Resumo
Estudo qualitativo com abordagem de História Oral Temática, com o objetivo de compreender a atenção à saúde da mulher na visão de mulheres sem filhos, considerando as políticas públicas em saúde. Utilizou-se a técnica de snowball para definição das 19 mulheres participantes, sem filhos, idade entre 18 e 90 anos, que conheçam ou utilizem políticas públicas de saúde. As narrativas foram recolhidas por meio de entrevistas, com um roteiro semiestruturado, e submetidas ao método de análise de narrativas. Dentre os achados, encontram-se os discursos e as representações da maternidade, produzidos e veiculados nas políticas públicas de saúde, nas quais estão implícitas as características biológicas femininas na fragmentação do corpo feminino em útero e peito. Destaca-se ainda a percepção das mulheres sem filhos de que os programas e políticas de saúde, ao se concentrarem nos aspectos reprodutivos, reafirmam o ideal feminino de mulher-mãe, negligenciando outros aspectos e desconsiderando a mulher que escolhe a não maternidade. As representações do feminino concentram-se no corpo, alvo do poder, vinculando a condição de ser mulher à maternidade, baseado num determinismo biológico. Faz-se necessário reelaborar essas políticas, considerando as transformações no papel feminino e a liberdade de escolha da mulher na contemporaneidade.
Palavras-chave: Políticias públicas; Corpo feminino; Maternidade.
Abstract
Qualitative study with a Thematic Oral History approach, aiming to understand women's health care from the point of view of childless women, considering public health policies. The snowball technique was used to define the 19 participating women, without children, aged between 18 and 90 years, who know or use public health policies. The narratives were collected through interviews, with a semi-structured script, and submitted to the narrative analysis method. Among the findings, there are the discourses and representations of motherhood, produced and conveyed in public health policies, in which the biological characteristics of women are implicit in the fragmentation of the female body into uterus and breast. Also noteworthy is the perception of childless women that health programs and policies, by focusing on reproductive aspects, reaffirming the female ideal of a woman-mother, neglecting other aspects and disregarding the woman who chooses no maternity. The representations of the feminine focus on the body, the target of power, linking the condition of being a woman to motherhood, based on biological determinism. It is necessary to re-elaborate these policies, considering the transformations in the female role and women's freedom of choice in contemporary times.
Keywords: Public policy; Female body; Maternity.
Introdução
A maternidade passou a ser entendida como condição intrínseca da natureza feminina no final do século XVIII. A criação e cuidado dos filhos delegado anteriormente às amas é então atribuído à mãe, influenciando a condição feminina (BADINTER, 1985). A função materna cresceu durante os séculos XIX e XX, os discursos versavam sobre cuidados aos corpos femininos, principalmente aos corpos de mulheres-mães.
Alterações de valores, práticas e papéis sociais marcaram o final do século XX, principalmente no que diz respeito às mulheres e à sua posição social. A mudança do papel da mulher na sociedade e mercado de trabalho ampliou o debate sobre a feminilidade, influenciado pelas políticas internacionais, nos anos 1990 (GALVÃO; DÍAZ, 1999; FREITAS et al., 2009). Tal debate ocupa espaços sociais e governamentais e faz com que as mulheres façam opções diversificadas, exigindo novos posicionamentos e responsabilizações para além da maternidade. Há um adiamento ou renúncia em ser mãe, durante algum tempo os programas de atenção à mulher não acompanharam as novas perspectivas femininas, pois a feminilidade “pode ou não incluir a maternidade, ou seja, realizar-se como mulher não passa obrigatoriamente por ser mãe” (BARBOSA; ROCHA-COUTINHO, 2007, p. 184). O custo dessas escolhas pode ser alto numa sociedade que ainda percebe a maternidade como a principal atribuição feminina e, muitas vezes, falta à mulher o apoio para sustentar tais decisões.
Diante disso, apesar da saúde da mulher tornar-se uma das prioridades das políticas de saúde governamentais, as ações desenvolvidas até fins de 1990 ainda enfocam a reprodução e a redução da mortalidade materna, além do incentivo à prevenção do câncer. Com esse quadro e a partir da reavaliação do atendimento realizado à mulher no âmbito da saúde, nos últimos anos do século XX, o movimento feminista reivindicou a incorporação de “outras questões, como gênero, trabalho, desigualdade e sexualidade, anticoncepção e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis” (FREITAS et al., 2009, p. 425) nas políticas de saúde da mulher.
