Open-access Abuso sexual infantil em laudos psicológicos: as “duas psicologias”

Child sexual abuse in psychological reports: the "two psychologies"

Resumo

A psicologia é um dos campos e disciplinas que constituiu e molda a categoria “abuso sexual infantil”, tomada no artigo como tipo classificatório construído social e historicamente. O artigo busca analisar esta moldagem em uma prática psicológica, a avaliação realizada no Judiciário e expressa em laudos, a partir de uma pesquisa em processos em Varas de Família e Varas Criminais do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. São constatadas, no material pesquisado, duas posturas da psicologia forense, a das Varas de Família, que desloca a categoria com apoio no diagnóstico de alienação parental (ou a conserva, se este diagnóstico não é feito), e a das Varas Criminais, marcada pela exclusão da avaliação do homem acusado e pela ênfase no testemunho de vítimas e acusadores. O homem pode aparecer como um pai vitimado pela alienação parental ou um monstro moralmente desqualificado.

Palavras-chave: abuso sexual infantil; laudo psicológico; alienação parental; vitimização

Abstract

Psychology is one of the fields and disciplines that constitute and shape the category "child sexual abuse", considered in the article as a classificatory type socially and historically constructed. The article seeks to analyze this molding in a psychological practice, the assessment made in the court system and expressed in psychological reports, researched in a sample of legal proceedings of Family and Criminal Courts in the Court of Justice of the State of Rio de Janeiro (TJERJ) that contain the accusation of child sexual abuse. In our analysis of forensic psychology reports we found two standpoints, one prevalent in the Family jurisdiction, that modifies and reshapes the category based on the diagnosis of parental alienation (if the diagnosis of parental alienation is confirmed it contradicts the abuse accusation, the opposite being also true), and another prevalent in the Criminal jurisdictions, which excludes the accused man from its evaluation and emphasizes the testimony of victims and accusers. Man, thus, appears either as a victimized father by parental alienation or as a morally disqualified monster.

Keywords: child sex abuse; psychological expert reports; parental alienation; victimization

O filósofo Ian Hacking (1992, 1999, 2000, 2013) aponta o fenômeno amplo e explosivo que lançou, nos Estados Unidos e em outros países centrais, uma categoria médica, o abuso sexual infantil, ao centro de uma cruzada moral e de uma onda de acusações, revelações, legislações, classificações, ativismos, a partir da década de 1990. Criou-se, nesse processo, uma expertise que pautou, ampliou e legitimou definições, terapêuticas, políticas criminais e sociais, e até mesmo o pânico moral/sexual analisado por historiadores (JENKINS, 1998; YOUNG, 2004). O Brasil importou nomeações, alertas quantitativos e políticas dentro do mesmo vocabulário e retórica, num contexto de representações e legislação dos direitos das mulheres, de um lado, e das crianças e adolescentes, de outro, desenvolvidas naquela década e na seguinte.

Como acusação ou flagrante (real ou suposto), o abuso sexual infantil é, em geral, imediatamente criminalizado. O Judiciário é, assim, um dos campos da construção da categoria, seus correlatos “criança abusada” e “abusador” (em geral, homens) e seus efeitos penais, morais e de práticas terapêuticas. Considerado dentre os mais violentos e hediondos crimes, por reunir e atingir o que há de mais vulnerável e inviolável no ethos ocidental moderno, - a criança, o sexo e o livre arbítrio -, é também definido como crime de difícil prova, envolvendo o testemunho de crianças traumatizadas ou mesmo em idade pré-verbal, a mentira de homens monstruosos, o recôndito dos lares, a sedução chantagista, ameaçadora e clandestina, e mesmo a sexualidade adolescente ainda sob proibições. Estes são ingredientes de algo tido como difícil, porém clamando por culpados, numa visão penal fortemente influenciada, como veremos, pela expertise psiquiátrica e psicológica e por vertentes do establishment religioso (notadamente evangélico-pentecostal) e do feminismo, notadamente em sua vertente denominada radical.

A intenção deste artigo é expor alguns aspectos da história da categoria, ao lado de uma pesquisa empírica de sua utilização pela psicologia no Judiciário, em que foram analisados laudos de psicólogos1 forenses, privados e institucionais, nas áreas criminal e de família, em dois municípios no Estado do Rio de Janeiro2.

Pretendemos discutir o modo de construção e desconstrução da categoria abuso sexual da criança e sua relação com uma categoria de surgimento mais recente: a alienação parental. Nosso argumento é que essas duas categorias aparecem de forma articulada nos laudos examinados, uma levando à negação da outra, fazendo com que os rótulos de vítima e agressor/a circulem entre diferentes personagens do drama familiar, produzindo, nas diferentes varas pesquisadas, duas psicologias.

Aspectos da história da categoria: da crueldade à sexualidade

“Os maus-tratos físicos a crianças tornaram-se um problema reconhecido apenas no século passado. ‘Abuso infantil’ tornou-se um problema médico apenas nas últimas duas décadas” (CONRAD; SCHNEIDER, 1992, p. 161). Foi assim realizada uma passagem do que seria a crueldade de pais e cuidadores para a patologização do fenômeno.

A partir de uma visão histórica do mundo anglo-saxão, Hacking (1999) afirma que “crueldade com crianças foi uma das últimas cruzadas vitorianas, e veio depois do antiescravagismo, legislação fabril sobre trabalho infantil, movimento em relação ao controle do uso de bebidas alcoólicas, a extensão do voto, antivivissecção e crueldade com animais” (ibid., p. 134). A filantropia e um humanitarismo nascente geraram práticas e instituições voltadas à institucionalização e à disciplinarização da classe pobre, especificamente no controle higienista das famílias (DONZELOT, 1980; COSTA, 1979) e no combate dos “riscos” de uma delinquência juvenil futura. Referindo-se à França, Donzelot descreve:

Desde a década de 1840 até o final do século XIX, as leis que editam normas protetoras da infância se multiplicam: lei sobre o trabalho de menores (1840-41), lei sobre a insalubridade das moradias (1850), lei sobre o contrato de aprendizagem (1851), sobre a vigilância das nutrizes (1876), sobre a utilização das crianças pelos mercadores e feirantes (1874), sobre a obrigatoriedade escolar (1881), etc. Se quisermos compreender o alcance estratégico desse movimento de normalização da relação adulto-criança é preciso entender que o que essas medidas visavam era de natureza indissociavelmente sanitária e política, que elas procuravam, sem dúvida, corrigir a situação de abandono em que poderiam se encontrar as crianças das classes trabalhadoras, mas também, na mesma medida, reduzir a capacidade sociopolítica dessas camadas, rompendo os vínculos iniciáticos adultos-criança, a transmissão autárquica dos saberes práticos, a liberdade de movimento e de agitação que resulta do afrouxamento de antigas coerções comunitárias (DONZELOT, 1980, p. 75-76).

Há campos gerais de diferenças entre a “crueldade com crianças” vitoriana e o que chamamos agora “abuso infantil”, na análise de Hacking. Em primeiro lugar, a questão da classe social, pois antes se tratava dos pobres, sua negligência, sua violência.

