Resumo
Este artigo mobiliza os fundamentos do referencial teórico da Educação em Direitos Humanos para analisar a relação entre xenofobia e racismo contra estudantes imigrantes, à luz de uma experiência de pesquisa qualitativa realizada em uma escola de educação básica no município de São Paulo com expressiva presença de estudantes imigrantes. A pesquisa permitiu concluir que o racismo associado à xenofobia (denominado xenofobia racializada) determina as probabilidades de integração de estudantes imigrantes na escola pública. Essa desigualdade discriminatória apresenta-se como um grave e urgente desafio à Educação em Direitos Humanos, cobrando uma prática de currículo expressamente comprometido com a superação dessa injustiça nas escolas que recebem estudantes imigrantes.
Palavras-chave currículo; imigrantes; xenofobia racializada; direitos humanos
Abstract
This study uses the Human Rights Education (HRE) theoretical framework to analyze the relation between xenophobia and racism against immigrant students. A qualitative research experiment was carried out in a municipal elementary school with a significant presence of immigrant students in the city of São Paulo. This research found that racism, associated with xenophobia (here referred to as racialized xenophobia), determines the chances of immigrant students being integrated into public schools. This discriminatory inequality poses a serious and urgent challenge for Human Rights Education, demanding a curricular practice that is expressly committed to overcoming this injustice in schools that receive immigrant students.
Keywords curriculum; immigrants; racialized xenofobia; human rights
Preliminares1
A Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Duque de Caxias, situada na Baixada do Glicério, Distrito da Liberdade, no centro da cidade de São Paulo, foi o campo de uma pesquisa de doutorado intitulada [informação suprimida] (Autor 1, 2019). A escola se encontra em um território em cujas principais vias encontram-se estabelecidos prédios significativos: grandes pensões, o maior centro comercial evangélico do Estado, o prédio luxuoso do Tribunal de Justiça do Estado e a Igreja da Paz, conhecida por ser lugar de passagem e acolhimento a imigrantes vindos de diferentes partes do mundo. Essa localização faz dessa escola uma instituição especialmente procurada por estudantes imigrantes, ou filhos de imigrantes, oriundos de países como Venezuela, Argentina, China, Angola, Nigéria, Bolívia, entre outros, mas principalmente da Síria e do Haiti.
O Projeto Político Pedagógico da escola considera expressamente a valorização da diversidade, tratando-se, assim, de um documento precioso, mas falha em não especificar a temática ‘imigração’, considerando o público que atende e tendo como referência o Currículo da Cidade, o qual valoriza a diversidade e as diferenças no modo de ser, ter e aprender, norteado por uma perspectiva inclusiva, plural e democrática (Secretaria Municipal de Educação, 2019).
Segundo relatam os professores, os projetos pedagógicos de acolhimento instituídos nessa escola voltados para estudantes imigrantes iniciaram em 2017. Não obstante, foi possível observar, ao longo do trabalho de pesquisa, que as probabilidades de acolhimento e integração são desigualmente distribuídas entre os diversos grupos de imigrantes que frequentam a escola.
A literatura existente reconhece essa óbvia desigualdade entre os imigrantes e os nativos/nacionais, mas tem apontado como sua principal causa o baixo domínio do idioma nacional pelos estudantes estrangeiros (Benevides, 2010; Oliveira, 2013; Uchôa, 2010). A observação de campo, neste estudo, trouxe evidências de que a aparência física, relacionada ao fenótipo e, mais especificamente, à cor da pele dos estudantes (sua posição em comparação com os padrões nacionais de classificação étnico-racial), é, em muitas ocasiões, mais relevante do que o fator ‘domínio da língua nacional’, até então relatado como o principal diferencial para a integração desses estudantes (Oliveira, 2019).
As observações também revelaram que estudantes imigrantes de origens nacionais e linguísticas semelhantes tendem, inicialmente, a se agrupar entre si, para se ajudarem mutuamente, conversar e brincar, mas, aos poucos, a diferença de origem geográfica perde a importância como marcador identitário entre eles. Nessa mesma referida pesquisa, foi possível constatar que os alunos imigrantes com fenótipos ocidentais (tal como sírios e venezuelanos) são integrados mais rapidamente, ao aprenderem a língua portuguesa, do que estudantes angolanos e guineenses, por exemplo, ainda que estes falem o português fluentemente. A hipótese explorada na referida pesquisa, assim, passou a ser a da existência de uma distribuição desigual do acolhimento ou da hostilidade a diferentes grupos de estudantes imigrantes, a depender de seu hetero-enquadramento no sistema de classificação racial nacional (Oliveira, 2019). Ao final da pesquisa, impôs-se a conclusão de que os marcadores étnico-raciais prevalecem como fatores de exclusão com mais força do que os marcadores ‘imigrante’ e ‘idioma’.
De um lado, alunos nativos/nacionais relataram “não ter problemas com a presença de estudantes de outros países”, alegando que com eles poderiam aprender coisas novas, inclusive um novo idioma. Por outro, alunos imigrantes afirmaram sofrer discriminação, tendo relatado agressões físicas e verbais motivadas “pelo fato de serem negros”. Essas representações étnico-raciais hierarquizadas mostraram exercer uma influência decisiva na dinâmica de sociabilidade nessa escola estudada, ainda que esses fatores raciais não sejam os únicos considerados. Diante dessa realidade, a noção de xenofobia por si só mostrou-se frágil e insuficiente para fins de análise do fenômeno, uma vez que a aversão ao aluno imigrante não captou todas as sutilezas dos conflitos vividos por diferentes grupos de imigrantes em decorrência de sua classificação nos sistemas locais de racialização. Assim sendo, o conceito de xenofobia racializada, proposto por Faustino e Oliveira (2021), impôs-se para a compreensão de fenômenos e situações similares.
