existentes, ele só sugere nomes de cidades conhecidas. O oficineiro aceita, posto que faz parte da oficina o movimento dos participantes em torno da questão colocada, o que, por sua vez, coloca todo o grupo num movimento de olhar as regras estabelecidas no jogo e se relacionar com a proposta.

A segunda rodada, de votação, parece simples: todos os nomes são lidos e cada participante escolhe um; “mas não pode votar no seu”, sugere um dos participantes, “porque senão cada um vota no seu, né?”. Acatada a ideia, começa a votação. Entretanto, a certa altura outro participante não segue a lógica esperada pelo oficineiro para essa rodada: em vez de escolher um dos nomes listados, o participante sugere um novo. O oficineiro anota essa sugestão para que a votação possa continuar, e repete a ele a pergunta: “Qual dos nomes, então, você escolhe?”. A resposta é a sugestão de um novo nome que não constava na lista, o qual também é anotado. Refaz-se a pergunta: “Mas qual dos nomes você escolhe?”. Outra vez a resposta é uma nova sugestão. A dinâmica de criar nomes parece mais atraente ao participante do que a de eleger um, e ele parece uma fonte inesgotável de nomes prontos a lançar, apenas aguardando a pergunta do oficineiro, que faz várias tentativas até desistir e seguir com a votação, ainda que um tanto quanto frustrado com a impossibilidade de o participante votar. Chega-se então a um número reduzido de nomes entre os quais se vai escolher o final. Para evitar as dificuldades da votação anterior, agora os mais votados são lidos um a um, e cada participante levanta a mão para indicar aquele de que mais gosta. Por fim, chega-se ao nome final, a saber, Vale das Glórias. Todas essas idas e vindas de “não compreensão” de uma questão fazem parte das oficinas no HCTP, movimentos que interessam aos fins das pesquisas em curso ali.

Outra parte da oficina com o Vale das Glórias é imaginar e socializar a descrição de como seria um dia nesse lugar. quais atividades se fariam, como cada um usaria seu tempo. Na socialização, um dos participantes descreve seu dia assim:

Acordar de manhã, pegar pinhão, esquentar dois copos de café, após o café lavar o rosto no riacho, passear a cavalo, ir à igreja, eu que não gosto de passar ao lado da igreja porque tem um cemitério, não gosto de ir lá, sou saudável, depois de tudo isso, tenho de trabalhar no tratamento de esgoto até 12h15min, depois durmo um pouco até às 13h30min, depois volto à estação de tratamento para trabalhar até às 17h, depois vou dormir, rezo ou vou à igreja, faço sempre isso, como uma monotonia; aos finais de semana vou ao clube.

Nas palavras dele, trata-se de sua rotina, não apenas um dia, mas aquilo que ele pretendia como repetição diária.

Na oficina em questão é projetado o curta-metragem The Maker (Kezelos, 2011). Trata-se de stopmotion com pouco mais de cinco minutos, no qual um coelho de pano (antropomórfico) cria uma companheira costurando-a a partir de retalhos. Enquanto trabalha, ele observa repetidas vezes uma ampulheta que, mais tarde se descobre, marca seu tempo de vida restante. Por isso ele se apressa em terminar a boneca e dar-lhe vida, tocando uma melodia no violino. Chega o dia derradeiro, e o coelho se vai tão logo a criação ganha vida. Ao fim entende-se que a coelha criada, doravante, tem a mesma missão que a de seu criador: fazer um coelho e dar-lhe vida – mantendo um ciclo infinito de dar e perder vida.

Após a exibição, o oficineiro abre espaço para uma conversa. Um dos técnicos da instituição que assiste ao vídeo indica ao oficineiro: “Veja se eles entenderam a coisa do ciclo”. Um breve silêncio na sala e o técnico prossegue: “Porque o tempo é assim, tem uma situação difícil… Um dia é difícil, no outro não”. Um dos participantes replica: “Um dia é difícil e o outro também”. O comentário, sutil e sagital, atravessa o recinto e produz silêncio. Alguns segundos depois a conversa sobre o vídeo segue.