Em segundo lugar, havia aversão à crueldade, mas esta não assustava, não era um risco, nem um mal radical, objeto de um tipo específico de conhecimento em que se basearia seu controle. Finalmente, apesar dos tribunais vitorianos terem muitos casos de ataques sexuais a crianças, estes não eram categorizados como crueldade (HACKING, 1999, p.135).No início do século XX, a saúde e a mortalidade infantil e a delinquência juvenil ocuparam o lugar dos movimentos anticrueldade, num processo liderado pelo surgimento e expansão das profissões e instituições de “social workers”, assistentes sociais, que se espalharam pelas ruas e tribunais (ibid., p. 135-136). Essa rede de definições e de gestão pública da infância e da adolescência, relacionada ao governo das famílias (DONZELOT, 1980), para além da filantropia, já estará ativa há décadas quando da explosão da categoria e será elemento ativo na cruzada contra o abuso infantil.

Foi a “síndrome da criança espancada”, descrita pelo pediatra-radiologista Henry Kempe e colaboradores, em 1962, nos EUA, o ponto de partida decisivo para a definição e legitimação do problema como médico e do comportamento como desviante (ibid.), assegurando a intervenção e a autonomia da medicina3. Os pais das crianças maltratadas eram, pela primeira vez, claramente implicados, e sua psicopatologia necessitava tratamento. Os médicos tinham descoberto o problema na clínica, mas foi através das legislações subsequentes que ele foi difundido e institucionalizado como uma forma de comportamento desviante punível. “Uma vez conceitualizada e descoberta na comunidade profissional médica, [a categoria] encontrou muitos defensores na sociedade mais ampla. A ‘criança espancada’ tornou-se preocupação nacional” (CONRAD; SCHNEIDER, 1992, p. 164). Abuso infantil foi, então, claramente definido como um problema social e médico nas décadas de 70 e 80 do século passado, ao longo das quais sua definição expandiu-se, passando a mencionar injúria física ou mental, abuso sexual, tratamento negligente ou maus-tratos, sendo a família e sua extensão (creches, escolas, outras instituições e microespaços sociais) o locus focal dessas definições. E o objetivo principal dos legisladores passa a ser “desvendar casos que só a habilidade médica pode detectar no curso de um exame médico e numa revisão da história médica” (PAULSEN apud CONRAD; SCHNEIDER, 1992, p. 166). Os médicos - tal como os psicólogos e assistentes sociais farão em relação ao abuso sexual - passam a atuar, então, como os “protetores” significativos das crianças, numa intervenção que permanece médico-clínica e numa definição do problema como individual. A partir daí, o aumento de notificações é exponencial e passa-se a falar de uma “epidemia” de abuso infantil. Ao mesmo tempo, são difundidas crenças, derivadas de um “conhecimento” sobre abuso infantil que se afirma, desde o início, como “parte do enquadre conceitual, analítico deste tipo de comportamento humano recentemente percebido” (HACKING, 1999, p.136), tal como a de que alguém abusado em criança será um pai abusador, definindo um dos pressupostos presentes e debatidos na literatura especializada, o “ciclo do abuso”. A causalidade da infância na formação do adulto (especialmente em seus transtornos e desvios do comportamento) já era crença difundida no século XX, ratificada, entre outras, pela teoria freudiana da determinação da vida psíquica. Portanto, os firmes apoiadores dessas crenças encontram solo fértil para suas convicções, mesmo sem evidências, mas gerando estatísticas que, para Hacking, são seletivas e legitimam as paixões.

Sendo o sexo até então periférico ou ausente, a remodelação da ideia de abuso infantil tem como momento decisivo o ano de 1971, quando foi tópico do discurso da líder feminista radical Florence Rush (ibid.)4, cuja conclusão afirmava que “o abuso sexual de crianças é um fator não falado mas proeminente na socialização e preparação das mulheres para aceitar um papel subordinado: para se sentirem culpadas, envergonhadas, e para tolerarem, pelo medo, o papel exercido sobre elas pelos homens” (DOANE; HODGES, 2001, p. 50)5. Nos EUA, na década seguinte à definição da síndrome de Kempe, a luta contra os maus-tratos a bebês e crianças soma-se à luta antiestupro do movimento feminista, “dando origem a uma nova agenda política em torno do ‘abuso sexual infantil’, que terá repercussões mundiais nos anos 1980” (LOWENKRON, 2012, p.60), e à sua medicalização imediata. O incesto, agora redefinido como qualquer aproximação pretensamente sexualizada entre crianças e seus parentes (principalmente pais e irmãos), ocupa a cena do risco maior, com grande apelo moral6. O abuso sexual de meninas por homens em suas famílias foi confirmado, em números confusos e discordantes, como muito mais frequente que o abuso de meninos em geral. A difusão e hegemonia da psicanálise, influenciando os discursos da psiquiatria e da psicologia do desenvolvimento, acarretavam o reconhecimento da sexualidade infantil, embora latente, “pré-genital”, e de suas manifestações (masturbação, curiosidade, fantasias expressas).

Essa presença em potencial justifica uma série de medidas, cujo intuito é impedir sua incitação. São exemplos disso a separação das crianças e adolescentes por faixas etárias e a evitação do contato direto com o corpo e a sexualidade adultas, mesmo em família - afastamento das crianças do quarto dos pais. A conjugação entre tais concepções de sexualidade infantil e de infância confere caráter de não voluntariedade e ingenuidade às “atividades sexuais” manifestas nessa fase da vida (KNAUTH, 2012).

Em relação aos adolescentes, essa visão do caráter da sexualidade torna-se insuficiente e problemática, inclusive devido à visão biologizante do desenvolvimento sexual, crescentemente hegemônica.

Mas “o incesto é um tabu incrivelmente poderoso. [...] Logo que o incesto e o abuso infantil se juntaram, o conceito de incesto foi radicalmente ampliado. Carícias e toques tornaram-se incesto, tanto quanto relação sexual” (HACKING, 1999, p. 140), na literatura do abuso sexual infantil. Abuso por irmãos também foi incluído na categoria, e o jogo sexual entre crianças, especialmente com diferença significativa de idade, foi crescentemente considerado um tipo de abuso infantil e, pois, de incesto.

Essas formulações, que ampliaram a categoria quase ao infinito, expressam o medo da desintegração de padrões tradicionais da família, as acusações de incesto confirmando o medo, que alimenta acusações. Outro ingrediente poderosamente mobilizante é a “perda da inocência infantil”, que abala um dos mitos do cristianismo vitoriano, resistente à formulação freudiana. Assim, as formas mais corriqueiras da sexualidade infantil, que já foram parte da socialização de muitas crianças (como “brincar de médico” ou outras formas de exploração corporal), passam a ser vistas por pais, professores e profissionais atuantes como abuso ou violência.

A expansão da categoria “abuso sexual infantil”, sua evolução no Brasil

“Esses tipos humanos - abuso infantil, criança abusada, abusador de criança7 - foram moldados e revistos nos Estados Unidos, e depois exportados” (HACKING, 1999, p. 148). A irradiação do conceito atingiu países de todo o mundo, através de “uma série de encontros e congressos internacionais, da multiplicação de centros de denúncia, da produção de leis específicas e da criação de agências especializadas” (LOWENKRON, 2012, p. 61).O Brasil foi um dos receptores precoces dessa irradiação, sediando, em 1988, o primeiro congresso em país do Terceiro Mundo da International Society for Prevention of Child Abuse and Neglect (ISPCAN), fundada em 1977, sob a presidência do mesmo Dr. Henry Kempe. A organização é norte-americana, mas tem como objetivo “dar suporte a indivíduos e organizações que trabalham na proteção de crianças de abuso e negligência no mundo todo”.

