Resumo
A vida tem sido recorrentemente tomada como objeto do discurso. Mas como concebemos esta vida que nos é demasiadamente importante? Neste texto, de inspiração foucaultiana, analisamos a maneira como a vida está enunciada em livros didáticos utilizados em duas escolas localizadas na capital de um estado brasileiro e descrevemos algumas forças que tornam possíveis esses enunciados. Primeiramente, não percebemos diferenças na maneira como os livros descrevem a vida. Ademais, ao constatar uma justaposição entre as noções de vida e corpo, cogitamos que os livros pesquisados contribuem com a educação dos alunos para uma forma de exercício do poder que é concomitantemente individualizadora e generalizadora: o biopoder.
Palavras-chave Michel Foucault; ensino fundamental; livro didático
Abstract
Life has been recurrently taken as speech object. But how do we conceive this life that is so important for us? In this foucauldian-inspired text, we analyze the way life is stated in textbooks used in two schools located in the capital of a Brazilian state and we describe some forces that make these statements possible. First, we do not notice differences in the way books describe life. In addition, realizing a juxtaposition between the notions of life and body, we suggest that the books surveyed contribute to the education of students in a way of exercising power that is simultaneously individualizing and generalizing: the biopower.
Keywords Michel Foucault; basic education; textbook
Para começar: o contexto e o caminho percorrido
Foucault (1999, p. 285) considera a assunção da vida pelo poder como “um dos fenômenos fundamentais do século XIX”. Ao desenvolver investigações seguindo perspectiva análoga, Portocarrero (2009) escreve que, no transcorrer do século XX, o crescimento da preocupação com as ciências da vida se evidencia pela proliferação dos discursos referentes ao tema.
Para ilustrar esta disseminação de discursos – e práticas – que tomam a vida como objeto, lembramos que no governo federal do Brasil há um Ministério do Meio Ambiente, cuja finalidade primordial é desenvolver ações de promoção à vida. A Constituição Federal brasileira, em seu artigo quinto, destaca a vida como o primeiro dos direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros (Brasil, 1988). Na área da saúde, a campanha elaborada pela Organização Mundial da Saúde (OMS, ou WHO, na sigla em inglês) e divulgada nacionalmente pelo Ministério da Saúde proclama: Higienize as mãos: salve vidas (WHO, 2015). Em sintonia, os órgãos estatais responsáveis pelos transportes rodoviários apregoam: o uso do cinto de segurança salva vidas. Costa (2007) menciona que, no âmbito educacional, a escola permanece no imaginário das pessoas como a instituição por meio da qual podemos nos tornar alguém na vida. Campanhas midiáticas distintas e pessoas variadas aconselham: aproveite a vida porque ela é curta.
Mas como concebemos esta vida que nos é demasiadamente importante? Segundo Ferraro (2011), nem mesmo as distintas ciências biológicas caracterizam a vida de modo idêntico. Ao extrapolarmos o âmbito da biologia, as diferenças são ainda mais significativas. No dossiê Gênese da vida, organizado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Eduardo Rodrigues da Cruz (2008, p. 71) escreve: “sem uma abordagem interdisciplinar, onde também considerações religiosas e teológicas entrem no processo, dificilmente teremos respostas satisfatórias para as questões da origem da vida como um todo”.
A obra de Foucault faz referência a sociedades de diferentes épocas e locais que concebiam a continuidade da vida após a morte. Ao aludir à Antiguidade greco-romana, o autor explicita de uma maneira bastante evidente a distinção que Platão, Sócrates e outros pensadores faziam entre corpo e alma.
… a alma não é mesma coisa que o corpo, que a alma e o corpo são duas coisas distintas, que o corpo é mortal e a alma, em contrapartida, é imortal; e que essa alma imortal, depois [da] morte [do corpo], será julgada em função do que ela fez durante a vida e será exposta, se tiver cometido injustiças no decorrer da sua existência, a castigos terríveis e a longas peregrinações abaixo da terra.
(Foucault, 2010, p. 248)
A crença na vida depois da morte e o animismo aparentemente estão associados ao modo como as religiões afro-brasileiras e a maior parte dos povos indígenas do nosso país narram a vida. Ao discorrer sobre a questão indígena na sala de aula, Macedo, Leitão, Mindlim e Freire (2002, p. 91) esclarecem:
Os povos indígenas ocupam-se muito do que ocorre com o além, que não é um domínio muito destacado da vida quotidiana. Os pajés percorrem a estrada das almas, em reinos míticos dos céus, das águas ou da floresta, para curar os mortais. Transformam-se em animais, fazem vôos e andanças mágicas para buscar espíritos e convencê-los a curar as doenças. A cura não termina na morte – ao contrário, é na fusão de morte e vida, na crença na alma que são encontrados recursos para prolongar o tempo de vida. A poesia e a magia da espiritualidade indígena são um contraponto à homogeneidade religiosa imposta por doutrinas de religiões monoteístas, apresentadas como verdade única.
Apesar desta multiplicidade de concepções, livros didáticos no Brasil parecem disseminar exclusivamente maneiras de narrar a vida identificadas com a biologia. Esta constatação remete aos trabalhos de Castro (2012), quando ele ressalta que na modernidade a vida é objeto de constante biologização, e Bezerra Jr. (2015, p. 44), para quem:
Não há praticamente nenhum campo da experiência humana sobre o qual a Biologia não tenha lançado seus tentáculos, produzindo saberes, discursos, e práticas que inundam nossa vida cotidiana, explicando, modulando e apontando caminhos em quase tudo que vivemos: sintomas psíquicos, identidades socioculturais, decisões econômicas, experiências místicas, preferências estéticas e políticas, saúde, bem-estar, etc.
