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Assistência farmacêutica no cuidado à saúde na Atenção Primária: tão perto, tão longe

Pharmaceutical care in Primary Health care: so close, so far

Resumo

A expansão da Atenção Primária à Saúde (APS) exigiu mudanças na Assistência Farmacêutica, de maneira a aumentar a cobertura da distribuição gratuita de medicamentos e reforçando a necessidade do uso racional de medicamentos. O objetivo deste trabalho foi estudar a Assistência Farmacêutica na produção do cuidado na APS, contribuindo para o entendimento do uso racional de medicamentos.

Método:

Optou-se por analisar o material de uma investigação de natureza etnográfica, realizada no ano de 2014 em sete Unidades Básicas de Saúde. Além disso, realizou-se um seminário com atores institucionais das Unidades estudadas, de forma a aumentar a lateralidade dos resultados.

Resultados:

Foi possível identificar cenas e falas, que se conectavam e davam visibilidades a elementos micropolíticos relacionados ao uso de medicamentos, a autonomia profissional − o papel do médico na prescrição dos medicamentos e o usuário prescritor do seu cuidado.

Conclusão:

O que acontece depois que o usuário deixa a Unidade com seus medicamentos retirados na farmácia parece ainda ficar oculto aos olhos dos profissionais de saúde. O estudo produz indicações de algumas falhas na atuação da Assistência Farmacêutica e mostra o quanto estamos distantes de uma gestão do cuidado que inclua o uso racional de medicamentos em suas múltiplas racionalidades.

Palavras-chave:
Assistência Farmacêutica; uso racional de medicamentos; política nacional de assistência farmacêutica

Abstract

The expansion of Primary Health Care required changes in Pharmaceutical Care, in order to increase the coverage of the free distribution of medicines and reinforcing the need for the rational use of medicines. This work aimed to study Pharmaceutical Care in the production of care in Primary Health Care, contributing to the understanding of rational use of medicines.

Method:

We chose to analyze the material of an ethnographic investigation, carried out in 2014 in seven Basic Health Units. In addition, a seminar was held with institutional actors from the Units studied, in order to increase the laterality of the results.

Results:

It was possible to identify scenes and speeches, which connected and gave visibility to micropolitical elements related to the use of medicines, professional autonomy - the role of the physician in the prescription of medicines and the user who prescribes their care.

Conclusion:

What happens after the user leaves the UBS with his medicines taken at the pharmacy still seems to be hidden from the eyes of health professionals. The study produces indications of some flaws in the performance of Pharmaceutical Care and shows how far we are from a care management that includes the rational use of medicines in its multiple rationalities.

Keywords:
Pharmaceutical Care; rational use of medications; national pharmaceutical care policy

Introdução

A Atenção Primária à Saúde (APS) possui um papel de protagonismo essencial, pois é a aposta central para garantir acesso universal ao Sistema Único de Saúde (SUS). Constitui uma das principais estratégias de atenção às necessidades e expectativas de saúde das pessoas em relação a um conjunto amplo de vulnerabilidades, de riscos e de doenças, assim como de prevenção e de promoção de comportamentos e estilos de vida saudáveis (CECÍLIO; REIS, 2018).

A Política Nacional de Atenção Básica (2017) adota a Estratégia Saúde da Família (ESF) como eixo estruturante da APS. É possível perceber um aumento significativo da cobertura por equipes de saúde da família em dez anos, no período compreendido entre dezembro de 2007 e dezembro de 2016, de 46,2% da população para 63,7%, totalizando 40.098 equipes em todo o território nacional. Mais de 123,5 milhões de brasileiros passaram a contar com ESF. A distribuição de medicamentos é parte integrante do SUS, cabendo, no caso brasileiro, à APS não só a prescrição, mas também a dispensação dos medicamentos essenciais (OLIVEIRA; ASSIS; BARDONI, 2010OLIVEIRA, L. C. D.; ASSIS, M. M. A.; BARBONI, A. R. Assistência farmacêutica no Sistema Único de Saúde: da política nacional de medicamentos à atenção básica à saúde. Ciência & Saúde Coletiva, v. 15, n. 3, p. 3561-3567, 2010.).