As conclusões deste estudo trouxeram mais uma vez à pauta a importante questão dos fundamentos cognitivos e psicológicos como indissociáveis dos condicionantes culturais e morais, no processo de reconhecimento do Outro. Nesse sentido, o estudo demonstrou, conforme mencionado, que o problema da exclusão não está mais decisivamente associado à xenofobia do que ao racismo e que as resistências ao enfrentamento do imigrante estrangeiro poderão ser sempre dissolvidas por meio do reconhecimento das similaridades fenotípicas (eles são similares a nós), enquanto o racismo, mesmo entre compatriotas, sempre poderá ser motivo de exclusão (eles são ameaça a nós).
O tema remete a muitas questões de fundo, impossíveis de serem inteiramente elucidadas, uma vez que remontam, inclusive, a nebulosidades ancestrais, seja do ponto de vista da antropologia cultural, seja da psicologia/psicanálise, seja, mais recentemente, do campo das neurociências (Mlodinow, 2013).
Ambivalências no reconhecimento do estrangeiro como Outro em simétrica dignidade
Nenhuma posição político-cultural do Outro é mais exterior, mais radical e mais vulnerável que a da condição de estrangeiro (Casali, 2018a). Não nos referimos ao estrangeiro em posição de possíveis relacionamentos simétricos (como nos relacionamentos turísticos ou comerciais, por exemplo), e sim ao estrangeiro em sua posição extrema, de maximamente estranho (stranger), como é o caso do imigrante refugiado, em busca de asilo, fugindo de guerras civis, de calamidades, da fome.
Uma obra expressivamente intitulada De l’hospitalité, de Derrida e Dufourmantelle (1997), pode ser, aqui, uma importante referência conceitual para elucidar as sutis, e ao mesmo tempo radicais, elaborações semânticas e político-culturais em torno do Outro estrangeiro. Derrida aponta para a ambivalência inerente à hospitalidade, tensionada entre o incondicional (ideal de hospitalidade ética – fundada na gratuidade) e o condicional (quando implica alguma reciprocidade). Na mesma obra, as conferências de Dufourmantelle exploram a hospitalidade como uma forma de acolhimento ao estranho dentro de cada sujeito, de um ponto de vista psicanalítico. Trata-se do tema da Ksenía (Ξενία): uma instituição grega intangível, de caráter social, cultural, moral – traduzido para o português, aproximadamente, como hospitalidade. Para o cidadão grego clássico (até a morte de Alexandre Magno, em 323 a.C.), especialmente, a Ksenía era um dever moral irrenunciável, inviolável. Trata-se de uma prática fundada em um conceito de amplitude semântica extraordinária e instigante: pois o ksénos (ξένος) era o Outro, o estrangeiro, mas podia significar também o extravagante, até mesmo o inimigo (originando, para nós, o termo xenofobia); mas, ao mesmo tempo, ksénos era o hóspede (Pereira, 1998). É inevitável perguntar que experiência cultural foi aquela que permitia converter um estrangeiro, visto como potencialmente inimigo, em hóspede, a ponto de acolhê-lo na própria casa e oferecer-lhe abrigo e alimento.
Um segundo conceito grego é igualmente essencial para nossa referência. Trata-se do termo éthnos (ἔθνος), que comportava duas grandes acepções: uma, substantiva, significando nação, povo, tribo; e outra, adjetiva, caracterizando o estranho (Pereira, 1998). Esse arco amplo de significação tampouco deixa de intrigar, uma vez que reduz toda nação, povo, tribo à probabilidade de ser estranha (e, enquanto tal, ameaçadora), mais do que parceira e, no limite, familiar. A etnografia, como método vindo da Antropologia Cultural, incorporou essa ambivalência para propor como meio de conhecimento do Outro esse jogo mental do pesquisador de buscar familiarizar-se com o estranho ao mesmo tempo que busca estranhar a familiaridade de si mesmo com os seus (Erickson, 1984).
Um terceiro conceito, agora latino, completa nossa referência analítica. Em Roma, originariamente, havia dois termos sinônimos, mas com dupla significação, aparentemente contraditória: hostis e hospes significavam, ambos, sinonimamente, simultaneamente, o estrangeiro e o hóspede (Torrinha, 1942). Parece não haver dúvida de que ambos, embora lexicalmente distintos, seriam uma tradução de uma parte da duplicidade de sentidos inerente à Ksenía grega, a que nos referimos, porém, aqui, significando que o estrangeiro merece ser tratado como hóspede. Não é descabido imaginar que o dispositivo moral que sustentava essa duplicidade estaria no fato de que o estrangeiro era pensado como alguém a quem se devia hospitalidade justamente porque, sendo estrangeiro, não dispunha de abrigo. Portanto, certa universalidade moral (com seu desprendimento generoso e gratuito) seria sobreposta, nesse aspecto, à particularidade política e cultural (com seu agudo sentido de autoproteção corporativa tribal, nacional). No entanto, o termo hostis, ao mesmo tempo, não perdeu, entre os latinos, o outro sentido presente na Ksenía grega: o de inimigo – o hostil. Esse terceiro sentido também operava como alerta para os riscos inerentes ao acolhimento do estrangeiro e aparecia como uma flagrante evidência do frequente descumprimento do dever moral de hospitalidade, com a redução desse Outro estrangeiro à condição de um Outro ameaçador.
Em algum momento, posteriormente, passado o período de assimilação da cultura grega pelos romanos, os dois termos (hostis e hospes) se distinguiram e se separaram em significados opostos, agora inconciliáveis (hostis como inimigo: o hostil; e hospes como hóspede, que será também um comensal, o que compartilha a mesa). Na língua inglesa, curiosamente, conservou-se intacta uma parte do sentido originário desse conceito latino: host, hostel não significam hostil, e sim hospedeiro, hospedagem.