Referencial teórico
As políticas públicas de saúde da mulher têm como marco inicial no Brasil as primeiras décadas do século XX, porém com ações específicas referentes à gravidez e ao parto. Na década de 1920 consolidaram-se programas de saúde materno-infantil, fundamentados no modelo norte-americano, cujo enfoque funcionalista aborda apenas a dimensão biológica. Tais programas perduraram até a década de 1940, quando se criou o Departamento Nacional da Criança (DNCR), o qual acrescentou uma proposta educativa em puericultura à atenção biologicista (NAGAHAMA; SANTIAGO, 2005; SANTOS NETO et al., 2008).
O desenvolvimento da puericultura1 resultou em mudanças culturais, redefinindo o papel da mãe e o conceito de infância. As práticas higienizadoras da puericultura, justificadas pela necessidade de cuidado às crianças e diminuição da mortalidade infantil, exigiram que as mães recebessem uma educação fundamentada em bases científicas, transformando a atividade maternal em função sanitária. A relação entre as mulheres e os médicos neste contexto contribuiu para a consolidação do discurso higienista e da maternidade como identidade feminina. Tomados pelo ideal eugênico, os médicos higienistas, legitimados pelo Estado, utilizaram mecanismos de normatização do corpo feminino, por meio de políticas de controle da família, remodelando esta instituição e perpetuando valores sociais. (FREIRE, 2006; DONZELOT, 1986; COSTA, 2004).
A partir da segunda metade do século XX, especialmente nas décadas de 1950 e 1960, a escassez do crescimento econômico inversamente proporcional ao aumento populacional influenciou as políticas de saúde. Para enfrentamento dessa situação, vários governos adotaram o controle de natalidade e o planejamento familiar como meta de atenção, o que se estendeu até a década de 1970 (GALVÃO; DÍAZ, 1999). Entretanto, a assistência à mulher era restrita e fragmentada, com ações verticalizadas e centralizadoras, distantes da real necessidade.
A abertura do Brasil para a indústria estrangeira, entre elas a de medicamentos, a necessidade de controle governamental sobre o crescimento populacional e a pressão de forças políticas permitiram a entrada no mercado de anticoncepcionais, mesmo sob a contestação de alguns movimentos sociais, principalmente religiosos, que viam isso como uma imposição contra a natalidade. Em um período de liberação e inserção feminina no mercado de trabalho, os anticoncepcionais foram aceitos e vistos como uma conquista das mulheres. Em 1965, a recém-criada Sociedade Bem-estar da Família (BEMFAM2), na ausência de políticas públicas para a saúde reprodutiva, oferecia serviços de planejamento familiar. A partir de 1975, foram criadas políticas governamentais para assistência à mulher, com a implantação do Programa Nacional de Saúde Materno-Infantil- PMI (COELHO et al., 2000; ALVES, 2004).
A insatisfação de grupos de mulheres usuárias, profissionais de saúde e cientistas sociais impuseram mudanças nos anos de 1980. Consideravam os programas materno-infantis existentes reducionistas, focados nas questões biológicas e no papel materno, oferecendo cuidados apenas no ciclo gravídico-puerperal, sem assistência em outros momentos ou preocupação com as desigualdades nas relações entre homens e mulheres, que resultavam em problemas de saúde. Reivindicaram ações de melhoria das condições de saúde em todos os momentos da vida, e a equidade dos diferentes grupos de mulheres (BRASIL, 2004). Em resposta às reivindicações, o Ministério da Saúde elaborou o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), que incluía “ações educativas, preventivas, de diagnóstico, tratamento e recuperação, englobando a assistência à mulher em clínica ginecológica, no pré-natal, parto e puerpério, no climatério, em planejamento familiar, DST, câncer de colo de útero e de mama” (BRASIL, 2004, p. 17).