Nesta oficina, excepcionalmente, dois técnicos que já estagiavam na instituição acompanham as atividades, dentre as quais está a produção de desenhos. De repente, um paciente que não participava da oficina até então entra agitado no refeitório, dizendo: “Desenhar. Desenhar. Quero desenhar…”. O oficineiro dá-lhe um papel; o participante senta-se, começa a traçar uma folha de maconha e diz animado: “Que vontade de fumar um baseado!”. O oficineiro comenta sobre o desenho e, no meio da conversa, o participante percebe a presença de um dos estagiários. Um tanto quanto surpreso, ele levanta-se da cadeira; sua postura, até então descontraída e ativa, fecha-se e desacelera. Ele afasta-se da mesa onde desenha e, olhando para o técnico, diz: “Meu! E eu ali desenhando folha de maconha”. Alguns dos presentes riem, e o técnico diz que não há problema algum no desenho. Todavia, o comportamento do participante se torna evasivo e cuidadoso: “Aquilo é só uma planta, não tem nada de mais”, diz. Ele queda de tal modo incomodado e receoso que é preciso insistência do oficineiro para que o participante não deixe a oficina.

Próximo ao fim da mesma oficina, os presentes conversam sobre o uso do conhecimento e das tecnologias. Um participante diz, então, que Santos Dummont “enlouqueceu ou se matou porque usaram o avião, que ele havia inventado, para bombardear na guerra”. Nesse momento, um paciente que observa a cena lança ao que acabou de falar um longo, alegre e encorajador “É!”. “Mandei bem, né?”, diz o participante, cumprimentando o outro e dando um sorriso. Todos os presentes riem, e o que se segue é um relato dos dois participantes, no qual contam ao oficineiro um pouco de sua relação, já que dividem a mesma “enfermaria”. Eles explicam que um ensina coisas ao outro, que conversam bastante “lá no cubículoà noite, à tarde, de dia”, diz um. “…de madrugada”, complementa o outro. Um dos estagiários pondera: “Pelo menos estão trocando informações legais”. “…E coerentes”, completa um participante. “Ele me ensina bastante”, indica o outro. Nesse momento, um técnico da instituição, que também havia passado a acompanhar a oficina, tenta retomar a conversa anterior sobre tecnologias. Ele fala da bondade e da maldade humana no uso das tecnologias e do conhecimento, todavia os dois participantes continuam a contar de sua relação: “Ele estuda bastante lá na enfermaria. Lê livro… Lê bastante!Eu aqui, vou ser sincero, aqui eu não estou tendo cabeça para ler, mas já li bastante livro”. Além das trocas de leitura, eles falam das histórias que contam um ao outro, “sobre festa e esportes…”. O técnico insiste em retomar a reflexão sobre o bem e o mal no uso da tecnologia e do conhecimento, porém o oficineiro tenta manter a conversa sobre o convívio dos dois. O diálogo se finda com a chegada do horário de almoço; é preciso encerrar a oficina para dar lugar à refeição, pois as atividades ocorrem no refeitório.

Em uma oficina cujo objetivo é dar forma a desobjetos9, os participantes sorteiam para si os nomes daqueles que irão desenhar. Um dos participantes fica incumbido de desenhar o “sacador de canto de passarinho”. O nome, quando criado pelo oficineiro, objetivava remeter a algo como um saca-rolhas de gorjeios, algo que extraísse o trino dos pássaros silentes. Contudo, quando o oficineiro conversa com o participante sobre seu desenho, para surpresa daquele, a folha exibe um sujeito de olhos bem abertos de frente para uma parede cujo limite visível é seu vértice superior, onde ela se encontra com outra parede e com o teto. Ali, aonde olha o personagem na folha, em uma espécie de mirada contre-plongée, não parece haver nada, nem pássaro nem o aparato capaz de sacar-lhe o canto. “O que é esse desenho?”, pergunta o oficineiro. “É um canto de passarinho. Um sacador de canto de passarinho…”, ele responde, e complementa: “…O passarinho fica ali, no canto”.

