Resumo
O presente artigo tem como objetivo analisar as influências do pensamento de Paulo Freire no currículo cultural da educação física, especialmente no que se refere à tematização e à problematização da ocorrência social das práticas corporais na escola. Verificou-se que o legado freiriano representa uma mudança paradigmática no que concerne aos temas de ensino a serem tratados nas aulas de educação física. Além disso, a partir dos efeitos político e pedagógico de uma educação dialógicoproblematizadora, o currículo cultural da educação física pode contribuir para a desconstrução das representações hegemônicas que, em grande parte, operam a discriminação social com relação às práticas corporais e seus sujeitos.
Palavras-chave
educação física; tematização; problematização; currículo
Abstract
The aim of this article is to analyze the influence of Paulo Freire on the cultural curriculum of physical education, especially as regards the theming and questioning. It was found that Freire's legacy represents a paradigm shift with regard to educational issues to be addressed in physical education classes. Furthermore, from the political and pedagogical effects of a dialogicalproblematizing education, cultural curriculum of physical education can contribute to the deconstruction of the hegemonic representations that, in large part, operating social discrimination with regard the body practices and their subjects.
Keywords
physical education; theming; questioning; curriculum
Na educação física escolar coexistem currículos de variados matizes. Estes currículos, ao selecionarem conhecimentos, métodos de ensino e instrumentos de avaliação, na verdade configuram-se como artefatos necessários para alcançar um determinado tipo de pessoa, considerada como ideal pelo grupo cuja voz prevaleceu durante a construção. Analisando as propostas curriculares da educação física, com base no momento histórico e nas políticas educativas mais amplas nas quais foram concebidas, Neira e Nunes (2009a)Neira, M. G., & Nunes, M. L. F. (2009a). Educação física, currículo e cultura. São Paulo: Phorte. as alinharam em torno de três grupos: teorias não críticas – currículos ginástico, esportivo, psicomotor, desenvolvimentista e saudável; teorias críticas – currículos crítico-superador e crítico-emancipatório; e teorias pós-críticas – currículo cultural.
As aulas baseadas no currículo cultural da educação física, segundo as obras que fundamentam a proposta (Neira, 2007Neira, M. G. (2007). Ensino de educação física. São Paulo: Thomson Learning., 2011Neira, M. G. (2011). Educação física. São Paulo: Blucher., 2016Neira, M. G. (2016). O multiculturalismo crítico e suas contribuições para o currículo da educação física. Temas em Educação Física escolar, 1(1), 3-29., 2018Neira, M. G. (2018). Educação física cultural: inspiração e prática pedagógica. Jundiaí: Paco.; Neira & Nunes, 2006Neira, M. G., & Nunes, M. L. F. (2006). Pedagogia da cultura corporal: crítica e alternativas. São Paulo: Phorte., 2009aNeira, M. G., & Nunes, M. L. F. (2009a). Educação física, currículo e cultura. São Paulo: Phorte., 2009bNeira, M. G., & Nunes, M. L. F. (2009b). Praticando estudos culturais na educação física. São Caetano do Sul: Yendis.), deixam de ser entendidas como espaço exclusivo para crianças e jovens se movimentarem, para tematizar brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas, de forma a problematizar suas ocorrências na sociedade mais ampla, assim como os discursos proferidos sobre elas e seus praticantes.
Não é objetivo deste currículo, portanto, apresentar práticas afastadas do patrimônio cultural corporal de chegada dos educandos, muito menos adaptá-los a determinados níveis de aptidão física ou habilidade motora. Pelo contrário, esforça-se para promover uma educação democrática a partir do reconhecimento das vozes e das gestualidades subjugadas. Sendo assim, no currículo cultural da educação física, o planejamento das aulas e das atividades de ensino não se dá em torno de conteúdos, mas sim de temas, por meio dos quais professores e educandos buscam acessar diferentes discursos e produzir novos sentidos quanto às práticas corporais2 2 As práticas corporais são produtos da gestualidade sistematizada com características lúdicas, ou seja, brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas. Enquanto manifestações culturais materializadas pela linguagem corporal constituem-se em formas de representação que caracterizam as identidades culturais dos grupos que as elaboram e reelaboram constantemente (Neira, 2014). Por empregarem uma gestualidade carregada de sentidos, as práticas corporais são concebidas como textos que veiculam formas de expressão, produzem e reproduzem significados culturais. .
Partindo deste contexto e considerando a relevância de Paulo Freire no âmbito das proposições de uma “educação popular”, o presente artigo tem como objetivo analisar as influências do pensamento freiriano no currículo cultural da educação física, especialmente no que se refere à tematização e à problematização. Com isso, busca sinalizar possibilidades para estabelecer um diálogo entre a escola e a expressão da cultura corporal socialmente disponível, bem como para a valorização da produção dos diferentes grupos, por meio da descolonização e desconstrução das representações hegemônicas.
Este estudo de caráter bibliográfico recorreu às principais obras que fundamentam o currículo cultural da educação física, com o propósito de reconhecer a apropriação do referencial freiriano nestas produções. Na sequência, ancorou-se nos trabalhos de Paulo Freire, sobretudo aqueles voltados à discussão conceitual sobre os “temas geradores” e os pressupostos de uma “educação problematizadora”3 3 Conforme Corazza (2003), é no livro Pedagogia do oprimido que Paulo Freire funda o trabalho conceitual com os temas geradores, bem como com os pressupostos do seu método – etapas de investigação, tematização e problematização – de uma forma mais sistematizada do que fizera em Educação como prática de liberdade. . Além disso, teceu diálogo com autores da área da educação que assumidamente reconhecem as contribuições de Freire para a construção e o desenvolvimento de um currículo escolar mais justo e democrático.