O termo “pedófilo”, por sua vez, descolou-se de sua acepção médica classificatória e passou a significar “perigoso, monstruoso”. E a denominada “pornografia infantil”, de fato a que utiliza imagens de crianças e pré-púberes, incluindo adolescentes, numa definição mais radical, uniu-se à categoria da pedofilia para localizar na internet o novo campo aberto, vasto e propício aos predadores sexuais de crianças e adolescentes, uma realidade que cria fantasmagorias onipresentes8, de um lado, e, de outro, mobiliza instituições e agências nacionais e internacionais em iniciativas legislativas e policiais de localização e punição de criminosos, numa “cruzada antipedofilia” (LOWENKRON, 2012) que remodela mais uma vez a categoria abuso sexual infantil. O controle familiar das crianças e adolescentes é ressaltado. As acusações de “pedofilia” (seduções e interações sexuais assim rotuladas, por se tratarem de menores de idade, em geral, meninos e rapazes) de padres da Igreja Católica, com relatos de várias vítimas em vários países, geraram mais uma expansão da categoria. Algumas celebridades (entre as quais o filósofo Gerard Lebrun e o escritor Arthur C. Clarke) também foram alvos de acusações, tidas como injuriosas, sempre conotadas com este rótulo.

A construção do abuso sexual infantil no Brasil tem também uma feição médica em seu momento inicial9, mas são os trabalhos sobre violência doméstica, produzidos por acadêmicas feministas no final da década de 1980, que marcam o início de uma literatura de expressão nacional, com a participação de assistentes sociais, advogados, psicólogos, médicos e pedagogos. “Inicialmente, este rótulo abrigava violências diversas praticadas contra mulheres e crianças: violência sexual, violência física, violência emocional e negligência” (MÉLLO, 2006, p.187). Os autores definem o problema, traçam sua identificação, ressaltando os danos físicos e psicológicos do abuso infantil e propõem diretivas para a estruturação de serviços específicos para as situações de abuso. Diferentemente do caráter individual da “síndrome da criança espancada”, o fenômeno é definido numa ótica sociopolítica que denuncia o poder familiar (“pequeno poder”, na expressão de AZEVEDO GUERRA; AZEVEDO, 1990) adultocêntrico e masculino. Este é definido pela articulista Heleieth Saffioti (socióloga e ativista do movimento feminista) como “macho, branco e rico”, sendo suas vítimas mulheres, negros, pobres e crianças (1989, apud MÉLLO, 2006, p. 189). Essas publicações, que se tornam referência na área, e várias que as sucederam, dos mesmos autores ou sob sua influência ou orientação, expõem a mescla por vezes heterogênea em que a categoria se expande no Brasil: feminismo, visão sociológica de feição marxista, defesa dos direitos das crianças e mulheres, discurso médico e psicológico sobre etiologias, consequências, prevenção e tratamento onde o individual ou familiar é preponderante, propostas políticas de criação de redes específicas de criminalização e atendimento. Nesse momento, tratava-se da concepção e formação de redes em que se imbricam: a inserção do Brasil, em várias frentes, em políticas globais (ONU e suas agências, fundos e programas, ONGs internacionais); políticas sexuais e identitárias (feminismo, proteção e direitos de crianças e adolescentes); políticas e práticas acadêmicas e profissionais (medicina, serviço social, psicologia, direito). Políticos e quadros públicos, acadêmicos, ativistas, operadores do direito, mídias criam e fomentam o movimento do abuso infantil, com conhecimento especializado, suas políticas, suas polêmicas, sua difusão no Estado e na sociedade civil. O campo amplo é o da “violência contra crianças e adolescentes”, sendo a “violência sexual” e o “abuso sexual infantil” subcampos sempre presentes e fortemente mobilizadores. A segunda metade da década de 1980 é marcada pela criação de serviços públicos de atendimento a crianças vítimas de violência física e sexual e organizações que visam ao atendimento e à pesquisa sobre o abuso infantil, que protagonizam um ativismo acadêmico de pesquisa e formação de profissionais ao longo das décadas de 1990 e 2000 (MÉLLO, 2006).

Pesquisa nacional coordenada pelo Centro de Referência para Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes - CECRIA10 (Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual no Brasil), concluída em 2002, deu a base para a criação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, em 2003-2004. A CPI da Pedofilia, criada em 2008, “trouxe para o centro dos debates políticos nacionais uma nova modalidade ou abordagem do fenômeno ‘pedofilia na internet’ e outros atores que não eram historicamente ligados aos movimentos sociais de defesa dos direitos de crianças e adolescentes, como o Senador Magno Malta, da bancada evangélica, presidente da CPI” (LOWENKRON, 2012, p.93), que qualificou a CPI como uma “cruzada antipedofilia”. Lowenkron qualifica esta “cruzada” como “baseada em uma moral religiosa da luta do bem contra o mal, marcada por uma estratégia criminal de combate e por uma compreensão medicalizada e estereotipada do criminoso” (ibid., p.98). Esse caráter diverge de objetivos expressos no discurso governamental oficial, de caráter liberal e derivado, como vimos, de várias fontes, em que a promoção de direitos, a proteção integral das vítimas, sob várias modalidades (terapêuticas. mas também de ações sociais nas áreas de educação e trabalho), o direito de tratamento aos agressores e mesmo o protagonismo infantojuvenil são elementos basais. No entanto, a CPI é louvada por seu ativismo e eficácia em relação ao aumento de rigor da lei e à expansão de sua abrangência, aspectos que são uma face do consenso em relação ao problema.

A imprensa repercute esse movimento, com destaque para o abuso sexual (LOWENKRON, 2012; LANDINI, 2003). Finalmente, a legislação penal sobre “crimes sexuais” é modificada em 2009 (lei 12.015, que alterou o Código Penal de 1940)11, redefinindo delitos, configurando novos crimes e agravando penalidades. A criação do tipo autônomo “estupro de vulnerável” passou a impedir a relativização da presunção de violência12 e a categoria “estupro” unificou o que estava legislado anteriormente em termos de gênero (quando só mulheres e meninas poderiam ser sujeitos passivos)13.

