Open-access “E agora, José”? Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica brasileiras na encruzilhada

"And now José"? Brazilian Mental Health and Psychiatric Reform at the Crossroads

Resumo

O presente artigo visa ofertar subsídios para a continuação da implementação dos pressupostos da Reforma Psiquiátrica (RP) brasileira no campo da Saúde Mental (SM), circunscrito ao atual momento de anti ou contrarreforma psiquiátrica e seus retrocessos. Ao mesmo tempo, sinalizaremos horizontes ético-políticos para o campo, de modo a possibilitar uma leitura mais abrangente da conjuntura em que vivemos e perspectivas contextualizadas de ação, mobilização e transformação social. Ancorados em predicados da tradição marxista (ou em diálogo com ela), primeiramente, esboçamos uma breve análise conjuntural, enfatizando os principais desafios que perpassam a SM e RP brasileiras; posteriormente, apontamos algumas saídas e possibilidades para o campo; e, finalmente, discutimos a necessidade de submeter a Reforma e seus avanços a um novo projeto de sociabilidade, de onde seja possível estabelecer novas formas de relacionamento não só com a loucura e a saúde mental, mas também entre todos os seres humanos. Dessa forma, acreditamos ser possível o resgate da radicalidade da RP brasileira, bem como a retomada de seu caráter revolucionário, visualizando caminhos e horizontes possíveis frente à atual neblina que turva nossas visões.

Palavras-chave: Saúde mental; Assistência à saúde; Assistência à saúde mental; Políticas públicas; Brasil

Abstract

This article aims to offer subsidies for continuing the implementation of Brazilian Psychiatric Reform (PR) assumptions in the field of Mental Health (MH), limited to the current moment of anti or counter psychiatric reform and its setbacks. At the same time, we will signal ethical-political horizons for the field, enabling a more comprehensive reading of the conjuncture in which we live and contextualized perspectives of action, mobilization and social transformation. Anchored in predicates of the Marxist tradition (or in dialogue with), we first outline a brief conjuncture analysis, emphasizing the main challenges that permeate Brazilian MH and PR; later, we point out some possibilities for the field; and finally, we discuss the need to submit the Reform and its advances to a new project of sociability, from which it is possible to establish new forms of relationship not only with madness and mental health, but also among all human beings. In this way, we believe it is possible to rescue the radicality of Brazilian PR, as well as the resumption of its revolutionary character, visualizing possible paths and horizons in the face of the current fog that clouds our visions.

Keywords: Mental health; delivery of health care; mental health assistance; public policies; Brazil

Introdução

O presente artigo visa ofertar subsídios para a continuação da implementação dos pressupostos da Reforma Psiquiátrica (RP) brasileira, num sentido de fortalecimento e avanço das conquistas históricas no campo da Saúde Mental (SM), frente ao momento de anti ou contrarreforma psiquiátrica e seus retrocessos (Lima, 2019; Guimarães; Rosa, 2019). Ao mesmo tempo, sinalizaremos horizontes ético-políticos para o campo, possibilitando leituras mais abrangentes da atual conjuntura e, por conseguinte, perspectivas contextualizadas de ação, mobilização e transformação social.

Para isso, partiremos de um esboço analítico do presente panorama econômico, político e social, de modo a pensar alguns desafios do campo da SM, RP e Luta Antimanicomial (LA) brasileiros. Vivemos um cenário de ofensiva do capital, num quadro de aguçamento de uma crise do capitalismo desde a década 1970, cujas respostas deletérias do projeto neoliberal adentram a realidade brasileira a partir dos anos 1990. Sendo assim, buscaremos responder às perguntas: Como essa conjuntura impacta o campo da SM brasileira? Que saídas são possíveis?

Ancoramo-nos na tradição marxista no âmbito da SM ou em diálogo com ela. Consonantes a Vasconcelos (2012), há a necessidade de compreensão das particularidades e necessidades do campo circunscritas a uma totalidade social que impõe limitações e retrocessos no conjunto das políticas sociais e configurações de bem-estar social. Observamos que, apesar dos progressos da RP brasileira, existem lacunas na compreensão da presente conjuntura, indo além das especificidades da SM.

Tal constatação não visa desconsiderar e deslegitimar os inúmeros esforços de pesquisadores, militantes, usuários, familiares e trabalhadores. Tampouco pretendemos descartar perspectivas teóricas por discordâncias. Inclusive, autores não necessariamente marxistas que fornecem suporte para a compreensão de temas na SM e o enfrentamento dos desafios apontados, são incorporados ao longo do trabalho, resguardadas as diferenças. Assim, atentamos para a necessidade de esforços para o fortalecimento da RP, pensando em novas possibilidades, o que requer análise crítica que tome nossa realidade concreta, em seu caráter histórico, como parâmetro de interpretação e transformação.

A partir do exposto, o presente trabalho encontra-se estruturado em três partes: primeiramente, esboçamos uma breve análise de conjuntura, enfatizando os principais desafios que perpassam a SM e RP brasileiras; depois, apontamos algumas saídas e possibilidades para o campo e, finalmente, discutimos a necessidade de submeter a Reforma e seus avanços a um novo projeto de sociabilidade, estabelecendo novas formas de relacionamento não só com a loucura e a saúde mental, mas, também, entre os seres humanos.