A tematização no currículo cultural da educação física e os conhecimentos em cena
Paulo Freire foi um importante educador brasileiro, comprometido com as parcelas mais desfavorecidas da sociedade. Preocupado com o grande número de adultos analfabetos na área rural dos estados nordestinos, que formavam um contingente de excluídos, Freire desenvolveu um método de alfabetização baseado no vocabulário do cotidiano e da realidade dos educandos. Embora não tenha encaminhado uma teorização sobre currículo, sua obra tem implicações importantes ao tentar responder as questões curriculares e epistemológicas fundamentais: o que ensinar? O que significa conhecer? (Silva, 2011Silva, T. T. (2011). Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica.).
Na perspectiva freiriana, é a própria experiência dos educandos que se torna a fonte primária para buscar temas significativos, “temas geradores”. Ou seja, o conteúdo programático advém de um problema vivido pela comunidade e que, para ser pedagogizado, deve amparar-se em programas de ensino fundados no diálogo. Segundo Giroux (1983/1986)Giroux, H. (1986). Teoria crítica e resistência em educação: para além das teorias da reprodução (A. M. B. Biaggio, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes. (Obra original publicada em 1983), “Freire acredita que o papel do educador é entrar num diálogo com as pessoas, a respeito de temas que tenham a ver com as situações concretas e experiências que fundamentam suas vidas diárias” (p. 296).
No pensamento freiriano, é pelo diálogo que todos (educandos, professores e especialistas) conhecem o mundo, tomam consciência das coisas, das relações e principalmente de si mesmos, alcançando a libertação das relações de opressão. Nessa medida, conhecer não é uma ação isolada, individual, ou desinteressada, uma vez que envolve intercomunicação, intersubjetividade e intenção.
Para Silva (2011)Silva, T. T. (2011). Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica., é justamente “a intersubjetividade do conhecimento que permite a Freire conceber o ato pedagógico como um ato dialógico” (p. 59), através do qual o mundo – objeto a ser conhecido – não é simplesmente comunicado; o ato pedagógico não consiste apenas em comunicar o mundo. Em vez disso, cria-se dialogicamente um conhecimento do mundo.
Ao introduzir o conceito de tema gerador, Paulo Freire encaminhou a ideia de uma educação centrada na visão fenomenológica do ato de conhecer. Dessa maneira, as atividades escolares de pesquisas, análises, reflexões e discussões, quando articuladas à realidade e à prática social dos educandos, buscam viabilizar a apreensão dessa realidade. Dentro da práxis4 4 A práxis educativa freiriana implica na reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Neste embate dialético entre ação-reflexão, encaminha-se para uma mudança da consciência humana e uma aproximação crítica, reflexiva da realidade. proposta por Freire, quanto mais conscientização, mais se desvela a realidade, mais se penetra na sua essência fenomênica.
É por isso que a pedagogia freiriana concede importância central ao papel dos professores, aos quais cabe organizar e sistematizar atividades de ensino que possibilitem aos educandos ampliar seus olhares a respeito daquilo que conhecem inicialmente de forma fragmentada. Pois, “se num primeiro momento o conhecimento social se mostra sincrético, disperso e confuso, análises cada vez mais profundas permitirão a construção de sínteses pessoais e coletivas” (Neira & Nunes, 2009aNeira, M. G., & Nunes, M. L. F. (2009a). Educação física, currículo e cultura. São Paulo: Phorte., p. 262).
Mais precisamente, na pedagogia proposta por Paulo Freire, o conhecimento escolar converte-se num processo resultante da mediação entre saberes escolares e saberes populares, por meio da problematização das situações vividas, de forma a instrumentalizar os educandos a intervirem no mundo. Nesse sentido, Freire (1983a)Freire, P. (1983a). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. desenvolveu uma concepção de prática educativa alternativa à educação bancária, portanto, alternativa à educação cujo saber
… é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia, da opressão a absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no outro.
(Freire, 1983aFreire, P. (1983a). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra., p. 67)
Isso significa conceber o currículo a partir de uma práxis investigativa do contexto concreto em que os educandos estão inseridos. Ou seja, ao invés de ser uma proposta abstrata para sujeitos abstratos, sob a perspectiva freiriana o currículo passa a se constituir dialogicamente com os sujeitos do processo educativo, como artefato que incide sobre problemas da realidade.
Paulo Freire também buscou sustentar a sua epistemologia a partir da concepção antropológica de cultura. Na sua obra, a cultura é entendida como “todo o resultado da atividade humana, do esforço criador e recriador do homem, de seu trabalho por transformar e estabelecer relações dialogais com outros homens” (Freire, 1980Freire, P. (1980). Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Moraes., p. 38). Nesse sentido, continua,
… é licito dizer que o homem se cultiva e cria a cultura no ato de estabelecer relações, no ato de responder aos desafios que a natureza coloca, como também no próprio ato de criticar, de incorporar a seu próprio ser e de traduzir por uma ação criadora a experiência humana feita pelos homens que o rodeiam ou que o precederam. (p. 38)
Mizukami (1986)Mizukami, M. G. N. (1986). Ensino: as abordagens do processo. São Paulo: EPU. situa a pedagogia freiriana como a mais significativa dentre aquelas que enfatizam aspectos sociopolítico-culturais no contexto educacional brasileiro. Em Paulo Freire, toda ação educativa deve ser precedida de uma reflexão sobre o homem, bem como de uma análise do seu meio cultural, pois “o homem se constrói e chega a ser sujeito na medida em que, integrado ao seu contexto, reflete sobre ele e com ele se compromete, tomando consciência de sua realidade” (Mizukami, 1986Mizukami, M. G. N. (1986). Ensino: as abordagens do processo. São Paulo: EPU., p. 90). Logo, uma educação que pretenda despertar nos educandos uma atitude crítica perante a sociedade necessita tomar como ponto de partida o universo temático do povo, ou o conjunto de seus temas geradores.