Vemos, então, que o problema ganhou visibilidade no Brasil num quadro político liberal e progressista, a princípio, como “violação de direitos humanos”, a partir da incorporação pela Constituição de 1988 da “doutrina de proteção integral” de crianças e adolescentes, agora concebidos como “sujeitos de direitos”, promovida pela ONU e consolidada no Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990. Mas o tema da violência sexual contra crianças aponta, na construção da categoria no Brasil, para fenômenos diversos, como a exploração sexual de crianças e adolescentes, a prostituição infantil, o turismo sexual, a pornografia infantil, a pedofilia na rede mundial de computadores e o abuso sexual. Na conclusão de Lowenkron (2012), o “abuso sexual infantil” é o campo que polariza a “maior sensibilização social” (ibid., p.65). Confirmando a hipótese de Lowenkron, consideramos que, cada vez mais, “abuso sexual infantil” é utilizado, no Brasil, como um termo “guarda-chuva”14, definidor de toda a ampla gama de situações mencionadas, que ele passa a abarcar crescentemente, na mídia, em áreas acadêmicas determinadas e nos documentos e notícias oficiais. O protagonismo e a monstruosidade individual do abusador, definido como “pedófilo”, numa acepção leiga, são crescentemente realçados. Assim, “o tema da ‘violência contra crianças’ passou a ser denominado e tratado enquanto ‘pedofilia’ no Brasil” (LOWENKRON, 2012, p. 5). Configura-se um processo de passagem de atos de indivíduos (ou agrupamentos localizados) que agem de formas diversas e singulares contra as leis ou normas morais para a definição de patologias, de essências ontológicas ou biológicas da sexualidade, sempre relacionadas ao “crime hediondo” latente, de forte apelo emocional e efeitos sociais amplos. Entre as várias categorias construídas nesse quadro, o pedófilo ocupa, na visão de Lowenkron (2012), o lugar de novo “monstro contemporâneo”. No Brasil e em outras sociedades onde o movimento de diversidade sexual vem se fortalecendo, em vários planos, apesar do conservadorismo moral e religioso presentes e até hegemônicos em diversas esferas, a pedofilia pode ter ocupado o “lugar de unanimidade” anteriormente ocupado pela homossexualidade como mal patológico a ser combatido, perseguido, penalizado e curado. Dessa forma, abuso sexual infantil e pedofilia são categorias que ora se confundem, ora se sobrepõem, ora podem ser usados alternativamente, podendo tornar-se objetos de usos e sentidos diferenciados, bem como de disputas entre atores sociais e políticos distintos.

Vitimização

As categorias de “vítima” e “trauma”, com suas origens e resultantes na dinâmica da medicalização através do “tipo” “transtorno de estresse pós-traumático” (TEPT), são importantes para a visão determinista da psicologia do abuso sexual. Alguns autores têm formulado o advento da vítima como “figura contemporânea reveladora de nossa época”, e até mesmo como “herói contemporâneo” (TRUCHON, 2007). O reconhecimento e a reparação, resultantes de ativismos de vários segmentos que representam opções políticas e morais, levam a uma concorrência entre as vítimas no plano jurídico, mas também no plano das ações estatais (cf. SARTI,2009; 2011; SARTI; BARBOSA; SUAREZ, 2006). Essa delimitação faz a violência sexual poder aparecer, na cultura ocidental individualizante, como a forma mais brutal e invasiva da violência, definindo vulnerabilidades e vítimas próprias, tornadas quase inerentes à noção - mulheres e crianças - por sua própria identidade e não pelos contextos e circunstâncias.

A moldagem e expansão do tipo abuso sexual geraram, na psicologia e no direito, categorias contrapostas, como a de falsas memórias, implantação de memórias e falsas alegações ou falsas acusações de abuso sexual (AMENDOLA, 2009; 2013). Lutas judiciais de homens acusados, de um lado, questões teóricas e clínicas da psicologia cognitiva da memória e o ativismo envolvido em ambos os movimentos colocaram em questão a aplicação da categoria original e seus efeitos. Amplas emoções estão também envolvidas, relacionadas a erros judiciários, injustiças, formação de identidades pautadas pela rememoração e cronificação de traumas e sofrimentos e procedimentos clínicos decorrentes. Nesse processo, as lutas judiciais no interior da família e novas formas de compreensão da paternidade foram terreno fértil para o surgimento da categoria de alienação parental, que, como veremos, busca inverter o trajeto das acusações e da vitimização, transformando o homem, mais precisamente o pai, em vítima. Correntes da psicologia jurídica apresentam críticas ao uso generalizado da categoria, pela possível estigmatização de crianças e mães como portadoras de distúrbio, com sua rotulação como “alienadas” e “alienadoras” (SOUSA; AMENDOLA, 2012, p. 112). Por outro lado, o ativismo de pais separados une-se ao da psicologia e de advogados e juristas na área de família para defender o pai vitimado, frequentemente objeto da acusação de abuso sexual,justificativa infalível de medida de seu afastamento total dos filhos.

A vitimização do pai é fundamento para a afirmação da acusação de abuso sexual como falsa, e o inverso é tomado como automaticamente verdadeiro: se não há pai vitimizado, porque a mãe não é “alienadora”, a acusação ganha em probabilidade de ser real, e as hipóteses da psicologia do abuso sexual ganham força. O diagnóstico da síndrome de alienação parental pode tornar-se, neste panorama, prova central da inocência do acusado. Sem ele, o pai pode retornar à condição de réu de crime hediondo.

A categoria de alienação parental formou-se e expandiu-se, na psiquiatria, no direito e na legislação: o homem, na maioria das vezes, o pai, torna-se, de fato, a vítima de falsas acusações, em geral, em meio ao litígio de separações conjugais e tentativas de seu afastamento do contato com os filhos. O psiquiatra e “ativista teórico” (em sua própria definição) norte-americano Richard Gardner definiu a síndrome da alienação parental (SAP) em 1985 e defendeu, sem sucesso, sua inclusão no DSM-IV15. Em sua definição, que criou as categorias “genitor alienador” e “genitor alienado” (pais ou mães), a SAP é “um distúrbio da infância que aparece quase exclusivamente no contexto de disputas de custódia de crianças. Sua manifestação preliminar é a campanha denegridora contra um dos genitores, uma campanha feita pela própria criança e que não tenha nenhuma justificação” (GARDNER, 2002). Por outro lado, “quando o abuso e/ou a negligência parentais verdadeiros estão presentes, a animosidade da criança pode ser justificada, e assim a explicação de Síndrome de Alienação Parental para a hostilidade da criança não é aplicável” (ibid.). Até este ponto a síndrome não está generificada, podendo haver mães e pais alienadores, mas a definição logo foi localizada, e assim tomada em várias áreas, como estreitamente relacionada à (falsa) acusação mais grave a ser feita a um pai, o abuso sexual. Dessa forma, surge o pai como vítima, cujo algoz é a mãe, ex-mulher, mas também o filho tomado pela alienação parental. A criança parece ganhar um estatuto ambíguo: parece vítima das artimanhas da mãe alienadora, portadora da SAP, mas a “introjeção” das acusações ao pai a torna agente da vitimização deste. A medicalização da criança funciona, até certo ponto, como atenuante, mas não a exime de culpa pelo desencadeamento e continuidade do processo. Encontramos, nos laudos psicológicos analisados, outras patologias culpabilizadoras associadas, como a “de Münchhausen” (forjamento de sintomas) e o “transtorno de mentira patológica”16.

A classificação psiquiátrica fundamenta uma classificação jurídica, tornada lei no Brasil em 2009. “Ato de alienação parental” foi definido na Lei nº 12.318, de 26/8/2009, como “a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este”. A lei enumera sete “formas exemplificativas de alienação parental”, entre as quais “apresentar falsa denúncia contra o genitor, contra familiares deste ou avós”. A configuração de ilícito civil (que aparece como “crime” em vários textos do ativismo da categoria) decorre da definição da lei de que sua prática fere vários direitos fundamentais da criança ou adolescente. A lei prevê sete medidas judiciais específicas, “sem prejuízo da decorrente responsabilidade civil ou criminal e da ampla utilização de instrumentos processuais aptos a inibir ou atenuar seus efeitos, segundo a gravidade do caso”.