Essas considerações sobre o fundo semântico helênico e latino fazem sentido nesta análise sob o pressuposto de que a linguagem, muito mais do que mero dispositivo instrumental de comunicação, é um estruturante da matriz cultural de indivíduos e povos, e por hipótese atua inconscientemente na matriz colonialista ibérica que nos fundou. Aqui, essas considerações etimológicas e semânticas permitem ilustrar a radical ambivalência com o estrangeiro, que trazemos da cultura greco-latina, que é uma de nossas matrizes culturais. Essa ambivalência revela o inocultável reconhecimento de que o estrangeiro necessita e, portanto, moralmente, merece hospitalidade; ao mesmo tempo, revela, como em uma acusação, a baixeza moral das políticas e culturas hegemônicas que tentam ‘proteger’ o sistema estabelecido de uma possível (suposta, alegada, imaginada) ameaça, e sua resistência a dar esse passo de confiança para diante e dentro do Outro desconhecido (Casali, 2018a).
Essa ambivalência conceitual e cultural presente nos fundamentos do neologismo hostipitalité, empregado por Derrida e Dufourmantelle (1997), que funde hospitalidade com hostilidade, remete ao estranho-familiar da etnografia, assim como ao ksénos estrangeiro-hóspede. A ksenía, demarcação ética da hospitalidade aberta ao estrangeiro, ainda soa como um oportuno imperativo para as políticas, as leis de imigração e as práticas de acolhida aos imigrantes no mundo contemporâneo.
Quando lançamos o tema da hospitalidade ao estrangeiro sobre o campo cultural desses que, nesta pesquisa, aparecem como as principais vítimas da xenofobia racializada, a saber, os negros e negras imigrantes na escola, então, à destrutiva violência que eles e elas sofrem, acrescenta-se uma não menos trágica ironia cultural. Pois, na grande matriz cultural africana, da qual provêm esses e essas que agora são discriminados(as), encontra-se uma filosofia de vida que supera até mesmo o sentido humanitário de hospitalidade vivido pelos gregos na Ksenía. Falamos do Ubuntu.
Para o sociólogo congolês Bas’Ilele Malomalo (2014), a hospitalidade ao estrangeiro nas culturas africanas não é apenas um traço presente em certos rituais de acolhimento, mas algo que estrutura toda a relação de identidade e alteridade. Há, no conjunto das culturas africanas, um êthos mais geral – que, nas línguas zulu e xhona, é nomeado como Ubuntu – de percepção de alteridade baseada em princípios de humildade, empatia, respeito e cooperação.
A ancestralidade Ubuntu, permite identificá-lo como um “paradigma” cultural de ilimitadas potencialidades educativas, de alcance mundial. O significado da palavra é abrangente: implica acolhimento, partilha, comunidade, generosidade.
A expressão Ubuntu ganhou destaque, mais recentemente, pelas vozes de lideranças como Nelson Mandela (2006), com a notável explicação sobre o sentido da experiência Ubuntu, numa entrevista ao jornalista sul-africano Tim Modise: “Um viajante através de um país pararia numa aldeia e não teria de pedir comida ou água. Assim que ele chega, as pessoas dão-lhe comida, cuidam dele”2.
Outra voz, entre as mais autorizadas a descrever o sentido do Ubuntu, é a do Arcebispo sul-africano Desmond Tutu (2006 citado por Murithi, 2006, p. 28, tradução nossa). Assim ele se expressou:
Ubuntu . . . fala da própria essência do ser humano. Quando se quer elogiar alguém, nós dizemos: “Yu, u Nobuntu”; ele ou ela tem Ubuntu. Isto significa que eles são generosos, hospitaleiros, amigáveis, carinhosos e compassivos. Partilham o que têm. Significa também que a minha humanidade está presa, está inextricavelmente ligada, na deles. Pertencemos a uma rede de vida. Dizemos: “uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas”. Eu sou humano porque pertenço, participo e compartilho3.
A educadora nigeriana Joan Osa Oviawe (2016, p. 1), da Cornell University, NY, USA, é enfática ao afirmar que “existe espaço para uma filosofia ubuntu na educação, tanto na África como em todo o mundo”. Na mesma linha, o educador sul-africano Lesley Le Grange (2011), da Stellenbosch University, South-Africa, sustenta que o Ubuntu tem um potencial de transformação da educação para todo o mundo. E a socióloga e historiadora costa-marfinense N’Dri Thérèse Assié-Lumumba (2017, p. 1) enfatiza que “o paradigma Ubuntu . . . pode oferecer possibilidades de crescimento e renovação no campo da educação comparada e internacional”; e, ao analisar o alcance epistemológico do Ubuntu, procura demonstrá-lo como uma oportunidade valiosa no contexto da globalização para uma mudança mundial na educação: “O paradigma Ubuntu promove a filosofia e a prática da valorização da humanidade em relação aos outros e do humanismo que concebe e trata o mundo como um ecossistema complexo e interdependente, do homem, da natureza e do planeta” (Assié-Lumumba, 2017, p. 11)4.
O sul-africano James Ogude (2019), da Universidade de Pretória, pesquisador de Literatura e Cultura Africana, argumenta que o Ubuntu pode ser um modelo para reconstituir comunidades inclusivas, enfatizando a importância dessa filosofia na integração de imigrantes e na promoção de uma convivência harmoniosa nas escolas.
Evidentemente, uma vez que nosso tema remete ao imperativo ético da convivência mundial intercultural internacional, não faltam identidades de projeto (Hall, 1999) entre pesquisadores/as e educadores/as branco/as, do norteatlântico, como é o caso de Cláudia Ruitenberg (2015), que, postulando uma ética cosmopolita, convoca as escolas à abertura e ao acolhimento de crianças imigrantes em ambiente de hospitalidade respeitosa e promotora das diferenças culturais.
Um dos aspectos mais relevantes das mais recentes pesquisas no campo das Neurociências, por sua vez, também tem a ver com nossa questão: o reconhecimento das diferenças do/no Outro. Para o cérebro humano, todo reconhecimento (especialmente o do Outro) é sempre uma operação imagética. Nosso cérebro tem uma região específica para a gestão da visão (assim como outras para o olfato, audição etc.), na qual há uma região ainda mais específica para analisar e classificar rostos (Kandel, 2009; Mlodinow, 2013). Como o reconhecimento do Outro é, antes de tudo, uma função de sobrevivência (é vital saber distinguir entre o predador e quem é parte do grupo), trata-se de processar o reconhecimento com o máximo de eficácia e eficiência. O dispositivo usado pelo cérebro combina reconhecimento de contexto com a classificação do objeto visto/ouvido. Temos neurônios no córtex pré-frontal que respondem a categorias (Kandel, 2009; Damásio, 2011). O cérebro primeiro capta o significado bruto de um objeto e só depois se preocupa com sua individualidade. Essa estratégia produz um efeito de distorção na classificação: objetos pertencentes à mesma categoria sempre parecem mais semelhantes do que realmente o são (e o inverso igualmente), ou seja, quando classificamos, polarizamos (Mlodinow, 2013). A polarização é uma simplificação, e isso pode ser mais um facilitador para a discriminação violenta contra o Outro (Casali, 2018a).