Segundo Cecílio, Carapinheiro e Andreazza (2014), em investigação sobre o papel da APS na constituição das redes de saúde, o fornecimento de medicamentos, seja pela dispensação direta na farmácia, seja pela obtenção de receitas do médico, parece ser o valor de uso mais imediatamente visível da rede [de APS] para os usuários.

A expansão e a centralidade da APS no sistema de saúde brasileiro exigiram mudanças na AF de maneira a ampliar e garantir o acesso aos medicamentos e reforçando a necessidade do uso racional, como elemento de qualificação do cuidado (ARAUJO et al., 2008ARAUJO, A. L. A. et al. Perfil da assistência farmacêutica na atenção primária do Sistema Único de Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, v. 13, p. 611-617, 2008.; OLIVEIRA; ASSIS; BARBONI, 2010OLIVEIRA, L. C. D.; ASSIS, M. M. A.; BARBONI, A. R. Assistência farmacêutica no Sistema Único de Saúde: da política nacional de medicamentos à atenção básica à saúde. Ciência & Saúde Coletiva, v. 15, n. 3, p. 3561-3567, 2010.). A Política Nacional de Medicamentos - PNM (BRASIL, 1998) define o uso racional de medicamentos como o “processo que compreende a prescrição apropriada; a disponibilidade oportuna a preços acessíveis; a dispensação em condições adequadas e o consumo nas doses indicadas, nos intervalos definidos e no período de tempo indicado de medicamentos eficazes, seguros e de qualidade”. Tal definição traz, portanto, para a discussão uma complexa cadeia de fatores e de ações que irão interagir reciprocamente, às vezes de forma previsíveis, outras nem tanto, para que de fato os medicamentos possam ser utilizados de maneira adequada.

Em 2004, a aprovação da Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF) visava à superação do entendimento da AF, com foco no medicamento, de forma a também enfatizar o cuidado com as pessoas, apresentando variações na forma de atuação e contribuição da AF no contexto de saúde (OLIVEIRA; ASSIS; BARBONI, 2010OLIVEIRA, L. C. D.; ASSIS, M. M. A.; BARBONI, A. R. Assistência farmacêutica no Sistema Único de Saúde: da política nacional de medicamentos à atenção básica à saúde. Ciência & Saúde Coletiva, v. 15, n. 3, p. 3561-3567, 2010.). O objetivo deste trabalho é estudar a AF na produção do cuidado na APS, visando contribuir para o entendimento do uso racional dos medicamentos.

Percurso Metodológico

Pesquisa matriz

Este artigo tem origem numa investigação maior, de caráter qualitativo, denominada “A Atenção Primária à Saúde como estratégia para (re)configuração das Políticas Nacionais de Saúde: a perspectiva de seus profissionais e usuários”, financiada pela Fapesp-PPSUS, que teve como objetivo produzir um conhecimento empírico mais aprofundado sobre a APS a partir dos atores − gestores, profissionais de saúde e usuários − que fazem acontecer, ou não, o cuidado em saúde nas UBS. Foi conduzida de 2014 a 2017 em sete UBS, de três municípios do Estado de São Paulo, Brasil (Tabela 1).

Trata-se de estudo etnográfico, com elementos do Método da Cartografia (BARROS e KASTRUP, 2009BARROS, L. P.; KASTRUP, V. Cartografar é acompanhar processos. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina; 2009.). Sete pesquisadores de campo - os cartógrafos − observaram e interagiram com as equipes de saúde, de oito a doze meses em cada uma das UBS, produzindo diários de campo, onde registravam as experiências vivenciadas e acontecimentos do cotidiano, comentários e sentimentos. Estes relatos de cenas do cotidiano das UBS podem ser vistos como fragmentos de situações vivenciadas pelas equipes em seu trabalho, em diferentes situações.

