Open-access O bebê com zika e o pai (d)eficiente

The baby with zika and the (dis)efficient father

Resumo

Introdução: O aspecto subjetivo se revela no cuidado que o sujeito oferece e permite ressignificar sua subjetividade, atribuindo sentidos às experiências vividas no contexto inserido. Assim, familiares e profissionais criam manejos de cuidado aos bebês de acordo com suas necessidades, neste caso, bebês acometidos pelo vírus Zika. Objetivo: analisar a dimensão subjetiva implicada nos cuidados ofertados por pais homens aos bebês com síndrome congênita do Zika (SCZv). Método: Trata-se de pesquisa qualitativa com pais e profissionais de um serviço aos bebês com SCZv. Foram realizadas entrevistas individuais, grupos focais e a observação participante. Resultados: Em cenário de protagonismo materno, a presença paterna é quase ausente na maioria das famílias, mas quando há, os pais se mostram bastante atuantes no cuidado. Tais ações paternas são moldadas pela lógica masculina, como o apoio emocional dirigido à mulher, mas a não expressão das próprias emoções, além de atividades predominantes fora do lar. Na perspectiva paterna, é importante considerarmos o movimento tautológico de todos os lados possíveis promotores do afastamento dos pais - ora eles mesmos, ora a mãe, ora o serviço de saúde - para assim permitir o desfocar dos pré-conceitos e possibilitar a reflexão conjunta das inúmeras formas de exercitar a paternidade.

Palavras-chave: Zika vírus; Paternidade; Saúde Mental; Saúde Pública.

Abstract

Introduction: The subjective aspect is revealed in the care that the subject offers, in addition, it makes it possible to reframe their subjectivity, attributing meanings to the experiences lived within the inserted context. Thus, family members and professionals create care management for babies according to their needs, in this case, babies affected by the Zika virus. Objective: to analyze the subjective dimension involved in the care offered by male parents to babies with congenital Zika syndrome (SCZv). Method: This is a qualitative research with parents and professionals from a service for babies with SCZv. Individual interviews, focus groups and participant observation were carried out. Results: In a scenario of maternal protagonism, the paternal presence is almost absent in most families, but when there is, the parents are quite active in the care. Such paternal actions are shaped by male logic, such as emotional support directed at women, but the non-expression of their own emotions, in addition to predominant activities outside the home. In the paternal perspective, it is important to consider the tautological movement from all sides as possible promoters of the fathers' distance - now themselves, now the mother, now the health service - in order to allow the unfocusing of preconceptions and enable the joint reflection of countless ways to exercise paternity.

Keywords: Zika Virus; Paternity; Mental Health; Public Health.

Introdução

Este estudo busca analisar a dimensão subjetiva implicada nos cuidados ofertados por pais homens aos bebês com síndrome congênita do Zika. Tal síndrome é consequência do vírus Zika, presente no Brasil com primeiros casos em 2014, que gradativamente tomou dimensão epidêmica nunca antes documentada (TEIXEIRA, 2016). Nesse cenário epidêmico, houve dois grandes acontecimentos: identificação do novo vírus no país e associação com a microcefalia (DINIZ, 2016a). Assim, reconheceu, dentre outras constatações, a relação do vírus Zika e ocorrência de más formações e óbitos em fetos e bebês. Diante da epidemia que se instalava, compôs-se uma rede de vários atores, organizações sociais, de saúde e os meios de comunicação para criar formas de cuidado aos bebês e suas famílias. Os agentes do cuidado, suas especificidades nos papéis parentais e profissionais, constituíram processualmente o modo de cuidar dos bebês e dos olhares vigilantes. O cuidado produziu e foi produzido pelos modos de subjetivar de cada cuidador envolvido, ao mesmo tempo assumiu similaridades entre mães, pais e profissionais em contexto de Zika.

Nesse contexto, o Zika espalhou (d)efeitos físicos, cognitivos, sociais e subjetivos sentidos por todos os envolvidos. Por isso, além do aparato epidemiológico que foca casos, a ciência deve olhar o sujeito que compõe o caso, para assim esses sujeitos não terem esquecidos suas histórias e sofrimentos, angústias e desamparos como ocorre pela biopolítica das doenças (DINIZ, 2016b). Para conviver com uma epidemia e suas consequências faz-se necessário reconhecer os bebês e as crianças acometidas no âmbito comunitário composto por cuidadores no seu entorno. Tais cuidadores contribuem para o desenvolvimento emocional dos bebês e, ao mesmo tempo, atribuem sentidos ao ato de cuidar frente às emoções despertadas nesse evento de gestar e ter um bebê.

Variados sentimentos presentes na dinâmica subjetiva dos pais surgem desde o momento da notícia da gestação e marca o evento biológico de futuras transformações corpóreas e mudanças psicológicas nos pais que conceberão o bebê. Assim, desperta no pai e na mãe uma organização de fantasias e expectativas expressas pela escolha do nome, das futuras características físicas, de sexo que mostram reservados padrões de relacionamento (FIORI, 1981). A relação entre os pais e seus filhos se estabelece antes do parto e vai se constituindo a partir das possibilidades e modos de ser desses pais e de imaginar seu filho. Aragão (2007) retoma o percurso do tempo cronológico da gestação como importante para a apropriação psíquica da mãe nessa condição de ser mãe, como o início marcado pela experiência imaginária de ter seu corpo ocupado por um estrangeiro e, gradativamente, oferece o espaço físico e psíquico para o bebê dentro de sua unidade psicossomática. Todas essas modificações subjetivas dos pais indicam o engajamento afetivo na gestação, que se estende aos familiares e grupo social onde convivem.