Principais desafios para a SM e RP brasileiras na atualidade

Intentando realizar uma análise conjuntural, iremos separar em duas dimensões os desafios para a SM e RP brasileiras, dialogando com Vasconcelos (2012): (1) obstáculos oriundos da conjuntura mundial e nacional e do próprio processo de desenvolvimento e implantação da RP e (2) insuficiências teóricas e as consequências para o campo. No processo, acrescentaremos elementos importantes para a compreensão do atual panorama na SM. Cabe salientar que estes dois eixos se relacionam, juntamente com o próprio desenvolvimento do país, em especial a partir dos anos 1970, com o surgimento de movimentos da RP e LA simultaneamente a um conjunto de lutas que culminaram em inúmeras conquistas, como a reabertura democrática, a Constituição de 1988, a Reforma Sanitária e o Sistema Único de Saúde (SUS).

De acordo com o autor, no desenvolvimento da RP brasileira durante os anos 1980/90 e 2000, associado às mudanças nos cenários econômico, político e social fora e dentro do país, cinco grandes grupos de desafios emergiram: (a) o corporativismo médico, sobretudo da psiquiatria biomédica, com grande influência política de grupos como a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), junto do poderio das indústrias farmacêuticas e mercantilização na saúde; (b) a implantação do neoliberalismo a partir dos anos 1990, com processos de desregulamentação estatal, rentismo e financeirização, precarização e flexibilização no trabalho, perdas de direitos, dentre outros engendramentos, intensificando-se na atual conjuntura; (c) os dilemas da atenção à crise na SM, associados a moralismos e desafios na formação e estruturação dos dispositivos, e também à centralização nos Centros de Atenção Psicossociais (CAPS)1, contribuindo para que outros serviços e níveis de atenção fossem desconsiderados ou não tivessem o dispêndio devido de atenção e fomento; (d) a “questão” das drogas, sua complexidade e vicissitudes e (e) a fragmentação da LA, que será debatida à frente (Vasconcelos, 2000).

Acerca da “questão”2 das drogas, gostaríamos de acrescentar a sua lenta incorporação pela SM, com um caráter marginal em comparação à abordagem dos chamados transtornos mentais gerais. Devido a esse processo, temos duas grandes consequências: (a) a desconsideração e/ou marginalização de suas particularidades, contribuindo para a transposição de modelos assistenciais descontextualizados para a área. Um exemplo dessa marginalidade e suas consequências é a replicação da lógica de estruturação e funcionamento do CAPS geral para o Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e outras Drogas (CAPSad), reproduzindo uma assistência que desconsidera diferenças inerentes aos perfis dos sujeitos que utilizam estes serviços (Costa; Mota; Paiva, 2015) e (b) é justamente na área de “drogas” que temos hoje os principais retrocessos manicomiais, coadunados com interesses econômicos/privatistas e a ascensão conservadora e fundamentalista religiosa. Como exemplo, a internação compulsória e o fomento estatal às Comunidades Terapêuticas (CTs), incorporadas pela Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) em 2011.

Associados a estes desafios no desenvolvimento da RP brasileira, ainda dialogando com Vasconcelos (2012), existem aqueles decorrentes dos referenciais teórico-práticos que exercem grande influência na SM, tais como: (a) focalização na formação e atuação clínica ou micropolítica; (b) a cooptação de parte do movimento pelo Estado, limitando a ação ao aparelho estatal; (c) recente endogenia do movimento, se distanciando de outras pautas, lutas e mobilizações sociais, presentes na sua gênese; (d) a redução da militância à ação local, negligenciando a organização política nacional.

A partir da década de 1950, não foram poucas as críticas que se endereçaram à Psiquiatria e seu mandato social. Diferentes movimentos surgiram, de diversas perspectivas teóricas, influenciando Reformas Psiquiátricas em muitos países, inclusive no Brasil. No entanto, conforme Amarante (2007) e Vasconcelos (2012), alguns movimentos teórico-políticos apresentaram maior influência, a saber: as Comunidades Terapêuticas (que em sua gênese pouco têm a ver com os dispositivos conhecidos como CTs no Brasil) e a Antipsiquiatria, a partir de experiências na Inglaterra; a Psiquiatria Preventiva e Comunitária, nos Estados Unidos; a Psiquiatria Democrática, na Itália, com destaque para a influência do processo de desinstitucionalização coordenado por Franco Basaglia; a Psicanálise; a Psiquiatria de Setor e o Movimento Institucionalista, na França, assim como o pensamento de Foucault.

É certo que sob o guarda-chuva de tais perspectivas há importantes diferenças. Não obstante, existem modulações de interface entre o que se considera macro e micropolítica, com teorias transitando neste “gradiente”. Entretanto, destacamos alguns aspectos nevrálgicos de influência na SM brasileira: a desvalorização ou negação de esforços de teorização da totalidade social e a consequente naturalização da sociabilidade capitalista; a supervalorização das dimensões individual, micropolítica e simbólica da vida e a focalização na realidade discursiva (Tomaz, 2009). Como dito anteriormente, tais perspectivas ganham força na área na década de 1970, no mesmo período em que a sociedade brasileira começa a se mobilizar contra o “asilamento genocida e a mercantilização da loucura” (Vasconcelos, 2000). São fundamentais para a LA e RP brasileiras, contribuindo para a reconfiguração da assistência em saúde mental e para a conquista de direitos, mas apresentando algumas limitações que devem ser analisadas criticamente, de modo a progredir.