A categoria alienação parental deve ser compreendida como o outro lado de uma nova categoria (constante de projeto de lei do Senado Federal17), a de “abandono afetivo”. Se a primeira refere-se à defesa de direitos (em geral) do pai - que tende a ser afastado dos filhos pela precedência tradicionalmente atribuída à mãe nos cuidados destes -, a segunda diz respeito a deveres dele em relação a esses cuidados. Embora a nova categoria não seja generificada, ela tende a ser aplicada ao genitor que não possui a guarda da criança, geralmente o pai18.

Laudos psicológicos e abuso sexual infantil

Nesta pesquisa, foram examinados laudos psicológicos em processos (com tramitação entre 2009 e 2014) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJERJ) que contêm ou são originados por acusações de abuso sexual infantil,em meio a outros documentos processuais a estes relacionados, em Varas de Família (VF) e Varas Criminais (VC)19. O escopo da análise20 foram nove processos de Varas de Família de dois Fóruns, um no município do Rio de Janeiro e outro em município do Grande Rio21, e 13 processos de Varas Criminais deste último Fórum e de municípios adjacentes22.

O objeto da análise foi o tipo classificatório “abuso sexual infantil” e a carreira moral da “criança abusada” e do “(homem) abusador” através dos laudos psicológicos23 e seus desdobramentos. Estes compreendem os laudos forenses, “oficiais”, de psicólogos do quadro do TJERJ, e laudos de outras autorias (de profissionais nomeados ad hoc pelo Tribunal, de instituições e de consultórios privados, estes conhecidos como “laudos particulares”), que nutrem os processos sob variadas óticas e finalidades. Os textos foram abordados como narrativas de expertises na construção de classificações que geram inúmeras consequências (jurídicas, morais, terapêuticas, pessoais e familiares), sem o interesse específico de perscrutar a construção de uma “verdade jurídica” no campo penal24.

Os processos em Varas de Família em que surge a acusação de abuso sexual são, em geral, processos de guarda ou visitação de filhos, muitas vezes de intenso litígio. É comum a acusação ser o fundamento de um pedido de “mudança de cláusula de visitação”, ou seja, a interrupção da convivência entre as “vítimas” e os “acusados”, na quase totalidade dos casos um pai ou padrasto. Constatamos como os laudos dos profissionais do quadro têm prevalência na evolução dos casos, embora um primeiro laudo (médico, da Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima - DCAV25, ou outro) que acompanhe a formulação da acusação seja determinante para a caracterização de um “estado de risco” que permeia os processos até sua solução, que pode durar meses ou anos. A categoria “abuso sexual” é, portanto, moldada e remoldada, a partir das acusações, ao longo de vários procedimentos e documentos, com idas e vindas, por um tempo extenso. Nas Varas Criminais, o laudo volta-se diretamente para a constatação ou não da veracidade da acusação, com possíveis consequências penais diretas, por configurar-se o laudo como uma prova técnica, em geral contundente26. Mas os encaminhamentos para atendimentos e psicoterapias também são preocupação constante, num mesmo movimento de classificação da “criança abusada”, como patologia, e controle das famílias.

Constatamos a existência de duas psicologias nos laudos oficiais do TJERJ, além de radicalizações denuncistas, retóricas exaltadas e diferenciações notáveis nos laudos institucionais e particulares, mesmo que a literatura mencionada (em poucos laudos, notadamente os oficiais) seja bastante homogênea (clássicos da psicologia do abuso sexual, do feminismo brasileiro no tema, da psicologia ou psicanálise do desenvolvimento infantil). A problemática enfrentada pode ser a mesma, mas o objetivo é outro e, assim, a psicologia é outra: no caso das VC, e de alguns laudos juntados aos processos de VF, muito mais inquisitorial27 e conclusiva, numa construção da categoria inerente e tentativamente sancionada pelo discurso psicológico; no caso das VF, a mudança para o contexto familiar-litigioso gera atenção maior à possibilidade das “falsas acusações” e da fundamentação de outra acusação, cível e também nosológica, a da “alienação parental”. A categoria abuso sexual infantil, derivadas e correlatas (pedofilia, violência) adquirem nuances, questionamentos e redefinições.

Um outro aspecto importante nesta diferenciação das práticas da psicologia, e de suas narrativas, é a exclusão, nas entrevistas e nas anamneses, do homem - monstro potencial e efetivo - nos laudos das VC28. Prática que transgride as regulamentações profissionais, que impõem que todas as pessoas envolvidas numa situação analisada sejam entrevistadas e consideradas, a psicologia presente nos laudos criminais que analisei tomava o homem acusado (pai, padrasto, vizinho, assaltante, colega), em geral, como ser não crível.

Nas VF, homens podem ter voz (mais ou menos creditada) e podem também ser vítimas. A suspeição sobre sua sexualidade e agressividade pode ser afastada, mesmo quando, como num dos casos, as queixas de uma filha de 13 anos em relação ao “pai tarado” referem-se às turbulências de sua família nuclear, em que seu pai é protagonista, e que incluem a vida amorosa (sexual) pública dele.

Num outro aspecto de invisibilidade, a observação de Lowenkron (2012, p. 12) da centralidade da ideia de “segredo” no campo cultural do abuso sexual estende-se às visões da psicologia, com efeitos múltiplos, relacionados ao caráter difícil e doloroso da “revelação” do segredo (pela vítima) e também ao caminho espinhoso, investigativo (dos psicólogos). A nebulosidade ontológica das situações faz dos laudos, de certa forma, peças heroicas, e ao mesmo tempo sanciona quer sua indefinição, quer suas conclusões baseadas em preceitos da “literatura” da expertise do abuso sexual, frequentemente preconcebidas, ou em hipóteses naturalizadas sobre o “tipo” ou morais sobre a essência (inocente, cruel, cínica, sincera) dos sujeitos. Nessa “invisibilidade” do abuso, o caráter subjetivo e de valoração moral e emocional dos laudos fica ressaltado, apesar dos esforços de fundamentação das psicólogas através da “doutrina” e da literatura, em busca de cientificidade. Tal como menciona Ferreira (2009), citando Foucault e Ginzburg, em relação ao olhar perscrutador e científico da Medicina Legal, o olhar clínico, o faro, o golpe de vista, a intuição são “elementos imponderáveis” de formas de saber cujas regras não se prestam a ser inteiramente formalizadas nem ditas. Elaborar laudos não é, então, apenas colocar em ação regras preexistentes, por mais que nos textos apareçam “técnicas”, “finalidades”, “limites”. “Entrevistas semiestruturadas”, “etapa de rapport”, “observação da interação”, entre outras abordagens e também descrições de cenas, como “não aguentou ficar junto com o pai”, “voltou e bateu na porta com a filha no colo”, demonstram que o imponderável está presente e busca interpretação.

Deslocamentos da categoria: da vitimização da criança à vitimização do pai

Nas VF, no entanto, a consideração pelo homem-pai torna-se obrigatória, sendo ele uma das “partes” - e não o réu penal -, e estando em primeiro plano explícito a questão da proteção às crianças e adolescentes e a garantia de seus direitos. É o “direito à convivência familiar”, ao afeto e ao desenvolvimento saudável, física e psicologicamente, que estão em questão. Surge, então, a vitimização, geralmente do pai, pela alienação parental. O familialismo da psicologia fica ressaltado. Outras dimensões da identidade e outros efeitos da acusação-categoria nos homens, mas também em outros envolvidos, aparecem bem menos: prejuízos profissionais, psíquicos, familiares, a injúria, a humilhação, o tempo na Justiça, possíveis danos à saúde física são apenas pano de fundo, não apontados na escrita psicológica. Mas, claro, o laudo que configura uma falsa acusação e afasta a hipótese de abuso sexual é um fator de reparação, mesmo que apenas moral e tardio, no âmbito judiciário.