Em 2004, acompanhando as tendências mundiais, criou-se o Programa Nacional de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PNAISM), fundamentado nos princípios de integralidade, universalidade de acesso e equidade do Sistema Único de Saúde (SUS), mediante ações de promoção, prevenção e tratamento. Além das questões da maternidade e prevenção de câncer, o programa inclui questões dos direitos sexuais e reprodutivos, combate à violência doméstica e sexual, tratamento de HIV/AIDS e doenças crônicas não transmissíveis (BRASIL, 2004).
A participação de entidades de mulheres e do movimento feminista nas discussões de saúde, nas políticas e programas, as críticas apresentadas ao modelo assistencial, têm contribuído para uma nova conceituação de assistência à mulher. Entretanto, o que se observa na prática é a permanência de um enfoque mais biológico (TYRRELL; CARVALHO, 1993), fundamentado no modelo biomédico. Este modelo apresenta, entre outras características, o biologicismo, a fragmentação, o tecnicismo e mecanicismo. Desta forma, fragmenta o corpo em partes para explicá-lo e entendê-lo, considerando uma dimensão estritamente biológica do ser humano, ignorando sua dimensão social e emocional (CUTOLO, 2006). Este modelo referencia as políticas de saúde da mulher, privilegiando a dimensão biológica, fragmentando o corpo feminino.
O feminismo contemporâneo refuta o determinismo biológico que atribui a maternidade como destino social das mulheres. A maternidade, considerada uma construção social, determinava um lugar das mulheres na reprodução biológica, na família e na sociedade, reforçando as desigualdades de gênero e o domínio masculino. Para Scavone, “não é o fato biológico da reprodução que determina a posição social das mulheres, mas as relações de dominação que atribuem um significado social à maternidade” (2001a, p. 141). Garantir às mulheres a liberdade de escolha da maternidade “rompia com a premissa ‘tota mulier in útero’, que definia a mulher pela maternidade” (2001a, p. 140) e com o determinismo biológico. Nesta perspectiva, quebra-se o paradigma que a maternidade é o símbolo da realização feminina, garantindo a mulher uma identidade. A teoria feminista e os estudos de gênero contribuíram para um olhar mais amplo sobre o corpo feminino para além da dimensão biológica, e consequentemente, sobre a saúde da mulher.
Entretanto, cabe ressaltar que, embora as políticas para mulheres apresentem grande avanço, inclusive com a proposta da PNAISM de priorizar determinadas áreas, enfatizar minorias como mulheres indígenas, homossexuais e presidiárias, há fragilidades presentes na assistência (FREITAS et al., 2009), além de dificuldades para uma implantação efetiva dos princípios e diretrizes da política em todo o território nacional. Entre as fragilidades, encontram-se práticas voltadas para o corpo grávido e certo distanciamento das questões de gênero, com destaque para as formas de poder que incidem sobre o feminino, alvo de extensas discussões nas últimas décadas. Nota-se que as práticas de saúde estão orientadas para atender um modelo cristalizado de ideal feminino, discriminando a mulher e expondo as contradições entre práticas e discursos.
Tais questões remetem ao que Foucault explicita sobre biopoder e biopolítica, para discutir o poder exercido pelas políticas públicas. Biopoder, enquanto um poder sobre a vida, por meio de uma apropriação da vida biológica, penetrando os corpos e produzindo subjetividades (2010a). Ele destaca que, historicamente, o soberano nos séculos XVII e XVIII, transformou seu direito de fazer morrer a um direito de causar a vida. Estabelece-se, assim, a biopolítica, a intervenção e vigilância exercidas sobre os corpos, com tecnologia disciplinar, que pelo exercício do poder centra-se no corpo para aumentar sua capacidade (FOUCAULT, 2010b).
A partir do biopoder e biopolítica, o Estado intervém junto à população, por meio de estratégias e dispositivos, de programas de saúde, tendo como foco o corpo (SANTOS, 2008). Ao se propor a esta intervenção, via políticas públicas, o poder antes exercido pela repressão transforma-se em um poder mais sutil, exercido por saberes científicos que determinam que corpo é esse, como deve ser assistido, disciplinando-o, docilizando-o. Este, por sua vez, utiliza-se de redes sociais para a formação de subjetividade (SOUZA, 2011), os quais legitimam os programas de atenção à saúde da mulher.