Embora todos os filhos sejam investidos subjetivamente das imagens parentais, em contexto de adoecimento, as fantasias em relação ao bebê assumem especial complexidade, pois o ambiente deverá acolher um bebê que possui um modo de organização específico derivado do seu adoecimento: gestar o bebê sob o confronto entre o real e imaginário. Nesse cenário, o filho, representado como uma continuidade narcísica dos pais, uma possibilidade de driblar a finitude por deixar no outro, o bebê, uma herança genética, social e emocional, não corresponde com tal imaginário de saúde, potência e vitalidade. Assim, a dinâmica, que estrutura e conduz as ações desse ambiente ao bebê com necessidades diferenciadas, influencia as relações que pais e todos os envolvidos estabelecem com o bebê. Os profissionais, por exemplo, se afetam por emoções, sentimentos e conflitos intensos, como impotência, frustração de atuar cotidianamente com a doença, sendo assim um cuidador sob constante tensão (CAMPOS, 2006). Já os pais, ao gerar um bebê adoecido, experimentam sentimentos de ansiedade, culpa, autorrecriminação e sofrimento para se identificar com o filho real divergente do imaginado (AMIRALIAN, 1986). A notícia da deficiência ocupa o principal investimento, tornando-se secundário saber o sexo, por exemplo, além de trazer dúvidas quanto à genealogia da família, funções parentais e herança simbólica que se constituirá (LEVIN, 2005).

Alguns estudos problematizaram a relação parental com o bebê em situação de adoecimento no enfoque psicanalítico (AMIRALIAN, 1986; LEVIN, 2005; DIAS, 2008; MUNHOZ, 2012). Tais estudos trazem a ideia de que algumas especificidades: há sensação de desamparo, estranheza e ocorrem rearranjos no cuidado do bebê, sendo compartilhado com outros cuidadores, como os profissionais de saúde, avós e outros sujeitos que configuram uma rede de apoio. Ao mesmo tempo, os cuidadores sentem a relação de cuidado como uma missão, atribuindo assim uma valorização e sentimento de ser especial, coincidente em outros estudos de pais com filhos com variadas deficiências (AMIRALIAN, 1986; DIAS, 2008; MUNHOZ, 2012; LUCCA; PETTEAN, 2016). Em meio a intensidades emocionais, estes pais se dedicam integralmente a problemática do filho e fazem dela a causa de suas vidas (LEVIN, 2005, p. 48). Dessa forma, o envolvimento do cuidador favorece o desenvolvimento do bebê, por isso, todo bebê deve ter a oportunidade de ser cuidado de forma afetiva para seu desenvolvimento integral, pois tal como começa, assim tem de ser aceito, e assim tem de ser amado. É uma questão de ser amado sem sanções (WINNICOTT, 1993, p. 205).

O envolvimento afetivo, nesse sentido, está relacionado com os recursos subjetivos de cada cuidador. Diante da inesperada demanda advinda de um bebê com deficiência, há que reelaborar conteúdos significantes do que se entende que compõe a prática de ser mãe com a situação das necessidades muito especiais do filho que nasceu (SCOTT, 2018). Os pais também sofrem frente ao diagnóstico e buscam formas de conhecer sobre a doença e criar estratégias de enfrentamento para ofertar cuidado aos filhos com SCZv (DIAS et al., 2019).

Além de todas as repercussões emocionais dos cuidadores, o nascimento do bebê é acompanhado pela sua constituição enquanto sujeito. No início da vida de um ser humano uma rede complexa de cuidadores se instaura, para assim o bebê se revelar um potencial ser humano fruto do e no seu meio ambiente (WINNICOTT, 1989). Esse ambiente, condição inerente para sua existência, se compõe de vários ambientes específicos, inter-relacionados, que se abrem gradualmente representados pela mãe, ou cuidador primeiro, pai, familiares, sociedade, instituição (ARAÚJO, 2007). Tais relações, promotoras de cuidado, estão ligadas às relações de gênero, classe, etnia e nacionalidade e suas estruturas hierárquicas expressas nos corpos e nas práticas de cuidado (FIGUEROA; GUARRIDO, 2012). O contato com esses ambientes, além da mãe, ocorre de forma mais marcante após alguns meses de vida do bebê, em que a perda do vínculo exclusivo com a mãe amplia a necessidade de criar e aprofundar outras relações, como o envolvimento com a figura do pai, expressa pelo banho, colos, alimentar, brincar, dentre outras ações, que além de reforçar a união do casal possibilita ao bebê a primeira imagem social e comunitária (ABERASTURY, 1991). Ainda que haja variadas configurações familiares, neste estudo consideramos a figura masculina como cuidador do bebê. Nessa jornada das relações firmadas com o bebê, o cuidado “maternal” aparece antes do cuidado “paternal”, o qual gradualmente se torna significativo (WINNICOTT, 1979b).