Assim se põem, em nossa perspectiva, a encruzilhada explicitada no título, com os principais desafios à SM brasileira na atualidade e qual(is) caminho(s) a seguir. Com certeza, outros desafios existem e a ideia não é esgotar o debate, mas tomar nossa realidade concreta como parâmetro de análise e ponto de partida para (re)pensarmos horizontes, o que requer exercitar algumas escolhas e elencar prioridades, fundamentadas teoricamente. Isto nos rememora o poema de Drummond, questionando José, inclusive, para onde marchar, ao qual recorremos também no título do artigo, de modo a ilustrar a seguinte indagação: E agora, quais saídas e possibilidades frente à nossa realidade?

Buscando responder tal indagação, temos ciência de que não dispomos de receituário, muito menos de propostas salvacionistas, dada a complexidade de nosso panorama e compreendendo que a resolução dos problemas na SM envolve, em grande parte, transformações substanciais em nossa sociabilidade. Discutiremos, adiante, alguns pontos que consideramos imperativos para a potencialização das conquistas e o vislumbre de possibilidades.

Horizontes para a saúde mental e reforma psiquiátrica brasileiras

Para além da Saúde Mental

De início, é importante clarificar a nossa concepção sobre SM. Em consonância com Amarante (2007): (a) saúde mental é uma dimensão constitutiva de nossas existências, mais que a mera oposição à doença mental ou redução às esferas psicológicas e/ou psiquiátricas; (b) um campo profissional ou área de atuação, relacionados à saúde mental das pessoas e (c) uma área de conhecimento, de produção de saberes de natureza inter e transdisciplinar. Especificamente sobre a primeira, concebemos também a saúde mental não como uma “questão” per si, mas atrelada à “questão social” (QS), o que nos remete à nossa própria sociedade. Segundo Netto (2001), QS surge na terceira década do século XIX para explicar o fenômeno de pauperização acentuada na Europa em decorrência das novas configurações societárias, sobretudo, do paradoxo existente entre o crescimento na produção de bens, mas com concentração da riqueza socialmente produzida. Hoje em dia, a QS pode ser compreendida como o conjunto de expressões que definem as contradições e desigualdades de nossa sociabilidade, originadas na contradição capital-trabalho e acumulação inerentes ao capitalismo. O desenvolvimento capitalista produz compulsoriamente a QS, o que nos faz pensar que sua eliminação significa a supressão da ordem do capital e Estado burguês (Netto, 2001). Portanto, podemos constatar que, a despeito da importância das políticas, ao serem vinculadas ao Estado, no capitalismo, são limitadas e contraditórias.

Assim, pensar a saúde mental é, antes de tudo, questionar a sociabilidade que a produz e é conformada por ela. Significa compreendê-la se constituindo associadamente a outras expressões da QS, como a desigualdade social, a pobreza, o desemprego estrutural etc., por meio de mediações, determinações reflexivas entre si, ao invés de ser pensada como manifestação meramente individual, física e/ou psicológica. Nessa perspectiva, a saúde mental seria, conforme Martín-Baró (2017a)3, a materialização, nos sujeitos e grupos sociais, do caráter humanizador ou alienante de nossa sociabilidade, não se tratando de uma expressão individual interna, muito menos de algo abstrato que se produz num vazio histórico. É a expressão de dimensões universais e singulares, que se dão através da dialética singular-particular-universal. Isso significa dizer que todo ser humano é singular, pois difere de todos os outros, e, ao mesmo tempo, expressa a totalidade social na qual se engendra, bem como a universalidade do gênero humano. Tal singularidade será atravessada pelas particularidades que cimentam a vida social: classe social, gênero, “raça”, etnia etc. (Pasqualini; Martins, 2015), não caindo num determinismo sociológico mecanicista ou dizendo que em outras sociabilidades não poderia haver loucura ou sofrimento. Como aponta Martín-Baró: “saúde mental é muito mais uma dimensão das relações entre as pessoas e grupos do que um estado individual, ainda que esta dimensão se enraíze de maneira diferente no organismo de cada um dos indivíduos envolvidos nas relações” (Martín-Baró, 2017a, p. 253-254).

Vale ressaltar que a própria representação moderna da loucura e raízes da psiquiatria advêm da formação social capitalista (Foucault, 2017a). Assim, a noção de normalidade se imbrica com a de produtividade econômica. Martín-Baró (2017b) também explicita essa dialeticidade quando postula que a “distribuição da saúde mental está vinculada com a distribuição da riqueza produzida” (p. 29), assinalando determinações reflexivas e mediações entre “alienação mental” e esfera produtiva. A loucura, tal como vivenciamos, se expressa como fruto, mesmo que nas singularidades dos sujeitos, de um modelo societário que se assenta na normalização de profundas contradições e que, em seu processo de materialização, tolhem o ser humano de sua potência de vida e de si mesmos (os aliena). Não negando as dimensões biológicas e psicológicas, mas inter-relacionando-as, saúde mental, loucura e sofrimento seriam sinalizadores, no âmbito individual, da incongruência entre a potência do ser humano e sua sociabilidade.

Antes de todo o processo de marginalização, segregação e estigmatização dos sujeitos com sofrimento, existem as condições exploratórias e restritivas de uma sociedade de classes que se pauta na exploração do homem pelo homem, mercantiliza e desumaniza suas necessidades, transformando o próprio ser humano em mercadoria. Portanto, mesmo que estratégias e processos de cuidado na área busquem fomentar a cidadania destes sujeitos, não haverá plena cidadania para eles, mesmo que alçados à condição liberal de “sujeitos de direitos”, sem uma transformação radical e superação desta sociabilidade que é, por princípio, restritiva de humanidade e cidadania (Coutinho, 1999). Por outro lado, isso não significa a pactuação com perspectivas imobilizantes, numa eterna espera da mudança que está por vir, ou, mesmo, posturas desresponsabilizadas.