Tais temas precisam ser entendidos no seio de uma sociedade dividida em classes que se antagonizam e possuem interesses opostos. Nesses termos, o processo educativo deve engajar-se na luta pelas classes oprimidas, em prol da transformação da realidade para a libertação do povo. A educação popular freiriana está embasada num projeto histórico e prevê a construção de um novo coletivo social a partir da transformação das estruturas políticas e da organização social, o que viabiliza uma sociedade substancialmente democrática.
Com sua proposta de educação popular, Paulo Freire enfatiza a importância da participação das pessoas envolvidas no ato pedagógico, na construção de seus próprios significados e valores culturais, além de ratificar as estreitas conexões entre pedagogia e política, entre educação e poder. Mais precisamente, para Freire (1983a)Freire, P. (1983a). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. o conteúdo, quando originado na subjetividade das culturas populares, minimiza o risco de o oprimido absorver aquele elaborado sob a ótica dominante, o que o tornaria, também, opressor. Trata-se de uma posição contrária às propostas curriculares que desprezam o entendimento que os sujeitos-educandos possuem da realidade.
Tal contrariedade seria explicitada por Paulo Freire caso tivesse analisado alguma das propostas curriculares da educação física, como os currículos psicobiologicistas5 5 Dentre os quais, destacam-se o “currículo desenvolvimentista”, proposto por Tani et al. (1988), e o “currículo psicomotor”, proposto por Freire (1989). da área, cujos conteúdos e métodos empregados não contribuem para desestabilizar os valores dos grupos colocados em situação de vantagem na escala social e, consequentemente, para uma leitura acurada dos mecanismos de subjugação que circulam nas práticas corporais.
Na tentativa de oferecer alternativas a professores e educandos, o currículo cultural da educação física busca inspiração no conceito de tema gerador de Paulo Freire quando atenta ao contexto de ocorrência social das práticas corporais, selecionando os temas a serem estudados mediante um mapeamento do universo cultural corporal dos educandos.
Conforme Neira (2011)Neira, M. G. (2011). Educação física. São Paulo: Blucher., o mapeamento consiste em identificar as práticas corporais que estão disponíveis aos educandos, bem como aquelas que, mesmo não compondo suas vivências, encontram-se no entorno da escola ou no universo cultural mais amplo. Mapear também tem o sentido de garimpar os conhecimentos que os educandos possuem sobre determinada prática corporal eleita como tema, não havendo um padrão ou roteiro obrigatório a seguir.
O que se pretende, segundo Neira (2018)Neira, M. G. (2018). Educação física cultural: inspiração e prática pedagógica. Jundiaí: Paco., é a tematização das práticas corporais no ambiente escolar, transformando-o em um espaço vivo de interações, aberto ao real e às suas múltiplas dimensões, tornando o conhecimento importante à compreensão e intervenção na realidade.
Giroux (1992)Giroux, H. (1992). Escola crítica e política cultural (D. M. L. Zibas, trad., 5a ed.). São Paulo: Autores Associados. (Obra original publicada em 1987) reconhece que a proposta de Freire oferece a possibilidade para a organização de experiências pedagógicas em forma de práticas culturais que levem a modos de aprendizagem e de luta mais críticos, questionadores e coletivos. Consequentemente, o currículo alinha-se à noção de “política cultural”, uma vez que ativamente produz e cria significados sociais, numa estreita ligação com as relações de poder e desigualdade.
Para além do que já foi dito, Giroux (1998)Giroux, H. (1998). Paulo Freire e a Política de Pós-Colonialismo. In P. Mclaren, P. Leonard, & M. Gadotti (Orgs.), Paulo Freire: poder, desejo e memórias da libertação (pp. 191-202). Porto Alegre: Artmed. também entende que Paulo Freire oferece novas possibilidades teóricas para tratar a autoridade e os discursos colonialistas, que tanto deixam o privilégio e a opressão vivos como forças ativas constituintes da vida diária dentro dos centros e das margens de poder. Classificando Freire como um “intelectual de fronteira”, Giroux (1998)Giroux, H. (1998). Paulo Freire e a Política de Pós-Colonialismo. In P. Mclaren, P. Leonard, & M. Gadotti (Orgs.), Paulo Freire: poder, desejo e memórias da libertação (pp. 191-202). Porto Alegre: Artmed. aponta para a necessidade de os trabalhadores culturais – professores e outros intelectuais – tornarem-se “cruzadores de fronteiras”, abandonando teorias e ideologias que os situam nos lugares e espaços herdados da tradição colonial.
No tocante à educação física não é difícil nos depararmos com propostas curriculares que, colonizadas pelas modalidades euro-estadunidenses (futebol, vôlei, basquete e handebol), reiteram a hegemonia de práticas corporais brancas, masculinas e cristãs. Seu viés performativo desconsidera outras possibilidades de significação pelos grupos culturais que com elas se deparam. Sob o jugo da perspectiva convencional, as aulas que pretendem ensiná-las – a todas as crianças e jovens – apenas edificam um quadro de “monoculturalização da mente” e de “violência epistêmica”.