A homogeneização da forma de narrar a vida em livros didáticos chama a atenção fundamentalmente por dois aspectos. Primeiro, porque está em desacordo com o projeto de educação nacional (Brasil, 2013), o qual se apoia sobre o pluralismo de ideias, a valorização da experiência extracurricular e das diferenças. Segundo, porque, conforme Foucault (2008), os enunciados estabelecem relações com práticas não discursivas ou acontecimentos de natureza técnica, econômica, social, política etc. Neste sentido, o autor demonstrou como, no século XIX, a constituição do discurso biológico da vida sustentou a emergência de uma forma específica de poder, denominada biopoder, e o desenvolvimento do capitalismo.
Este bio-poder, sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos da população aos processos econômicos. Mas, o capitalismo exigiu mais do que isso, foi-lhe necessário o crescimento tanto de seu reforço quanto de sua utilizabilidade e sua docilidade; foram-lhe necessários métodos de poder capazes de majorar as forças, as aptidões, a vida em geral, sem por isto torná-las mais difíceis de sujeitar; se o desenvolvimento dos grandes aparelhos de Estado como instituições de poder, garantiu a manutenção das relações de produção, os rudimentos de anátomo e de bio-política, inventados no século XVIII como técnicas de poder presentes em todos os níveis do corpo social e utilizadas por instituições bem diversas (a família, o Exército, a escola, a polícia, a medicina individual ou a administração das coletividades), agiram no nível dos processos econômicos, do seu desenrolar, das forças que estão em ação em tais processos e os sustentam; operaram também, como fatores de segregação e de hierarquização social, agindo sobre as forças respectivas tanto de uns como de outros, garantindo relações de dominação e efeitos de hegemonia; o ajustamento da acumulação dos homens à do capital, a articulação do crescimento dos grupos humanos à expansão das forças produtivas e a repartição diferencial do lucro, foram, em parte, tornados possíveis pelo exercício do bio-poder com suas formas e procedimentos múltiplos. O investimento sobre o corpo vivo, sua valorização e a gestão distributiva de suas forças foram indispensáveis naquele momento.
(Foucault, 1988, pp. 153-154)
Outros autores têm ajudado a ampliar a compreensão acerca das relações que a biologia, o biopoder e o capitalismo estabelecem na atualidade. Peters (2015, p. 28) assevera:
O nascimento da biopolítica assume uma forma mais radical com o neoliberalismo como racionalização do governo via meios econômicos, em que sujeitos com direitos são obrigados a ser livres, isto é, fazer opções dentro de um estado limitado onde o bem-estar é reduzido ou modificado a cada viravolta do mercado ou de arranjos semelhantes a mercado. Isso envolve a “responsabilização” dos indivíduos, tornando-os responsáveis por si mesmos mediante ênfase sobre a escolha individual na praça. Excelente exemplo disso é o desenvolvimento da teoria do capital humano por Schultz e mais tarde por Becker, da terceira geração da Escola de Chicago, fornecendo uma análise da educação, crime, casamento, bem-estar social em termos de capital humano, responsabilizando os cidadãos por cuidarem de si próprios, deixando o Estado livre para privatizar todos os ativos estatais, permanecendo como legislador ou regulador do sistema dentro do qual a escolha é exercida [pelo cidadão].
Aquino (2015), ao analisar a importância da educação para o desenvolvimento do biopoder, diagnostica que a biopolítica, enquanto estratégia de governamento facilmente adaptável, constante e amplamente disseminada, possui nas práticas educacionais um forte aliado. Após estas considerações, sentencia: “A bem da verdade, poder-se-ia afirmar que o governamento biopolítico vale-se essencialmente de ações de cunho pedagógico – ou, para ser mais preciso, pedagogizante –, sem o qual seus intentos não se efetivariam” (p. 55).
Diante destes elementos, neste texto nos propomos a alcançar dois objetivos: (1) analisar a maneira como a vida está enunciada em livros didáticos utilizados pelos anos iniciais do ensino fundamental em duas escolas, uma pública e outra privada, localizadas na capital de um estado brasileiro; e (2) descrever algumas forças que tornam possíveis os enunciados sobre a vida presentes nos livros didáticos. Em ambas as escolas, reunimos inicialmente 14 livros didáticos escritos em língua portuguesa. Excluímos apenas as obras adotadas por uma das escolas para o ensino da língua inglesa do terceiro ao quinto ano. As instituições, quando comparadas, utilizam livros produzidos por editoras distintas, mas todos os volumes utilizados em cada escola procedem da mesma editora. Para as análises finais, compusemos o corpus deste estudo com cinco livros: dois utilizados em uma das escolas para o ensino da língua portuguesa e três usados na outra instituição para o ensino de ciências da natureza. Esses cinco livros foram selecionados por conterem enunciações sobre o objeto desta pesquisa, ou seja, sobre a vida.
Em termos metodológicos, orientados pelo objetivo de analisar a maneira como a vida está enunciada em livros didáticos, recorremos inicialmente a alguns procedimentos apresentados por Foucault (2008), em A arqueologia do saber. Nesse livro o autor escreve que a análise das formações discursivas deve objetivar a descrição do enunciado em sua especificidade ou singularidade – naquilo que um enunciado se diferencia dos demais. Tal descrição pressuporia discriminar quatro elementos que constituiriam um enunciado: (1) o referente, objeto concreto ou abstrato ao qual o discurso se refere e constitui como uma coisa única; (2) um sujeito, ou uma posição que pode ser ocupada por diferentes pessoas, mas que indicaria quem tem autoridade reconhecida, consentida, aceita por outrem para proferir discursos sobre o referente tal como ele é apresentado; (3) um campo associado, ou um conjunto de outros enunciados que proporcionam a estabilidade para que o enunciado se apresente tal como ele é; e (4) uma materialidade, ou o conjunto de superfícies, com suas respectivas regras de transcrição, onde os enunciados são grafados. Neste artigo, o referente é a maneira como a vida se encontra enunciada nos livros didáticos; os sujeitos seriam todos aqueles que, no interior das escolas, utilizam tais livros para disseminar os discursos biológicos sobre a vida; o campo associado remete à vinculação que se faz nos livros didáticos entre os enunciados sobre a vida e os elementos discursivos peculiares ao biopoder; e a materialidade, os próprios livros didáticos analisados.