Não obstante, encontramos a necessidade de disputar no imaginário social a compreensão acerca da loucura. Sabemos que ela não se baseia em “verdades” abstratas e a-históricas, mas sim em representações assentadas em uma base material concreta, numa sociabilidade que se utiliza de determinadas condições de vida e existência (como a loucura e suas múltiplas interfaces) e de sujeitos (como os “loucos”) para a manutenção de si mesma. Uma primeira função social está presente na mercantilização da loucura, por meio de uma lógica privatista que lucra com os “loucos”, os “drogados” - e com os ditos “normais” - ao mercantilizá-los. Além disso, outra funcionalidade destes sujeitos, juntamente com a dos dispositivos que historicamente almejam “tratá-los” (os manicômios), é a de tranquilizar por meio do controle social. Uma tranquilidade oriunda de seu aprisionamento enquanto doentes, incontroláveis e/ou perigosos e da consequente instauração da ordem e segurança, mas também por meio da comparação e contraste: sendo o louco o outro, aquele que está no manicômio, eu que lá não estou e o outro que também não sou, estou a salvo em minha normalidade (Grupo Organizador de Debates sobre as Instituições Psiquiátricas [GODIP], 1977).

Não obstante, encontram-se os processos de psicopatologização e consequentes assujeitamentos, ajustamentos, segregações e aprisionamentos dos chamados desviantes, sobretudo das classes subalternas e indesejáveis, grupos minoritários etc. (Cooper, 1977). Justamente aqueles que, não por acaso, sofrem na pele de forma mais venal as barbaridades desse ordenamento e formação social, confrontando e desvelando suas contradições e seu caráter exploratório e opressor. Logo, a abordagem à loucura (e outras) é, hegemonicamente, a coerção e controle social dessas parcelas e grupos sociais historicamente explorados, oprimidos, perpassados por processos de socialização precária.

Com isso, as particularidades da SM, enquanto fenômeno e campo do saber-prático, estão circunscritas à totalidade e processo de formação social de nosso país, formando-se dialeticamente. Ao nos dirigirmos a essa totalidade, deparamos com suas contradições estruturais do próprio capitalismo, somadas às particularidades de nossa condição colonizada, dependente e de estruturas classistas, escravocratas e racistas, patriarcais etc. Portanto, pensar para além da SM implica em não culpabilizar a rede de cuidados, dispositivos, profissionais na área por uma suposta incapacidade per se em atender as necessidades dos usuários no contexto atual. Ademais, não implica em negar as especificidades do campo e a importância de ações na área, mas considerar que elas não se formam de maneira parcializada e autocentrada, requerendo ações conjuntas com outros âmbitos e temáticas e a transformação de outros domínios da vida, bem como de nossas estruturas sociais e da sociabilidade que as sustentam.

Tais fatores nos levam a criticar posições parcializadas que venham a existir na SM, RP e LA, gerando pautas e movimentos autocentrados e desconexões com outros campos de produção de saber, prática e mobilizações. Para além de uma descaracterização da própria saúde mental enquanto fenômeno, que não se constitui de maneira isolada e ensimesmada, temos o enfraquecimento de reivindicações no campo e o distanciamento das próprias raízes da RP brasileira, que germinou e se produziu num bojo de lutas e mobilizações populares conjuntas, numa visão totalizante com vistas a um projeto societário democrático, possibilitando maior visibilidade, capilaridade e força política (Tomaz, 2009).

Em consonância com Amarante (2007), entendemos a RP brasileira como processo social complexo, que, diferentemente do ocorrido em outros contextos, não visou a renovação da Psiquiatria e instituições psiquiátricas, mas a modificação na forma como se compreende e se relaciona com a loucura, produzindo mudanças nas seguintes dimensões: teórico-conceitual, técnico-assistencial, jurídico-política e sociocultural. Em decorrência dessa ênfase na SM e relações com a loucura, a RP, por motivações óbvias e justas, obteve ganhos mais representativos nos âmbitos técnico-assistencial e jurídico-político e possibilitou uma série de avanços assistenciais numa racionalidade antimanicomial materializada nos dispositivos e redes substitutivos, mas que, na atual conjuntura, são colocados em xeque. Além disso, levando em consideração o desenvolvimento recente da sociedade brasileira, cabe a nós questionarmos, conforme feito por Vasconcelos (2012), sobre os contingentes populacionais impactados pelo aguçamento de nossos antagonismos sociais: em que sentido esses sujeitos e suas necessidades estão sendo abarcados pelos serviços, propostas e modelos assistenciais que, em parte, foram pensados para “outros tipos” de sujeitos? Ou melhor, em que nível nossas propostas assistenciais estão preparadas para abarcar a própria realidade e sujeitos que pressupõem abranger?

Para além da clínica

Se é preciso pensar e intervir “para além” da SM, como um tema ou campo per si, buscando tensionar as estruturas societárias que a engendram, assim como outros fenômenos e dimensões de nossas vidas, logo, devemos pensar também para além da clínica, incorporando outras possibilidades à nossa práxis. Sabemos dos riscos da generalização e que existem várias “clínicas”. Contudo, por se denominarem “clínicas”, mesmo com suas diferenças, permitem nossa análise integrada, a partir de suas bases e elementos comuns.