Shiva (2003)Shiva, V. (2003). Monoculturas da mente: perspectiva da biodiversidade e da biotecnologia (D. A. Azevedo, trad.). São Paulo: Gaia. (Obra original publicada em 1993) entende que o saber científico dominante é produtor de “monoculturas da mente”, as quais se evidenciam por meio do desaparecimento das alternativas perante o modo hegemônico de pensar, de sentir e de viver a realidade, provocando múltiplas estratégias de inferiorização do Outro. Nessa mesma perspectiva, Spivak (2010)Spivak, G. C. (2010). Pode o subalterno falar? (S. R. G. Almeida, M. P. Feitosa, & A. P. Feitosa, trad.). Belo Horizonte: Editora UFMG. (Obra original publicada em 1942) refere-se à “violência epistêmica” como uma tática de neutralização do Outro, uma forma de invisibilizá-lo e expropriá-lo de qualquer possibilidade de representação. Nesse contexto, soa ingênua a esperança de que as propostas da educação física que apostam primordialmente no conhecimento científico possam algum dia cruzar as fronteiras da tradição colonial. O que fazem é simplesmente perpetuar a condição subordinada das culturas locais pelo convencimento dos valores e atributos da cultura corporal hegemônica.
A fartura de exemplos torna obsoleta qualquer tentativa de contestação desse fato. Os educandos das camadas populares aprendem desde bem cedo que o saber que conta nas aulas de educação física é aquele proveniente da cultura dominante: os esportes hegemônicos, as brincadeiras europeias, as danças aceitas, o judô, o xadrez e, principalmente, as atividades corporais inventadas para ensinar conteúdos escolares. Os estudos de Neira e Pérez Gallardo (2006)Neira, M. G., & Pérez Gallardo, J. S. (2006). Conhecimentos da cultura corporal de crianças não escolarizadas: a investigação como fundamento para o currículo. Motriz, 12(1), 1-8. e Chaim (2007)Chaim, C. I., Jr. (2007). Cultura corporal juvenil da periferia paulistana: subsídios para a construção de um currículo de educação física. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Educação. Universidade de São Paulo, São Paulo. denunciaram que crianças e jovens de periferia têm raras oportunidades de vivenciar seus amplos repertórios culturais corporais na escola. Com o tempo, retiram-lhe toda a importância e passam a interessar-se quase que exclusivamente pelo patrimônio dominante. Isso apenas confirma a assertiva de Paulo Freire: o oprimido é hospedeiro do opressor.
Felizmente, tem-se verificado em algumas escolas ou redes de ensino a tematização das práticas corporais oriundas dos grupos subalternizados. Atentas à heterogeneidade da sociedade contemporânea, seus novos arranjos e às respectivas funções sociais da escola, as experiências6 6 Os relatos de várias experiências realizadas com o currículo cultural da educação física encontram-se disponíveis em http://www.gpef.fe.usp.br/index.php/relatos-de-experiencia/ realizadas evidenciam a valorização da diversidade das formas como as manifestações culturais se expressam, bem como as diferentes representações envolvidas, refletindo, aprofundando e ampliando os conhecimentos da cultura corporal socialmente disponíveis aos educandos. Assim, quando entra em ação, o currículo cultural da educação física afasta-se do modus operandi tecnicista para envolver outros princípios e procedimentos didáticos que desestabilizam a lógica colonial e bancária outrora preconizada.
Diante do que foi dito podemos inferir que, uma vez apropriado pelo currículo cultural, o pensamento freiriano representa uma mudança paradigmática no que concerne aos temas de ensino a serem tratados nas aulas de educação física. Paulo Freire inicia uma ruptura, por meio da qual a ideia de um conhecimento escolar totalizante – portanto necessário a tudo e a todos – é colocada em xeque. Após o trabalho de Freire, conhecer é mais do que deter conhecimentos necessários; é reconhecer-se no conhecimento necessário para atuar solidariamente na sociedade.
Nessa direção, no currículo cultural a tematização implica procurar o maior compromisso possível do objeto de estudo em uma realidade social, cultural e política, de maneira a possibilitar uma compreensão profunda da maneira como ocorre a prática corporal e o desenvolvimento da capacidade crítica dos educandos como sujeitos de conhecimento, desafiados pelo objeto a ser conhecido.
A problematização no currículo cultural da educação física e a desconstrução das representações hegemônicas
“Ah! professor, melhor dividir os meninos e as meninas, elas não sabem jogar futebol, não vai dar para jogar junto”. “Eu não vou participar da capoeira porque a minha religião não permite”. “Eles só ouvem funk, não querem saber de outras músicas. Bota um funk que todo mundo sai dançando”. “Para ficar forte precisa tomar bomba. Não adianta só ir na musculação”. “Vou ficar sentado. Queimada é para crianças, vamos fazer outra coisa”.
Esses e tantos outros pronunciamentos emitidos durante as aulas de educação física revelam algumas das representações em circulação a respeito das práticas corporais. Pensando dessa maneira, os educandos estão simultaneamente produzindo as meninas como inábeis, a capoeira como uma prática religiosa, homogeneizando as preferências musicais de um grupo, marcando os praticantes de musculação como consumidores de substâncias ilegais e restringindo a brincadeira de queimada a um determinado grupo etário. Acessadas dentro ou fora da escola, tais concepções precisam ser revistas de maneira a proporcionar outras formas de significar as práticas corporais às quais se referem. Com isso não se quer dizer que o professor deva explicar a verdade e simplesmente apagar as ideias dos educandos. O que se defende é a problematização dos discursos socialmente disseminados sobre brincadeiras, danças, lutas, ginásticas e esportes.
De acordo com Neira e Nunes (2009a)Neira, M. G., & Nunes, M. L. F. (2009a). Educação física, currículo e cultura. São Paulo: Phorte., no currículo cultural da educação física a problematização possibilita colocar em xeque os pensamentos, gestos e atitudes aparentemente naturais e inevitáveis no âmbito do convívio social. Dessa maneira, abre-se espaço para desconstruir as representações atribuídas às práticas corporais e, consequentemente, para discutir mecanismos de dominação, regulação e resistência nelas incutidas, bem como os sentidos que recebem ou receberam em variados contextos.