Ainda para Foucault (2008), a análise arqueológica não apenas possibilita identificar e distinguir enunciados e formações discursiva, mas especialmente procura relacioná-los com práticas não discursivas específicas. Ou seja, ao nos propormos a descrever a singularidade de um discurso, visamos delimitar os limites cronológicos, o campo institucional e o conjunto de acontecimentos políticos, econômicos, sociais e de outras ordens com os quais esse discurso está associado.
No entanto, pode-se deduzir destes elementos teóricos e das noções expostas por Portocarrero (2009) que a análise arqueológica, ao viabilizar a descrição das condições de possibilidade do surgimento e das transformações dos saberes, permite-nos empreender outra forma de análise, denominada genealógica. A autora entende a genealogia como a história das condições políticas de possibilidade dos discursos ou “como um estudo das relações de forças que incidem sobre a vida dos indivíduos e das populações, tomando-os como alvo” (Portocarrero, 2009, p. 141), seja através dos mecanismos disciplinares sobre o corpo individual, seja através de tecnologias do poder próprias da biopolítica, as quais se destinam ao governo das populações. Foucault (1979) caracterizou-a como um tipo de história que descreve, por exemplo, a constituição dos saberes, discursos e objetos sem precisar referir um sujeito. Neste sentido, poderia também ser considerada uma “anticiência”, pois permite compreender os efeitos de poder peculiares aos discursos considerados científicos.
Assim, após analisarmos o modo como a vida se encontra enunciada nos livros didáticos, efetuamos estudo de inspiração genealógica. Ou seja, amparados pelas proposições foucaultianas sobre o biopoder e pelas contribuições de outros autores, procuramos relatar as condições políticas de possibilidade daqueles mesmos enunciados.
A escolha do corpus se justifica por duas razões. Primeiro, porque este nível de ensino historicamente tem sido aquele ao qual tem acesso a maior parte da população brasileira. Para ratificar esta afirmação, transcrevemos parte das Diretrizes nacionais gerais da educação básica, publicadas pelo Ministério da Educação:
O Ensino Fundamental foi, durante a maior parte do século XX, o único grau de ensino a que teve acesso a grande maioria da população. Em 1989, já na virada da última década, portanto, a proporção de suas matrículas ainda representava mais de ¾ do total de alunos atendidos pelos sistemas escolares brasileiros em todas as etapas de ensino. Em 2009, o perfil seletivo da nossa escola havia se atenuado um pouco, com a expansão do acesso às diferentes etapas da escolaridade. Contudo, entre os 52,6 milhões de alunos da Educação Básica, cerca de 66,4% estavam no Ensino Fundamental, o que correspondia a 35 milhões de estudantes, incluídos entre eles os da Educação Especial e os da Educação de Jovens e Adultos
(conforme a Sinopse Estatística da Educação Básica, MEC/INEP 2009).
Se praticamente conseguimos universalizar o acesso à escola para crianças e jovens na faixa etária de 7 (sete) a 14 (quatorze) anos, e estamos próximos de assegurá-la a todas as crianças de 6 (seis) anos, não conseguimos sequer que todos os alunos incluídos nessa faixa de idade cheguem a concluir o Ensino Fundamental.
(Brasil, 2013, p. 106)
A opção por pesquisar livros didáticos dos primeiros anos do ensino fundamental não se restringe, todaviaà maior possibilidade de acesso a este nível da escolaridade. Tal opção se deu também porque, conforme Veiga-Neto (2002, p. 172) sugere, amparado pelos trabalhos de Keith Hoskin publicados em 1990 e de Michel Foucault, a escola continua sendo “a instituição que melhor realiza o nexo entre poder e saber”. Isto é, os processos de objetivação dos indivíduos por saberes e poderes específicos, assim como os operados pelos currículos escolares, são estratégias que almejam sujeitar ou vincular os alunos a formas específicas de dominação, disciplinamento e controle. Logo, se no Brasil o maior acesso à escolarização acontece por meio do ensino fundamental, pareceu-nos igualmente importante – ou prioritário – analisar as articulações entre poder e saber que este nível de ensino ajuda a disseminar.
A educação para o biopoder
Gallo (2008), nas linhas iniciais do texto Eu, o outro e tantos outros: Educação, alteridade e filosofia da diferença, destaca algumas questões elementares que caracterizam a educação, entendida como um fenômeno eminentemente coletivo que, por isso, somente sucede mediante um encontro de singularidades. Logo em seguida, com base na filosofia espinozana, o autor adverte que tais encontros podem potencializar nossas capacidades de pensar e agir ou, ao contrário, diminuí-las.
Em perspectiva próxima, Silva (2007, p. 85) escreve: “Tornou-se lugar-comum destacar a diversidade das formas culturais do mundo contemporâneo. É um fato paradoxal, entretanto, que essa suposta diversidade conviva com fenômenos igualmente surpreendentes de homogeneização cultural”.
Iniciamos esta seção com tais apontamentos teóricos exatamente para enfatizar que a maneira como a vida está enunciada nos cinco livros didáticos analisados se restringe a um enunciado: a vida é fenômeno que depende necessariamente do corpo. Nada do que está escrito nesses livros vai por um caminho diferente; o que eles ensinam se resume a esta única, homogênea, repetitiva e monótona forma de conceber a vida das plantas, dos animais e, por conseguinte, dos humanos. Nada do que se refere a qualquer forma de vida pode ser encontrado fora ou além dos limites de um corpo biológico.