O corpo aparece como elemento central no processo de subjetivação no mundo contemporâneo, onde diversos saberes fazem proliferar verdades sobre suas funções. Em seus estudos sobre as formações discursivas, Foucault apresenta como ‘enunciados’ as várias formas de disciplina para os excluídos, delinquentes, enlouquecidos, patologizados e outros, como objetos e alvos do poder, passíveis de manipulação e treinamento. Assim, por meio das práticas disciplinares e de adestramento, criam-se indivíduos dóceis, úteis e submissos (FOUCAULT, 2007, 2010a, 2013, 2014). Nesse contexto, a disciplina e controle, enquanto práticas discursivas, materializam-se no dever, na lei e na institucionalização dos desejos e necessidades do corpo em um sistema fundamentado na ordem e no controle deste, demarcando modos de vida (MAIA; JARDIM, 2008). Desta forma, o corpo serve aos propósitos das políticas públicas, entre elas, as de saúde.
A concepção de corpo não é natural, ele ganha sentido socialmente, mediante processos culturais que produzem e transformam a natureza e a biologia. Não se trata apenas do aspecto físico, mas dos significados a ele atribuídos. Eles são reconstruídos de modo a adequar-se aos critérios estéticos, higiênicos e morais de dada sociedade. Assim, “a inscrição dos gêneros - feminino e masculino - nos corpos é feita no contexto de uma cultura” (LOURO, 2001, p. 11). Dessa forma, as representações do feminino concentram-se principalmente nos aspectos reprodutivos e refletem as mudanças da sociedade, pois é produto social, histórico e cultural (DEL PRIORE, 2009). O corpo da mulher é alvo deste processo de disciplina e adestramento, e sua produção retoma as representações da maternidade elaboradas desde o século XVIII.
Na ‘História da Sexualidade I’, Foucault aponta que a prática de intervenção do Estado na saúde, higiene e bem-estar da mulher é uma biopolítica (2010a). Estas práticas são estratégias que permitem um controle social sobre o corpo, objetivando a proteção da mulher, que possui biologicamente a condição de gerar vida. Neste contexto, as políticas públicas e as práticas assistenciais são focadas na mulher-mãe, considerada capaz de garantir a configuração familiar (VAZQUEZ, 2014b).
Os discursos e representações da maternidade, produzidos e veiculados nas políticas de saúde, nas quais estão implícitas as características biológicas femininas, ressignificam representações e identidades culturais. A fragmentação do corpo feminino, resumido ao seu sistema reprodutor, capaz de engravidar e amamentar, estabelecer comportamentos e sentimentos de doação, cuidado e amor, estão aí inscritos, reproduzidos e ressignificados culturalmente pelos processos simbólicos. Destarte, as políticas e programas de saúde estão envolvidos nesta teia que produz corpos de mulher e reduz a noção de mulher à de mãe (MEYER, 2005).
Apesar do discurso de uma atenção à mulher integral e equânime, com questões emergentes que vão para além da maternidade, a inclusão de importantes diretrizes e propostas de novas políticas públicas de saúde, tais como: saúde das mulheres lésbicas, das mulheres negras, indígenas, trabalhadoras, políticas de enfrentamento à violência de gênero, entre outras (BRASIL, 2004), questiona-se: como a mulher tem sido assistida pelos serviços de saúde? Mais especificamente, o que tem sido ofertado para as mulheres sem filhos em uma rede de atenção à saúde? Como elas se veem e como veem os programas de saúde voltados para a mulher?
Nesse contexto, o presente artigo tem por objetivo compreender a atenção à saúde da mulher na visão de mulheres sem filhos, considerando as políticas e programas de saúde brasileira de diferentes décadas.
Metodologia
Trata-se de um estudo qualitativo, com referencial metodológico da História Oral Temática, do tipo híbrida, que mescla as entrevistas realizadas com outros documentos (MEIHY, 2011). Fundamenta-se teoricamente na perspectiva da Sociologia Compreensiva do Cotidiano, tomando como referência o pensamento de Michel Maffesoli (1988), que descreve o cotidiano das pessoas, a importância subjetiva de cada vivência, respeitando suas escolhas. Ao narrar suas experiências, crenças, relações interpessoais e com o meio, o sujeito revela seu cotidiano, o que deve ser considerado do ponto de vista sociológico e outras áreas do conhecimento. Esta abordagem contribui com a pesquisa por lançar outra visão das relações humanas (NOBREGA et al., 2012).