De fato, na análise das famílias, a inserção da psicologia no tribunal é nitidamente diferenciada da psicologia dos laudos particulares e institucionais pela utilização da categoria legal da “alienação parental”. Essa categorização é uma forma de desconfiguração, ou reconfiguração, da categoria/acusação de abuso sexual infantil, mas pode também ser vista como outra modalidade de penalização e patologização, levadas a cabo com rigor pelas psicólogas forenses29. A correlação alienação parental-falsa acusação é tomada como determinante, nos dois sentidos: se a primeira não ocorre, a probabilidade do abuso existe. A ausência da categoria alienação parental e a parcialidade (não escuta dos acusados) são dois fatores que contribuem para que a quase totalidade dos laudos particulares e a maior parte dos institucionais sejam nitidamente diferenciados dos laudos das VF do TJ e, invariavelmente, confirmem a fala das supostas vítimas e dos adultos que acusam, moldando o tipo abuso sexual infantil na direção descrita por Ian Hacking, com a construção de vítimas e monstros.

Outras abordagens aparecem, na desconfiguração, ou deslocamento, do abuso: a masturbação normal na idade, suas causas e sintomas físicos e psíquicos; o esclarecimento da mãe do ato corporal atípico de um pai com todos os filhos (e não apenas com a filha de 12 anos que, embora considerado “inadequado para nossa cultura”, não corresponde ao “conceito técnico de abuso sexual”); a noção de intimidade normal entre pai e filhos. Indícios de “não abuso” são buscados (nas VC, geralmente não encontrados): “trama inventada”, “discurso estereotipado”, “motivação para falsa acusação”. Esta última aparece praticamente como sinônimo de alienação parental, em alguns dos laudos do TJ. Nas VC, diferentemente, “fortes indícios” são buscados e a veracidade da acusação é, em geral, confirmada. Surge aí a oposição moral implícita “abuso intrafamiliar”, em que a alienação parental deve ser pesquisada, e “abuso extrafamiliar”, configurado dentro da “epidemia de abusos sexuais” referida pela psicóloga na região da análise das VC.

Por outro lado, as circunstâncias sociais e culturais das relações de gênero, de geração, econômicas e de reprodução da família, no que tange ao cuidado dos filhos como objeto de disputa e poder, assim como as especificidades das dinâmicas afetivas dos “alienadores” existentes nesta disputa30, não estão consideradas nas análises e nas conclusões de todos os laudos.

Considerações finais

A psicologia aparece, no material pesquisado, como um dos agentes centrais na construção da categoria abuso sexual infantil, que surge naturalizada e pouco problematizada enquanto tal, seja na escrita das avaliações dos psicólogos, seja através de sua intervenção prática em encaminhamentos a psicoterapias variadas. Como todos os outros agentes e campos que compõem a moldagem do tipo, a psicologia é permeada por sua carga moral e política, histórica e politicamente localizada e desenvolvida. Os laudos são um desses campos, ou práticas, de expressão e de ação políticas de um saber ora diretamente disciplinar, ora tentativamente crítico ou relativizador da categoria e de sua certificação e difusão desenfreadas. Nas duas direções, há o clamor da punição do crime, da eliminação do criminoso da vida social e da vida das vítimas ou do afastamento do agente do ilícito. Além disso, os psicólogos militam na correção de ilícitos (alienação parental) e desvios (negligência, mentira, transtornos mentais), em nome da proteção e garantia de direitos das crianças e adolescentes legislados pelo ECA. A “salvação” proposta para crianças e adolescentes tomados como vítimas (de abuso sexual, de patologias relacionadas à acusação, de alienação parental, de “resistência ao pai”, de conflitos familiares) e suas famílias são, de modo geral, tratamentos psicológicos de várias modalidades, para todos, e avaliações psiquiátricas, numa crença naturalizada na psicologização generalizada e radical da vida pessoal e social. Crença fundamentada, possivelmente, na afirmação de que esta seria a função da psicologia, a de “psicologizar”. Além disso, a retomada da convivência com o pai ou a inversão da guarda alienadora, em geral, materna, a partir de decisões judiciais, são os remédios da alienação parental. A psicologia acompanha também a convivência controlada, sob sua supervisão no fórum ou em sugestões de limites e condições consideradas mais propícias à “cautela” expressa pelos juízes. Outras propostas são raras, como a de mudanças na “vida escolar e sociabilidade” de uma criança pequena (com síndrome neurológica) e “não haver terapia individual [de um menino de seis anos suposta vítima do pai], para ele poder se sentir menos adoecido”, encontradas em laudos particulares. No mesmo sentido, excepcional, neste mesmo caso, relatório psicossocial (de uma instituição) que não confirmara uma acusação de abuso propugna que as crianças (a “vítima” e um irmão menor) e o irmão pré-adolescente sejam inseridos em “atividades desportivas e lúdicas no intuito de auxiliar em seu desenvolvimento global, da mesma forma que tais propostas possam ser utilizadas para dirimir os conflitos familiares existentes”. Mas esse tipo de proposta é marginal nos laudos examinados.

As “duas psicologias” que encontramos em nossa pesquisa correspondem grosso modo aos diferentes tipos de problemas tratados pelas varas pesquisadas. Os laudos encontrados nos processos das Varas Criminais (VC) trazem à tona uma espécie de “psicologia do abuso”, em que a figura do “monstro abusador” - normalmente um homem da própria família, pai ou padrasto- não é passível de relativização. A acusação é tomada por seu valor de face, e a vitimização da criança e/ou adolescente, confirmada. Os laudos das Varas de Família (VF) constroem outra psicologia, mais nuançada, em que a vitimização do homem (pai) como alvo de uma falsa acusação pode transformar as vítimas tradicionais (mulher/mãe, criança) em algozes. As duas psicologias, como discutiremos mais abaixo, certamente se articulam ao contexto socioeconômico em que surgem as acusações. Podemos imaginar também que o contexto socioconômico implica diferenciações na própria dinâmica familiar, reafirmando ou reequilibrando os diferentes poderes em jogo entre pai e mãe (e respectivas famílias). Dependendo dos rearranjos aí implicados, a figura da vítima circula entre diferentes personagens.