Paulo Freire é a principal referência nas proposições de uma educação problematizadora. Propondo romper com os pressupostos de uma “educação bancária”, essencialmente marcada pela ênfase no “depósito” ou transmissão de conteúdos, Freire aponta para a necessidade de uma ação pedagógica que parta da realidade concreta do educando, com o objetivo de problematizar o seu mundo por meio do diálogo.
“O que se pretende com o diálogo é a problematização do próprio conhecimento em sua indiscutível relação com a realidade concreta na qual se gera e sobre a qual incide, para melhor compreendê-la, explicá-la e transformá-la” (Freire, 1983bFreire, P. (1983b). Extensão ou comunicação. Rio de Janeiro: Paz e Terra., p. 52). Para Paulo Freire, o diálogo torna-se mais do que uma postura pedagógica, torna-se uma exigência epistemológica e política, cuja rejeição implicaria num injustificável pessimismo em relação aos homens e à vida.
Buscando afastar-se de qualquer explicação determinista, que poderia reduzir o ser humano a um mero produto e objeto das circunstâncias materiais, e também das explicações subjetivistas, capazes de conduzir a um individualismo e uma simplificação da compreensão das relações que as pessoas mantêm com a realidade, Paulo Freire explica o homem como um ser da práxis. Mais precisamente aponta que, ao tentar responder aos desafios do mundo, “o homem cria seu mundo: o mundo histórico cultural”. Por sua vez, “todo este mundo histórico-cultural, produto da práxis humana”, atua na constituição do próprio homem, estabelecendo uma relação dialética (Freire, 1979Freire, P. (1979). Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra., p. 46).
Sob esta perspectiva, a ação educativa proposta por Freire (1983a)Freire, P. (1983a). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. vislumbra no diálogo a possibilidade de promover o “encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo ...” (p. 78). Além disso, a dimensão político-engajadora do diálogo freiriano tem um papel fundamental como instrumento de mobilização de pessoas para uma resistência contra todo e qualquer tipo de exploração, opressão, homogeneização e desrespeito pela dignidade humana.
Deste modo, o diálogo freiriano não pode ser confundido com mera “conversa apaziguada”, nem ficar restrito à exposição de ideias que não se encaminhem para a transformação. Tal atitude não desvencilharia os professores da forma de agir “bancária”, que, segundo Freire (1983b)Freire, P. (1983b). Extensão ou comunicação. Rio de Janeiro: Paz e Terra., constitui-se justamente por “dissertações quilométricas, eruditas, cheias de citações” (p. 36).
Paulo Freire refuta qualquer ação autoritária do educador, sem negar a validade de momentos explicativos e narrativos em que este fala do objeto durante a aula. Logo, quem tem algo a dizer deve saber que não é o único, e que o que diz não é necessariamente a verdade tão esperada por todos. Ao dizer, é importante que o professor assuma o dever de desafiar quem escuta, para que este também possa falar e responder. Nesse sentido,
O diálogo significa uma tensão permanente entre a autoridade e a liberdade. Mas, nessa tensão, a autoridade continua sendo, porque ela tem autoridade em permitir que surjam as liberdades dos alunos, as quais crescem e amadurecem, precisamente porque a autoridade e a liberdade aprendem a autodisciplina. E tem mais: uma situação dialógica não quer dizer que todos os que nela estejam envolvidos têm que falar! O diálogo não tem como meta ou exigência que todas as pessoas da classe devam dizer alguma coisa, ainda que não tenham nada a dizer.
(Freire & Shor, 1986Freire, P., & Shor, I. (1986). Medo e ousadia: o cotidiano do professor (5a ed.). Rio de Janeiro: Paz e Terra., p. 67)
Trata-se de um caminho para ressignificar o conhecimento, sustentado na intencionalidade, cuja ação e reflexão aparecem em interação radical, de maneira a fomentar as problematizações sobre o universo existencial dos educandos. Amparados pelas ideias de Paulo Freire, podemos então dizer que problematizar significa exercer uma análise crítica sobre a realidade-problema. Em outras palavras, é o desafio que o educador lança aos educandos para que possam desenvolver uma reflexão mais profunda sobre aspectos da realidade que não haviam sido percebidos de maneira crítica e que, no entanto, se fazem presentes em situações concretas.
Deste modo, o educador problematizador refaz, constantemente, seu ato cognoscente na cognoscibilidade dos educandos. Estes, em lugar de serem recipientes dóceis de depósitos, são agora investigadores críticos, em diálogo com o educador, investigador crítico, também.
(Freire, 1983aFreire, P. (1983a). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra., p. 80)
De acordo com Freire (1983a)Freire, P. (1983a). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra., quanto mais se problematiza mais os educandos, enquanto seres no mundo e com o mundo, se sentem desafiados a captar os problemas em suas conexões com outros, num plano de totalidade. Na prática problematizadora, “os educandos desenvolvem o seu poder de captação e de compreensão do mundo, em suas relações com ele, não mais como uma realidade estática, mas como uma realidade em transformação, em processo” (Freire, 1983aFreire, P. (1983a). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra., p. 82).
Essa capacidade de enfrentar o mundo estando nele situado é o que promove a continuidade histórica, alterando incessantemente valores, ideias, dúvidas e desafios com os quais as pessoas se deparam em cada momento de sua existência. Não à toa, a prática educativa freiriana parte do respeito pelos diferentes modos de conceber o mundo, ou seja, do universo existencial concreto dos educandos, buscando problematizar criticamente os significados que atribuem ao seu mundo. No exercício da argumentação dos sujeitos que participam desse processo dialético-problematizador é que as diferentes formas de significar o mundo ganham espaço. Mais especificamente, professores e educandos, ao problematizarem os discursos em circulação, fomentam análises cada vez mais profundas e acessam outros saberes, possibilitando a construção de sínteses coletivas. É impossível construir um novo saber caso a situação de ensino não proporcione a reflexão crítica sobre aspectos do mundo que realmente interessam aos sujeitos envolvidos.