A classificação, ademais, funciona mediante uma redução metonímica do objeto visto a um de seus traços aparentes de identidade. Tal redução permite o ganho da imediaticidade no reconhecimento, o que é vital para a segurança. O detalhe faz a diferença. Contudo, no caso do reconhecimento de Outros seres humanos estranhos ao vínculo familiar, tribal, nacional, essa redução metonímica pode implicar, e geralmente implica, o custo moral do pré-conceito, e pode operar a violência do não reconhecimento sobre todo o restante não visto: os traços invisíveis da identidade do Outro (Casali, 2018a). No caso do racismo e da xenofobia no Brasil: o que primeiro se vê não é a pessoa, mas a cor da pele de seu corpo e, somente depois, sua origem.
Considerando esse marcador de diferenciação inferiorizadora (Santos, 1996, 2006), revisitamos os debates sobre educação em direitos humanos para pensar, de um lado, as particularidades sob as quais a xenofobia racializada5 se apresenta na escola e, de outro lado, as possibilidades de criação de dispositivos curriculares atentos a essas violências, que possam ser capazes de fazer a diferença – no duplo sentido dessa expressão.
Emergência histórica dos Direitos Humanos
Foi no Iluminismo que se iniciaram os “movimentos culturais e políticos em todo o mundo, que materializaram em constituições e leis o reconhecimento da dignidade do Outro” (Casali 2, 2018b, p. 8). Esses movimentos ocorreram em países ocidentais distintos, como nos Estados Unidos da América, com a Declaração de Virgínia (1776), no contexto de luta pela independência, e pouco depois na França, com a Revolução Francesa (1789) (Casali, 2018b). Entretanto, foi apenas no contexto após a Segunda Guerra Mundial que a Organização das Nações Unidas instituiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tendo como principal, específico e pragmático objetivo promover a paz mundial e fortalecer os direitos humanitários.
O Governo brasileiro aderiu às recomendações da Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos em Viena, em 1993, instituindo, em maio de 1996, o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), com o objetivo de sistematizar as demandas da sociedade brasileira com relação à proteção e promoção de direitos humanos e identificar possíveis soluções, subsidiando a formulação e a implementação de políticas públicas de garantia a esses direitos – especialmente na perspectiva da relação entre educação e cidadania.
Casali (2018b) ressalta a enorme contribuição da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, para o reconhecimento dos direitos humanos inalienáveis dos grupos socialmente marginalizados e destaca que a validação da Declaração Universal foi possível mediante contribuições dos sistemas míticos, religiosos, culturais e políticos. Para Casali (2018b, p. 560), “essa motivação pragmática, fruto de negociação política entre as potências da época, em busca de governabilidade mundial, explica por que os direitos humanos permaneceram no campo de validação internacional (parcial) e não no campo de validação universal”.
Uma questão que emerge a partir daí, sobretudo quando se pensa a temática da presença de imigrantes no contexto educacional, é a dos critérios de universalidade adotados: sendo explicitamente ‘ocidental’ o marco jurídico, ético e filosófico que fundamenta a Declaração Universal dos Direitos Humanos, cabe perguntar se, e até que ponto, a cultura europeia poderia ser tomada como referência universal para a definição de valores universais como a dignidade, a democracia e o direito. Para Santos (2006, p. 441), “enquanto forem concebidos como direitos humanos universais em abstracto, os direitos humanos tenderão a operar como localismo globalizado e, portanto, como uma forma de globalização hegemônica”. A menção do referido autor implica que não é possível validar os direitos humanos quando não consideramos as diferenças sociais, econômicas, políticas, religiosas, culturais e físicas.
De acordo com Santos (2013), as críticas aos discursos sobre direitos humanos revelam que a população mundial vem sendo concebida mais como “objeto” de discursos de direitos humanos do que como “sujeito” de direitos humanos. Segundo o sociólogo português, essa constatação poderia levar a uma estratégia equivocada de suspender a crítica ao discurso dos direitos humanos, substituindo-a pela crítica apenas às práticas que não são realizadas.
Como é o caso do racismo inserido em ambos os sistemas de maneira simultânea e hierárquica, Santos (2006, p. 281) afirma que, “no caso do racismo, o princípio da exclusão assenta na hierarquia das raças, e a integração desigual ocorre, primeiro, através da exploração colonial (escravatura, trabalho forçado), e depois, através da imigração”.
Em tempos de racismo, indiferenças e desigualdades, e com o fluxo migratório intenso no século XXI, o mundo se tornou mais global, os espaços ganharam novas características, comportando diferentes culturas, favorecendo o que Santos (2006) denominou de localismo globalizado. Nesse sentido, concebendo os direitos humanos em sua totalidade, é igualmente importante valorizar as diferenças para combater as desigualdades.
Esse percurso teórico é relevante para as finalidades deste artigo, porque permite tematizar a relevância da compreensão do racismo estrutural (Almeida, 2019) na sociabilidade brasileira, sobretudo, contemporaneamente, a sua manifestação nas dinâmicas migratórias no Brasil. Nessa linha, o trabalho de Moura (1988) indica a presença do racismo nas escolhas políticas e econômicas empreendidas pelas classes dominantes brasileiras em relação aos fluxos migratórios. Com efeito, diferentemente do que se costuma afirmar, o Brasil não construiu sua identidade nacional a partir da exclusão ou inferiorização do estrangeiro. Ao contrário, os projetos de identidade nacional, levados a cabo pelas classes dominantes brasileiras após a Abolição, excluíam justamente as populações negras e indígenas enquanto apostavam no embranquecimento da ‘classe trabalhadora’ (leia-se: da ‘população’) por meio do incentivo público e privado à imigração de origem europeia.
