Lakoff e Johnson (2003LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors We Live By. Chicago: The University of Chicago Press, 2003.), em seu livro Metaphors We Live By, chamaram a atenção para o papel desempenhado por metáforas na própria formulação de nosso pensamento. Destacam algumas metáforas comuns a várias culturas, entre elas a que compara o transcorrer da vida a uma caminhada. O poeta sevilhano Antonio Machado, por sua vez, lembrou ao caminhante que “no hay camino, se hace camino al andar”.
Ter sido editor de Physis durante 15 anos foi uma grande caminhada, construída coletivamente, cheia de responsabilidades e honra maior ainda. Foi um período de muitos desafios, intenso aprendizado e de expansão da revista, que passou por diversas transformações, incluindo seu formato gráfico, e que progressivamente incorporou novas e novos colaboradores, cujo trabalho, fundamental para sua trajetória, agradeço imensamente.
Chega um momento, contudo, no qual caminhos divergem, novos caminhantes se unem à marcha e traçam seus próprios e novos caminhos. Como cantou George Harrison, que inspirou o título desta despedida, “all things must pass”. Toda partida tem um quê de tristeza, mas o vivido persiste na memória. Indo em direção a outros projetos, fica a felicidade e confiança de ver essa nova etapa de nossa Physis tendo à frente uma editora segura e competente, pesquisadora e professora reconhecida, nossa querida Jane Russo. Jane é doutora em Antropologia Social e professora do PPGSC há 25 anos, pesquisando as interações e interfaces entre corpo, saúde e cultura. Desejo a ela e à equipe o sucesso que, tenho certeza, alcançarão, e deixo a todas e todos meu muito obrigado.
E já que citei Harrison, não poderia deixar de lembrar que “in the end, the love you take is equal to the love you make...”
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Continuar o caminho delineado por Kenneth Camargo Jr. para a Physis não será tarefa fácil. A partir de sua editoria e com o apoio dos demais colaboradores, nossa revista passou a ocupar um importante espaço de interlocução, em que as diferentes ciências humanas (com destaque para as ciências sociais) dialogam entre si no intuito de constituir e fortalecer o campo da Saúde Coletiva - buscando torná-lo diverso, plural e engajado. Assumir esse encargo constitui certamente um desafio pois sei o tamanho da tarefa que tenho pela frente, porém também sei que I’ll get by with a little help from my friends....
Muitas coisas me aproximam de Kenneth, além da óbvia admiração pelo famoso conjunto de rock aqui citado. Uma delas é o engajamento com a instituição onde trabalhamos, outra é o apego ao rigor intelectual e acadêmico. Buscarei trazer apego e engajamento ao meu trabalho como editora da Physis. Se pretendo continuar a caminhada de Kenneth, ela certamente será diferente, pois nossas trajetórias - aparte a afinidade musical - apresentam itinerários distintos, o que em si não é ruim, pelo contrário. Espero que essa diversidade de trajetória seja benéfica para a revista, e que eu possa contribuir para seu constante aprimoramento.
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Não poderia terminar este editorial sem fazer referência ao momento de terrível crise sanitária que estamos vivendo, com a disseminação praticamente mundial da Covid-19. Em meio a um isolamento social bastante relativo - pois dependente de condições desigualmente distribuídas entre a população -, lemos diversas avaliações sobre a sociedade “pós-coronavírus”. Um dos muitos memes que recebi exibe o desenho de dois dinossauros, ambos olhando para um meteoro que parece vir colidir a toda velocidade com o planeta. Um deles diz “Meu Deus, um meteoro”, o outro responde “precisamos escrever um paper”. Com a forçada suspensão da maioria das atividades econômicas nos mais diversos (e ricos) países do mundo, a previsão é de uma grave recessão econômica, o que, segundo algumas análises, fatalmente levará países, líderes, grupos políticos, a sociedade em geral, a repensar o papel do Estado na economia e, o que nos interessa mais, no estímulo, incremento e sustentação de uma saúde pública de qualidade. Essa tem sido uma luta constante do campo da saúde coletiva em nosso país, e será uma bandeira que a Physis continuará conduzindo, em conjunto com a Abrasco.
Tendo em vista as implicações socioculturais, econômicas e políticas da epidemia, bem como a gravidade com que a mesma vem atingindo a vida cotidiana das pessoas, pensamos em acolher, na revista, reflexões sobre o momento que vivemos, feitas sob a ótica das ciências sociais e humanas em saúde. Lançamos, assim, um convite aos professores do IMS para que compartilhassem suas análises sobre o tema, partindo de suas áreas de investigação. Temos aqui o resultado desse desafio.