Por ser a pesquisa de história oral um registro, um documento importante da experiência do sujeito (MEIHY, 2011), justifica sua escolha no presente estudo. Nota-se que a metodologia possibilitou compreender a visão das mulheres sobre a construção do papel feminino e o atendimento das políticas, pelo enfoque que o cuidado em saúde da mulher se estabelece, pois as narrativas estão impregnadas das questões culturais e temporais da época vivida.
Não houve um cenário pré-determinado para recolher as narrativas, uma vez que as participantes poderiam ser encontradas em diferentes espaços, porém foram mulheres residentes em cidades de pequeno porte, médio porte e capital do Estado de Minas Gerais, as quais estabelecem contatos diversificados com a atenção à saúde local.
Para a escolha destas mulheres, utilizou-se a técnica de bola de neve (snowball), na qual os participantes iniciais do estudo indicam novos participantes, até que seja alcançado o ponto de saturação (BALDIN; MUNHOZ, 2011). Os critérios de inclusão preestabelecidos foram: mulheres sem filhos, idade mínima dezoito anos; ter conhecimento ou ser atendida por programas públicos de atenção à saúde da mulher; estar em idade reprodutiva (aproximadamente 20 anos), em cada década, desde 1950, marco do advento das políticas públicas nacionais, a 2010. Participaram deste estudo dezenove mulheres com idades entre 20 e 90 anos, representantes das décadas de 1950, 1960, 1970, 1980, 1990, 2000, 2010, diferentes profissões, classe socioeconômica, estado civil e orientação sexual.
As narrativas foram obtidas por meio de entrevistas, com um roteiro semiestruturado, entre janeiro e março de 2015, com questões sobre a identidade feminina, opção por não ser mãe e a relação com os serviços de saúde e políticas e programas voltados para a mulher. Este estudo discute os relatos referentes às questões: O que você entende por políticas públicas em saúde? O que esperaria ou gostaria de encontrar nos serviços de saúde? O que você pode dizer em relação aos programas de saúde que o serviço dispõe para você e para as mulheres em geral? As entrevistas foram encerradas quando se percebeu a saturação dos dados, sem acréscimo de novas questões referentes ao tema estudado. Foi feita uma entrevista com cada colaboradora, aqui identificada com o código C, seguido do número que representa a ordem em que foram realizadas.
Na análise das narrativas, utilizou-se o modelo proposto por Lieblich, Tuval-Maschiach e Zilber (1988), optando por identificar as histórias, fazer a discussão e análise das mesmas mediante análise do conteúdo holístico/integral, em que a leitura faz considerações de toda a história focando a construção do feminino, maternidade e políticas públicas; e da forma categorial, que pressupõe uma suposição de que a forma em que as histórias são apresentadas reflete processos de pensamento. Os achados foram discutidos com a literatura pertinente.
Todos os procedimentos éticos foram cumpridos, as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição (parecer CAAE 37866014.9.0000.5149, de 27/04/2014).