Tanto para uma quanto para a outra psicologia, a assunção da ótica e da retórica do Direito pelos psicólogos, quando ocorre, implica necessariamente a busca de dizer “o que deve ou deveria ser”, dentro da normatividade absoluta no âmbito da lei. A descrição do que “é” faz-se muito frequentemente diante da norma, e não da subjetividade, da relativização, da variabilidade, da singularidade por si. Mas a norma se coloca também nas indicações e encaminhamentos quase peremptórios de tratamento ou “acompanhamento” psicológico para crianças, pais e família. A expectativa é de que os sujeitos se modifiquem em psicoterapias, superem seus rancores e disputas, ou seus traumas, e aí se tornem passíveis de cumprir acordos e decisões judiciais. Nas VF, esses dois aspectos se unem: superação pelas crianças e adolescentes e pelos pais. Não sem antes, em alguns casos, apontar o ilícito da “alienação parental”, que exige medidas punitivas ao alienador e potencialmente, de fato, também aos filhos envolvidos, em nome de uma norma supostamente melhor. Na VC, a psicologia que examinamos é predominantemente inquisitória, de forma parcial31, pois não inquire o acusado, utilizando justificativa psicológica que se cola ao senso comum (ele mentiria necessariamente, por sua patologia, não apenas para fugir à incriminação). É sobretudo a vítima mas também “seus familiares” que podem “revelar” o crime, não podendo ser os sujeitos acusados avaliados. Trata-se de uma patologia que anula, nesta visão, os atributos da linguagem e da subjetividade, pois é da ordem da monstruosidade ou da ausência de civilidade ou mesmo cidadania. Decorre daí seu caráter punitivo, de um lado, ao moldar a categoria de “abusador”. Por outro lado, o psicólogo reafirma a carreira moral da “criança abusada” em seu diagnóstico de sintomas e seus encaminhamentos forçosos, principalmente nas classes populares, à “rede de proteção e atendimento”, numa ação autônoma e adicional que atrela a criança ou adolescente a um crime, transformado em trauma necessário32.

As “duas psicologias” parecem corresponder a contextos sociais distintos (pequena classe média versus classes populares), o que pode sugerir que acusações de abuso sexual contra crianças e adolescentes não prosperam enquanto tal nas camadas médias - a não ser quando parte de um processo maior de disputa intrafamiliar, ou mais precisamente de litígio intenso no núcleo conjugal. Nas classes populares, a família extensa, a vizinhança, a igreja, a mídia são fatores atuantes no estabelecimento da acusação, por serem parte essencial da dinâmica social em que os sujeitos vivem e constroem suas narrativas e emoções. A psicologia que analisamos não dirige sua atenção, em seu texto narrativo e em suas conclusões e diretivas, para esse campo. A diferença entre o homem abusador e o homem vítima de alienação parental, o primeiro monstruoso e o segundo, sujeito de direitos, também seguiria essa distância entre distintos contextos econômicos e socioculturais. Mas os laudos produzidos pelas psicólogas, apesar de conterem descrições de cenas e diálogos, na maior parte das vezes apresentam tais cenas e diálogos como eventos suspensos no tempo e no espaço, sem qualquer ancoragem num modo de vida específico, na situação concreta em que se desenrolaram. Os personagens não são nem brancos nem negros, pobres ou ricos. A depuração das características sociais e econômicas da situação parece ser necessária para que a psicologia psicologize e reforce concepções naturalizadas, de um lado, sobre o abuso sexual infantil, e de outro, sobre seu reverso, a alienação parental. Como os dois lados de uma moeda cujo valor é sustentado por fortes asserções morais acerca do modo de organizar emoções, afetos e comportamentos no interior da família33.