Por tudo isso, Paulo Freire afirma que não há educador que não viva no seu ato de ensinar uma experiência de educando e, ao mesmo tempo, não há educando que não viva a experiência de educador. Ambos engajados numa ação problematizadora, trocam constantemente de papéis ao se lançarem no desafio de compreender cada vez mais o mundo a partir das diferentes percepções que têm sobre os fenômenos.
Quando problematizam dialogicamente os significados atribuídos às coisas do mundo, os sujeitos se dão conta de que a situação na qual se encontram é historicamente construída e que a práxis transformadora do homem é a fonte das condições de existência postas. Nesse processo, todos conhecem o mundo pela consciência das coisas, das relações e, principalmente de si mesmos.
Para Freire (1980)Freire, P. (1980). Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Moraes., a conscientização não pode existir fora da práxis, sem o ato de ação-reflexão. No âmbito da educação física, trata-se de um compromisso histórico baseado na formação de pessoas que saibam se defender das armadilhas ideológicas que cercam os discursos sobre as práticas corporais.
As aulas, portanto, não podem restringir-se à execução mecânica dos movimentos. A práxis da Educação Física exige a vivência das manifestações corporais, o debate e o estudo dos diferentes aspectos que as cercam e a proposição de novas vivências, sempre tematizadas e modificadas de acordo com as reflexões do grupo.
(Françoso & Neira, 2014Françoso, S., & Neira, M. G. (2014). Contribuições do legado freireano para o currículo da educação física. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 36(2), 531-546., p. 534)
É por isso que o currículo cultural da educação física se inspira na “educação problematizadora” de Paulo Freire para substituir a crença do “quanto mais, melhor” – tão professada em propostas curriculares não críticas da área – pelo aprofundamento dos conhecimentos, ou seja, pela ação de conhecer melhor a prática corporal estudada, permitindo desvelar aspectos que lhe pertencem, mas que não emergiram nas primeiras leituras e interpretações. Tal procedimento, segundo Neira (2011)Neira, M. G. (2011). Educação física. São Paulo: Blucher., garante que os conhecimentos estejam socialmente ancorados, uma vez que alarga a possibilidade de compreensão e posicionamento crítico dos educandos com relação ao contexto social, histórico e político de produção e reprodução das práticas corporais. Nesta perspectiva, o conhecimento comumente aceito como verdade é constantemente questionado e submetido à análise cultural.
Entretanto, no currículo cultural da educação física a problematização freiriana é conduzida ao crivo da análise pós-estruturalista7 7 Influenciado pelas proposições de Gilles Deleuze, Michel Foucault e Jacques Derrida, o pós-estruturalismo toma a linguagem como algo não fixo, como movimento em constante fluxo, sempre indefinida, adiada e imersa em relações de poder. Na visão pós-estruturalista, a fixidez do significado se transforma em fluidez, indeterminação e incerteza. , e sob este, passa a ser concebida como um processo de negociação de sentidos, pelo qual a condição hierárquica privilegiada inicial com que o sujeito atribui significado às coisas do mundo poderá ser substituída, mediante o diálogo, por outra. Portanto, o ato dialógico proposto por Paulo Freire, no currículo cultural, é radicalizado pelo “jogo da diferença”. Nestes termos, a problematização busca uma radicalização do fenômeno da linguagem por meio de um processo de desconstrução.
A desconstrução é um conceito empregado por Derrida (1999)Derrida, J. (1999). Gramatologia (M. Chnaiderman & R. J. Ribeiro, trad.). São Paulo: Perspectiva. (Obra original publicada em 1967) para caracterizar o modo como um texto pode ser lido e explicitado em suas contradições e irredutibilidades. Ela pretende minar todas as correntes hierárquicas sustentadoras do pensamento ocidental.
Fazer justiça a essa necessidade significa reconhecer que, em uma oposição filosófica clássica, nós não estamos lidando com uma coexistência pacífica de um face a face, mas com uma hierarquia violenta. Um dos dois termos comanda (axiologicamente, logicamente etc.), ocupa o lugar mais alto. Desconstruir a oposição significa, em um momento dado, inverter a hierarquia.
(Derrida, 2001Derrida, J. (2001). Posições. (T. T. Silva, trad.). Belo Horizonte: Autêntica. (Obra original publicada em 1972), p. 48)
Derrida pontua que operar essa inversão significa procurar decompor os discursos operantes que sustentam os atributos designados aos pares binários, revelando, dessa forma, seus pressupostos, ambiguidades e contradições. A desconstrução atua no interior dos discursos sustentadores do pensamento metafísico ocidental, com a intenção de desestabilizá-los e, por conseguinte, ampliar seus limites ou limiares.
Ao interrogar incansavelmente os diferentes discursos que pretende decompor, a estratégia da desconstrução abandona a intenção de encontrar uma origem e uma presença, que seriam capazes de explicitar o fundamento ou a determinação primordial do sentido e do conceito que supostamente o traduziria. Trata-se do esforço de permanecer num jogo em que nenhum dos polos do binarismo é valorizado em detrimento do outro, uma tentativa de remeter-se a ambos como um jogo de “nem um... nem outro...”, “ao mesmo tempo...”, “por um lado... por outro...”.