Gostaríamos de ressaltar que, de maneira alguma, intentamos desprezar a clínica ou diminuir sua relevância; apenas buscaremos apontar insuficiências inerentes ao seu método e, em alguns casos, sua descontextualização para determinados cenários e situações. Também não almejamos desconsiderar a base constitutiva da clínica que é o cuidado, isto é, a dimensão assistencial, mas colocá-la em xeque como “o” método para este cuidado, sobretudo a clínica psiquiátrica stricto sensu, individualizante e focalizada na doença. Afinal, conforme aponta Foucault (2017b), a clínica na modernidade surge com finalidade de tratamento de doentes, mais especificamente das doenças encapsuladas em seus corpos, constituindo-se como um olhar de bases anátomo-patológicas e morfológicas. Sendo essa a sua gênese e suas bases, por mais que tenham sido operadas transformações críticas e/ou modelos alternativos, questiona-se se estes conseguem romper por completo com alguns de seus elementos nevrálgicos. A última ressalva refere-se ao fato de que não pretendemos idealizar a loucura, tampouco negar que existam quadros que necessitem de cuidados, sobretudo, pelo sofrimento que engendram.

Por mais que possam existir variadas “clínicas”, que venham a considerar em menor ou maior grau a saúde mental como fenômeno social singularizada nos sujeitos, por meio das particularidades da vida social - com algumas formas buscando romper com a tradicional perspectiva privatista e individualista -, devemos procurar alternativas práticas conjuntas ao método clínico e, ao mesmo tempo, que vão além dele. Ilustrando nossas problematizações, indagamos: Em que sentido a clínica tradicional se mostra coerente com sujeitos, que apesar de algum sofrimento não necessariamente possuem uma patologia? Ou, mesmo, a contextualidade da clínica para uma pessoa em situação de precariedade e marginalidade, cujas demandas e necessidades objetivas e imediatas sejam de moradia, alimentação? Ou seja, em casos como a pobreza, a fome, o desemprego etc., que requerem, antes de tudo, sua erradicação e melhores condições concretas de vida? São sujeitos e cenários para os quais as perspectivas tradicionais terapêuticas, sejam da psicologia, psiquiatria ou, até mesmo, da farmacologia, pouco ou quase nada têm a contribuir, senão mistificando-os ou descaracterizando-os.

Por mais que necessária, a transformação do que se constituiu tradicionalmente como clínica (p. ex., os inúmeros avanços e contribuições da “clínica ampliada”, “peripatética”, dentre outras perspectivas) não é suficiente. Isso sem contar a utilização de algumas nomenclaturas de maneira genérica e corporativista ou como meros deslocamentos da clínica de seu setting tradicional para “a” comunidade, caracterizando retóricas que não modificam os modelos tradicionais individualizantes psico e/ou biologizantes, tampouco rompem com a lógica manicomial (Ferreira et al., 2016). Acreditamos que os próprios contextos profissionais, em conformidade com a totalidade social e suas inúmeras mediações, evocam a necessidade de uma práxis política, revertendo não só a falsa dicotomia “clínica versus política”, mas a redução da segunda à primeira, ou seja, de que toda a dimensão política esteja presente apenas na clínica e que qualquer ação na SM ou em seus dispositivos seja, necessariamente, um componente da clínica ou “a” clínica em si. Não fazendo isso, podemos restringir ou esvaziar o próprio sentido do “político” e nossas possibilidades de ação.

Ao longo da RP, muitas propostas se ocuparam de fundamentar o processo de cuidado na área, aprofundando e contextualizando a compreensão da saúde mental e do sujeito com sofrimento, assim como das estratégias assistenciais consequentes, se emprenhando sob o guarda-chuva “Psicossocial”. De modo geral, buscam romper com o histórico e hegemonia biomédica e psiquiátrica, em direção à integralidade do ser humano e das ações de cuidado e à garantia de direitos. Justamente por entendermos a importância de tais racionalidades, pensamos ser importante questionar: Que Psicossocial é este que tanto falamos? Seria um mero alargamento de nossas chaves interpretativas e transposição culpabilizante do indivíduo para as suas famílias? Seria este “social” um meio ou ambiente concebido de forma estática, dissociados do sujeito ou cujas relações se dão de maneira mecanicista, fornecendo os estímulos que influenciarão determinadas respostas? Em suma, como as dimensões psicológica e social se constituem e podem ser compreendidas e abrangidas?

Buscando responder a tais questionamentos, endossamos a proposta de Martín-Baró (2017c) sobre a Análise e Intervenção Psicossocial, em suma, de uma práxis psicossocial. Ao entendermos a loucura como processo interpessoal no interior de nossa sociabilidade, passamos a considerar em nossa análise e atuação o sujeito, sua família, amigos, mas também a realidade concreta em que estes se produzem, que se apresenta nas políticas e programas de vários setores, no preço do botijão de gás e nas subjetividades, todas elas determinadas reflexivamente pelas e com as estruturas nas quais se erige nosso modo de viver.

Tais proposições coadunam com a necessidade de irmos para além da clínica, mesmo nos moldes de uma clínica política, politizada e/ou ampliada, utilizando dela, mas de maneira articulada com um trabalho profissional mais abrangente e militante, tensionando o instituído/institucionalizado e, quando, possível, o superando. Em concordância com Portugal, Mezza e Nunes (2018, p. 15), significa colocar a “clínica entre parênteses”, da mesma forma como “colocar a doença entre parênteses não supõe rejeitar o específico do sofrimento psíquico, e sim suspender a construção ideológica que, principalmente, a psiquiatria constrói sobre ele”

Mesmo que não modifiquemos, por meio de nossa práxis, as estruturas de nossa sociedade e suas mediações, elas não podem ser desconsideradas. Nossas reflexões e horizonte passam a se voltar para como podemos pensar e materializar a clínica para fortalecer os sujeitos com sofrimento, mas também outras formas de trabalho e militância, inclusive para além das políticas, programas, ações e serviços da saúde mental estritamente - conforme supracitado - e do aparato estatal como um todo.