Essa realidade implicou, desde então, um cenário que desafia as categorizações presentes nos estudos sobre imigração: em que medida seria o Brasil, afinal, um país xenofóbico? Até que ponto faz sentido falar em xenofobia em um país cujos estrangeiros (desde que oriundos da Europa, dos Estados Unidos ou do Japão, por exemplo), historicamente, foram considerados ‘superiores’ aos nacionais? O país apostou na imigração (especialmente europeia) como caminho ‘lógico’ para embranquecer a sociedade, ao mesmo tempo que recusou, sempre que possível, a entrada de imigrantes africanos, reproduzindo, desde então, uma distribuição desigual – racista – no acolhimento ou na hostilidade a imigrantes.
Contrariamente à recepção, geralmente calorosa, aos imigrantes europeus, o imigrante aqui considerado negro experienciará, de um lado, a associação negativa que se faz a seu país ou continente de origem e, de outro lado, seu posicionamento arbitrário no sistema nacional de classificação racial – esse processo de distribuição desigual do acolhimento, conceituada como “xenofobia racializada” (Faustino & Oliveira, 2021). Observou-se na pesquisa de base deste artigo (Oliveira, 2019) que essa xenofobia racializada, que também se mostra em escolas públicas, é uma grave ameaça aos direitos humanos e ao direito universal à educação.
Educação em Direitos Humanos para o enfrentamento da Xenofobia Racializada
É sabido o quanto o convívio multicultural, inclusive porque atravessado por diferentes relações de poder, provoca, agudiza e explicita conflitos, com efeitos positivos e negativos decorrentes de incompatibilidade de opiniões, valores e necessidades e, sobretudo, de relações de poder marcadas pelo estranhamento hierarquizado e reificador da sociedade contemporânea (Hall, 1999, 2009). Essa assimetria pode alimentar a prepotência de alguns e a exclusão de outros, acarretando violências, anulando e violando direitos humanos. Por isso, quando tais relações culturalmente assimétricas, especialmente envolvendo imigrantes, ocorrem no interior de instituições escolares, cabe a essas instituições adotar um papel educativo fundamental na mediação das violências daí decorrentes, oferecendo aos sujeitos envolvidos a possibilidade de construir relações interpessoais dignas em seu cotidiano escolar, reconhecendo as diferenças como riqueza e aprendendo com elas, cultivando atitudes tolerantes.
Desde a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, assumiu-se que a educação deve estar:
Art. 26. . . . orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz
(Unicef, 1948).
Na Declaração de Princípios sobre a Tolerância (Unesco, 1995), a respeito da educação, o artigo 4.2 destaca:
Art.4.2 A educação para a tolerância deve ser considerada como imperativo prioritário; por isso é necessário promover métodos sistemáticos e racionais de ensino da tolerância centrada nas fontes culturais, sociais, econômicas, políticas e religiosas da intolerância, e da exclusão. As políticas e programas de educação devem contribuir para o desenvolvimento da compreensão, da solidariedade e da tolerância entre os grupos étnicos, sociais, culturais, religiosos, linguísticos e as nações.
Reconhecer que somos diferentes não basta para que se estabeleça a diversidade cultural, pois a diferença é uma marca que pode rotular socialmente o sujeito pelo viés da suposta inferioridade. Nesse sentido, Candau (2005, p. 19) sustenta que:
Não se deve contrapor igualdade a diferença. De fato, a igualdade não está oposta à diferença, e sim à desigualdade, e diferença não se opõe à igualdade, e sim à padronização, à produção em série, à uniformidade, a sempre o “mesmo”, à mesmice.
Contudo, foi Santos (2003, p. 56), em seu clássico aforisma, quem explicitou de modo mais cabal a superação dessa aparente incompatibilidade entre igualdade e diferença: “Temos direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza”. Para os alunos imigrantes, a igualdade das diferenças não significa a adoção de uma identidade brasileira, mas apenas o direito à igualdade de oportunidades e condições – direito esse que é melhor denominado como ‘equidade’, que não anula o direito de viver de maneira diferente no que tange à cultura, ao estilo de vida etc.
Os alunos estrangeiros, quando recebidos com hospitalidade, além de aprenderem o idioma, encontram a solidariedade e o espírito colaborativo de toda a comunidade escolar que os recebe, atitudes significativas para a atuação no grupo e para a formação desses indivíduos (Ruitenberg, 2015). Além de se comunicarem e interagirem de forma efetiva, questionando e sugerindo, podem exercer seu papel e se desenvolver como quaisquer outros alunos.
A xenofobia, no cotidiano escolar, assim como o racismo, afeta tanto os alunos discriminados quanto os que discriminam. Os efeitos psíquico-sociais destrutivos que a xenofobia e o racismo podem causar nos alunos discriminados estendem-se desde a baixa autoestima até à evasão escolar. Para os supostamente superiores e onipotentes, o racismo e a xenofobia resultam na cristalização do sentimento irreal de superioridade, reforçando a discriminação na escola e em outros espaços da esfera pública (Martínez-Otero & Miranda, 2010). Considerando que a escola é um espaço de socialização secundária e exerce um papel fundamental na construção da identidade e na formação do ser humano, discutem-se os limites e as possibilidades de um currículo para o trato adequado dessa temática.
A Educação em Direitos Humanos no Brasil, pautada pelo Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos – PNEDH (Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007), está orientada para o respeito às diferenças e o compromisso com a transformação da realidade: “Educar para os direitos humanos significa preparar os indivíduos para que possam participar de formação de uma sociedade mais democrática e mais justa” (Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2013, p. 34). Nesse sentido, faz-se necessário, evidentemente, que as pessoas também reconheçam seus deveres, agindo de modo coerente com seus discursos, por exemplo, com o respeito à pluralidade e à tolerância com as diferenças no cotidiano escolar.