Tabela 1
Características das UBS estudadas

As cenas sobre a assistência farmacêutica na APS

Em uma primeira aproximação ao material empírico, recortaram-se dos sete diários de campo cenas da prática das equipes e dos usuários em relação ao uso de medicamentos. Utilizaram-se as seguintes palavras-chave: farmácia, farmacêutico(a), medicação, medicamento, remédio, receita e prescrição. Essas “cenas” nada mais são do que situações que foram colhidas pelos pesquisadores em campo durante a cartografia. A observação do cotidiano evidenciou o medicamento como insumo essencial das ações de saúde e permitiu um novo olhar sobre a realidade dos serviços farmacêuticos na APS.

O conjunto de cenas foi analisado a partir do referencial da análise institucional, de conceitos da socioanálise de Lourau (1993LOURAU, R. René Lourau na Uerj-1993: análise institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: UERJ. 1993.). As conexões de cenas, ou seja, de situações vivenciadas no cotidiano, produziram planos de visibilidade relacionados à AF. Emergiam assim mapas tal qual conceituados por Deleuze e Guatari (2011DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011.), o que possibilita várias entradas e saídas e não se espera um decalque da realidade, uma representação dela, mas uma produção cotidiana dos trabalhadores, gestores e usuários.

Seminário compartilhado: aumento da lateralidade

Em um segundo momento, foi realizado um seminário compartilhado com os pesquisadores responsáveis da pesquisa matriz, junto aos atores institucionais das UBS do município de São Paulo - Coordenadoria Regional de Saúde Sudeste, para apresentar o material até então coletado. Na tabela 2 estão descritos os profissionais que participaram.

Esta estratégia metodológica tem sido utilizada pelo grupo de pesquisa, responsável pela execução dessa investigação; ela abre a possibilidade de aumentar o diálogo com os atores institucionais, pesquisados ou não, gestores e trabalhadores. Para alguns autores do movimento institucionalista (GUIZARDI; LOPES; CUNHA, 2011GUIZARDI, F. L.; LOPES, M. R.; CUNHA, M. L. S. Contribuições do movimento institucionalista para o estudo de políticas públicas de saúde. In: MATTOS, R. A.; BAPTISTA, T. W. (Org.). Caminhos para análise das políticas de saúde. Rio de Janeiro: ENSP/IMS/FAPERJ, 2011. p. 319-346.), a ampliação da análise com os atores em campo e no campo permite um aumento da lateralidade. Trata-se assim de uma política de narratividade, na qual não é o pesquisador apenas que “fala” ou “conhece” o seu objeto de pesquisa a partir da observação. Ao aumentar a polifonia, os “pesquisados” também assumem o papel de pesquisadores, diminuindo a dicotomia sujeito-objeto.

Tabela 2
Caracterização dos participantes do seminário compartilhado

Nesse encontro, realizou-se um convite para que atores institucionais olhassem as suas UBS a partir do relato e da apresentação em DataShow de 12 cenas, como analisadores dos elementos da AF, do uso dos medicamentos e da incorporação dos mesmos ao repertório clínico das equipes. Após a leitura das cenas, abriu-se uma discussão sobre o material. Tal dinâmica provocou novas reflexões sobre elas, e novas questões emergiram pelos participantes, que dispunham de todas as cenas nas paredes através de cartazes fixados. Dito de outra maneira, aumentou-se a lateralidade dos achados.

Buscou-se caracterizar, portanto, como se dá a assistência farmacêutica no âmbito do cuidado à saúde, não apenas como uma “devolutiva” ou uma validação do material observado, mas como uma estratégia metodológica na qual os trabalhadores convidados pudessem produzir novas visibilidades, outras angulações sobre as cenas, algo como: o que vocês acham disso? Estas cenas conseguem captar elementos do dia a dia de vocês? Vocês reconhecem elementos dessas cenas no cotidiano?

Todo o seminário foi gravado em arquivo de áudio digital, a participação foi voluntária, e todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Posteriormente, a gravação foi transcrita, compondo o material empírico. O seminário compartilhado representou um novo momento de produção/ampliação do campo. Nele foi possível identificar, na perspectiva das equipes, os elementos relacionados ao uso dos medicamentos e analisar a contribuição do farmacêutico para a construção do cuidado integral na ABS.