Resultados e Discussão
Nas narrativas, é possível constatar que a percepção sobre o atendimento dos programas de saúde destinado às mulheres sem filhos aponta uma fragmentação do corpo feminino, como no exemplo:
Ouvi já falar pela televisão, e já vi também no posto cartazes sobre o programa de pré-natal, acho que a Prefeitura tem alguma coisa assim também né, de pré-natal, hospital específico para mães e tal. [...] Ah, programa para tratamento de câncer de mama, por exemplo, este outubro rosa, é do SUS? Então sim, tem este incentivando o aleitamento [...] Este contra o câncer de mama, também eu vi pela televisão. [...] Além destes, eu não me lembro de mais nenhum não. Não, sempre da mulher com filhos. Porque uma das preocupações que a mulher tem normalmente é fazer os exames ginecológicos, inclusive para evitar câncer, que é o que mais preocupa. E aí, a não ser o câncer de mama, que tem. [...] Ficou algum programa que eu devia ter falado? Porque eu não lembrei. Específico para mulher não tem mesmo não. Até não tem o nome que o trem é saúde da família? Quando fala família eles entendem homem, mulher e filhos. Aleitamento materno está ligado à reprodução. Câncer de mama também está ligado, de certa forma. O pré-natal. Para uma menina adolescente por exemplo, agora até tem a campanha da vacinação, como é que chama, do trem lá? Do HPV. Tudo com medo das mulheres terem câncer de útero e não poder arrumar menino. E que preocupação é esta só com útero e com peito? A gente pode ter câncer de outras coisas, não é verdade? Por que só útero e peito que não pode? [...] o sistema de saúde pública se preocupa muito com a prevenção do câncer de útero e de mama, como se a mulher só tivesse câncer no útero ou nas mamas [...]. Sobre a campanha do HPV, para as adolescentes, que mais uma vez previne contra o câncer de útero, como se a mulher tivesse sempre que ter o útero saudável, a vida da mulher é só ter útero para ter menino. E isto não é verdade. Então outra preocupação com (pausa) como se diz com o lado reprodutor. Não com a mulher em si, mas com a reprodução, como se a nossa opção fosse só ter menino, e não é. (C 1 - solteira, 48 anos).
O corpo feminino fragmentado em útero e peito causa incômodo a esta e outras colaboradoras, que veem a política pública de forma reducionista, preocupada apenas com os aspectos reprodutivos. Destaca-se que o útero e os seios são órgãos dotados de significados no universo feminino, associados à amamentação, a fecundidade, ao erotismo e a sedução (SOUZA; MARTÍNEZ, 2014), o que, de certa forma, explica esta fragmentação. Segundo Rocha et al., são a expressão da feminilidade “o seio é o primeiro objeto de amor e de relação com o mundo do bebê. É o símbolo de desejo e identidade feminina que auxilia na constituição da sexualidade, onde a mulher reconhece sua feminilidade” (2013, p. 9), afirmam os autores, associando-os à amamentação e ao modelo de experiência de prazer dos seres humanos. O útero é outro importante elemento da feminilidade, símbolo da fertilidade, associado ao exercício da sexualidade (SBROGGIO et al., 2005). Para Del Priore (1999), a filosofia cristã e o saber médico sobre o corpo das mulheres no século XVII contribuíram para constituir o saber histórico acerca da sexualidade feminina. Neste contexto, o útero, denominado madre ou matriz, era associado a procriação e refletia os problemas da alma feminina, causando desconfiança à medicina pelos poderes mágicos a ela atribuídos, o que fundamentou a normatização do corpo feminino e naturalização da maternidade como redenção, aponta a autora.
Numa visão foucaultiana, as políticas ou programas de saúde, ao utilizarem esses símbolos como valores sociais, exercem um poder sobre os corpos, normatizando-os pelos aspectos biológicos, cerceando a sexualidade, contribuindo para a subjetivação da maternidade como condição ou natureza feminina. Esta fragmentação consolida a diferença entre homens e mulheres fundamentada no biologicismo, usado para justificar as diferenças construídas socialmente (BOURDIEU, 1990), perpetuando as desigualdades de gênero.
Indiscutivelmente, as políticas de prevenção de câncer de colo de útero e de câncer de mama representam avanços e conquistas do ponto de vista da saúde pública. No entanto, não se pode esquecer que, ao mesmo tempo em que representam avanços, podem também contribuir para uma visão e práticas fragmentadas em relação ao corpo da mulher e à saúde da mulher. Além do mais, um corpo saudável exige outros cuidados, tanto físicos quanto psíquicos (PHILIPPI, 2010; BRASIL, 2010).
Mesmo com a incorporação de novas diretrizes nas atuais políticas como citado anteriormente (BRASIL, 2004), no dia a dia dos serviços de saúde, segundo as participantes, tem-se como prioridade a saúde reprodutiva, e reduz-se, portanto, à atenção ao cuidado da mãe e seu filho. Tal fato corrobora com os dados da literatura que apontam que a própria política de saúde para a mulher, desde os primeiros momentos de sua criação, no início do século XX, está voltada para o ciclo gravídico-puerperal. Apesar das modificações a partir da reforma sanitária e criação de novas políticas, como o PAISM e PNAISM, sua ênfase está nos aspectos reprodutivos (FREITAS et al., 2009). Embora os programas e políticas supracitados sejam preconizados, nem todos têm o mesmo alcance ou efetividade desejados no cotidiano dos serviços, sendo muitas vezes desconhecidos por usuárias destes.