Em outra oficina, cuja atividade consiste em escrever uma carta a um amigo (imaginário ou real) relatando uma viagem a um lugar desejado (imaginário ou real), um dos participantes pede ajuda. Ele não consegue escrever sozinho e tem dificuldades para articular as palavras, por conta dos remédios e da ausência de dentes, contudo, quer participar. Desse modo, o oficineiro escreve no papel a carta ditada pelo participante, que mistura elementos de vivências do autor e traços imaginários. O lugar escolhido não está nos mapas, ele vai inventado e descrevendo a paisagem: “Faz uma noite de sol…”. Estranhando a frase, o oficineiro pergunta: “Uma noite de sol?”. “Não é para imaginar um lugar?”, retruca o narrador. O oficineiro ri e confirma, “É”. “Então”, diz o participante, que volta a ditar: “Faz uma noite de sol. Falava comigo mesmo sentado numa pedra de pau. É a noite onde os passarinhos pastam e as vacas pulavam de galho em galho…”. A carta segue, e o oficineiro vai grafando a história do participante no papel.

Noutra oficina, a despeito da expectativa do oficineiro de que os participantes se interessariam em jogar mímica, dadas as experiências em oficinas anteriores que mesclaram esse elemento em suas atividades, isso não acontece. Poucos ficam; o jogo de mímica quase não se realiza, e, mesmo acontecendo, dura não mais que meia hora. Há uma sensação de “fracasso” no oficineiro, que ainda assim insiste em sua oficina. Insiste deixando-a “ruir”. Porém, das ruínas emerge o diálogo entre os três participantes que permanecem ali com o oficineiro, mesmo não querendo jogar. Durante longos minutos eles conversam sobre a vida dentro e fora daquela instituição.

Nesta oficina é exibido o média-metragem Zéro de conduit (Vigo, 1933), que, através das experiências de meninos em um internato e de uma narrativa com toques surreais, dramatiza a sociedade autoritária, repressora e burocrática da época. O tom libertário é explícito e extremamente bem-humorado, de modo que a crítica social se dá por meio da ridicularização das figuras e aparatos de poder. Um filme francês da década de 1930, legendado, preto e branco, com estilo muito distinto da linearidade frenética dos blockbusters contemporâneos. Tal combinação, dadas as experiências de outros oficineiros que ali atuaram, faz pressupor uma oficina desastrosa. Todavia o filme encanta os participantes, tanto que, embora alguns não saibam ler ou não consigam acompanhar a legenda, o número de presentes praticamente não se altera do começo ao fim da exibição do média-metragem.

Tecnologias de escolarização em uma instituição não escolar

Pedagogização

Dentre os componentes da escolarização, um apareceu diversas vezes nos recortes selecionados, a saber, a pedagogização. Por este termo compreende-se as práticas cujo efeito é direcionar a experiência educativa, conduzir o processo formativo do sujeito a um lugar muito preciso e pré-definido como adequado e/ou desejável. Não se trata apenas da condução (agogé), mas da infantilização do sujeito (paidos). Na pedagogização, o sujeito é conduzido como um infante (aquele que não fala), e esse caráter negativo da ausência de fala não é apenas uma constatação, mas uma postura que se estende do capaz sobre o incapaz. Outro aspecto ligado à fala que se poderia acrescentar à pedagogização é o fazer falar - uma espécie de técnica de “confissão” na qual o objetivo é verificar a interiorização de um discurso, ou, mais especificamente, de um conteúdo.

Nas experiências narradas, a pedagogização foi visível quando, após a história do “milho bom”: (1) explicou-se a narrativa, numa espécie de interpretação que indica o pressuposto de uma necessidade de tradução e a vontade de um entendimento específico da mensagem. Não se tratava apenas de uma experiência a partir da história, mas de um ato de comunicação e interpretação – era preciso interpretar a mensagem e do jeito correto. (2) O técnico perguntou: “Alguém tem algo a dizer?”. Essa pergunta disparou e fez acontecer algo tanto à equipe técnica e ao oficineiro quanto aos pacientes, a saber: verificou-se a mensagem. O que haveria a dizer senão uma reiteração da mensagem ou algo que facilmente – dadas as relações de saber e poder ali desiguais – poderia ser reconduzido à normalidade, ao entendimento adequado? Esse mesmo tipo de verificação se replicou em outros momentos, como na pergunta: “Veja se eles entenderam a coisa do ciclo”. A explicação e a verificação da mensagem, então, apresentam-se como meios de promover a pedagogização.