Ainda que em nenhum momento da pesquisa matriz a questão da assistência farmacêutica fosse o objetivo do campo narrativo, este estudo demonstra o quanto ela é central na maneira como o cuidado vem sendo prestado pelas equipes de saúde na AB.

Análise do material empírico

A partir de um esquema analítico-conceitual, que tem como referencial a socioanálise (FORTUNA et al., 2016FORTUNA, C. M. et al. Análise de implicação de pesquisadores em uma pesquisa-intervenção na Rede Cegonha: ferramenta da análise institucional Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 32, n. 9, p. e00117615, set. 2016.), que considerou como plano de corte do material “o uso racional de medicamentos”, foi possível identificar cenas nas sete UBS e falas no seminário compartilhado que se conectavam e davam visibilidades a elementos micropolíticos relacionados ao uso de medicamentos. Dois planos de visibilidade ganharam intensidade: a autonomia profissional − o papel do médico na prescrição dos medicamentos e o usuário prescritor do seu cuidado, que serão apresentados na sequência. Eles permitiram acessar aquilo que fica de fora do olhar do gestor, dos profissionais de saúde, ou seja, dar alguma visibilidade e/ou dizibilidade “ao mundo que fica de fora” (CECÍLIO, 2011).

Ainda para contextualizar os planos de visibilidade, utilizou-se uma análise da literatura sobre o atual panorama em relação ao uso de medicamentos e a elementos da assistência farmacêutica no cuidado à saúde na APS, assim como os principais postulados da PNM e da PNAF.

Resultados e Discussão

A autonomia profissional − o papel do médico na prescrição dos medicamentos

Quando o médico, o doente e o entorno do doente falam de doença, será que eles se referem verdadeiramente a mesma realidade?

Mirko Grmek (1995)

Uma primeira abordagem deste plano de visibilidade é realizada a partir de uma reflexão sobre a dimensão profissional do cuidado. Esta é aquela que se dá no encontro entre profissionais e os usuários e nucleia o território da micropolítica em saúde (CECÍLIO, 2011).

O processo de especialização médica do último meio século provocou forte impacto sobre sua prática, principalmente no sistema de saúde público. Isto porque, com a intensificação da especialização médica, foi se extinguindo a figura do médico generalista, que deveria ser a porta de entrada para o sistema de saúde, seja público ou privado. Como consequência, uma crescente demanda por solicitação de exames e o uso de recursos terapêuticos mais sofisticados acabam por onerar o cuidado em saúde, sem mencionar o fato de que para cuidar da saúde passa a ser necessário recorrer a vários profissionais, responsáveis por diferentes partes do corpo humano (REIS, 2015REIS, D. Nem herói, nem vilão: elementos da prática médica na Atenção Básica em Saúde. São Paulo: Universidade Federal de São Paulo, 2015.).

A seguinte fala de uma farmacêutica no seminário compartilhado é, em síntese, uma poderosa lente para ver a questão da especialização médica e a própria fragmentação do cuidado:

Farmacêutica da supervisão: A gente tem que ver o paciente como um todo, [...] ele foi no endócrino para ver a diabetes, ele foi nesse para ver tal isso. Então quando você vai ver, ele tem receitas de médicos diferentes. Aí você chega e fala: “Você falou para o teu médico que você tá tomando isso?” [O usuário responde] “Não”. Porque este médico cuida disso, aquele cuida daquilo, [...] e, no todo, o paciente fica perdido. Onde ele vai ver isso? Na farmácia, né? Ele tem todas as receitas, e você vê assim, ele foi no médico, o médico deu Captopril o outro deu Enalapril. [...] Então aí a farmácia que tem que fazer esse filtro de olhar.

Esta cena ilustra bem a situação, demonstra o quanto a assistência fragmentada dificulta a gestão do cuidado do paciente, em particular a assistência farmacêutica. A partir de diferentes prescrições, ganha luz um usuário recortado por um conjunto de especialistas, que não necessariamente falam entre si. A quem cabe “montar o quadro”, juntar as peças-medicamento de um quebra-cabeça, nem sempre compreendido por ele próprio. Como ele, o usuário, conseguirá montar, se não tem necessariamente a imagem?