De acordo com Derrida e Roudinesco (2004)Derrida, J., & Roudinesco, E. (2004). De que manhã… diálogo. Rio de Janeiro: Zahar., o binarismo acompanha a rede de poder que predomina nas sociedades ocidentais e a reforça através da linguagem, que atribui sentidos e valores às pessoas e aos objetos que compõem a realidade. Para os autores, a elaboração de pares de opostos cria efeitos de verdade que consequentemente estabelecem hierarquias. No caso da educação física, por exemplo, não são raros os discursos que polarizam as práticas corporais em masculinas e femininas, infantis e adultas etc., os gestos em corretos e incorretos. Uma vez postos em circulação por meio de dispositivos linguísticos, marcam quem pertence e quem não pertence a determinado grupo, quem é a identidade e quem é a diferença.
Em uma partida de voleibol, por exemplo, os participantes empregam uma série de gestos que podem ser lidos de várias maneiras. Os significados que lhes são atribuídos (toque, manchete, cortada etc.) não são fixos; dependerão dos sujeitos envolvidos e, principalmente, do contexto em que a prática acontece. De certo, as leituras serão distintas em um jogo de campeonato do qual participam atletas, em um jogo entre amigos na hora do intervalo da escola ou na praia. Determinado gesto talvez possa ser lido como toque em uma situação e na outra seja visto como condução. Portanto, o “toque” só adquire sentido no interior de uma cadeia que abarca o jogo, seu contexto, os participantes etc.
Com a intenção de problematizar os binarismos, explicitar e criticar a estrutura hierárquica, Derrida (2001)Derrida, J. (2001). Posições. (T. T. Silva, trad.). Belo Horizonte: Autêntica. (Obra original publicada em 1972) propõe movimentos de espaçamento, em que “há a impossibilidade de reduzir a cadeia a um de seus elos ou de aí privilegiar absolutamente um ou outro” (p. 106).
A desconstrução busca uma reinterpretação sem fim, indefinida, sem a intenção de chegar a uma significação definitiva ou total. Derrida (2001)Derrida, J. (2001). Posições. (T. T. Silva, trad.). Belo Horizonte: Autêntica. (Obra original publicada em 1972) afirmou que “a metafísica sempre consistiu, poder-se-ia demonstrar, em querer arrancar a presença do sentido” (p. 38), entretanto, para o autor, um texto pode apresentar múltiplos significados, não havendo um sentido único e último. Nos textos, quaisquer que sejam eles, há uma indecibilidade, uma certa indecisão. Toda desconstrução fracassará na tentativa de buscar um sentido único e verdadeiro para qualquer texto analisado.
Retomando as práticas corporais mencionadas no início deste tópico, cabe perguntar: o que é futebol, capoeira, funk, musculação ou queimada para os diferentes grupos sociais que as realizam? São produzidas da mesma forma, buscam objetivos semelhantes? A educação física, em sua vertente cultural, é o componente que, na escola, responsabiliza-se pelo estudo, análise, leitura e produção das práticas corporais e, ao fazê-lo, permite que os diferentes grupos sociais veiculem seus significados. Brincar, lutar, praticar esportes, fazer ginástica e dançar configuram textos da linguagem corporal, portanto, práticas de significação cujos significados que disseminam vão sendo somados, acrescidos, abandonados, alterados, dissimulados ou tergiversados.
Na desconstrução, todo processo de significação é um jogo formal de diferenças. Busca-se repensar a pluralidade humana enquanto possibilidade, sem a necessidade de recorrer à “substância fundante” como origem ou causa primeira do texto. A desconstrução não “destrói” o texto, alvo da problematização, mas questiona sua significação e constitui uma “atividade infindável que visa a desmascarar passo a passo a construção dessa malha de significados” (Rajagopalan, 1992Rajagopalan, K. (1992). A trama do signo: Derrida e a destruição de um projeto saussuriano. In R. Arrojo (Org.), O signo desconstruído: implicações para a tradução, a leitura e o ensino (pp. 25-29). Campinas: Pontes., p. 27).
Trata-se, portanto de problematizar os textos canônicos com os quais lidamos e encarar a multiplicidade dos textos abertos à leitura e à diferença. Desse ponto de vista, no currículo cultural da educação física, a pedagogia, enquanto política cultural, atua no questionamento dos sistemas de representação que organizam e ordenam brincadeiras, lutas, esportes, ginásticas e danças sob determinada lógica de poder.
Algumas considerações
Paulo Freire dissolve qualquer perspectiva “apostilada” de currículo, latente no engodo do conhecimento científico. Recusa o propedêutico, o modular, o capitular ou outra forma qualquer de blindagem do conhecimento pela cultura hegemônica. Prefere o popular, as experiências, a vida-vivida. Atento a isso, o currículo cultural da educação física “desapostila-se” dos currículos tradicionais para poder tematizar as práticas corporais a partir do patrimônio cultural corporal disponível socialmente. Nesse sentido, todos os educandos, independentemente da etapa da educação básica em que se encontrem, têm o direito de aprender sobre os variados esportes, brincadeiras, danças, ginásticas e lutas, analisando-os sob a perspectiva dos diferentes grupos culturais.
A tematização emaranha as experiências de professores e educandos com outros saberes – acadêmicos, do senso comum, populares ou pertencentes a grupos minoritários –, produzindo dessa forma, novos sentidos para a prática corporal tomada como objeto de estudo (Neira, 2011Neira, M. G. (2011). Educação física. São Paulo: Blucher.). O resultado é a modificação nas representações dos educandos sobre o tema e as pessoas que o vivenciam, alcançando a constituição de identidades democráticas. Sob esta perspectiva, os conteúdos de ensino não são definidos a priori no planejamento, uma vez que decorrem da relação dialógica entre os sujeitos envolvidos na aprendizagem, diante dos discursos produzidos socialmente sobre o tema em questão.