No entanto, esse elemento da escolarização funcionou por meio de diversos sujeitos e pôde, inclusive, dar-se em silêncio. Ainda que não proferida, a pedagogização reverberou, como no caso em que o oficineiro olhou para o desenho do “sacador de canto de passarinho” em busca senão daquilo que ele pressupunha como “resposta correta” a sua demanda. Ou naquilo que o oficineiro projetava sobre os participantes como modo esperado de se conduzir bem em relação à proposta da atividade, como ficou visível no recorte da escrita da carta: o estranhamento do oficineiro diante da ideia de “uma noite de sol”.

As marcas da pedagogização também apareceram na tentativa de reconduzir uma conversa ao tema inicialmente proposto. Exemplo disso foi quando uma conversa da oficina se iniciou com o tema proposto pelo oficineiro, “uso das tecnologias e conhecimento”, passou à narrativa do cotidiano de convívio de dois participantes e, então, tentou-se uma recondução ao tema das tecnologias. Ainda que esses participantes falassem de educação, ainda que seu diálogo implicasse um processo educativo – o que muito interessaria a uma pesquisa na área –, não se encontrou ali o ponto de chegada supostamente “almejado”, na maneira como a conversa prosseguia não estava a educação de um modo propriamente pedagogizado/pedagogizante.

Voltando ao recorte da assembleia, foi possível ver a recondução pedagógica operar sobre a fala daquele que propunha um enxerto, uma experimentação onde devia haver o aprendizado de um conteúdo específico, onde havia uma lição a ser aprendida. Como reconduzir aquela fala que desviava da lição anterior? Talvez com o que se poderia ler como uma nova lição: “A gente pode experimentar, desde que não seja algo perigoso”.

Moralização

Aqui pode-se ligar a pedagogização a outro elemento recorrente na escolarização, que, não raro, se move insidiosa e sub-repticiamente: a moralização. É bem sabido que a história das ciências se associa à moral (Foucault, 2000), e não é diferente com a escolarização e os saberes pedagógicos: o sujeito precisa aprender isso e aquilo, ir de um ponto a outro – é preciso educá-lo dentro de uma moral. Amiúde isso significa ir do mal ao bem, ou, numa versão laica, da ignorância à sapiência, do risco à segurança. Não seria esta uma leitura possível do aviso (pedagógico) do técnico do HCTP, “A gente pode experimentar, desde que não seja algo perigoso”?

Essa moralização faz crer numa necessidade de salvação, lato sensu, do sujeito. Na assembleia fala-se de plantar o “bem” e colher bons frutos (“milho bom”); em uma conversa no fim da oficina, ouve-se a importância de usar tecnologias e conhecimento para o “bem”. E não se trata, obviamente, de “má fé” de quem moraliza, pois se a moralização é insidiosa, aquele que moraliza e o que é moralizado sequer percebem o processo como tal e não veem nele o disciplinamento, senão o gesto de amor ou cuidado aí implicado. Outro exemplo é quando o técnico tenta fazer da experiência estética do curta-metragem um aprendizado moral, “Porque o tempo é assim, tem uma situação difícil. Um dia é difícil, no outro não”, tentando reconfortar aqueles que seguem enclausurados na instituição.

A moralização também aparece quando o participante percebe que desenha uma folha de maconha em frente ao estagiário: “Meu! E eu ali desenhando folha de maconha … Aquilo é só uma planta, não tem nada de mais”. São os discursos moralizadores que o informam dos “perigos” ligados a desenhar algo ilegal; as punições e “sanções normalizadoras” (Foucault, 2009) associadas à moralização o levam a tentar justificar que o desenho “não tem nada de mais” e fazem seu corpo mudar de configuração, passando da descontração à tensão.