Percebemos no material analisado uma justaposição, uma fusão, um perfeito acoplamento entre as noções de vida e corpo. A vida exige o corpo, está nele; e o corpo é a condição essencial para a vida; se não houver um corpo biológico, não há vida, como ilustram Marsico, Carvalho e Antunes (2011b, p. 144): “não podemos viver sem ar. Pela respiração, nosso corpo retira oxigênio do ar e libera gás carbônico”. Esta citação remete-nos a Foucault (1979), quando o autor afirma que:
o capitalismo, desenvolvendo-se em fins do século XVIII e início do século XIX, socializou um primeiro objeto que foi o corpo enquanto força de produção, força de trabalho. O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade bio-política. (p. 106)
Respaldados por esta perspectiva teórica, podemos cogitar que o capitalismo contemporâneo continua investindo e se ocupando com a produção de corpos para controlar a sociedade e para disponibilizá-los como força de trabalho. No entanto, ao resgatarmos o pensamento de Aquino (2015), citado na seção introdutória, conseguimos avançar e identificar como a escola, ao apresentar o “corpo” de uma maneira pretensamente científica para os alunos, contribui desde os primeiros anos do ensino fundamental para introduzi-los em um universo discursivo e de saberes que sustenta as práticas relacionadas ao biopoder.
Segundo Foucault (1988, 1999), o biopoder consolidou-se no século XIX, quando o antigo direito de soberania de “fazer morrer e deixar viver” foi complementado pelo moderno e inverso direito de “fazer viver e deixar morrer”. Seu desenvolvimento, contudo, remonta ao século XVII, quando um dos seus dois polos começou a constituir o corpo como máquina. Esse primeiro polo do biopoder investiu sobre os corpos de maneira a adestrá-los, a ampliar suas aptidões e extrair suas forças, fazendo-os crescer em utilidade e docilidade e integrando-os aos sistemas de controle e econômicos. Tais processos foram assegurados “por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano” [ênfase no original] (Foucault, 1988, p. 151). O segundo polo do biopoder, a biopolítica da população, formou-se em meados do século XVIII. Ocupou-se em regular o corpo-espécie, ou seja, em administrar os elementos associados à vida humana enquanto coletividade, os quais dependem necessariamente dos processos biológicos (por exemplo, proliferação, nascimentos, mortalidade, nível de saúde, duração da vida, longevidade etc.).
Conforme se pode deduzir destes fundamentos teóricos, não há como conceber o biopoder dissociado da biologia, disciplina que também começou a se organizar ao final do século XVIII. Assim, é interessante observarmos que, visando vincular os alunos a esta forma específica de exercício do poder, tudo – ou somente aquilo – que os livros didáticos analisados ensinam sobre a vida, inclusive aqueles não destinados às ciências da natureza, corresponde a uma perspectiva de didatização dos saberes biológicos sobre a vida. Em tais livros, portanto, a vida é apresentada como um processo finito, de duração limitada, cujos marcos inicial e final, os sempre referidos “limites”, são facilmente identificados: nascimento e morte. Pode parecer uma trivialidade, como se não houvesse outras formas de narrar a vida, mas o que se diz sempre é: vivemos após nascermos e até o instante em que morremos.
Foucault ocupou-se igualmente com o tema da finitude em As palavras e as coisas (2007). “Ser finito seria, muito simplesmente, ser tomado pelas leis de uma perspectiva que, ao mesmo tempo, permite certa apreensão – do tipo da percepção ou da compreensão – e impede que esta jamais seria intelecção universal e definitiva” (p. 516). A finitude, por conseguinte, do ponto de vista arqueológico, seria uma das características fundamentais da episteme moderna. Foi justamente no interior dessa episteme moderna que a biologia começou a se organizar.
O intervalo que transcorre do nascimento à morte, este lapso de tempo que caracteriza a existência de um ser, é sistematicamente descrito como composto por fases sucessivas, as quais se denominam ciclo vital. Eis alguns excertos do livro de Marsico, Carvalho Neto e Antunes (2011a) que ilustram a nossa afirmação:
Os seres vivos nascem, crescem, sofrem transformações ao longo do seu desenvolvimento, reproduzem-se – isto é, são capazes de dar origem a seres iguais a eles – e, por fim, morrem. …Ciclo vital é a repetição de uma série de fenômenos que se referem à vida. … Ao longo de seu desenvolvimento, o ser humano passa por diversas fases. As principais são a infância, adolescência, a idade adulta e a velhice. … O ser humano é um ser vivo e, desde o nascimento até a morte, passa por transformações físicas e mentais importantes. (pp. 52-53, 118 e 121)
A vida, assim, é descrita invariavelmente como um processo linear que obedece, enquanto dura, sempre à mesma ordem, à mesma sequência. A vida seria uma rotina, um conjunto de etapas que se sucedem com a passagem do tempo.
Moraes e Veiga-Neto (2008) sugerem que a noção de tempo linear e progressivo (passado-presente-futuro) está atrelada aos procedimentos disciplinares, um dos polos do biopoder. Com isto nos ajudam a compreender que, aprendendo sobre os elementos do ciclo vital, os alunos não estão apenas se apropriando de um “conteúdo escolar”, mas estão sendo subjetivados por um saber que ainda hoje é compatível e requerido pelo biopoder para controlar os corpos e inseri-los na ordem econômica. Esse modo de conceber e viver o tempo é necessário, por exemplo: (1) para que os sujeitos se autogovernem (acordem, tomem banho, vistam-se, alimentem-se, saiam para o trabalho…); (2) para que alguns sujeitos governem outros (lembremos de uma professora de educação infantil organizando a rotina das crianças sob sua responsabilidade); e (3) para que os sujeitos sejam governados por outros (pensemos nos profissionais de praticamente todos os hospitais e outras empresas, os quais trabalham obedecendo a escalas que distribuem as pessoas ao longo do dia, da semana e do mês de maneira a não interromper os serviços).
Por conseguinte, assim como descrito nos livros didáticos, o fenômeno vida nos propõe um modo bastante peculiar de nos relacionarmos com o tempo. Aliás, o fenômeno tempo somente pode ser concebido a partir da existência e em relação com a vida, pois antes do nascimento dos seres e depois de sua morte nada mais existe. Se a vida surge no momento do nascimento e extingue-se com a morte, como poderá para os seres haver tempo além desse intervalo? Antes e depois da vida nada existe. Logo, o tempo inclusive precisa desaparecer.