Para os trabalhadores da área, tal perspectiva envolve uma mudança da percepção acerca de si mesmos, de sua identidade e de seu quefazer para uma concepção de classe trabalhadora (Yamamoto, 2007), voltada para os interesses das maiorias populares (Martín-Baró, 1996), ao invés de um mero conjunto de técnicos. Abre-se um leque de possibilidades, indo ao encontro da realidade, num movimento “da” e “para” ela, extraindo ações, como: intervenções pedagógicas, socioeducativas e socioassistenciais, potencialização da participação social dos trabalhadores da SM, usuários e familiares, vinculações com movimentos sociais, trabalho de base, participação em arenas de controle social e, sobretudo, a militância em organismos de classe, tendo como horizontes ético-políticos processos de conscientização e fortalecimento das nossas condições de vida para a transformação social. A práxis, unindo trabalho profissional técnico, com a militância sócio política e compromisso ético, permite que a produção de conhecimento retorne à vida cotidiana, numa lógica de ação-reflexão contínuas.

Portanto, ao invés de nos perguntarmos tanto como curar, (re)inserir, ou (re)habilitar a essa ordem social desabilitante, não deveríamos nos ocupar em descobrir o que podemos fazer para libertá-los (e nos libertar) desta sociabilidade aprisionante, limítrofe e adoecedora? Conforme Martín-Baró (2017b), mais importante que saber como as pessoas se adaptam ou integram à ordem social, é buscar compreender como podemos tensionar e/ou mudar esta ordem, buscando construir outra mais humana e justa.

Para além do manicômio

A partir do exposto, devemos também avançar em termos avaliativos, superando o manicômio. Não coadunamos com discursos ingênuos ou mal-intencionados que afirmam que o manicômio foi extinto, desconsiderando sua força e funcionalidade em nossa sociedade, juntamente com a lógica segregatória que ele materializa no controle social de camadas populacionais historicamente exploradas e oprimidas. As próprias propostas e mudanças na SM pelos governos Temer (como a portaria 3.588/2017, dispondo sobre a nova configuração da RAPS) e Bolsonaro (a nota técnica 11/2019-CGMAD/DAPES/SAS/MS, que depois foi retirada do ar; o decreto 9.761, que institui a “nova” política sobre drogas, dentre outros) demonstram a permanência e força deste dispositivo e, principalmente, da perspectiva que o sustenta, concretizando uma série de retrocessos para a RP, em direção ao reforçamento da lógica e instituições manicomiais e privatistas, com recrudescimento da segregação na área (Guimarães; Rosa, 2019); em suma, uma contrarreforma psiquiátrica (Lima, 2019). Cabe ressaltar que tais mudanças foram conduzidas juntamente com ABP, representantes de CTs, instituições religiosas, dentre outros, ignorando debates democráticos e instâncias de participação e controle social.

De modo geral, a lógica manicomial passou por reformulações, provocadas pelos avanços da RP brasileira na explicitação das violações de direitos que constituem a base deste modelo e suas decorrentes instituições “assistenciais”, mas sem que deixasse de existir. Maquiou-se essa realidade por meio de terminologias, tecnicalidades e discursos embasados em uma suposta racionalidade científica que se diferenciariam das propostas da RP, caracterizadas como “ideológicas”. Podemos ver tais mistificações e o recrudescimento dessa falsa dicotomia “ciência versus ideologia” em boa parte das críticas à desinstitucionalização - com redução dos leitos em hospitais psiquiátricos (HP) ou fechamento destas instituições e construção de uma rede substitutiva -, como se fosse sinônimo de desospitalização ou responsável por um cenário de desassistência aos sujeitos com sofrimento (Amarante, 1996). Aliado a isso, justifica-se o financiamento de instituições não-governamentais e modelos asilares contrários à RP, como as CTs e HP privados, corroborando a lógica manicomial junto à desresponsabilização estatal.

Portanto, reforçamos a importância de oposição ao discurso, lógica, práticas e instituições manicomiais que nunca foram superados, sendo expressões dessa sociabilidade e funcionais a ela, ganhando ainda mais poder na atual conjuntura. Entretanto, apenas essa comparação não é suficiente se quisermos avançar, afinal, revisões da literatura na área apontam: “que as estratégias substitutivas e o processo de desinstitucionalização, apesar dos entraves, mostram-se mais humanos, efetivos e eficazes do que os modelos hospitalocêntricos” (Costa; Ronzani; Colugnati, 2015, p. 3250). Há, portanto, a necessidade de ampliação e sustentação das políticas substitutivas, da rede de atenção e dispositivos, como os CAPS, residências terapêuticas etc., “garantindo sua viabilidade em termos de recursos, capacitação e contratações” (Campos et. al, 2009, p. 21).

Do mesmo modo, é necessário romper com a utilização do manicômio e HP como muletas avaliativas ad eternum para os serviços e propostas substitutivas, até mesmo porque qualquer comparação que os tome como parâmetro será nivelada por baixo; um rebaixamento das potencialidades avaliativas e possibilidades da RP. Exemplificando, segundo Surjus e Onocko-Campos (2011), devido à comparação com o modelo hospitalocêntrico tradicional, torna-se difícil até mesmo para os usuários e familiares avaliarem as estratégias substitutivas, pois é a partir delas que as noções de cuidado, assistência e tratamento passam a adquirir sentido.