Participação e democracia

Como mostra Cervi (2013), participação e democracia passaram a ser aprendidas na escola. No Brasil, foram incorporadas principalmente nas escolas públicas, a ponto de ali encontrarem formas quase particulares de funcionamento – da gestão democrática à participação dos pais e alunos. A democracia escolar tornou-se emblemática no funcionamento da sociedade contemporânea.

Dentro do HCTP esse efeito escolar reverbera em algumas práticas institucionais, como a assembleia. Entretanto, ele é mais flagrante e talvez mais típico quando aparece nas oficinas. Na passagem sobre a escolha do nome para o lugar imaginado, que depois veio a se chamar Vale das Glórias, duas forças se destacam: por um lado, vê-se operar a ideia de criar um nome, o que se poderia ligar à tentativa de potencializar uma educação que pensa o fazer de outro modo, o abrir de uma janela (Larrosa, 2014). Por outro lado, há a força que evoca a participação e a democracia como pressupostos e desejos do oficineiro – antes mesmo de a experiência da oficina indicá-lo (ou não), tais caminhos já estão dados, tais elementos escolares já estão no oficineiro. Na atividade de eleger um nome, todos devem sugerir - votar, ou seja, há um pressuposto democrático que não é necessariamente expresso como desejado pelos participantes. O desejo advém do oficineiro e está presente na sua conduta em relação aos “desvios” da proposta, ao que foge do pressuposto democrático e participativo – o oficineiro tenta reconduzir a atividade aos eixos democráticos escolares, esforçando-se em fazer todos participarem.

Didática

Além da vontade de participação, o esforço do oficineiro parece ligado à tentativa de completar seu projeto, o que remete a outro elemento da escolarização: a didática – um saber fundamental à escola. Constituída pelo disciplinamento, ela o faz operar não apenas ao materializá-lo em práticas não discursivas, mas também no modo como se pensa a educação (Beltrão, 2000).

Nos excertos das oficinas narrados, esse efeito didático pode ser percebido na postura do oficineiro ao encarar certas atitudes dos participantes como “desvios”, i.e., como algo que parece pôr em risco um projeto – estabelecido muito antes pelo oficineiro, baseado em pressupostos mais ou menos científicos do que é mais adequado em termos de escolarização. A insistência na participação de todos para eleger o nome do Vale das Glórias; a frustração na oficina de mímica, que não durou mais de meia hora; o receio em exibir o média-metragem por ele não se encaixar no que seria mais didático àqueles sujeitos, demonstrariam a didática em operação. Todos estes gestos não são a didática per se, mas sintomáticos de uma didática presente nos corpos dos sujeitos (escolarizados) e que atua mesmo em instituições não escolares, inclusive em oficinas que se propõem não escolares, atravessando os modos de pensar as práticas em educação aí implicados.

Documentarização

Outra característica da disciplina é o processo de documentar os sujeitos. São produzidos, para tanto, diversos mecanismos que proliferam a visibilidade e dizibilidade dos sujeitos: listas, atestados, laudos, pareceres, declarações, registros, entre outros. São documentos e mais documentos que permitem registrar em minúcia todos e cada um, gerando com isso um arquivo que faz de cada indivíduo um caso, um objeto para conhecimento e para ação do poder (Foucault, 2009). Na escola essa produção de arquivo, entre outros modos, tornou-se bem conhecida na forma das listas (de chamada, de presença), que aparecem para classificar, organizar, vigiar, controlar e, sobretudo, para documentar os indivíduos.

Na experiência do HCTP elas também aparecem: é preciso fazer uma lista de chamada em que conste o nome dos indivíduos aptos a participar das oficinas; é preciso fazer outra lista ou uma segunda marcação na primeira indicando os presentes nas oficinas. Estas listas não funcionam sozinhas, elas articulam-se com outras ferramentas da instituição escolar para permitir que cada sujeito se torne objeto de um saber e de um poder médico, prisional e manicomial. E isso per se já seria um fenômeno interessante de escolarização nessa instituição, uma espécie de escolarização das oficinas. Todavia, o que parece aqui ainda mais interessante é a relação quase simbólica e burocrática que a instituição estabelece com estas listas, haja vista que: (1) nas primeiras oficinas a lista de presença fora demandada, mas a resposta à postura do oficineiro em não mais a produzir foi a simples desistência em exigi-la; (2) em relação às listas de chamada, ainda que elas praticamente sempre fossem feitas, muitas vezes se autorizava a participação de pacientes não listados, fosse a pedido deles próprios, do oficineiro, ou mesmo por sugestão da equipe técnica.