Nas cenas mais pregressas do ser humano, portanto, o pai atua como figurante, papel não por isso menos importante. Reflexo dessa ação secundária, os estudos dos estágios iniciais da vida se debruçam sobre a figura materna, assim como nos tempos de Zika não foi diferente: há raras pesquisas publicadas enfocando a figura do pai, seja qual for o seu papel. Por isso há a importância de discutir no campo científico as relações emocionais estabelecidas com o bebê que sofre da síndrome congênita do Zika. Embora haja pesquisas que abordam os aspectos emocionais do ambiente com o bebê acometido por alguma enfermidade, estudos sobre tal síndrome elegida por este trabalho são poucos diante da relevância do tema. Há, dessa forma, uma miríade de possibilidades de focos e compreensões amplas de processos sociais que circundam a vida de bebês com SCZv, suas cuidadoras e cuidadores (SCOTT et al., 2018).

Método

Sujeitos

Participaram deste estudo 10 pais de bebês com a síndrome congênita do Zika bem como bebês, além de 6 profissionais do serviço X da cidade de X. Em relação à seleção dos sujeitos, foram convidados os profissionais que atendiam ao critério de pertencerem à equipe de referência. Para seleção dos pais, com o auxílio da equipe da instituição, foram eleitos os pais que desejassem participar do estudo e atendessem ao critério de estarem na gestação ou possuírem bebês com a síndrome congênita do Zika sob acompanhamento na instituição. Participaram três homens cuidadores, sendo que a companheira de um deles estava grávida e os demais tinham bebês com a síndrome.

Local

Após a alta incidência de fetos com microcefalia foi inaugurado, de acordo com a gestora, em novembro de 2015, o Ambulatório Especializado de Microcefalia (AEM), com alcance de assistência a 19 municípios da sua região metropolitana e alguns municípios da região do Cariri e sertão paraibano. O AEM contava com equipe interdisciplinar composta por neurologista, oftalmologista, ginecologista-obstetra, ultrassonografista, pediatra, enfermeira, fisioterapeutas, terapeuta ocupacional, psicóloga e assistente social. Tal serviço assistia gestantes referenciadas por unidades básicas de saúde da região com suspeita de seus bebês portarem a Síndrome congênita do Zika bem como bebês já com esse diagnóstico. No decorrer do campo, o serviço foi realocado para o Centro Especializado em Reabilitação (CER).

Coleta de dados

Utilizamos três técnicas de coleta de dados: observação participante, entrevista semiestruturada e grupo focal. O uso de variadas técnicas se sustenta na triangulação de dados, estratégia de pesquisa qualitativa que requer disposição necessária do investigador a exercitar várias abordagens e olhares visando maior compreensão interpretativa da realidade social (MINAYO, 2005). Dessa forma, as técnicas foram aplicadas concomitantemente, de acordo com a abertura institucional e dos participantes. Realizamos em todo o momento do campo a observação dos cuidadores nas atividades realizadas na instituição nos espaços físicos do serviço, nos atendimentos multiprofissionais e interdisciplinares individuais, grupais, reuniões de equipe, sala de espera, confraternizações e encontros extra serviço com alguns profissionais. No serviço, a observação ocorria de segunda a sexta das 8 às 17 horas. Os sujeitos (pais e profissionais) foram avisados da presença de uma pesquisadora que acompanharia o serviço e suas atividades por alguns meses.

Para a segunda técnica de coleta, entrevista semiestruturada, propusemos algumas questões vinculadas aos objetivos da pesquisa por meio de roteiro prévio específico para pais e profissionais. Realizamos entrevista piloto, ensaio prévio para ajuste da técnica (VOLPATO, 2013) realizada para cada roteiro específico de cada participante. Todas as entrevistas, além do roteiro pré-estabelecido, contaram com uma ficha de identificação aos pais e profissionais a fim de caracterizar os participantes. Para entrevista e grupo focal, os sujeitos foram convidados a participarem da pesquisa mediante leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Solicitamos a autorização para gravação.

Este artigo foi construído a partir de uma tese de doutorado. Seguiu a Resolução 466/2012 que contempla normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos. O projeto foi submetido ao Comitê de Ética da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) com o parecer número 1.885.828 e aprovado pelo Comitê do serviço de saúde do município pesquisado. Os dados foram submetidos à análise de conteúdo e de discurso (GARCIA, 2015).

Resultados

A menção à ausência de boa parte nos cuidados seja dos pais nos serviços de saúde, seja no âmbito doméstico, seja ainda física ou emocional parece ser uma constante no relato dos participantes da pesquisa:

[...] não tô bem, não sei onde o pai dele está, não registrou o menino, minha mãe tá achando que tô indo atrás dele quando eu falo sobre isso. Quando eu estava gestante ele foi embora, ele não aceita que o bebê porque tem problema como se o bebê tivesse culpa (Diário de campo - Mãe).

[...] a justiça é de Deus. Nem registrar ele veio. Ele não pediu pra vir ao mundo. Não quero nem ver o pai dele. Minha filha ficava no hospital, ela e meu neto e quando o motorista da prefeitura ia embora ela ia atrás do ex, nós achando que estava fazendo o tratamento e ela enganando todos, família, motorista da prefeitura e profissionais (Diário de campo - Avó).

[...] nesta semana uma mãe comentou que estava há dias acompanhando seu filho e descobriu que o marido estava traindo ela, estava mal. Alguns pais somem, entram na cachaça, a maioria cuida sozinha (Diário de campo - Comerciante).