Embora Paulo Freire, ao longo de sua teorização, tenha trabalhado com termos binários (classes dominantes e dominadas, colonizador e colonizado, opressor e oprimido, consciência crítica e ingênua), a lógica de construção de seu pensamento foi capaz de captar ambivalências, interseções, cruzamentos, aproximando-o, tal como vimos, das preocupações pós-coloniais e pós-estruturalistas mais recentes. Nesse quesito, ao se posicionar contrariamente à absolutização do saber da ciência, apostando no diálogo como forma de interação entre sujeitos, conhecimentos e culturas, Paulo Freire soube articular noções caras à modernidade (como emancipação, liberdade e democracia) à crítica da própria modernidade.
Nessas circunstâncias, como vimos, a problematização intenciona a desconstrução buscando suspender os sistemas com que as práticas corporais operam nas diferentes épocas e contextos, bem como as discursividades que convergem para reduções identitárias e binárias do tipo “isto é o certo”, “aquilo não o é”. Aqui se propõe extravasar os limites estabelecidos por esses polos, abrindo espaços para três, quatro ou quantas mais possibilidades couberem.
No currículo cultural da educação física, a problematização favorece a inclusão de todos os significados e de todas as vozes, fertilizando o terreno da tematização para o surgimento de múltiplas linguagens e leituras da realidade. A partir da problematização, interessa saber como foram construídos, mediados, aceitos ou recusados os significados conferidos às manifestações da cultura corporal presentes na sociedade.
Afinal, não é mais possível continuar oferecendo aos educandos uma visão parcial da realidade, geralmente aquela divulgada pelos grupos hegemônicos e consagrada pela ciência positivista. Os objetivos das aulas de educação física não podem se reduzir ao ensino de técnicas, padrões de movimento ou atividades descontextualizadas dos problemas que atingem a sociedade.
Na perspectiva cultural do componente, todas as práticas corporais devem ser tratadas com a mesma dignidade, tanto as provenientes dos grupos mais bem posicionados na teia social, como dos grupos minoritários. É uma proposta que coloca em patamares equivalentes os saberes legitimados pela ciência e os saberes do senso comum, recusando a imposição de uma única maneira de enxergar as coisas. Por essa razão, mantém os olhos abertos e os ouvidos atentos aos discursos produzidos pelos diferentes meios de comunicação. Ora, estamos ortodoxamente seguros e crentes do poder da atividade física na manutenção da saúde? Conformamo-nos passivamente com a fórmula para medir os índices de massa corporal ou com as receitas milagrosas de emagrecimento amplamente divulgadas? Aceitamos calados os modos corretos de correr, nadar, jogar e alongar-se?
A partir dos efeitos político e pedagógico das ideias freirianas aqui defendidas, reafirma-se a desesperança na construção de uma sociedade mais democrática e menos desigual por meio das propostas convencionais, nas quais muitos grupos que frequentam a escola não se sentem representados. Como o legado freiriano nos deixou uma pedagogia aberta ao diálogo cultural, não faz o menor sentido aceitar qualquer conhecimento sem debate ou crítica – procedimentos necessários à desconstrução das narrativas dominantes que justificam formas de discriminação social. Nesses termos, somente uma pedagogia culturalmente orientada poderá manter acesa a chama da esperança por um mundo melhor e mais justo, tão sonhado e almejado por esse grande educador.
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Normalização, preparação e revisão textual: Mônica Silva (Tikinet) – revisões@tikinet.com
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As práticas corporais são produtos da gestualidade sistematizada com características lúdicas, ou seja, brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas. Enquanto manifestações culturais materializadas pela linguagem corporal constituem-se em formas de representação que caracterizam as identidades culturais dos grupos que as elaboram e reelaboram constantemente (Neira, 2014Neira, M. G. (2014). Práticas corporais: brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas. São Paulo: Melhoramentos.). Por empregarem uma gestualidade carregada de sentidos, as práticas corporais são concebidas como textos que veiculam formas de expressão, produzem e reproduzem significados culturais.
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Conforme Corazza (2003)Corazza, S. M. (2003). Tema gerador: concepções e práticas. Ijuí: Editora Unijuí., é no livro Pedagogia do oprimido que Paulo Freire funda o trabalho conceitual com os temas geradores, bem como com os pressupostos do seu método – etapas de investigação, tematização e problematização – de uma forma mais sistematizada do que fizera em Educação como prática de liberdade.
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A práxis educativa freiriana implica na reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Neste embate dialético entre ação-reflexão, encaminha-se para uma mudança da consciência humana e uma aproximação crítica, reflexiva da realidade.
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Dentre os quais, destacam-se o “currículo desenvolvimentista”, proposto por Tani et al. (1988)Tani, G., Manoel, E. J., Kokubun, E, & Proença, J. E. (1988) Educação física escolar: fundamentos de uma abordagem desenvolvimentista. São Paulo: EPU/Edusp., e o “currículo psicomotor”, proposto por Freire (1989)Freire, J. B. (1989). Educação de corpo inteiro: teoria e prática da educação física. São Paulo: Scipione..
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Os relatos de várias experiências realizadas com o currículo cultural da educação física encontram-se disponíveis em http://www.gpef.fe.usp.br/index.php/relatos-de-experiencia/
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Influenciado pelas proposições de Gilles Deleuze, Michel Foucault e Jacques Derrida, o pós-estruturalismo toma a linguagem como algo não fixo, como movimento em constante fluxo, sempre indefinida, adiada e imersa em relações de poder. Na visão pós-estruturalista, a fixidez do significado se transforma em fluidez, indeterminação e incerteza.
Referências
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- Freire, P. (1983b). Extensão ou comunicação Rio de Janeiro: Paz e Terra.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Out 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
-
Recebido
06 Jan 2017 -
Revisado
04 Jun 2018 -
Aceito
18 Jul 2018