A próxima cena é ilustrativa em relação à complexidade do trabalho médico e de seu papel central no uso dos medicamentos, na atenção básica:

[No matriciamento de saúde mental] Médica fala que o paciente toma uma subdosagem de um remédio, e a médica [da UBS] fala que ela não sabe por que prescreve [medicamento] pra ele. Se tira, ele não fica bom. Não fica mal, mas não fica tão bem... se ele dá, ele não fica mal... continua na mesma, mas ele sabe que não deve ficar tomando... no final eu não sei por que eu receito e ele não sabe por que ele toma... (UBS B).

No seminário compartilhado esta cena ganhou centralidade, pois ela traz visibilidade para uma “zona escura”, onde um profissional médico enuncia publicamente que não sabe por que prescreve determinada medicação, e o usuário não sabe por que o utiliza, demostrando o quanto a farmácia e o uso de medicamentos podem ser reveladores do processo de cuidado.

Podemos perceber na fala de uma especialista médica, mas que ocupa também um espaço de gestão, o quanto a prescrição pode se tornar um ato automático de mão dupla, ou seja:

ME: […], acho que essa [cena] [...] coloca em análise o trabalho dos profissionais. De repente você está num trabalho automático, que no final você não sabe o que receita e ele não sabe por que toma. [O] matriciamento, ele tem essa potência, de colocar em análise o trabalho daquelas equipes. [...] A partir daí abre para todo um outro olhar para esse cuidado, que não é mais um médico, é um olhar ampliado. [...] As depressões leves, ansiedades também leves que estão muito vinculadas ao processo de vida daquela pessoa. Muitas vezes moram em territórios violentos, com muita vulnerabilidade social, [que impacta o] aparecimento dos sintomas, e você entra lá com um remedinho, […] para fazer uma maquiagem que na verdade não maquia nada, vira um automático que é um descuidado, e não um cuidado […].

A prescrição nesse momento, como tão bem sinaliza a “especialista”, deveria considerar não apenas a lógica da biomedicina. Mas aqui as informações sobre aquela pessoa, sua família, suas condições sociais e de vida trazidas pela equipe, ou requeridas à equipe, poderiam ser fundamentais na própria prescrição, no cuidado. A cena e as falas que refletem sobre ela corroboram os dados da Organização Mundial da Saúde, que indicam que mais de 50% de todos os medicamentos são incorretamente prescritos e dispensados; e mais de 50% dos pacientes os usam incorretamente (BRASIL, 2014).

Em meio a tudo isso, temos o encontro entre o médico e seu paciente, onde duas subjetividades se encontram, e cujo trabalho se ancora na necessidade de um diálogo, uma troca, um compartilhamento de saberes, uma vez que é necessário o saber médico de dispor a aceitar que o paciente o instrua sobre o que somente ele está capacitado a dizer (CZERESNIA; FREITAS, 2009CZERESNIA, D.; FREITAS, C. M. (Orgs.). Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009.). No consultório este encontro assume seus contornos mais precisos: de um lado, o sujeito portador de necessidades, do outro, o sujeito doador de possibilidades, detentor do conhecimento para que o primeiro retorne à sua condição saudável.

O prescritor, no momento em que deve decidir qual o caminho terapêutico a ser adotado, sofre várias influências: as concepções sobre o processo saúde-doença; a qualidade da formação técnica; as condições socioculturais e econômicas da população que atende; a disponibilidade de medicamentos no serviço em que atua e o assédio da indústria farmacêutica, entre outros (SANTOS; NITRINI, 2004SANTOS, V.; NITRINI, S. M. O. O. Indicadores do uso de medicamentos prescritos e de assistência ao paciente de serviços de saúde. Revista de Saúde Pública, v. 38, n. 6, p. 819-826, 2004.).