As atribuições de gênero, como por exemplo aquelas que se referem à tendência naturalizada de ver as mulheres como mais habilitadas ao cuidado dos filhos, tendem a conformar as práticas de cuidado à saúde como lugar feminino. Os serviços de saúde são, como indicam algumas pesquisas, espaços culturalmente das mulheres (SCHRAIBER; FIGUEIREDO, 2012; MUYLAERT et al., 2015). Tal percepção reflete maciçamente na dinâmica de cuidado do serviço, predominantemente feminina1:

[...] olha só, de 22 mães aguardando no ‘corredor da sentença’, para fazer o ultrassom, apenas 2 pais presentes. Essa é a realidade dessas famílias (Diário de campo - Profissional).

Nesse cenário de relações individualistas e machistas características da sociedade ocidental, a mãe muitas vezes se encontra isolada no árduo exercício da maternidade e desamparada do auxílio de outros sujeitos voltados à função ambiental (GRANATO, 2004). Essa perspectiva é reconhecida e promotora de identificação nas profissionais:

[...] tem criança que demanda muito da mãe e me coloco no lugar da mãe, é uma luta diária, aí você vê que algumas são abandonadas pelos companheiros e a situação financeira também, né? (Entrevista - profissional 16).

Embora a ausência masculina voltada ao cuidado ocorra, seja nos lares ou nos serviços em saúde, parece que as representações sociais da mulher-mãe e do homem-ausente compõem um enredo caricato contado pelas pessoas que viveram a epidemia. Assim, o abandono é percebido com tristeza e reprovação, reforçando essa dicotomização bem e mal, mulher idealizada e homem não merecedor dessa mulher:

[...] a angústia que eu tive foi o pai não ter dado conta, ter deixado uma moça nova e vistosa como ela, isso me deixou angustiado, muito aborrecido (Entrevista - Avô 11).

[...] têm poucos pais que são bons, mas a mãe é única, ninguém a substitui (Narrativa - Grupo focal 4).

quando vê mãe chorando não é a tristeza por uma lamentação porque o filho tem a síndrome, mas é por questão amorosa, conjugal, você vê muito por aqui, a grande maioria não colabora (Entrevista - Profissional 8).

as mães são lutadoras, lutam de um lado, lutam de outro, eu preciso mostrar aos homens que eles têm que tá junto, veja só nos eventos que tem quantos pais aparecem? Quando falam que eu sou um vô coruja eu fico satisfeito porque quero ser exemplo para os outros homens. As mães não têm culpa nem os bebês e cadê os pais? (Entrevista - Avô 11).

As inúmeras histórias dos homens que não assumem a paternidade devem ser consideradas em sua especificidade. Dentre os mais variados - e comuns - motivos do afastamento de pais de filhos com deficiência, reside uma dificuldade do próprio pai em aceitar um filho com deficiência que não poderá ser o continuador de seus projetos e de quem dificilmente irá se orgulhar (AMIRALIAN, 2013). Uma possibilidade de favorecer a construção da paternidade é a presença do homem desde o início da jornada de ter um filho. As consultas pré-natais contribuem para a formação do vínculo paterno desde a gestação, pois a observação do ultrassom, juntamente com as aulas de educação pré-natal, visualização do feto além de ajudar a confirmar a formação dessa nova vida, fortalecem a transição para a paternidade e consolida a identidade paterna (DRAPER, 2002; EKELYN et al., 2004 citado por MALDONADO, 2013). No entanto, a presença física não garante o investimento emocional do cuidado, mas depende das repercussões subjetivas que a experiência provoca, expressas ou na decisão de se afastar ou de buscar um sentido ao cuidado, respectivamente conforme as falas a seguir:

[...] o pai ainda acompanhou nessa cirurgia, mas quando viu a imperfeição do crânio do bebê, aí ele desanimou, porque ele ficou com um lado completo e o outro bem baixo, aí acho que ele desanimou por aí e (Entrevista - Avô 11).

[...] o povo só dizia que era essa mi, micro, microcefalia, aí pra mim não mudou em nada, é filho, é mesma pessoa, pra mim não mudou em nada, é filho igual o outro, pode ela vir com defeito ou não (Entrevista - Pai gestação 9).

Os pais que optam pelo cuidado se mostram potentes desde a notícia da gestação. Essa parceria firmada entre os pais também é estruturante após o nascimento, momento em que outras implicações emocionais vêm à tona. O período do puerpério exerce um grande impacto no companheiro, que pode assumir funda mentalmente duas posições: ou participar de forma ativa, compartilhando com a mulher a responsabilidade de cuidar do bebê e dando-lhe apoio e encorajamento, ou sentir-se marginali zado, rejeitado, “sobrando” na relação materno-filial (MALDONADO, 2013). Nesta última posição, a autora afirma que o distanciamento se reforça pelo envolvimento da mulher com o bebê e a consequente abstinência sexual das primeiras semanas, vendo assim o homem um refúgio no traba lho ou em relações extraconjugais. (MALDONADO, 2013).

Frente aos afastamentos e aproximações da mãe, a subjetividade de cada pai, juntamente com as representações sociais atribuídas ao homem, revela-se a partir dos sentidos que eles atribuem à paternidade, à gestação, nascimento, a ter um filho, como também ter um filho com limitações e quais cuidados são oferecidos de acordo com tais sentidos, como mostra o relato:

[...] é logico que a gente espera que o pai mesmo cuide da gente, eu não tive isso. Eu mesmo quando tinha reunião na escola e chamavam minha mãe e meu pai eu chorava, já era grandinho, mas ficava triste, os pais presentes ali e o meu não, marca muito isso, pronto, por isso que hoje sendo pai eu vou, quando vai os dois dá pra ver que ele fica mais alegre ainda (Entrevista - Pai 15).