Um aspecto fundamental apresentado é a mudança nas formas de exercício do poder, em que a fragmentação do corpo em útero e peito vai determinar a maternidade como forma de controle sobre a mulher, garantindo assim sua importância. No exercício deste papel determina-se a identidade feminina. As estratégias dos programas de saúde, como uma questão da biopolítica, utilizam-se de saberes para intervir sobre as condições de vida e sobre os corpos femininos, mediante mecanismos que regulam e normatizam as práticas de saúde (FOUCAULT, 2010b). Nas narrativas das colaboradoras é possível perceber que a biopolítica se faz presente nos aspectos biológicos femininos, ressaltando os aspectos reprodutivos e legitimando a maternidade, como exemplificado a seguir:
As políticas públicas normalmente são voltadas pra mulher que é mãe, elas são pautadas muito no ciclo gravídico-puerperal, no pré-natal, mas eu acho que ao mesmo tempo, mesmo as políticas públicas pro ciclo grávido-puerperal, elas têm limitações grandes e dificuldades e não conseguem atingir os objetivos. A gente vê que o Ministério exige um número mínimo de sete consultas no pré-natal, as mulheres até fazem esse número de consultas, mas a qualidade das consultas deixa muito a desejar. É por isso que elas priorizam o ciclo gravídico puerperal e agora a gente vê também o Viva a Vida, na prevenção do câncer de mama, quantas mulheres até hoje nunca fizeram uma mamografia, a gente vê no cotidiano do trabalho, várias mulheres que nunca fizeram um exame de Papanicolau. Ainda que o SUS seja universal, os seus princípios de universalidade e equidade não são atingidos por toda a população, muitas mulheres não tem acesso a esses serviços, eu acho que na sua essência as ações políticas de saúde ainda veem a mulher apenas como mama e útero porque os dois únicos programas assim, efetivos e que ainda deixam a desejar... porque não tem uma cobertura ideal, é o programa Viva a Vida, teve o PAISM na década de 80, mais a maioria desses programas só veem essa parte da mulher, eu não vejo um programa que enfatize a questão do climatério, mesmo o planejamento familiar ainda é muito associado à mulher ter que participar dos grupos, das reuniões pra poder conseguir um método contraceptivo gratuito, ainda tem muitas restrições, ainda tem muito condicionamento pra que a mulher consiga ter acesso a determinadas coisas. (C 19 - casada, 48 anos).
Neste sentido, o discurso do biopoder, ou o poder da mulher sobre a vida em função da maternidade é persuasivo, deixa traços históricos do ideal feminino gravados no imaginário social. Ressalta-se que a repetição deste discurso e destas práticas são tão comuns no dia-a-dia dos serviços de saúde, fazem parte do cotidiano das mulheres.
O biopoder incide sobre o corpo e sobre a vida ao utilizar técnicas de individuação subjetivas, um “duplo vínculo constituído pela individuação e pela simultânea totalização das estruturas do poder” (FOUCAULT, 2010a, p. 229-232). Isto possibilita uma concepção subjetiva, inclusive via conhecimento científico, quando as políticas públicas vão então priorizar a mulher-mãe, ao utilizar este conhecimento para uma ordenação coletiva. O valor mãe é subjetivado, pois tanto a sociedade quanto os serviços de saúde estão organizados em função da família e da maternidade:
Porque eu acho que realmente a que tem filho tem muito mais assistência do que nós, mulheres que não temos filhos. Ela requer, parece, mais cuidados das políticas públicas em relação à saúde do que nós, ela é mais contemplada. [...] igual na clínica das mulheres, quando eu tô lá, eu percebo, você só vê mulher casada, mulher com menino, é muito difícil você ver uma moça. Hoje, por exemplo, é muito difícil você ver uma solteira... quantas pessoas que eu conheço que são solteiras, e que não faz um exame, uma coisa que é primordial gente. Eu acho que tem que haver uma propaganda, sabe, mais voltada para esta questão da mulher sem a maternidade. Não priorizar somente a mulher mãe. [...] Porque quando você vê propaganda também na televisão dos programas do governo, você vê o que, relacionada à amamentação, ao câncer de colo de útero, tudo isso. Agora por exemplo eu achei superlegal do governo de vacinar as meninas contra HPV. [...] Então eu acho assim que foi uma coisa bem pensada, sabe, que tem que partir daí, as políticas públicas elas tem que abranger mais o gênero, sabe. (C 3 - solteira, 60 anos).