Na sequência ganha visibilidade o papel central do médico, com sua autonomia na prescrição medicamentosa, nem sempre pensada tal qual previsto, e muitas vezes com pouco diálogo com a equipe de assistência farmacêutica. Identificamos que parece existir sim uma barreira do médico em se abrir para escuta e discussão de casos junto aos demais profissionais. A farmacêutica1 comenta que nem todos os médicos são iguais:

F1: [...] tem médicos que são muito abertos a [se] eu chegar e conversar: “Olha, eu não tenho Losartana, vamos conversar?” Tem médicos que são taxativos: “A minha prescrição é Losartana, ponto final! [...] eu que sou o médico”. Então isso é comum. [...].

Durante o seminário compartilhado, os médicos falam sobre a necessidade de haver uma mudança de postura por parte dos profissionais médicos:

MG: [...], a gente pode ver que uma mudança de postura do profissional ela precisa ser feita, e a partir dessa mudança de postura, o médico não vai mais trabalhar sozinho, né? Ele vai trabalhar com a equipe.

ME: [...] a gente pode identificar essas situações e entender, olha o médico não pode trabalhar sozinho, vai ter que ter espaço para acolher essas pessoas.

O estudo aponta nesse plano de visibilidade que não é possível assumir que a ação mais compartilhada, em equipe multiprofissional, esteja resolvida. Pelo contrário, os aspectos aqui recortados mostram que o cuidado em saúde é bastante fragmentado, e que a farmácia, onde “desaguam” as diferentes prescrições, pode ser um observatório privilegiado para uma ação mais cuidadora.

A participação do profissional de saúde, com seus distintos saberes, para que o paciente faça adesão ao tratamento é de extrema importância. Alguns estudos inclusive tratam a questão como se a adesão ao tratamento fosse determinada exclusivamente pelo poder do médico de fazer seu paciente obedecer à sua prescrição e dos meios que utiliza para tal (LEITE; VASCONCELLOS, 2003LEITE, S. N.; VASCONCELLOS, M. P. C. Adesão à terapêutica medicamentosa: elementos para discussão de conceitos e pressupostos adotados na literatura. Ciência & Saúde Coletiva, v. 8, n. 3, p. 775-782, 2003.). Apesar da nítida influência sobre a adesão, a relação médico-paciente não é suficiente para explicar o fenômeno da não adesão à terapêutica, ou da prescrição inadequada, como iremos ver no próximo plano de visibilidade.

Usuário prescritor do seu cuidado

A dimensão individual da gestão do cuidado em saúde diz respeito ao “cuidar de si”, a autonomia no modo de andar a vida, como cada indivíduo vive sua experiência com a doença. O agir leigo nos traz a possiblidade de entender e considerar que esta é uma ação válida, pois ela é realizada a partir de um conhecimento forjado na experiência e nas múltiplas necessidades de cada um de nós no nosso andar a vida (ISA-CAPITAL, 2015).

A percepção do paciente sobre sua condição escapa ao edifício da normalização, conferindo um grau de subjetividade à condição “estar doente” ou “estar sadio” (CZERESNIA; FREITAS, 2009CZERESNIA, D.; FREITAS, C. M. (Orgs.). Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009.). Aqui o uso ou não do medicamento, a adesão ou não, terá uma centralidade naquilo que o indivíduo escolhe como importante ou não para o seu cuidado, o que inclui o uso do medicamento.

A farmacêutica fala sobre esta questão durante o seminário compartilhado:

F1: [...] tem gente que não se aceita como doente, então tem essa dificuldade de aderir ao tratamento, justamente porque não se vê doente, [...]

A percepção sobre a doença e sobre os sintomas influencia o agir prescritor do usuário no seu processo de autocuidado. Muitas vezes, ela passa ao largo da consulta médica e da própria equipe, mas se expressa na farmácia e no uso dos medicamentos. Esquecemos, assim, ou desconsideramos que as pessoas têm capacidade de produzir novos modos de viver diante das situações e adversidades da vida (CECÍLIO; CARAPINHEIRO; ANDREAZZA, 2014). Ao se aplicar tal constatação ao uso de medicamentos, nos deparamos com frequência com as negociações internas que os usuários promovem ao decidir tomar ou não determinado medicamento.