A vivência de ter um filho com deficiência é simbolizada de acordo com a história de cada um. Para um pai participante, a filha com deficiência que estaria por vir parecia representar um resgate da paternidade, demonstrando que a necessidade de cuidado maior aflorou a necessidade de maior presença. No ensejo da preocupação materna primária especial, o pai ajusta o cuidado de acordo com as necessidades daquela gestação além de possivelmente dar um sentido de resgate de uma paternidade que não fora suficientemente boa:

[...] na outra gestação eu bebia, bebia muito, eu trabalhava em Campina, bebia muito mesmo. Quando eu chegava em casa, não chegava nem em casa, quando chegava na cidade de Esperança já começava a beber, tive queda, eu pulei de um lugar alto e quase perdi esse olho, ficou até roxo ta vendo? Levei uma queda por causa de cana. Agora eu parei. Parei assim, as vezes tomo na casa de mãe ou é um aniversário, mas muito, muito mais não. Parei. Tô mudando um pouco. Tô tentando fazer diferente. Se o cabra... se eu tive um pai, se eu sou pai de um, eu fiz alguma coisa errada no outro, eu tenho que consertar agora, nessa menina agora, vai ter que consertar, se não der, tenta consertar depois, mas tô mais próximo, ela precisa mais (Entrevista - Pai gestação 9)

A esposa também relata o envolvimento diferente nesta gestação “especial”:

[...] a gente já se separou duas vezes, agora ele tomou mais juízo né porque antes ele bebia aí a gente brigava por isso, agora ele tá mais tranquilo. Hoje, toda manhã ele tá em casa, ele deixa de ir trabalhar para ficar comigo o dia todo fazendo exame e pega carta pra levar no trabalho. Ele tá mais presente agora do que com o primeiro (Entrevista - Gestante 13).

Para outro pai, a notícia do filho com deficiência contribuiu para a união conjugal, assumindo assim a função simbólica de estreitar vínculos:

[...] que casal que não tem discussão? Acho que depois que ele veio a relação ficou melhor, graças a Deus, melhorou, a gente se uniu mais. Teve momentos que a gente pensou em se separar e tal, eu entendi e ela entendeu que a gente precisa tá junto pra cuidar e isso ajudou (Entrevista - Pai 15).

Ambos os pais decidiram compor, juntamente com a mulher, o cuidado ao filho. Outro reflexo nessa dinâmica social no entorno do bebê com limitações é a deficiência como justificativa para que as pessoas poupem os pais e esses possam obter ganho secundário:

[...] se eu dissesse alguma coisa pra ele, ele ia tomar pra ela, ela ia pensar ‘painho tá falando pro C. porque nosso filho é especial, porque o filho é diferente, né, duro saber o que vão pensar. Tinha hora que eu tava pra hora de explodir, mas por ela, por ter o filho diferente, eu aguentei (Entrevista - Avô 11).

Resguardadas as diferenças subjetivas e as consequentes histórias de cada pai, o período em que uma pessoa é convocada para ser mãe ou pai é certamente uma época de autossacrifício (WINNICOTT, 1979c). Por isso, é importante considerar também como que aqueles poucos pais que assumiam uma função no cuidado dessa população se mostravam fortemente investidos nessa paternidade, vivida como “paternidade especial”. Os pais presentes pareciam “mais pertencentes” ao grupo e bastante envolvidos com as complexidades inerentes àquela realidade. A importância da participação familiar vista na possibilidade de contar, ou não, com a ajuda da família próxima ou ampliada no cuidado da criança adoecida também é reforçada por outros estudos com mães de bebês com SCZv (FREIRE et al., 2018).

A função paterna nesses espaços se manifestava na constante presença física, nos atendimentos, nos eventos e na atuação extra serviço, apoiando as mães e cuidando dos bebês. Além de tais formas de atuação paterna, colocavam-se em seus discursos como partícipes desde o ato de engravidar, como se incluir no processo da gestação. Na fala que se segue ficam claros os processos de corresponsabilização e a defesa contra os ataques dirigidos a um dos membros da parelha conjugal pelo uso do pronome da primeira pessoa no plural:

[...] e a mãe dela ficava falando, mais no começo, agora não fala mais não, ela botava a culpa toda pra cima dela, porque ela teve essa gravidez e logo no tempo que teve essa doença. Ela não teve culpa de nada, nós ia saber que tinha doença e ia engravidar? (Entrevista - Pai gestação 9).

A presença também se expressa no apoio emocional paterno quando garante que a situação e consequentes rearranjos é conjunta:

[...] quando fui dar essa notícia a ele, porque assim, a gente nunca espera como a pessoa vai reagir, a gente pensa na reação da pessoa e nunca sabe, achei muito lindo o que ele falou, ele falando que não importa o que vinha [...]ele vai amar de qualquer jeito, ele vai dar amor e carinho e é o filho que ele queria, você tá entendendo? Isso marcou muito pra mim porque pelo que eu passei com o pai do meu primeiro filho que não teve esses probleminhas e este não é assim, então isso marcou muito pra mim, tá entendendo? (Entrevista - Gestante 7).