A partir desse movimento, podemos também nos voltar para a avaliação crítica e os debates internos necessários à própria RP e LA, frequentemente escamoteados por conta dessa polarização “RP versus manicômio” que afeta muito mais a primeiro, ao canalizar grande parte de suas atenções para o “arqui-inimigo” e não perceber que, muitas das vezes, a lógica do outro está presente nela mesma. Por exemplo, temos a institucionalização de lógicas manicomiais e hospitalocêntricas em dispositivos substitutivos (Ferreira et al., 2016). Podemos pensar também nos casos desses serviços geridos por entidades não-governamentais, como se a RP se pautasse somente na implantação de dispositivos, fomentando uma perspectiva mercantil e privatista contrárias ao ideário universalista e de garantia de direitos do próprio SUS e contribuindo para o sucateamento das políticas sociais.

Reforçamos as considerações de Costa, Ronzani e Colugnati (2015), que, em revisão da literatura sobre avaliação em saúde mental, constatam a necessidade de denúncia da corrente mediocridade e venalidade dos manicômios, mas indo além dela, compreendendo os avanços, potencialidades e desafios das estratégias substitutivas da RP, circunscritas à análise de nossa conjuntura econômica, política e sociocultural:

[...] os processos avaliativos devem ultrapassar a mera comparação dos serviços substitutivos com os hospitais psiquiátricos. Isto não quer dizer que tais comparações sejam desnecessárias e não precisem ser reforçadas através das avaliações, considerando a complexidade do campo e fatores políticos. Contudo, propõe-se que se vá além destas comparações, com exercícios críticos [...] que problematizem os entraves das políticas e modelos de atenção substitutivos, ‘descristalizando’ práticas e saberes (p. 3250/3251).

Reforma ou revolução?

Nessa seção final, procuraremos estabelecer algumas amarrações, de modo a fortalecer a construção de horizontes de ação-reflexão na SM. Inicialmente, gostaríamos de reforçar as conquistas e avanços propiciados pela RP brasileira e a imprescindibilidade de se almejar a emancipação política dos sujeitos com sofrimento, consumidores de drogas etc., por meio da aquisição e/ou fortalecimento de direitos civis, políticos e sociais. Contudo, atentamos para a necessidade de análises críticas sobre estas modificações, tomando-as como parâmetros para continuarmos a enxergar caminhos e horizontes possíveis na atual conjuntura. Sendo assim, um primeiro ponto de destaque é associarmos essas lutas e conquistas por direitos, que almejam a emancipação política, à luta pela emancipação humana. Ou seja, nos questionarmos: em que sentido a luta política no âmbito da SM pode contribuir para a construção de uma nova sociabilidade? E como outras dimensões de transformação são perpassadas pela SM?

Concordamos com Vasconcelos (2012) e Tomaz (2009) que esse debate foi minimizado ou desconsiderado na RP brasileira devido a fatores econômicos, ideo-políticos, imperando a aceitação/naturalização do capitalismo, junto à negação dos princípios de universalidade e totalidade. Em suma, ao conceber a saúde mental como uma questão em si, que se expressa de maneira individualizada, enfocando o indivíduo, ou transpondo a compreensão e atuação estritamente para a família ou a micropolítica, desconsiderou-se que este ser, essa dimensão da vida e suas singularidades se conformam na interface com o outro, circunscritas à sociedade, suas estruturas, mediações etc. Logo, mais que uma reforma da psiquiatria, das instituições psiquiátricas, que estas mudanças estejam conjugadas e orientadas a uma revolução societária, à construção de um novo projeto de sociedade, e, portanto, de relações equânimes e não mais alienantes uns com os outros, com a saúde mental e a loucura, não havendo mais exploração do humano pelo humano. Grosso modo: um projeto anticapitalista, socialista. Até mesmo porque estas instituições, dispositivos de poder, saber e práticas emanam e se constituem nesta sociabilidade, são, portanto, frutos dela, sendo funcionais para a sua perpetuação, ao se fortalecerem e reificarem por meio de determinações reflexivas entre as estruturas, relações sociais, perpassadas pela cultura etc. Por outro lado, não pensamos que a RP per se seja capaz de provocar essa mudança radical na ordem, o que nos levaria a um politicismo ingênuo. Em suma, defendemos que se submeta a Reforma à Revolução, considerando suas potencialidades e limitações.

Tais constatações sinalizam a premência de pensarmos para além da emancipação política, que, apesar de imprescindível, mostra-se frágil aos fluxos e refluxos da sociabilidade capitalista, estando constrita à sua aceitação e naturalização. Colocamos a necessidade de submetê-la à emancipação humana - nosso horizonte último -, o que não significa que uma negue ou desconsidere a outra. Por mais que seja limitada, a expansão das mudanças no âmbito político afeta a dimensão estrutural de acumulação de capital; ou seja, estremece as próprias bases do capitalismo. Não à toa que são combatidas e vilipendiadas no neoliberalismo e, em especial, na atual ofensiva do capital. As políticas passam a ser analisadas - e utilizadas - considerando suas contradições inerentes ao Estado burguês e ao capitalismo, mas também como espaços para disputas da classe trabalhadora em termos de sua reprodução social e possibilidades de desvelar contradições desta sociabilidade. Assim, é possível pensar em conexões entre a emancipação política e a humana, não numa passagem gradativa de uma para outra, mas em como a primeira, para além de suprir necessidades imediatas das maiorias populares, pode contribuir para tensionar o estado das coisas, desvelando as contradições de nossa sociedade, corroborando para sua transformação (Souza Filho, 2016).