Ainda que a produção desses arquivos individuais esteja muito presente na instituição, sua forma escolar parece ser mais simbólica do que efetiva, uma espécie de ritualística didática que talvez apareça como meio de dar um estatuto mais respeitável (leia-se escolar) às oficinas. Ao mesmo tempo e ainda assim, pode-se ler nessa documentarização um modo de prolongar a escolarização através das práticas educacionais (não escolares) realizadas no interior da instituição.

Vigilância e burocratização

Por fim, vale apontar dois elementos que parecem, em maior ou menor grau, andar ligados aqui: a vigilância e a burocratização. Esta última aparece em todas as instituições disciplinares, ao modo do castelo kafkiano (Kafka, 2008): o poder não é localizável, sempre foge, sempre parece estar mais além; ou melhor, sua ação se exerce aqui e agora, todavia o “sujeito” da ação, o “núcleo” do poder, é invisível. Simultaneamente, esse poder produz uma série de hierarquizações que permitem a vigilância. Na escola, a arquitetura faz funcionar essa vigilância, dispõe os corpos, distribui funções, burocratiza os gestos e gera comandos que fazem operar a disciplina, produzindo um sujeito escolarizado.

Os excertos das experiências na instituição não escolar desta pesquisa indicam traços dessa burocratização e sua articulação com a vigilância em dois exemplos sintomáticos: (1) os artifícios para evadir-se das oficinas; (2) os gestos que antecedem a fala na assembleia.

Por mais que o oficineiro insistisse em explicar que eram facultativas a participação e permanência nas oficinas, foi recorrente o artifício – ao menos nas primeiras oficinas – de justificar a saída como uma temporária ida ao bebedouro para, então, abandonaras atividades. Não é por meio de avaliação que o oficineiro busca trabalhar, todavia os efeitos de uma avaliação são mais ou menos sensíveis: ele não procede por lista de presença, mas o fato de haver uma vigilância (ainda que mais fantasmática do que “real”, por parte do oficineiro) parece assombrar o participante e produzir estas estratégias burocráticas que permitiriam uma “fuga”. Além disso, o gesto é um elemento muito importante no jogo burocracia-vigilância: pedir para sair já parece indicar em si esta burocratização disciplinar.

Se nas oficinas os gestos indicavam uma disciplina mais projetada pelos participantes do que realizada pelo oficineiro, na assembleia tais gestos parecem ter um caráter mais explícito. Na assembleia, antes de cada fala, o gesto de levantar a mão, aguardar a permissão e, então, falar. Uma vigilância e burocracia que, articuladas, permitem o controle, a organização e distribuição dos corpos e das falas por meio de gestos e de posições hierarquizadas e hierarquizantes (quem autoriza a fala, quem coordena a atividade…) – e tudo parece garantir o bom funcionamento da instituição.

CODA

No movimento deste artigo de perseguir a questão “como, para além do território escolar, a escolarização habita um HCTP?”, lançou-se mão de recortes de experiências em educação com oficinas. Isso permitiu vivenciar diversos aspectos do cotidiano da instituição e tornar sensíveis vários elementos da habitação daquele espaço.

Por meio dos relatos selecionados, pôde-se constatar os seguintes elementos da escolarização, enquanto tecnologia de governo, presentes em uma instituição não escolar: pedagogização; moralização; participação e democracia; documentarização; didática; burocratização e vigilância. A natureza fragmentária da aparição de tais elementos não tornou menos real a escolarização neste tipo de instituição, embora não seja equivocado inferir que há uma diferença considerável entre aquilo que ocorre numa escola e aquilo de escola que ocorreu nestas experiências no HCTP.