O suporte fornecido pelo homem é reconhecido pelas mulheres cuidadoras - sejam mães, avós, profissionais - e valorizado quando ele assume o cuidado e se inclui na rede bastante exigente de cuidados intensos e constantes. Como vimos, a base do cuidado é da mãe, a qual, diante das variadas mudanças, precisa do pai em casa para ajudar essa mãe a sentir-se bem em seu corpo e feliz em seu espírito (WINNICOTT, 1979a). Outras maneiras aparecem no apoio emocional:

[...] eu chegava pra ela e dizia: que é que você tem? Ela dizia nada, eu dizia você tem alguma coisa senão não taria nos canto chorando, triste... Fala o que você tem? E ela disse que a mãe dela falava isso e isso, que os vizinho já falavam que a menina tava doente e não sei o que, mas se Deus quiser vai valer a pena, vamos passar por isso (Entrevista - Pai gestação 9).

[...] eu digo pro pai que se eu pudesse dar a minha vida para ela, ele diz não, não vai precisar não, que ele vai vir bem, vamos ter fé, vamos orar por ele, vamos aceitar ele do jeito que Deus quis dar ele. Então, isso é muito bom, nesse momento é muito importante né (Entrevista - Gestante 7).

Os pais atuantes demonstram sensibilidade ao sofrimento da mulher, no entanto parece que não há espaço para expressão dos próprios sentimentos, possivelmente referenciados pela masculinidade hegemônica da não expressão de emoções:

[...] pro meu marido no começo foi muito difícil, ele se isolou do mundo, porque ele tinha acabado de perder a mãe então foi duas perda, ele não se conformava, chorava pelos canto, acho que ele ficou com depressão, ele sofre, tá mais conformado mas até hoje ele sofre, do jeito dele, eu tô respeitando o momento dele, ele não fala muito mas eu entendo que ele tá sofrendo, ele olha a menina e o olho dele se enche de lágrima, já vi várias vezes, ele fala porque que tem que ser com a filha dele (Entrevista - Mãe 3).

Alguns, parecem canalizar a raiva ou escolher a via física como forma de resolver conflitos (como em situações de preconceitos) tornando-se a possível resposta à demanda de desempenho de seu papel social: ser violento é ser "homem" (SCHRAIBER; FIGUEIREDO, 2012), como ilustrado abaixo:

[...] aí nem eu nem o pai vai gostar que fiquem olhando, falando isso e aquilo, porque ele já disse que se começarem a falar isso, isso e aquilo ele vai brigar, ele já disse. Aí vai ser mais difícil (Entrevista - Gestante 13).

Tais manejos para enfrentamento dos homens são reprodutores dos valores da masculinidade construída socialmente: o bom homem é viril, forte e não demonstra sentimento. O distanciamento desse modelo dominante faz o homem sentir-se ameaçado em seu poder por apresentar características femininas, tidas como de menor valor social (MISTURA, 2015). Tal ameaça pode refletir em seu exercício da paternidade: mesmo que haja atuação paterna desde as primeiras vivências de gerar um filho, esta ainda não é central como a atuação materna. Nessa dinâmica, os homens que se arriscam na jornada da paternidade demonstram receio em atuar, como se a legitimidade do cuidado e seus sentimentos fossem exclusivamente maternos, sentido esse compactuado até mesmo pelo autor que teoriza sobre o tema:

[...] sou homem e, portanto, jamais poderei saber, na verdade, o que se sente ao ver ali embrulhado no berço uma parcela do meu próprio ser, um pedaço de mim vivendo uma vida independente, mas, ao mesmo tempo, dependente e tornando-se, pouco a pouco, numa pessoa. Só uma mulher pode sentir isso e, talvez, só uma mulher possa até imaginar essa experiência quando, por infortúnio de uma ou outra espécie, lhe falta a prova real e concreta (WINNICOTT, 1979b, p. 15).

Diante dessa divisão estereotipada de gênero, produz-se a supervalorização da maternidade conferida à mulher, reforçada pela predisposição genética, em contrapartida o trabalho da reprodução e da produção remunerada ao homem (ROHDEN, 2009). Assim, como reflexo das práticas sociais, a divisão sexual do trabalho marca a separação e hierarquia entre atividades masculinas e femininas (FIGUEROA; GUARRIDO, 2012). No contexto da síndrome congênita do Zika, muitos homens destoam dessa representação masculina no cuidado e exercem proximamente a função da maternagem:

[...] quando foi na hora do parto a médica disse: ele nasceu com microcefalia, eu já tava de mala pronta pra ir pra São Paulo pra trabalhar, eu queria ir pra lá, mas quando recebi esta notícia pensei, eu vou ter que ficar agora, falar a verdade pra você, a gente não sabia o que era isso, microcefalia, até hoje a gente fica na dúvida, aí eu digo, eu tenho que ficar pra ajudar, eu pensava em ir pra São Paulo pra ver se melhorava as condições (Entrevista - Pai 15).

[...] Deixei de trabalhar, eu trabalhava e dava sustento pra todo mundo, eu parei pra dar toda assistência a ele. O que o pai não fez, eu tô fazendo, aliás, tentando fazer melhor, melhor do que fiz pras minhas, quando eu tive as minha eu trabalhava e minha mulher cuidava delas, mas agora não, eu parei de trabalhar pra dar assistência a ele, se ele precisa de ajuda, no que for, eu vou tá presente (Entrevista - Avô 11).