Inúmeros avanços ocorreram, a partir da LA, RP, RAPS, CAPS e afins nas formas como a saúde mental, a loucura e os sujeitos com sofrimento devem ser compreendidos e abordados. Por isso, são alvos de retrocessos. Contudo, é relevante questionar: Em que sentido a focalização e transformações nas dimensões políticas e culturais caminhou em conjunto ou contribuiu com a modificação das estruturas concretas que conformam nossa sociedade e, portanto, a loucura? Ou seja, em que nível a condição da loucura, considerando suas especificidades, deixou de estar atrelada a outras expressões inerentes à sociabilidade capitalista, como a desigualdade social, a pobreza, o desemprego etc.?

Nessa direção, cabe a reflexão de que nosso atual panorama de retrocessos e ofensiva do capital aos direitos, coadunado com a ascensão conservadora e fundamentalismo religioso, aponta a necessidade de submetermos a saúde mental à totalidade na qual se inscreve e constitui. Historicamente, quando políticas universais são sucateadas, incorrendo na piora das condições de vida das pessoas, temos a conjunção de restrições ainda maiores à uma RP abrangente e contextualizada (Vasconcelos, 2012). Além disso, é premente captar as consubstanciações dos planos cultural, político e econômico. Isto nos faz pensar para além da própria dimensão político-estatal, da SM em si e da atuação técnica e clínica/assistencial, entendendo-os como limitados para a realização destas transformações, mas, ao mesmo tempo, como podem contribuir para elas. Afinal, conforme sinaliza Martín-Baró (2017a, p. 267), “a construção de uma sociedade nova ou, pelo menos, melhor e mais justa não é somente um problema econômico e político; é também, e por princípio, um problema de saúde mental”.

Abrem-se possibilidades de ação e disputa dentro e, principalmente, fora do Estado, do instituído, assim como ocorreu na gênese da LA. Põe-se como horizonte a articulação de pautas e lutas a outros setores, grupos, temas e/ou a rememoração da posição de grande parte dos atores envolvidos na SM enquanto classe que vive do trabalho. Como exemplos, apontamos as possibilidades oriundas da aproximação da LA com outros movimentos sociais, organizações da classe trabalhadora e mobilizações amplas, como as de enfrentamento a outras contrarreformas (p. ex. da previdência, trabalhista) dos governos Temer e Bolsonaro; a coerência lógica da LA ser Antiproibicionista e Abolicionista, ao se contraporem às lógicas de controle, punitivismo, aprisionamento e segregação; e uma maior articulação da SM com outras temáticas e âmbitos da saúde e outros setores. Referente a este último ponto, um elemento indicativo da endogenia da SM - e das próprias dificuldades para o estabelecimento da intersetorialidade - é a institucionalização da RAPS apenas no SUS.

Dessa forma, intentamos resgatar a importância da dimensão ético-política da SM brasileira e como ela pode contribuir, considerando suas limitações e potencialidades, para uma transformação radical em nossa sociabilidade. É possível colaborar por meio do trabalho, organização e luta de uma extensa gama de atores, para desvelar as contradições de nossa realidade, fortalecendo os sujeitos que conduzirão este processo revolucionário; até mesmo, porque não existe revolução na saúde mental dissociada da superação do modelo de sociedade que dialeticamente a produz e é conformado por ela.

Consonante a Pasqualini e Martins (2015), tal tarefa passa por uma práxis que apreenda os sujeitos em suas concretudes, analisando suas singularidades construídas na relação com a totalidade social e sua genericidade. Ainda segundo Martín-Baró (1996), isso envolve modificar enfoques e preocupações centrais, não focando tanto no onde, mas no “a partir de quem”; não tanto no como, quanto em benefício de quem; e não tanto sobre o tipo de atividade que se pratica, mas sobre quais são as consequências históricas concretas dessa atividade.

Assim se põe o caminho necessário à RP brasileira: retomar sua radicalidade; voltar às suas raízes e origens, o que implica na retomada de seu caráter revolucionário. Falando em raízes, nada mais representativo do que terminarmos com o lembrete de Basaglia:

“A revolução deve ser feita por e com as pessoas conscientes do que são, da sua situação. Devemos ajudar o proletário, que quer libertar-se da opressão e ser um agente ativo da transformação e gestão da liberdade. Assim, a revolução é contemporânea da tomada de consciência do técnico, que utilizará a sua especialidade, isto é, o seu papel específico de técnico, para ser político na sua tecnicidade. Só assim penso ser possível libertar o homem” (Basaglia, 1977, p. 41).

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  • 1
    Amarante (2003) denomina esse processo de CAPsização, alertando para a contraditoriedade desta centralização no CAPS com a ideia de uma rede substitutiva e comunitária, reforçando a ideia da especialização do cuidado em SM.
  • 2
    Utilizamos as aspas para denotar que não existe uma “questão das drogas” em si, uma vez que compreendemos este fenômeno atrelado à questão social, que será explicitada à frente no texto.
  • 3
    Psicólogo, filósofo, teólogo e padre jesuíta, nascido na Espanha (1942) e naturalizado salvadorenho. Criador da Psicologia da Libertação. É assassinado (1989) por forças militares ligadas ao governo de El Salvador da época, em decorrência de sua atuação enquanto acadêmico e militante em prol das maiorias exploradas e oprimidas num contexto de guerra civil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    13 Jul 2019
  • Aceito
    03 Mar 2020
  • Revisado
    17 Out 2021
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