Dessa forma, o tempo é igualmente limitado, algo que necessariamente finda. Apesar de ele somente poder existir a partir do instante que assumimos essa forma de compreender a vida, a relação de ambos é de oposição. Tempo e vida situam-se em polos distintos, relativamente contrários: quanto menos vivemos, hipoteticamente, mais tempo dispomos pela frente; quanto mais vivemos, menor é o tempo que nos resta… Quando se comemora a vida, então, nas festas de aniversário, está-se também realizando um ritual que situa as pessoas mais próximas da própria finitude.
A história intitulada A surpresa da festa, extraída de um dos livros analisados, narra o aniversário da personagem Carolina, evidenciando essa oposição entre vida e tempo. Depois de as crianças cantarem a música Parabéns a você, em que um dos versos diz “muitas felicidades, muitos anos de vida”, o Menino Maluquinho completa: “cada ano que passa… ela fica mais velha” (Borgatto, Bertin, & Marchezi, 2011a, p. 68). Escrevendo de outra forma, temos: “cada ano que passa, nós estamos mais próximos da nossa morte, do término do nosso tempo”.
Ficarmos mais velhos; aproximarmo-nos da nossa finitude; dispormos de menos tempo: eis algumas condições das quais tentamos fugir na atualidade! Especialmente a última, todavia, parece caracterizar uma condição que ajuda a sustentar o capitalismo em que vivemos. Segundo Bauman (2001), a modernidade líquida – ou a época do capitalismo de software – poderia ser descrita como o tempo em que o futuro se esvaeceu, é incerto, duvidoso, dissipou-se. A noção de finitude parece ter alcançado sua vigência máxima, seu apogeu. O que importa e tem valor, é reconhecido e conhecido – ou melhor, só o que existe – é o presente, o agora.
Em outras palavras [na modernidade líquida], laços e parcerias tendem a ser vistos e tratados como coisas destinadas a serem consumidas, e não produzidas; estão sujeitas aos mesmos critérios de avaliação de todos os outros objetos de consumo. [ênfase no original
(Bauman, 2001, p. 187)
O fato, porém, é que na modernidade líquida “os outros objetos de consumo”, na verdade, são todas as coisas: laços e parcerias, bens e serviços, interesses e afinidades, identidades e desejos. Tudo deve ser consumido instantaneamente; todas as coisas devem ser utilizadas e descartadas rapidamente; o destino de objetos e pessoas é o consumo. Nada deve permanecer. Tudo deve passar sem deixar marca de que algum dia existiu. E, como parece fácil deduzir, essa lógica se aplica para cada um de nós. Passaremos, desaparecemos e nem na lembrança daqueles que ainda não passaram restaremos.
Uma vez mais, referindo-se a artigo que Pierre Bourdieu escreveu em 1997, cujo título é Le précarité est aujourd’hui partout, Bauman (2001, p. 184) infere que:
… precariedade, instabilidade, vulnerabilidade, é a característica mais difundida das condições de vida contemporâneas (e também a que se sente mais dolorosamente). Os teóricos franceses falam de précarité, os alemães, de Unsicherheit e Risikogesellschaft, os italianos, de incertezza e os ingleses, de insecurity – mas todos têm em mente o mesmo aspecto da condição humana, experimentada de várias formas e sob nomes diferentes por todo o globo mas sentida como especialmente inervante e deprimente na parte altamente desenvolvida e próspera do planeta – por ser um fato novo e sem precedentes. O fenômeno que todos esses conceitos tentam captar e articular é a experiência combinada de falta de garantias (de posição, títulos e sobrevivência), da incerteza (em relação à sua continuação e estabilidade futura) e de insegurança (do corpo, do eu e de suas extensões: posses, vizinhança, comunidade).
Precariedade, instabilidade, vulnerabilidade, falta de garantias, incerteza e insegurança: inspirados em Foucault (2007), podemos afirmar que essas não são condições essencialmente humanas, mas produzidas por uma política da vida – uma biopolítica. Esta nos ensina, nas escolas e em outros espaços, que a nossa existência, dependente do corpo, é fugaz e o nosso tempo, finito.
Neste contexto, o consumo assume papel central na nossa existência. Os livros didáticos o descrevem como uma necessidade. Mencionam que precisamos consumir água, alimentos, ar e outros recursos naturais para sobreviver:
Os recursos da natureza são fundamentais para a existência da vida. Isso quer dizer que os seres vivos, como os animais e os vegetais, dependem da água, do ar, do solo, da luz e do calor do Sol, além dos próprios seres vivos para viver. … Para viver e se desenvolver bem, as plantas necessitam do solo, da água, do ar e da luz do Sol. (Marsico et al., 2011b, pp. 96 e 100)
Todavia, os livros enunciam muito mais sobre o consumo, asseverando que necessitamos consumir diversas outras coisas. A precariedade da nossa existência, que se manifesta, além de outras formas, por meio das doenças contagiosas ou não que afetam nosso corpo, expondo-nos ao risco de morte, revela-se argumento para que consumamos ações de saúde.
Vírus é um tipo de microrganismo causador de doenças, como gripe, catapora, caxumba, sarampo, dengue entre outras, as quais também são contagiosas. … As lombrigas vivem no intestino das pessoas, causando dores de barriga, falta de apetite e enfraquecimento. Se a doença não for tratada, pode até provocar a morte da pessoa afetada.
(Marsico et al., 2011a, pp. 142 e 146)
Devemos consumir ações de saúde porque a vida – sempre dependente, carente e frágil – precisa ser cuidada e protegida. Assim como há elementos ou fatores externos aos seres vivos que fazem bem à vida, preservando-a e promovendo-a, também há agentes nocivos aos corpos e, portanto, nocivos à própria vida. Neste sentido, os elementos presentes nos livros didáticos permitem definir saúde como a condição de um corpo que funciona em harmonia, tornando a vida possível.