Mesmo com o desejo de cuidar, o exercício paterno ocorre com ressalvas quando requer uma adaptação mais intensa frente ao corpo frágil e desconhecido desses bebês. As mães e profissionais também demonstraram receio inicial em manusear os recém-nascidos, mas processualmente foram aprendendo e confiando para promover os cuidados, diferentemente de alguns pais que desistem desse arriscar:

[...] o outro quando nasceu eu peguei, o maior, porque ele já tinha aquele negócio de mais madurinho, esse eu fiquei cismado de pegar quando nasceu, eu mesmo fiquei, porque ele era tão pequeno que eu tinha medo que ele escorresse da minha mão. Aí eu não tive coragem (Entrevista - Pai 15).

A proximidade paterna com o bebê depende, também, da forma que a mãe faz a mediação da relação pai- filho, pois cabe a ela decidir sobre quando o pai entra em cena nos cuidados com o bebê (WINNICOTT, 1979a). É recorrente as mães de filhos com deficiência apresentarem dificuldade em permitir que o pai assuma seu papel na vida do filho, usando-o para a satisfação de suas próprias necessidades (AMIRALIAN, 2013). Nesse ensejo, a mãe influencia o vínculo do pai com o bebê. Não é uma mediação para tornar fluida a relação entre eles, se terão ou não afinidades: isso depende do pai e das crianças. Mas está verdadeiramente em seu âmbito possibilitar essas relações, ou impedi-las, ou desfigurá-las (WINNICOTT, 1979a, p. 133). Algumas mães demonstravam abertura para incentivar a relação dos pais e estes buscavam a parceria no cuidado, mesmo sentindo que a referência do manejo é da mãe:

[...] eu faço fisioterapia em casa, a gente ajuda todas as maneiras que puder. Banho ela dá mais, às vezes eu dou, a mãe tem mais jeito né, o pai é meio, sei lá... Mas comida eu dou a ele, boto pra dormir, às vezes ela tá cansada, ele acorda e eu fico olhando, a gente divide, a gente procura se ajudar um ao outro. (Entrevista - pai 15).

Embora o pai se coloque de maneira atuante, ele se encontra preso às concepções de gênero: a mulher com os afazeres na lida da casa, do cuidado de crianças e idosos, além de cuidar dos doentes, isentando-se os homens dessas tarefas por terem a atribuição de provedores, trabalhando fora da casa para o sustendo da família (SCHRAIBER; FIGUEIREDO, 2012). Assim, o pai atuante que ultrapassa sua esperada função e arrisca no manejo com o bebê é percebido como surpreendente. Sobre esse cuidado direto do pai oferecido ao filho, há percepções sociais que o valorizam fortemente e há aquelas que se opõem, pois são defensoras das divisões de tarefas pelo gênero: embora dicotômicas, ambas revelam a mesma referência simbólica que reforça o caráter excepcional do cuidado masculino (FIGUEROA; GUARRIDO, 2012).

Diante desse cenário, o cuidado excepcional se expressa, em geral, na prioridade da função ocupacional construída historicamente:

[...] vou ficar na minha mãe por enquanto porque eu não posso ficar sozinha. Meu marido trabalha, só vão dar cinco dias, depois ele volta e de noite tá em casa. Ele trabalha de três da tarde até meia noite (Entrevista - Gestante 13).

[...] meu papel é correr atrás do direito dele e dar tudo de melhor pra ele, o que a mãe faz eu faço tudo, tudo o que a mãe dele faz, a mesma coisa, sigo ela, tudo o que tiver aqui eu venho, só quando eu tenho bico né, daí eu não posso vir, sempre temos que achar um jeito de ganhar mais né, pra ajudar nos gastos de casa (Entrevista - pai 15).

[...] fui atrás do direito dele, porque se ele tem direito eu vou atrás pelos direitos dele, fui na justiça pro pai pagar pensão. Cheguemo lá no juiz e ele perguntou se era um bom caminho, eu digo é, se ele quisesse ele já tava ajudando, eu não procurava, mas como não foi assim eu fui atrás, ele tem que assumir (Entrevista - Avô 11).

A participação masculina se revela, assim, nos espaços públicos, como idas aos atendimentos em saúde, busca por benefícios e provedores financeiros, mantendo-se como coadjuvantes do cuidado e das tarefas domésticas. Frente a essa articulação de funções, os homens elegem o investimento no cuidado nas esferas públicas, locais familiares nos quais são interlocutores privilegiados com o mundo além de casa (SCOTT et al., 2018).

Infelizmente, o que se percebe na maioria dos casos em que o pai se faz presente fisicamente é que a função paterna inicial - sua ação e sua intenção voltada, antes de tudo, à proteção da mãe e ao provento do lar e não diretamente ao cuidado do bebê - não se constitui. Outra função paterna aparentemente pouco presente é o promover a sustentação emocional da mulher nesse período sensível, contribuindo para a separação da simbiose mãe-bebê e possibilitando que ambos se interessem por outras relações no mundo. Quando há um bebê com grandes limitações, exige-se maior rede de apoio em seu entorno, reconhecida pelos pais participantes e clamada pelo desejo desses da atuação dos restantes dos pais cuja presença se marca pela ausência:

[...] se eu tivesse contato com eles eu ia conversar com eles, incentivar eles a participar. Esse problema deles precisa de muita gente cuidando, ainda mais o pai, é importante tá por perto (Entrevista - Avô 11).