Conforme podemos observar nas três falas a seguir:

TF1: Os usuários devolvem [a medicação], teve paciente que já devolveu oito caixas de Teofilina lacradas. Como que ele tem essas oito caixas se ele toma um comprimido por dia? Ele deveria tomar todo dia, mas eles dizem: Se eu tô bem, então eu não vou tomar.

F1: A questão do álcool, eu vou beber esse final de semana, então não vou tomar [medicamento].

ACS: Existem pacientes que o médico orienta, o farmacêutico ou a técnica de farmácia orienta o uso correto da medicação, só que quando a gente vai fazer a visita, a gente depara realmente com caixinhas de medicamento sobrando. E aí eles falam: mas é porque eu não tô me sentindo mal hoje, [...] então eu não vou tomar a medicação. A gente explica novamente, [...], mas ainda assim eles teimam em só tomar a medicação só quando eles estão passando mal. [...]

Ou na cena abaixo:

[Em uma consulta médica] [Quando o médico mede a glicemia] percebe que está bastante desregulada [...] Ele pergunta se está tomando o remédio corretamente. Então, a senhora conta que deu uma paradinha por causa da diarreia de dias que tem sofrido por conta da medicação. [O médico argumenta]: Então vamos mudar essa medicação. Você não pode parar. Foi tentar arrumar um problema e causou outro. (UBS C)

Compreender melhor o agir dos usuários no uso dos medicamentos é tarefa a ser melhor desenvolvida. A equipe da farmácia nos revela que, além de se posicionarem em relação a usar ou não o medicamento, os usuários escolhem os medicamentos que desejam, como podemos perceber nas duas falas abaixo:

TF 2: Eles [usuários] querem escolher qual medicação tomar, né? Muitos querem passar na consulta com o médico [e dizer]: Olha eu quero que o senhor me passe isso, isso e isso.

FS: Depois ele [usuário] faz estoque [de medicamentos], [...] e quando eles falam assim: eu quero porque eu tenho direito e é de graça! Isso é comum, eu quero, eu tenho direito, e é de graça, eu posso pegar quanto eu quero. Entendeu?

A complexidade de aderir ou não à terapêutica medicamentosa parece estar ligada a várias situações de vida do usuário. Entre elas, a própria concepção de saúde-doença, a negação do processo de adoecimento, a utilização ligada à diminuição de sinais e sintomas, a falta de uma orientação mais eficiente, compartilhada e monitorada pela equipe, que inclua a equipe farmacêutica.

A automedicação é outro elemento do usuário “prescritor”. O uso de medicamentos sem a prescrição, orientação e/ou acompanhamento do prescritor tem sido cada vez maior na sociedade atual nos diversos grupos etários. De acordo com o ISA-Capital (2015), Inquérito de Saúde do Munícipio de São Paulo, um quarto dos entrevistados se referiu à automedicação nos 15 dias anteriores à entrevista. Paralelamente, o número de intoxicações e notificações de reações negativas relacionadas aos medicamentos tem atingido níveis preocupantes. Dados registrados no Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (SINITOX) demonstram que, entre 2000 e 2012, foram notificados mais de 300 mil casos de intoxicações medicamentosas (26.693 casos por ano); destes, 0,3% dos casos (1.102) evoluiu para o óbito (SANTOS; BOING, 2018SANTOS, G. A. S.; BOING, A. C. Mortalidade e internações hospitalares por intoxicações e reações adversas a medicamentos no Brasil: análise de 2000 a 2014. Cad. Saúde Pública, v. 34, n. 6, p. e00100917, 2018.).