O corpo humano é formado por um conjunto de órgãos. Cada órgão tem uma função, mas todos trabalham juntos.... Quando todos os órgãos do nosso corpo funcionam bem, temos saúde. Saúde é também estar livre de doenças e ter bom relacionamento social, isto é, viver bem com parentes, amigos, pessoas da escola e do bairro
(Marsico et al., 2011c, pp. 90 e 122).
Mas, conforme os exemplos evidenciam, para dispormos de saúde cada órgão precisa desempenhar a sua função adequadamente. O equilíbrio geral somente é alcançado quando cada parte se desincumbe satisfatoriamente do seu papel. A interdependência, por conseguinte, entre as partes do mesmo ser, entre diferentes seres e entre os seres e os demais elementos da natureza, é outra característica fundamental da vida.
Quando a harmonia geral é afetada surgem as doenças. Para combatê-las e preservar a vida, além da higiene física e dos hábitos saudáveis, que são ações predominantemente individuais, há iniciativas de abrangência coletiva que os governos devem empreender para cuidar da população. Constata-se então como a característica de fragilidade, dependência, carência natural da vida e dos seres constitui condição para a naturalização das estratégias de biopoder que se destinam a controlar a coletividade, o corpo-espécie.
Existe um conjunto de cuidados que devem ser tomados pelo governo, para que os cidadãos tenham boa saúde e possam viver bem. Esse conjunto de cuidados é o que chamamos saneamento básico. Entre os cuidados que fazem parte do saneamento básico de uma cidade estão:
o tratamento e a distribuição da água;
a construção de uma rede de esgotos;
o tratamento do esgoto antes de lançá-lo nos rios ou no mar;
a coleta do lixo;
a reciclagem do lixo. (Marsico et al., 2011a, p. 138)
Todas as ações de saneamento básico apresentam uma finalidade convergente, compartilhada pelas campanhas de vacinação e pelas práticas de primeiros socorros ensinadas nos livros didáticos: proteger o corpo – dos indivíduos e da coletividade, dos seres e da espécie – para mantê-lo saudável e íntegro. Logo, consumimos ações de saúde individuais e coletivas porque a nossa vida é precária. Eis algo que os livros didáticos ensinam. A partir deste enunciado, julgamos pertinente resgatar alguns apontamentos de Gaudenzi e Ortega (2012, p. 22):
Michel Foucault … apesar de não fazer uso sistemático do termo medicalização, faz referência ao processo quando aponta para a constituição de uma sociedade na qual o indivíduo e a população são entendidos e manejados por meio da medicina. Refere-se ao processo de medicalização social ao argumentar que, ao contrário do que se poderia imaginar, a medicina moderna – que nasceu no final do século XVIII, momento de desenvolvimento da economia capitalista e de esforços e expansão das relações de mercado – não se tornou individual, mas sim, se apresentou como uma prática social que transformou o corpo individual em força de trabalho com vistas a controlar a sociedade. Primeiramente, o investimento era feito sobre o indivíduo por intermédio da ação sobre o biológico e, posteriormente, controlavam-se as consciências e ideologias … A medicina, então, estabelece diversas medidas de controle sobre o corpo individual e coletivo, possibilitando o exercício cada vez mais refinado do poder sobre a vida.
Relevante é destacar aqui o fato de que à medicina, desenvolvida para proteger os seres humanos, concede-se o direito de matar, eliminar, extinguir outros seres vivos potencialmente causadores de doenças para as pessoas. Assim, para a preservação de uma espécie outras podem ser mortas. Leiamos, mais uma vez, aquilo que os livros didáticos disseminam: “As lombrigas vivem no intestino das pessoas, causando dores de barriga, falta de apetite e enfraquecimento. Se a doença não for tratada, pode até provocar a morte da pessoa afetada” (Marsico et al., 2011a, p. 146).
Mais interessante ainda é relembrarmos que lógica semelhante a esta divulgada pelos livros didáticos – de matar para que a espécie humana, ou ao menos uma parte dela, seja protegida – explica as modernas formas de racismo.
Com efeito, que é o racismo? É, primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação de certas raças como boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo do biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em relação aos outros. Em resumo, de estabelecer uma cesura que será do tipo biológico no interior de um domínio considerado como sendo precisamente um domínio biológico. Isso vai permitir ao poder tratar uma população como uma mistura de raças ou, mais exatamente, tratar a espécie, subdividir a espécie de que ele se incumbiu em subgrupos que serão, precisamente, raças. Essa é a primeira função do racismo: fragmentar, fazer cesuras no interior desse contínuo biológico a que se dirige o biopoder.
(Foucault, 1999, pp. 304-305)
De forma alguma, evidentemente, pretendemos afirmar que as obras estudadas promovem o racismo. Apenas desejamos explicitar que tais materiais ajudam a perpetuar e a naturalizar a noção de que algumas espécies de seres vivos, por transmitirem doenças às pessoas, são menos importantes e podem ser mortas. Além disto, um modo análogo, aplicado às relações entre as raças humanas, explicaria o racismo biológico. Isto é, conforme Foucault (1999), algumas raças humanas não são consideradas boas para se misturarem com outras e, portanto, podem ser mortas.
Ao regressarmos à questão do ciclo vital, julgamos importante relatar como os processos e as fases que compõem esse ciclo recebem expressivo espaço nos livros didáticos. Cada etapa é minuciosamente descrita. Detalham-se os órgãos envolvidos com a reprodução natural; expõem-se fotos e desenhos de sementes e ovos. Mostram-se imagens de crianças, animais e plantas jovens. O mesmo se faz com adultos, sejam plantas ou animais, e idosos. Os caracteres externos e internos dos seres vivos, em cada etapa do desenvolvimento, são expostos de forma a ressaltar os elementos que constituem e diferenciam as fases da vida. As descrições e fotos amplamente disseminadas nos livros didáticos possibilitam caracterizar os seres, identificar as distintas fases da vida em que se encontram, compreender os elementos que os diferenciam e aqueles outros comuns, que viabilizam a constituição de classes.