Entretanto, há variados abandonos causados pelos pais desses bebês, motivados por múltiplos fatores, alguns comuns e outros subjetivos. Isso pode acontecer, por exemplo, pelo fato de o pai se sentir relegado ao segundo plano, sentir ciúme do filho e afastar-se, ou por não conseguir esperar o momento em que passa a ser importante para o filho como pessoa e, então, rivaliza com a mãe na função de maternagem (ARAUJO, 2003, p. 160).

Nesse ensejo, é importante que haja reflexões sobre o papel do masculino no cuidado especial, dada a importância do pai, o qual participa do colo que a mãe dá ao bebê a partir da efetiva experiência que a mãe tem da presença dele (FULGENCIO, 2007). Estudos comparativos feitos em diferentes culturas mostram que a qualidade da interação entre pai e filho tem uma influência marcante no desenvolvimento social da criança (MALDONADO, 2013). Nesse sentido, a dinâmica estabelecida entre os cuidadores merece destaque para apreender a relação entre ele e seu ambiente e as possibilidades do desenvolvimento dele nessa rede de relações formada por pais, familiares, profissionais e comunidade como um todo. A partir dessa rede o bebê vai se inserir em uma complexa trama de acontecimentos que estabelecem as condições e as formas de recepção e, em decorrência, do seu vir a ser humano (FIGUEIREDO, 2009, p. 121). Nesse prisma, a aplicação de teorias e técnicas de terapia de família ao campo de pesquisa e de atendimento clínico às famílias com bebês e crianças pequenas representa um campo promissor (MALDONADO, 2013).

Com esse cenário dependente de vários cuidadores, devemos promover reflexões sobre as funções e formas de manejos que cada um pode assumir. Numa dimensão social e política, faz-se emergente descontruir interpretações dicotômicas de gênero e emergir novos modos igualitários de interação social (FIGUEROA; GUARRIDO, 2012). Um questionamento importante é se o afastamento advém dos pais que atuam em nome do modelo masculino ou se o ambiente reproduz as diferenças entre as funções do pai e da mãe construídas socialmente, movimento tautológico para o qual, na tentativa de ser rompido, deve ser repensado. Dessa forma, é premente ampliar o olhar dicotômico das simbolizações que os homens e as mulheres ainda carregam para criar variadas e genuínas possibilidades de ser pai e ser mãe.

Considerações finais

Este trabalho pretendeu trazer uma compreensão da realidade desses cuidadores, permeadas pelas ambivalências e multiplicidades na formação e expressão das subjetividades no ato de cuidar. O cuidado produziu e foi produzido pelos modos de subjetivar de cada cuidador envolvido, ao mesmo tempo assumiu similaridades entre mães, pais e profissionais em contexto de Zika.

Nesse cenário intenso do protagonismo materno, a presença paterna é quase ausente na maioria das famílias. Nas relações primárias do bebê, a função paterna esperada é de suporte à função materna, atuando no importante papel de figurante. Para os enredos romantizados das mães boas e homens maus, devemos acrescentar cenas para compor uma compreensão mais integrada e individualizada da história de cada bebê e sua rede de apoio.

Identificamos que a aproximação do pai desde a gestação e acompanhamento em saúde pode contribuir para o investimento emocional do cuidado, mas depende das repercussões subjetivas que a experiência provoca, expressas ou na decisão de se afastar ou de buscar um sentido a esse cuidado do filho com deficiência. Quando a última opção prevalece, os pais se mostram bastante atuantes no cuidado e simbolizam tal vivência como ‘paternidade especial’, expressa pela corresponsabilidade do cuidado. Tais ações paternas são moldadas pela lógica masculina, por exemplo, no apoio emocional dirigido à mulher, mas a não expressão das próprias emoções, ou a manifestação violenta como xingar ou bater para enfrentar situações difíceis como o preconceito, além de atividades predominantes fora do lar, reforçando a dicotomia mulher-reprodução versus homem-produção.

Para além dessas representações sociais, a dinâmica intersubjetiva de cada família depende da forma como cada membro vai atuando e permitindo a atuação do outro membro. Na perspectiva paterna, é importante considerarmos o movimento tautológico de todos os lados possíveis promotores do afastamento dos pais - ora eles mesmos, ora a mãe, ora o serviço de saúde - para assim permitir o desfocar dos pré-conceitos e possibilitar a reflexão conjunta das inúmeras formas de exercitar a paternidade.2

Agradecimentos

Agradecemos à Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior pelo financiamento desta pesquisa.

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  • 1
    O serviço oferecia acompanhamento psicológico grupal e individual às mães. De acordo com a equipe, não havia atividade dirigida somente aos homens assim como havia para as mulheres por falta de demanda deles. Dessa forma, os homens atuantes no cuidado dos filhos dividiam os espaços predominantemente femininos, como os atendimentos e eventos em geral
  • 2
    T. G. Pereira: concepção, discussão teórica e metodológica, coleta, análise dos dados e redação do artigo. A. O. A. Reis: discussão teórica e metodológica, análise dos dados e redação final do artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2021
  • Revisado
    28 Jul 2021
  • Aceito
    17 Ago 2021
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