As cenas abaixo ilustram a questão da automedicação e corroboram os achados da literatura. O valor da experiência do “prescritor” leigo: a família, os amigos, o vizinho:

[Observação do cartógrafo ao acompanhar o atendimento de uma assistente social]: Quando ela volta [assistente social], diz para a senhora que o Dr. pediu para parar agora com a medicação e que se ela estava tomando por conta? “Sim, meu marido disse que é bom tomar ASS, que afina o sangue”. A terapeuta ocupacional está na sala neste momento e comenta em tom ríspido: “A senhora está tomando medicação por conta? Por que a senhora não passa no médico?”. (UBS F)

As redes informais que garantem o uso de medicamentos restritos:

[Conversa entre o cartógrafo e uma usuária] [A usuária] Diz que tomou Amoxicilina [por conta], mas não resolveu. [Cartógrafo pergunta] Como consegue antibióticos se são fornecidos somente com receita médica? [Usuária responde] Minha irmã é agente comunitária de saúde e traz do posto”. Se fosse outra mentia, mas eu conto que tomo medicação por conta. (UBS F)

As cenas e a discussão sobre elas no seminário compartilhado revelaram o quanto a AF abre de possibilidades de análise para dentro da unidade de saúde, como também para fora. Revelou-nos o quanto estamos aquém de uma adequada gestão do cuidado, que inclua o uso de medicamentos, não como algo finalístico e dado a priori. É necessária uma ação mais dialógica entre os prescritores, em particular os médicos, os “dispensadores” e a equipe de saúde, que percebem que algo não acontece de forma tão mecânica quanto pensávamos. Ou seja, que parte das nossas ações visando ao cuidado em saúde pode se perder e não resultar naquilo que pretendíamos.

Conclusão

Os planos de visibilidades aqui apresentados revelaram que há distintas e múltiplas racionalidades ligadas ao uso de medicamentos. Ao contrastar aquilo que é prescrito na política com o material empírico, foi possível dissipar algo como uma cortina de fumaça, que se faz presente no cotidiano do trabalho na APS e omite uma realidade muito distante daquilo que se considera como desejável, quando pensamos em termos da assistência farmacêutica.

Apesar de o conjunto de cenas ser retirado de uma pesquisa cartográfica, realizada em sete unidades de três municípios, onde cada unidade e município possui suas próprias características, é possível realizar conexões entre as diferentes cenas de diferentes unidades. Esse conjunto de cenas possibilitou reconhecer que a assistência farmacêutica é falha no que diz respeito ao uso racional de medicamentos e da maneira como ela se encontra organizada, ou desorganizada, na atenção primária, tão perto e tão longe. Neste sentido, a questão do uso racional de medicamentos, entendida como uma cadeia de etapas, desde a prescrição do profissional de saúde até o consumo pelo indivíduo, direciona os planos de visibilidade e traz para a discussão os diferentes atores que compõem o cenário da utilização de medicamentos.

O termo “racional” deste uso parece ser atravessado por diferentes racionalidades, nem sempre filiadas a uma premissa clínica quando se trata dos usuários, no entanto, formuladas a partir de experiências sociais que produziram um conhecimento que reflete no modo de agir.

O que acontece depois que o usuário deixa a UBS com sua sacola cheia de medicamentos retirados na farmácia parece ainda ficar oculto aos olhos dos profissionais de saúde. Neste sentido, o presente estudo, através dos planos de visibilidade, produz indicações, pistas dos desafios para a atuação da assistência farmacêutica, e mostra ainda o quanto estamos distantes de uma gestão do cuidado que inclua o uso de medicamentos em suas múltiplas racionalidades.1 1 S. A. Maximo participou da construção e formação do estudo (pesquisa de campo, coleta de dados, análise e interpretação dos dados e redação do texto), assumindo responsabilidade pública pelo conteúdo deste. R. Andreazza realizou pesquisa de campo, coleta de dados, análise e interpretação dos dados, redação do texto e orientação. L. C. de O. Cecilio participou da pesquisa de campo, coleta de dados e orientou o estudo.

Referências

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  • BARROS, L. P.; KASTRUP, V. Cartografar é acompanhar processos. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina; 2009.
  • BOLETIM ISA-Capital 2015, n. 4, 2017: Uso de medicamentos. São Paulo: CEInfo, 2017, 28 p.
  • BRASIL. Portaria nº 3.916, de 30 de outubro de 1998. Aprova a Política Nacional de Medicamentos. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília: Ministério da Saúde, 1998.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    07 Ago 2019
  • Aceito
    03 Set 2019
  • Revisado
    23 Fev 2020
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