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Notas

  • 1
    Utilizamos aqui o masculino, na referência à classe profissional. Em outros momentos, referimo-nos a “psicólogas”, por ser o gênero feminino fortemente preponderante na profissão (para análises desse fenômeno, ver Castro e Yamamoto, 1998, e Conselho Federal de Psicologia (2013)) e na grande maioria da amostra de laudos (OLIVEIRA, 2015).
  • 2
    Trata-se da pesquisa de mestrado de uma das autoras (OLIVEIRA, 2015). A pesquisa em processos do TJERJ requereu concessão de autorização pela presidência do Tribunal e pelos juízes titulares responsáveis por cada um dos 24 processos pesquisados, assim como contou com a colaboração de psicólogas do TJERJ, a quem mais uma vez agradecemos.
  • 3
    Esses autores tecem hipóteses sobre as barreiras anteriores que impediam os médicos de reconhecer os danos como abuso infantil, e porque e como a radiologia pôde ter esse papel (CONRAD; SCHNEIDER, 1992, p. 163ss.).
  • 4
    Na New York Radical Feminist Conference (17/4/1971). O “feminismo radical” é uma perspectiva surgida e institucionalizada na segunda onda feminista dos anos 1960 (nos EUA, em seguida Inglaterra e Austrália), focada, inicialmente, na hipótese do patriarcado como sistema primário, trans-histórico de poder, que organiza a sociedade num complexo de relações baseadas na supremacia masculina opressora das mulheres. A sexualidade masculina é vista como inerentemente opressora das mulheres, porque visa à dominação, sendo o estupro o ponto máximo de uma série que embasa essa opressão. Mulheres e crianças são, assim, vítimas da dominação masculina, em todos os aspectos.
  • 5
    Florence Rush foi uma “feminista radical”, ativista e ensaísta nas décadas de 1970 e 1980 no tema do abuso sexual infantil, assim como nos da pornografia e erotização infantis e do estupro. Seu discurso mencionado é um paper centrado na crítica a Freud pelo abandono da teoria da sedução infantil, o qual, segundo ela, retirou as crianças do papel de vítimas reais da agressão sexual masculina.
  • 6
    Hacking (1999) localiza a conexão pública difundida entre abuso infantil e incesto em maio de 1977, quando a reportagem central da revista norte-americana de circulação nacional Ms. foi Incesto: o Abuso Infantil Começa em Casa.
  • 7
    Embora a palavra “abuso”, em português, tenha também o significado de “uso indevido ou excessivo”, sua utilização como conceito científico vem, sem dúvida, de uma tradução literal, direta e sem mediação do “abuse” da categoria importada. Felipe (2006) põe em questão a expressão “abuso sexual infantil”, por julgar que ela implica a admissão de um “uso sexual” aceitável.
  • 8
    A eleição do risco mais recente em relação à pedofilia na internet, com alertas propagados e analisados pela mídia, é a da publicação por mães e pais de fotos de seus filhos nas redes sociais. Um episódio extremo é exemplar do embate entre a retórica (neste caso agressiva) do medo e do pânico moral e sua crítica, calcada na valoração do bom senso e das liberdades individuais: em 2014, o fotógrafo norte-americano Wyatt Neumann virou alvo de xingamentos e ameaças na internet após a publicação de fotos que tirou de sua filha de 3 anos durante uma roadtrip, entre paisagens de campos e estradas, sendo que em alguns registros ela está, contextualmente, com pouca roupa ou despida.
  • 9
    Maus-tratos e espancamento (abuso como crueldade física) são objeto da literatura médica (de pediatria) nacional também nesse período (MÉLLO, 2006, p.183-185).
  • 10
    Sediado em Brasília e onde a assistente social Eva S. Faleiros destacou-se como pesquisadora e ativista, referência no tema da violência contra crianças e especificamente no movimento do abuso sexual infantil.
  • 11
    Ver Tabelas I a III, em Lowenkron, 2012, p. 365-368, para detalhamento das modificações legais.
  • 12
    Lowenkron (2007) analisa uma polêmica jurídica, a partir de um processo judicial envolvendo uma adolescente, que põe em questão a noção genérica e a legislação do “consentimento” no quadro legal anterior.
  • 13
    Anteriormente, a categoria diferenciada “atentado violento ao pudor” (redefinida em 2009 como “estupro”), referente a “atos libidinosos diversos da conjunção carnal”, é que poderia incluir o gênero masculino.
  • 14
    Lowenkron utiliza esta expressão em relação à categoria “pedofilia” tal como aparece na CPI analisada em sua etnografia - como “um conjunto de crimes sexuais contra crianças e adolescentes, em especial aqueles relacionados à disseminação de imagens de ‘pornografia infantil’ na rede mundial de computadores” (2012, p. 97).
  • 15
    O próprio Gardner apontou a história de longo prazo das categorias já incluídas no DSM como justificando a necessidade de mais pesquisas sobre suas formulações. Mesmo assim, publicou em 1992 um Manual para a utilização da SAP por profissionais de saúde mental e operadores de Direito, com revisões posteriores. Sua “síndrome” recebeu críticas da psicologia, da psiquiatria e de terapeutas nos EUA, assim como de juristas e operadores de Direito que põem em questão, ou mesmo entre os quevalorizam, o conceito de alienação parental. Uma das críticas no campo do Direito, por exemplo, é que as categorias e análises utilizadas lidam com uma retórica da emoção. A síndrome foi explorada, posteriormente, por outros psiquiatras, seguidores de Gardner, e também não admitida pela APA no DSM-5. No Brasil, a controvérsia sobre a formulação e a aplicação das categorias legais e sobre apsiquiátrica é vigente, na teoria e na prática jurídicas e na psicologia jurídica. Ver, por exemplo, nesta última, Sousa e Amendola (2012).
  • 16
    A “síndrome de Münchhausen” é uma condição concebida em 1950 pelo médico clínico Richard Asher para indivíduos que fabricavam histórias, sinais e sintomas de doenças. A partir de formulação de 1977 (em que a expressão “by proxy” ou por procuração é acrescentada), passou a ser categoria utilizada em conflitos familiares. A mãe aparece como indutora da síndrome no/a filho/a, o que passa a ser tomado como forma de abuso infantil. O diagnóstico, assim, tem conotação negativa e de simulação imposta. O “transtorno de mentira patológica” é objeto de dissenções na literatura psiquiátrica, já que a “mentira compulsiva” que o caracteriza ora é considerada uma patologia, ora um sintoma de outros transtornos.
  • 17
    O projeto de lei 700 do Senado Federal de 2007, de autoria do senador Marcelo Crivella, propõe alteração na Lei 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), tendo sido aprovado em outubro de 2015 e estando no momento na Câmara dos Deputados para apreciação. A proposta original propunha a criminalização do “abandono moral”, mas em sua versão final o abandono moral foi substituído por “abandono afetivo”.
  • 18
    Essas categorias - alienação parental e abandono afetivo - indicam transformações na compreensão da dinâmica da família nuclear, colocando em cena os direitos dos pais em contraposição à visão da ligação mãe-filho como naturalmente benéfica e levantando questões que dizem respeito às relações de gênero, as quais não poderão ser aprofundadas neste trabalho.
  • 19
    Nestas últimas, apenas laudos forenses.
  • 20
    Restrita, na dissertação, aos processos em que houve autorização dos juízes, universo menor que os laudos obtidos e consultados por deferência dos psicólogos.
  • 21
    De realidade mais rural e Índice de Desenvolvimento Humano (ONU) abaixo do 1500º lugar entre os municípios do país.
  • 22
    Diferentemente das Varas de Família, em que puderam ser pesquisados laudos de várias psicólogas, os laudos em processos das Varas Criminais são de autoria de uma mesma psicóloga do quadro do TJERJ, que atua em cerca de sete Varas Criminais de uma extensa região geográfica. Isso, a nosso ver, torna sua ótica representativa de pelo menos uma vertente do “espaço social do laudo” (OLIVEIRA, 2015, Cap. III.1) e das práticas da psicologia no Judiciário.
  • 23
    Para uma exposição sobre a genealogia foucaultiana dos laudos, sobre as definições regulatórias destes e sobre questões éticas envolvidas, ver OLIVEIRA (2015), Capítulo III. Ver, também, CFP (2003), CFP/CREPOP (2009), AMENDOLA (2012), BARROS (1997).
  • 24
    Para uma pesquisa empírica com este objetivo, ver Meyer (2008). No entanto, em sua pesquisa, não é explorada a relação entre os laudos psicológicos, incriminadores ou não dos acusados, e as sentenças judiciais da amostra da autora (de nove processos criminais por ela analisados, há cinco absolvições - 55% -, uma suspensão do processo e três ainda em andamento na ocasião). As outras provas, ou mesmo apenas aspectos parciais dos laudos, podem sobrepujar, então, ou mesmo eliminar as conclusões dos laudos na justiça criminal.
  • 25
    A DCAV, além de sua atuação policial específica, mantém em seu quadro um Serviço Voluntário de Psicologia, iniciado por policial de carreira que se graduou em Psicologia e que se dedica especificamente a elaborar laudos em acusações de abuso sexual infantil. Alguns processos éticos no Conselho Regional de Psicologia geraram a cassação do registro profissional deste policial, em 2015, decisão ainda a ser referendada pelo CFP naquela data, e censura pública a outro psicólogo atuante na DCAV.
  • 26
    Mas o processo penal inclui provas técnicas de teor narrativo (oitivas, depoimentos dos réus, vítimas, testemunhas de defesa e acusação, em delegacias e em juízo), e de outros teores (inclusive com importância de outros tipos de laudos, notadamente os da medicina legal e psiquiatria) muito mais numerosas que o processo em VF, o que pode relativizar ou restringir o papel do laudo psicológico forense da VC.
  • 27
    Seguindo a conceituação de Foucault (2003), os laudos de VC contêm, como todos os outros exames, o panoptismo da sociedade disciplinar (controle e vigilância dos corpos e mentes), mas remetem, sobretudo, à forma (anterior) de saber-poder que repousa no inquérito - “isto foi feito? quem o fez?... se ordena em termos de presença ou ausência...” (FOUCAULT, 2003, p.88) -, e não, como no panoptismo, à norma. Eles reúnem, assim, “as grandes ciências de observação” (inquérito) às chamadas “ciências humanas” (psiquiatria, psicologia, sociologia).
  • 28
    Exclusão também encontrada nos laudos particulares (de psicoterapeutas e psicanalistas) em VF, quando anexados por uma das partes, em geral, as mães guardiãs.
  • 29
    Coincidente ou enigmaticamente, o diagnóstico da síndrome é sempre “de grau médio” nos casos analisados da psicóloga que utiliza explicitamente os parâmetros do psiquiatra Gardner.
  • 30
    Para uma análise etnográfica (numa favela de Niterói, RJ) dos conflitos - muitos litigiosos - e papéis parentais e da rede social de ajuda a partir do prisma do cuidado da criança, ver Fernandes (2011).
  • 31
    Parcial porque contradiz as normas jurídicas da presunção de inocência e direito de ampla defesa - que inclui a escuta pelo psicólogo - e as regulamentações profissionais oriundas, também, da teoria e das técnicas psicológicas. Segundo estas - de forma universal -, avaliar uma criança (no caso, seu discurso e seus sintomas) implica necessariamente entrevistar ambos os pais e, se for o caso, outros adultos cuidadores.
  • 32
    Uma das psicólogas entrevistadas na pesquisa relatou sua restrição a este tipo de encaminhamento, com a visão dos efeitos estigmatizantes da inserção de crianças e adolescentes, como pacientes, nesta “rede de proteção”.
  • 33
    D.C.C. de Oliveira realizou pesquisa teórica, pesquisa de campo, análise dos dados e redação do artigo. J.A. Russo foi responsável pela pesquisa teórica, análise dos dados e redação do artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2016
  • Aceito
    30 Maio 2017
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