Outro aspecto interessante foi a indistinção dos sujeitos por meio dos quais as tecnologias escolarizantes se expressaram: técnico da instituição, oficineiro ou participante, todos parecem, em diferentes graus e/ou modos, atravessados por este tipo de tecnologia escolar, parecem ter corpos marcados por esse dispositivo de governo. Isso corrobora a análise de autores que, de diferentes lugares, apontam uma dilatação das funções (e dispositivos) de diversas instituições, em especial a escola, umas sobre as outras. Trata-se da dissolução das fronteiras entre estas instituições (Cervi, 2013; Deleuze, 2003; Masschelein, & Simons, 2015; Passetti, 2003; Passetti, & Augusto, 2008).

Desta feita, ainda que em alguns momentos (como na “desculpa” para deixar a oficina, na tentativa do oficineiro de reconduzir a conversa, ou, ainda, no funcionamento das listas) a escolarização tenha sido temporária ou parcial, dando lugar a outra relação educativa – mais aberta ao inesperado e à experiência (Larrosa, 2014) –, ela pareceu estar sempre à espreita, tornando muito frágeis outras formas de educação, mesmo em instituições não escolares. Aqui e ali, viu-se o corpo escolarizado, incluindo o do oficineiro, estranhar a resposta fora do manual didático e os gestos desviantes do procedimento escolar normalizado; intentos e atitudes que não buscavam a escolarização fizeram-na reverberar no HCTP.

Todavia, estes foram recortes específicos de experiências em educação no interior desta instituição. É importante destacar que outras vivências (não escolares) também se passaram. A escolarização, ainda que presente, poderia ser tomada como fragmentária e parcial: muitas outras forças (disciplinares e não disciplinares) estiveram em jogo ao longo das oficinas, tanto por parte dos participantes quanto dos oficineiros ou dos técnicos. Ainda que não tenham aparecido claramente aqui, ou que não tenham sido enfatizadas nos recortes e análises, estas outras forças ficaram sensíveis, especialmente aquelas que nos arrastam à pergunta: de que outro modo? Que nos arrastam a “abrir a janela” (Larrosa, 2014, p. 75). Mesmo sendo frágil o que se tenta fora desse regime de escolarização, há uma força em educação nesta fragilidade. E é arrastado por tais forças que este trabalho, por fim, lança-se às reticências, “os três primeiros passos do pensamento que continua por conta própria o seu caminho” (Quintana, 2013, p. 137), na forma da questão: como a educação é possível para além da escolarização, em um tempo em que a escolarização se prolonga, se dilata, se dissolve e se torna (quase) ininterrupta, como que perdendo seu lugar próprio?

  • 1
    Normalização, preparação e revisão textual: Andressa Picosque (Tikinet)
  • 2
    Não se faz aqui referência ao caráter “fantasioso” da quimera, mas sim à combinação heterogênea, como descrita na Ilíada: “à frente tem forma de leão, atrás de dragão, no meio de cabra” (Homero, 2013, canto VI, verso 181).
  • 3
    Estas vivências e oficinas no HCTP estão ligadas a atividades de um projeto de Mestrado em Educação.
  • 4
    Neste artigo o termo “participante” designa apenas aquele que fez parte das oficinas, não necessariamente se relacionando com os conceitos de “participação” e “sujeito participativo”, expostos mais adiante e associados ao modo de funcionamento escolar contemporâneo. O “participante” das oficinas não precisa ser ativo ou participativo, podendo até quedar à parte das atividades, apenas estando presente no espaço das oficinas.
  • 5
    Coordenado pelas professoras Ana Maria Hoepers Preve e Karen Rechia (doutoras em Educação pela Universidade Estadual de Campinas), o grupo Geografias de Experiência faz parte do Laboratório de Estudos e Pesquisas de Educação em Geografia (Lepegeo) e da Rede de Pesquisa Imagens, Geografias e Educação, tendo como membros principalmente graduandos em Geografia e pós-graduandos em Educação pela FAED/UDESC.
  • 6
    “Enfermaria” é o nome dado aos leitos coletivos dos pacientes da instituição.
  • 7
    As citações das falas de quaisquer sujeitos extraídas das experiências em educação no HCTP serão grifadas em itálico para efeito de diferenciação das citações de documentações referenciáveis.
  • 8
    Tal espaço e sua criação compõem o trabalho da oficineira do grupo Geografias de Experiência Camila Verena Barbosa, cujo trabalho intitula-se Geografias em deriva, cf. Barbosa & Preve (2017). As oficinas nesta proposição, assim como em todos os demais trabalhos do grupo no HCTP, partem da utilização de alguns materiais e da ativação de uma ideia de interesse do oficineiro. O oficineiro é aquele que, a partir do seu desejo, coloca em movimento uma questão. Algumas das oficinas aqui relatadas fazem parte também da dissertação de Freitas (2016).
  • 9
    “Desobjeto” é o termo cunhado pelo poeta Manoel de Barros (2010) para se referir aos objetos poéticos e inúteis (ou que servem para poesia) por ele inventados em seus textos.