Reconhecer que os profissionais da educação têm concepções, crenças e, principalmente, experiências diferentes é o primeiro passo para o sucesso na luta pelo combate ao racismo e à xenofobia no cotidiano escolar, tendo em consideração os programas de formação de professores e seu efeito. A instituição escolar, sendo um espaço que pode receber uma grande oferta de estudantes estrangeiros, pode ou não contribuir para que se intensifiquem, ou diminuam, ou se solucionem, de modo pedagogicamente exemplar, os conflitos gerados em seu interior a partir da presença desse Outro – os alunos imigrantes.
Uma sociedade democrática depende de um sistema de educação pública que tenha um currículo, uma gestão, um corpo docente, conteúdos e estratégias de acordo com a Educação em Direitos Humanos, em que as atualizações e as formações de toda a equipe escolar sejam contínuas e representem uma possibilidade real de um trabalho conjunto com espaços extraescolares.
Poderia parecer que o reconhecimento de Direitos Humanos tenha ocorrido, no Brasil, apenas a partir de decisões e declarações oficiais mais recentes. Entretanto, desde a Constituição de 19346, alunos imigrantes já teriam, de fato, o direito à educação. Esse direito foi respaldado formalmente, mais tarde, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, e legislações estaduais e municipais vigentes, e consagrado na Resolução MEC/CNE nº 01/2020, que “Dispõe sobre o direito de matrícula de crianças e adolescentes migrantes, refugiados, apátridas e solicitantes de refúgio no sistema público de ensino brasileiro”. Ainda mais recentemente, a chamada Lei de Migração, de 2017, garante, explicitamente aos estudantes imigrantes, o direito à educação, como no “Art. 4º. Ao migrante é garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais: . . . X – direito à educação pública, vedada a discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória”. Não obstante, mesmo com todas esses direitos assegurados, o índice de evasão de alunos imigrantes segue significativo, e nossa hipótese analítica, a partir da pesquisa aqui referida, é a de que a evasão escolar desse grupo ocorre pelo fato de os indivíduos não serem reconhecidos como parte da comunidade linguística e cultural, em consequência desse dispositivo discriminatório elementar: a xenofobia racializada.
Essa questão do reconhecimento do Outro por uma Comunidade e sua devida aceitação e inclusão nessa mesma Comunidade é um tema que impõe considerações mais refinadas. O filósofo argentino-mexicano Dussel (2000), inspirado em Emanuel Lévinas, dedicou-se a explicitar as sutilezas éticas implícitas nessa relação e definiu essa questão como a de uma insolúvel ambivalência: o Outro é uma exterioridade radical que convoca eticamente a Comunidade a reconhecê-lo e acolhê-lo; mas não haverá reconhecimento e acolhimento capazes de esgotar sua exterioridade ética; razão pela qual a relação ética do estrangeiro imigrante, no caso, com uma comunidade nacional há de manter essa tensão insolúvel entre um acolhimento que, por mais generoso que seja, jamais esgotará sua exterioridade cultural, étnico-racial, linguística etc.
Nesse sentido, a escola, que foi e muitas vezes continua sendo desenhada para produzir e conservar um discurso eurocêntrico, ‘totalitário’, com ambição de ser ‘única’, como se não existisse nada fora de seu sistema, só pode conceber que o que existe fora dela seja o diferente ‘a ser excluído’ – e o exclui como vítima.
Para romper com essas estigmatizações, cabe enfatizar a necessidade de um programa de formação continuada de professores e gestores, para que se empenhem em projetos pedagógicos de reconhecimento dessas diferenças e lutem pela valorização das culturas e pelo fortalecimento dos direitos. Nesse sentido, consta com clareza nas Competências Gerais da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que se deve:
Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro e aos direitos humanos com a acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza
(Ministério da Educação, 2017, p. 10).
O texto atual da BNCC, em sua questionável ambiguidade de concepção, destaca a preocupação de ‘garantir’ educação baseada nos direitos humanos, ou seja, a mínima condição de plenitude da dignidade, pautada pelo respeito às diferenças e igualdade de direitos. Esse documento passou a orientar, desde 2018, todos os currículos escolares brasileiros, da Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio, confirmando a responsabilidade das instituições escolares, em suas respectivas esferas de autonomia e competência, de forma contextualizada, por “incorporar aos currículos e às propostas pedagógicas a abordagem de temas contemporâneos que afetam a vida humana em escala local e global, preferencialmente de forma transversal e integradora” (Ministério da Educação, 2017, p. 19). A temática da educação das relações étnico-raciais e do ensino de história e cultura afro-brasileira, africana, indígena e de outras matrizes que compõem a sociedade brasileira é parte indispensável desse propósito.
Embora exista uma numerosa e qualificada literatura voltada à Educação das Relações Étnico-Raciais, a relação entre racismo e o conjunto de conflitos vividos no cotidiano escolar ainda não foi suficientemente problematizada. A ampla presença de imigrantes de várias partes do mundo em escolas brasileiras, especialmente em escolas públicas, levanta a questão sobre o quanto a diferença pode ser convertida em conflitos violentos na escola, quando transpassada pelo olhar estigmatizado e racializado; e o quanto pode ser convertida em soluções exemplarmente pedagógicas, quando permeada por uma comunidade de educadores bem formados e conscientes de seu papel na Educação em Direitos Humanos.
A realidade constatada na pesquisa da tese de doutorado que sustenta este texto sugeriu a existência de hierarquias estigmatizadas entre as representações sociais criadas para os diferentes povos e culturas que há tempo vêm colorindo o Brasil por meio da imigração. Essas representações hierarquizadas são fatores que devem ser considerados, que exercem reflexos na dinâmica de sociabilidade nas escolas. Foi diante dessa realidade que a noção de xenofobia se mostrou insuficiente para a análise do que foi observado nesta pesquisa, uma vez que a polarização nacional x estrangeiro não captou todas as sutilezas dos conflitos vividos por diferentes grupos de imigrantes em função do sistema de classificação racial brasileiro, razão pela qual utilizamos o conceito de ‘xenofobia racializada’7.