Apenas para exemplificar, as enunciações que transcrevemos são sistematicamente acompanhadas de fotos ilustrativas:
A maioria dos vegetais nasce de sementes. Algumas plantas também podem se desenvolver a partir de um pedaço de caule ou de uma folha retirada de uma planta adulta. …
[Em humanos] A adolescência é a fase que vai dos 12 aos 20 anos de idade, aproximadamente. Nessa fase, as pessoas se modificam bastante. As diferenças entre os meninos e as meninas ficam mais acentuadas e o corpo começa a tornar a forma adulta.
(Marsico et al., 2011a, pp. 64 e 120)
Animais ovovivíparos são aqueles que se desenvolvem dentro de ovos e eclodem deles ainda no interior da fêmea. …
A reprodução dos seres humanos se dá com a união das células reprodutoras de uma mulher e de um homem, formando uma única célula ou ovo, chamado zigoto. Antes de nascer, o bebê se desenvolve dentro da barriga da mãe.
(Marsico et al., 2011b, pp. 120 e 132).
Segundo Foucault (2009), o “poder da escrita”, que resulta na elaboração de um conjunto de documentos e relatórios que captam e objetivam as minúcias dos corpos, constitui-se como um dos elementos basilares das engrenagens das disciplinas. O poder disciplinar, para o autor: “ … separa, analisa, diferencia, leva seus processos de decomposição até às singularidades necessárias e suficientes. … A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício” (Foucault, 2009, p. 164).
A escrita, mais uma vez, segundo as palavras do filósofo, possibilita “uma primeira ‘formalização’ do individual dentro de relações do poder” (Foucault, 2009, p. 181). São os aparelhos de escrita condições para fabricar indivíduos como objetos descritíveis e analisáveis, para mantê-los “sob o controle de um saber permanente” e para organizar “um sistema comparativo que permite a medida de fenômenos globais, a descrição de grupos, a caracterização de fatos coletivos, a estimativa dos desvios dos indivíduos entre si, sua distribuição numa ‘população’” (Foucault, 2009, p. 182).
Há, no entanto, uma fase do ciclo vital que, ao contrário das demais, sistematicamente é referida, mas jamais comentada. Poder-se-ia pensar que ela não faz parte do ciclo da vida. Constituir-se-ia talvez numa das fronteiras que demarcaria o findar do tempo de um ser, o término da vida. Nada se escreve a respeito desse momento; nenhum comentário se faz sobre esse instante pelo qual absolutamente todos os seres vivos devem passar: a morte! Os livros didáticos a citam, mas não comentam; a anunciam e logo em seguida silenciam ou mudam de assunto. Coisa alguma se diz sobre a morte, literalmente apresentada como o fim da vida: “Como todos os seres vivos, o ser humano nasce, cresce, se reproduz e morre” (Marsico et al., 2011b, p. 132).
Foucault (1999) escreveu que uma das manifestações concretas do biopoder foi a desqualificação progressiva da morte a partir do fim do século XVIII. Outrora a cerimônia fúnebre constituía momento brilhante, do qual praticamente toda a sociedade participava. Agora, a morte deve ser escondida, uma “coisa mais privada e vergonhosa (e, no limite, é menos o sexo do que a morte que hoje é objeto de tabu)” (Foucault, 1999, p. 295). Prossegue o autor afirmando que, anteriormente, aquilo que justificava a elevada ritualização da morte era a passagem de um poder a outro, do soberano da Terra para o soberano do além, de uma vida para a outra.
A desqualificação da morte parece ser sistematicamente reforçada pelos livros didáticos contemporâneos. Ademais, o silêncio que tais materiais impõem em relação à morte contribui, ao mesmo tempo, para negar a existência de um poder do “além” e de um modo de narrar a vida que transcende à existência corporal, bem como para afirmar a unicidade do biopoder e reforçar a relação de imanência entre vida e corpo.
O desenvolvimento dos seres vivos, segundo se pode depreender dos livros analisados, parece fundamentalmente mirar dois objetivos: reproduzir-se e trabalhar. Isso é, os seres vivos cresceriam até o seu apogeu, estágio máximo da vida, a idade adulta, especialmente para poderem realizar essas duas ações, que poderiam ser tomadas como finalidades da existência de cada indivíduo. Quem, porém, estabeleceu que estas são as prioridades existenciais de toda a população brasileira? Será consenso entre os habitantes do Brasil que o exercício da sexualidade e o acúmulo econômico se configuram os principais objetivos da vida? Interessante é observar que estas duas ações, enunciadas pelos livros didáticos como finalidades da vida, a reprodução e o trabalho, com expressiva frequência, são apresentadas de forma associada, nas mesmas enunciações.
Gosto de ajudar meus pais nisso, porque assim eles ganham dinheiro para eu poder estudar. Quero me sair bem na escola e, quando for mais velho, ganhar dinheiro para minha mãe comprar arroz.
Quando crescer quero ser carpinteiro. Vou construir um barco bem grande para levar as pessoas até Guimaras, a ilha onde a gente morava. Lá tem montanhas e cavernas, e dá para colher fruta na árvore.
Um dia quero casar e ter filhos, mas só meninos (Borgatto, Bertin & Marchezi, 2011b, p. 136).
A idade adulta começa mais ou menos aos 20 anos. Nessa fase, o ser humano já completou o seu desenvolvimento físico e para de crescer. Em geral, é a partir desse período que a pessoa pode ser considerada madura para começar a ter filhos e a criá-los.
A velhice é a fase em que as pessoas já trabalharam bastante, já criaram seus filhos, já aprenderam muito com a vida
(Marsico et al., 2011a, p. 120).
Conforme o primeiro exemplo evidencia, os livros descrevem o trabalho como meio de obter dinheiro para consumir, para estudar, para comer. Ao sistematizarmos estas enunciações, temos: trabalhamos para ganhar dinheiro para poder consumir.