Referências

  • Ball, S. J. (2003). The teacher’s soul and the terrors of performativity. Journal of Education Policy, 18(2), 215-228.
  • Barbosa, C., & Preve, A. (2017). Geografias em deriva. Revista Digital do LAV. 10(3), 17-30.
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  • Beltrão, I. R. (2000). Corpos dóceis, mentes vazias, corações frios - Didática: O discurso científico do disciplinamento São Paulo: Imaginário.
  • Cervi, G. M. (2013). Política de gestão escolar na sociedade de controle Rio de Janeiro: Achiamé.
  • Corrêa, G. C. (2000). Oficina: Novos territórios em educação. In M. O. Pey (Org.), Pedagogia libertária: Experiências hoje (pp. 77-162). Rio de Janeiro: Imaginário.
  • Corrêa, G. C. (2006). Educação, comunicação e anarquia: Procedências da sociedade de controle no Brasil São Paulo: Cortez.
  • Corrêa, G. C., & Preve, A. M. H. (2011). A educação e a maquinaria escolar: Produção de subjetividades, biopolítica e fugas. REU, 37(2).
  • Deleuze, G. (2003). Pourparlers: 1972-1990 Paris: Minuit.
  • Freitas, M. M. S. (2016). O lambe-lambe como potencializador de aprendizagens em fuga Dissertação de mestrado, Centro de Ciências Humanas e da Educação, Universidade do Estado de Santa Catarina.
  • Foucault, M. (2000). História da loucura na idade clássica (6a ed.). São Paulo: Perspectiva.
  • Foucault, M. (2008). Segurança, território, população: Curso dado no Collège de France (1977-1978) (E. Brandão, Trad.). São Paulo: Martins Fontes.
  • Foucault. M. (2009). Vigiar e punir: Nascimento da prisão (R. Ramalhete, Trad., 36a ed.). Petrópolis: Vozes.
  • Homero (2013). Ilíada (F. Lourenço, Trad.). São Paulo: Penguin Classics; Companhia das Letras.
  • Kafka, F. (2008). O castelo (M. Carone, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras.
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    » https://www.youtube.com/watch?v=YDXOioU_OKM&t=
  • Larrosa, J. (2014). Tremores (C Antunes, & J. W. Geraldi, Trads.). Belo Horizonte: Autêntica.
  • Masschelein, J., & Simons, M. (2015). Em defesa da escola: Uma questão pública (C. Antunes, Trad., 2a ed.). Belo Horizonte: Autêntica.
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  • Preve, A. M. H. (2010). Mapas, prisão e fugas: Cartografias intensivas em educação Tese de doutorado, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
  • Quintana, M. (2013). Caderno H Rio de Janeiro: Objetiva.
  • Vigo, J. (1933). Zéro de conduite: Jeunes diables au collège [Arquivo de vídeo]. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=YUkW1LBuQcg.
    » https://www.youtube.com/watch?v=YUkW1LBuQcg.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    13 Jul 2017
  • Revisado
    07 Mar 2018
  • Aceito
    23 Abr 2018
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