O Brasil, a despeito do genocídio colonial imposto às populações originárias, segue sendo um país formado por ‘estrangeiros’. Esse fato imprimiu e continua imprimindo, com todas as suas ambiguidades, uma relação histórica de acolhimento e identificação com os imigrantes da mesma origem nacional ou continental dos colonizadores. Não é objetivo deste artigo colocar em discussão o status desumanizador do tráfico transatlântico de seres humanos escravizados, nem sua redefinição em meio à falsa polarização nacional x imigrante-estrangeiro, mas apenas reconhecer que a colonização implicou uma organização social e sociabilidade baseadas em interesses exógenos, levadas a cabo por agentes estrangeiros (Faustino, 2020), e que esse fato, associado às necessidades econômicas e ideológicas de cada período (Moura, 1988), resultou no incentivo constante a fluxos migratórios diversos (Oliveira, 2019).
Com efeito, a partir de 2004, à vista de seu notável crescimento econômico e social, o país voltou a ser destino atraente para imigrantes de diversas partes do mundo. Os últimos dados divulgados pela Secretaria da Educação do estado de São Paulo, estado que comporta o maior número de imigrantes no Brasil, revelaram a matrícula de 17.880 imigrantes nas escolas municipais e estaduais no ano de 2020, o dobro de 2013, quando, aproximadamente, apenas 9 mil foram identificadas. O diferencial em relação ao tradicional afluxo de imigrantes ao país reside em que, agora, mais dramaticamente do que antes, a aceitabilidade desses novos estrangeiros situa-se no registro que os discrimina mais pela cor da pele do que pela nacionalidade ou língua.
No cotidiano escolar que foi objeto da pesquisa que sustenta o esta pesquisa, a aversão que prevalece é a do racismo: ocorre menor aversão a um estrangeiro imigrante branco do que a um negro. Os imigrantes com traços fenotípicos ocidentais, ao aprenderem o português, são integrados facilmente, enquanto os angolanos, ainda que falem português, dificilmente serão integrados pelo fato de serem africanos negros.
O resultado desta pesquisa convoca novas aproximações teóricas, apesar dos vários estudos que focam o racismo como um dos fatores centrais para a compreensão das disparidades de acesso e permanência na educação (Cavalleiro, 2005; Jaccoub, 2008; Ministério da Educação, 2004, Munanga, 2005; Oliveira, 2012; Silva, 2003; Silva, 2005), e das demais investigações que reconhecem que a presença de imigrantes no cotidiano escolar implica novos desafios curriculares (Autor 1, 2019; Brás, 2015; Oliveira, 2013; Rodrigues, 2017; Uchôa, 2010). São análises que se associam à afirmação de Costa (2011, p. 150), de que um ambiente educativo de qualidade é aquele em que se ensinam, se aprendem e se vivenciam valores, ao mesmo tempo que “. . . sejam garantidas práticas de socialização e convivência, fortalecendo noções de cidadania e igualdade entre todos. . .”.
A ‘xenofobia racializada’ representa uma grande ameaça aos direitos humanos, uma vez que estamos diante de “violência simbólica de grupos sociais que impõem normas, valores e conhecimentos tidos como universais e que não estabelecem diálogo entre as diferentes culturas presentes na comunidade e na escola” (Ministério da Educação, 2017, p. 59).
Se é papel da educação elevar o conhecimento e a prática do educando, não podendo desvincular-se da ação formativa comprometida com a conservação ou com a conquista do saber e do poder (Chizzotti, 2016), é função do currículo problematizar essas formas pelas quais as contradições se apresentam na sociedade e, sobretudo, na escola (Gimeno Sacristán, 1999). O tema encontra posicionamento claro em Freire (2005), para quem existem tipologicamente duas educações, uma que é bancária e aliena, desumaniza e oprime; e outra, a libertadora, que implica conscientização e produz humanização e autonomia, constituída pela interação e pelo diálogo.
Michael Apple (2006), alinhado a Freire, argumenta que o currículo é um mecanismo social e cultural implicado nas relações de poder, que tem como eixos básicos a ideologia, a cultura e o poder, trabalhando paralelamente o currículo oficial com o currículo oculto, sendo, desse modo, um processo contínuo de análises e reformulações. Nessa linha, segundo Casali (2016, p. 1546), “Um currículo escolar é parte importante de um curriculum vitae: currículo da vida, para a vida. Ele é, de partida, uma experiência-vivência corporal, singular e coletiva”.
Para Chizzotti e Ponce (2012), os currículos brasileiros se organizam, ainda que contraditoriamente, a partir de uma tradição humanista, com a pretensão de formar cidadãos para o convívio coletivo e a coesão social e de formar indivíduos com competências e habilidades requeridas pela competição globalizada do conhecimento. Esse currículo de tradição humanista que forma cidadãos para o convívio coletivo, o ‘currículo da vida’ (Casali, 2016), é o que permite que a educação escolar possa se reorganizar pedagogicamente para receber novos estudantes de diferentes nacionalidades, línguas e fenótipos em seu cotidiano. A reorganização do currículo perante a diversidade cultural, étnica e linguística é um processo fundamental para que se alcance a justiça:
A justiça curricular é o resultado da análise do currículo que é elaborado, colocado em ação, avaliado e investigado levando em consideração o grau em que tudo aquilo que é decidido e feito em sala de aula respeita e atende às necessidades e urgências de todos os grupos sociais; ajuda-lhe a ver, analisar, compreender e julgar a si próprios como pessoas éticas, solidárias, colaborativas e corresponsáveis por um projeto de intervenção sociopolítica mais amplo destinado a construir um mundo mais humano, justo e democrático
(Torres Santomé, 2013, p. 9).
Para Ponce (2016), tais políticas de educação e práticas pedagógicas são de suma importância para que se alcance a justiça curricular. Nesse sentido, não se trata somente da garantia por lei do acesso de estudantes imigrantes à escola, mas também do trabalho conjunto da gestão e dos professores visando à igualdade, à diferença, à equidade.