Iniciada de forma aparentemente localizada em uma província chinesa, a epidemia de Covid-19 rapidamente se alastrou, primeiro para países europeus e logo para as Américas. Bateu às nossas portas no final de fevereiro, quando foi confirmado o primeiro caso em São Paulo, de uma pessoa que chegara da Lombardia, na Itália. O contágio foi aos poucos se disseminando, até chegarmos à chamada transmissão comunitária em diversos estados - quando não é possível especificar a origem do contágio (BRASIL, 2020). Ao mesmo tempo, em 11 de março, a OMS declarou tratar-se de uma pandemia. O vírus e a ameaça da Covid-19 invadiram definitivamente a vida dos brasileiros.
A peculiar conjuntura política do país, com um presidente “negacionista” cuja postura é claramente anticientífica, compromete o planejamento e a execução de um combate organizado à doença. Em evidente contraste, vários profissionais do campo da Saúde, entre os quais destacaria os epidemiologistas e os especialistas em Gestão e Planejamento em Saúde, têm trabalhado com afinco para implementar ações eficazes nos diferentes estados, e estão na linha de frente desse combate.
Um conjunto muito grande de artigos científicos tem sido publicado sobre o vírus e a epidemia, muitos deles difundidos na mídia. Grande parte engloba pesquisa básica ou aplicada que focaliza seja a estrutura física do vírus, seja o manejo clínico dos afetados, além dos estudos epidemiológicos e matemáticos sobre a propagação do contágio, dos agravamentos dos quadros e dos óbitos. Essas costumam ser as pesquisas mais discutidas e visibilizadas pela mídia de modo geral - de tal forma que, para o grande público, quando se fala que a resposta à epidemia deve vir da ciência, pensa-se imediatamente em tubos de ensaio, luvas, óculos e macacões de proteção, ou ainda no universo quantitativo do cálculo das curvas e de como achatá-las. São pesquisas extremamente relevantes e que certamente serão responsáveis pela sobrevivência e saúde de todos nós. Mas nem só de tubos de ensaio e cálculos matemáticos vive uma epidemia.
Lembremos que esse vírus tem uma vida social, interage com um mundo de diferenças, impacta países, faixas etárias, grupos de risco, classes sociais, gênero e raça de modos distintos. Estamos todas e todos sujeitos a esse vírus, mas seu caráter democrático para por aí. O conjunto de informações veiculadas acerca de como se prevenir e evitar o contágio tem efeitos diferentes sobre camadas diferentes das populações. A indicação supostamente banal de higienizar as mãos encontra barreiras em um acesso desigual a saneamento, porque falta a mais básica água, além do sabão. O isolamento social, pivô das ações de prevenção, pode ser literalmente impossível. Do mesmo modo, a definição de tarefas indispensáveis (cabe a pergunta: para quem?) pode variar bastante. A casa, dentro da qual devemos nos isolar, pode ser um local de segurança e refúgio ou de perigo e violência.
Para além, portanto, da importante produção das ciências vinculadas à biologia e à medicina, assistimos também a uma significativa produção acadêmica que vem trazendo reflexões e pesquisas acerca da circulação social do coronavírus e de seu significado político. Somente para termos uma ideia da importância de tais pesquisas e reflexões, basta lembrar aqui a marca eminentemente racial da letalidade da doença, atingindo desproporcionalmente a população negra (e, nos EUA, também os chamados latinos).
Este número da Physis traz na sua abertura um conjunto de comentários que pretende ser uma contribuição da revista para esse tipo de reflexão. O formato de comentário pareceu-nos o mais adequado, por envolver textos mais breves e que podem estar em estágios diferentes de elaboração. A contribuição de pesquisadores e professores de outras instituições também foi bem-vinda. Decidimos publicar o resultado de nossa chamada inicialmente na página do IMS, dada a urgência de sua divulgação. Tudo isso porque temos pressa e acreditamos que o aporte trazido aqui é parte importante do combate a esta emergência sanitária. O vírus não parece ter a intenção de esperar por lentas adaptações de formato. Apresentamos aqui um conjunto de trabalhos que cobrem aspectos diversos da epidemia - tanto no seu impacto no cotidiano das pessoas quanto na sua abrangência macropolítica - e que, esperamos, sirvam como um instrumento a mais para combater a doença e sua letalidade.
Referências
- BRASIL. Ministério da Saúde. Agência Saúde. Ministério da Saúde declara transmissão comunitária nacional. 20 de março de 2020. Disponível em: <https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46568-ministerio-da-saude-declara-transmissao-comunitaria-nacional>. Acesso em: 30 abr. 2020.
» https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46568-ministerio-da-saude-declara-transmissao-comunitaria-nacional - LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors We Live By. Chicago: The University of Chicago Press, 2003.
Publication Dates
-
Publication in this collection
26 June 2020 -
Date of issue
2020