Deste modo de conceber o trabalho desdobram-se duas reflexões que desejamos compartilhar. A primeira delas concerne à relação de circularidade que os livros didáticos estabelecem: se o consumo é uma necessidade vital, se o trabalho é uma finalidade da vida e se nós trabalhamos para consumir, logo, vivemos fundamentalmente para suprir, por meio do consumo, nossas necessidades existenciais. A percepção que temos, porém, é que a política da vida atual transforma tudo em necessidade: o ar, a água, os alimentos e também a versão mais recente de telefone celular, o tênis, a bolsa, a roupa da última moda, o carro mais potente etc. Por conseguinte, vivemos para satisfazer necessidades existenciais que nunca se esgotam. Tornamo-nos insaciáveis.
A segunda reflexão nos parece ser um desdobramento da primeira: em conformidade com o entendimento expresso por Costa (2009), o dinheiro foi transformado em símbolo máximo de potência. Leiamos novamente o excerto extraído da obra analisada: “eles ganham dinheiro para eu poder estudar … ganhar dinheiro para minha mãe comprar arroz”. O dinheiro proporciona poder, pois quanto mais dinheiro temos, mais podemos consumir. Sendo assim, as obras perpetuam aquilo que a autora caracteriza como “ilusão da potência”, isto é, a concepção de que sucesso, fama e fortuna são os elementos que mais importam na vida.
Enquanto almejamos “grandezas”, e as consideramos o supremo bem a ser alcançado, negligenciamos uma infinidade de opções e caminhos que poderiam nos oferecer, quem sabe, uma vida comum, com condições razoáveis de existência e muitas chances de encontrar nela realização pessoal, tranqüilidade e a tão desejada felicidade.
(Costa, 2009, p. 23-24)
Em relação à outra finalidade das nossas existências, Foucault (1988) escreveu que o sexo possibilitaria, simultaneamente, acesso à vida do corpo e da espécie. Nós nos serviríamos dele, portanto, “como matriz das disciplinas e como princípio das regulações” (p. 159). Conforme enunciado nos livros didáticos, no entanto, não seria apenas acesso à vida do corpo e da espécie que o sexo viabilizaria. Porque corpo e vida são apresentados como a mesma coisa, a reprodução seria o próprio processo por meio do qual o fenômeno vida se tornaria possível.
Há vários decênios, os geneticistas não concebem mais a vida como organização dotada, também, da estranha capacidade de se reproduzir; eles vêem, no mecanismo da reprodução, o que introduz propriamente à dimensão do biológico: matriz não somente dos seres vivos, mas também da vida.
(Foucault, 1988, p. 88)
A vida, por conseguinte, conforme narrada pelos livros didáticos, é uma consequência da reprodução biológica. Leiamos os exemplos que seguem:
A flor é responsável pela reprodução, isto é, dar origem a novas plantas. É a partir das flores que se formam os frutos. O fruto abriga e protege as sementes, que darão origem a novas plantas …
Os seres humanos pertencem ao grupo dos animais vertebrados e mamíferos. Eles nascem da união de um homem com uma mulher.
(Marsico et al., 2011a, pp. 61 e 118)
Mas se a reprodução é indispensável à vida, para os seres humanos, o seu mecanismo fundamental, o sexo, também não seria um objeto a ser constantemente consumido? Com esta reflexão findamos a presente seção, compartilhando o entendimento de que os livros didáticos atuais concedem expressivo espaço para descrever a reprodução biológica, não apenas porque seus mecanismos são indispensáveis à perpetuação da vida, mas também porque, constituindo-se a primeira e mais elementar de todas as necessidades vitais – pois sem ela nenhuma outra é possível –, a reprodução deve ser objeto de constante consumo, e o objeto cujo consumo deve ser mais desejado.
Considerações finais
Segundo García e Vázquez (2015, p. 86), a biopolítica, entendida como biopoder, não deve ser compreendida como “um desejo maligno, que provém de uma mente, de uma pessoa, de um grupo ou de uma classe social que, com nefastos interesses, dedicam-se a submeter e aniquilar a outros”. Trata-se de uma condição de vida, sobretudo da vida humana, que mobiliza o Estado a exercer um controle ilimitado sobre o comportamento das pessoas.
Assim, quando nos propusemos a analisar a maneira como a vida se encontra enunciada em livros didáticos e a descrever algumas forças que tornam esses enunciados possíveis, não intentávamos realizar um julgamento moral sobre o biopoder. Desejávamos exclusivamente, ainda que na presença dos controles ilimitados do biopoder, encontrar um espaço para pensar sobre nós mesmos, sobre os alunos que estamos formando e para qual sociedade, bem como sobre os mecanismos envolvidos nesta formação.
Portanto, diante dos elementos expostos neste artigo, entendemos apropriado finalizá-lo com algumas considerações. Em conformidade com as percepções de Ferraro (2011), não identificamos diferenças na maneira como livros didáticos utilizados em diferentes escolas e elaborados por editoras diversas narram a vida. Respeitados os limites da nossa pesquisa, julgamos pertinente cogitar os estreitos compromissos que o processo de escolarização no Brasil – em todos os sistemas de ensino – está estabelecendo com a produção de sujeitos que vivem, pensam e desejam em consonância com esta forma de biopoder que entende o consumo como elemento organizador da nossa vida. A despeito de outras tecnologias escolares, parece-nos indispensável reiterar a importância dos livros didáticos, sobretudo nos anos iniciais do ensino fundamental, para a difusão de saberes e para a vinculação dos alunos a poderes específicos. Por fim, outros estudos poderiam investigar se escolas públicas e privadas adotam estratégias diferentes para situar seus alunos em posições distintas dentro das políticas do biopoder.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Set 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
-
Recebido
01 Ago 2017 -
Revisado
18 Fev 2018 -
Aceito
23 Abr 2018