Ponce e Neri (2015, p. 333) apropriadamente assinalam que o currículo deve estar organizado para combater as desigualdades e deve ser um instrumento de cuidado com os envolvidos:
. . . a justiça curricular se faz pela busca e prática do currículo escolar como instrumento de superação de desigualdade; sendo a prática curricular a chave desse processo nas suas três dimensões fundamentais: a do conhecimento necessário para que os sujeitos do currículo se instrumentalizem para compreender o mundo e a si mesmos nele; a do cuidado com esses sujeitos envolvidos no processo pedagógico de modo a garantir que todos tenham condições dignas para desenvolver-se: e a da convivência democrática e solidária que deve ser promovida na escola.
Por essa razão, as políticas públicas, a instituição escolar e todos os sujeitos nela envolvidos têm sua importância nesse trabalho coletivo de formação de seres humanos mais preparados para uma vida mais coletiva e mais solidária, cabendo à escola lidar com todos os obstáculos que possam interpor-se nesse caminho (Ponce & Neri, 2015). A justiça curricular estima pela responsabilidade na função social da escola, do Estado, das famílias e de toda a comunidade na construção de uma sociedade que respeite os direitos humanos. O ideal de justiça curricular impõe não apenas um currículo para a justiça, mas, principalmente, parodiando Paulo Freire (em sua “educação como prática da liberdade”), um ‘currículo como prática da justiça’.
Portanto, a mudança de uma cultura individualizada para uma plural e diversa, democrática, articulada com políticas públicas e práticas curriculares voltadas às diferenças e ao respeito aos direitos humanos, favorece o bom enfrentamento de qualquer problema, especialmente do que aqui nomeamos como ‘xenofobia racializada’.
Nem Xenofobia nem Racismo: Considerações Finais
Como argumentado anteriormente, a xenofobia racializada manifesta-se como uma distribuição desigual da hostilidade ou acolhimento a imigrantes de diferentes nacionalidades, a depender de sua classificação étnico-racial local. A aparência física (especialmente a cor da pele) destaca-se nas representações estruturalmente nacionalistas, supremacistas e racistas, notórias na história brasileira; os traços tipicamente ocidentais seguem como os desejados e valorizados, enquanto os traços identificados como africanos encontram a disposição oposta.
Para prevenir e combater pedagogicamente os diferentes tipos de preconceito e discriminação, é indispensável que a escola se questione sobre seu papel na reprodução dessas violações aos direitos humanos e refunde seu currículo em uma perspectiva de realização plena dos direitos.
Não nos faltam referenciais culturais para um acolhimento digno a imigrantes, considerado o âmbito histórico e conceitual da cultura grega clássica: a Ksenía. Para além disso, e com muito mais propriedade e pertinência, dispomos de referenciais culturais para um acolhimento humanitário no âmbito da própria matriz cultural africana – origem das principais vítimas da xenofobia racializada –, como visto nas considerações acima: o Ubuntu. A consciência coletiva dos Direitos Humanos exige todos os esforços, especialmente da escola, para a dissolução do racismo estrutural que até aqui vem moldando a história brasileira.
O compromisso último da escola – do currículo – é com a dignidade humana, com a construção de uma convivência democrática e solidária – Ubuntu. Nesse sentido, propomos que essa discriminação, assim nomeada de xenofobia racializada, seja tomada como um desafio específico prioritário, entre os outros já postos e debatidos pela literatura sobre imigração, como pauta da Educação em Direitos Humanos, visando ao reconhecimento pleno dos direitos, à acolhida e à integração de todos e quaisquer imigrantes que cheguem como estudantes à escola.
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1
A pesquisa que originou este artigo foi devidamente submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade em cujo Programa se realizou.
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2
A traveller through a country would stop at a village and he didn’t have to ask for food or for water. Once he stops, the people give him food, entertain him.
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3
“Ubuntu . . . speaks to the very essence of being human. When you want to give high praise to someone we say: “Yu, u Nobuntu”; he or she has Ubuntu. This means that they are generous, hospitable, friendly, caring and compassionate. They share what they have. It also means that my humanity is caught up, is inextricably bound up, in theirs. We belong in a bundle of life. We say, “a person is a person through other people”. I am human because I belong, I participate, and I share”.
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4
“Ubuntu paradigm promotes the philosophy and practice for valuing humaneness toward others and humanism that conceptualizes and treats the world as a complex and interdependent ecosystem of humans, nature, and the planet”.
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5
Xenofobia associada ao racismo, conceito proposto por Faustino e Oliveira (2021).
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6
A Constituição de 1934, em seu art. 149, já estabelecia: “A educação é direito de todos e deve ser ministrada pela família e pelos poderes públicos, cumprindo a estes proporcioná-la a brasileiros e a estrangeiros domiciliados no País, de modo que possibilite eficientes fatores da vida moral e econômica da Nação, e desenvolver num espírito brasileiro a consciência da solidariedade humana” (grifos nossos).
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7
Vale enfatizar que, no texto da referida pesquisa de doutorado, foi utilizado o conceito xeno-racismo. No entanto, pesquisas posteriores, como a de Faustino e Oliveira (2021), problematizaram o conceito de xeno-racismo, argumentando que o termo é insuficiente, ao considerar as peculiaridades da origem da sociedade brasileira.
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Revisão textual:
Normalização bibliográfica (APA 7ª Ed.), preparação e revisão textual em português: Mayara Leite (Tikinet) revisao@tikinet.com.brVersão e revisão em língua inglesa: Roberto Cândido (Tikinet) traducao@tikinet.com.br
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Editado por
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Editores responsáveis:
Editora Associada: Chantal Victória Medaets https://orcid.org/0000-0002-7834-3834Editor Chefe: Antônio Carlos Rodrigues de Amorim https://orcid.org/0000-0002-0323-9207
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Nov 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
17 Abr 2023 -
Revisado
04 Jul 2024 -
Aceito
08 Ago 2024