A ideia de mulher associada à maternidade possibilita as práticas biopolíticas sobre os corpos, ou seja, há um controle sobre o corpo feminino pelo exercício das práticas de saúde, que normatiza esse papel (FOUCAULT, 2010a). É uma forma disciplinar de exercício de poder, que atua a partir de um conjunto de valores compartilhados, que circulam na cultura e constituem a subjetividade. É possível identificar esta subjetivação na narrativa, quando a colaboradora diz “agora por exemplo eu achei superlegal do governo de vacinar as meninas contra HPV”. A vacina contra o HPV,3 relatada também por outras colaboradoras, é preconizada pelo Ministério da Saúde para a faixa etária de 9 a 14 anos, antes do início da vida sexual, como prevenção contra o câncer de colo de útero. Embora represente um avanço, pode também estar vinculada a essa prioridade de um corpo com potencial para a reprodução. A própria política considera a prevenção e controle das infecções sexualmente transmissíveis (IST) prioridade para a saúde reprodutiva, principalmente das mulheres (BRASIL, 2004).
Nas narrativas das colaboradoras, é possível constatar semelhanças em sua forma de perceber a atenção dispensada pelos programas de saúde à mulher sem filhos:
Acho que quando a gente... até falando da experiência como profissional, que não tem como separar, mas acho que infelizmente, quando pensa saúde da mulher, a gente pensa em saúde da gestante, ainda que a gente tenha planejamento familiar, ainda que exista uma preocupação com um momento posterior lá, do puerpério, é ainda que tenha a coisa da prevenção, o câncer de colo, a mamografia, assim, ou o foco é algum problema que tá relacionado ao ciclo de vida porque você tem um gênero feminino, ou a gente tá falando de propostas que vão cuidar do pré-natal, da qualidade do parto, é então assim, eu acho que o foco ainda é ou o da prevenção de alguma doença, relacionada ao gênero feminino, então você é útero e mama, via de regra, ou é o momento da gestação, que ai você vai cuidar da temática que tá relacionada ali, pré-natal, planejamento familiar aparece um pouco. Mas assim, como mulher ai eu vou pensar culturalmente, se eu vou pensar profissionalmente, se eu vou pensar em mercado, em inserção no mercado de trabalho, se eu vou pensar em tudo o mais que mulher significa, a própria relação com o casal, essa parte da [...] eu diria que não tem [...]. Agora esse olhar pra mulher, pra além da dimensão grávida, e pra além da dimensão mulher biológico, mama e útero, por exemplo, simplificando aqui um pouco, eu acho que não tem. [...] Não sei, eu acho que tem... em termos de pensar a mulher no sentido dessa amplitude que a gente tá colocando aqui, acho que não temos políticas públicas, nem profissionais, nem pontualmente falando, que dão conta de abordar nessa amplitude. (C 17- casada, 41 anos).
Especificamente nesta fala, destaca-se que, além de corroborar a percepção enquanto usuária dos serviços, a colaboradora apresenta o olhar de uma profissional de saúde, validando o pressuposto de que há uma invisibilidade da mulher sem filhos nas políticas de saúde, quando afirma que as práticas são mesmo voltadas ao ciclo gravídico-puerperal. A narrativa aponta importantes aspectos do universo feminino, como a questão profissional, o significado de ser mulher e as relações afetivas que são negligenciados pelas políticas e pelos profissionais de saúde, por despreparo ou mesmo falta de dispositivos para um atendimento integral.
A perspectiva da maternidade como condição de ser mulher, presente no imaginário social e nas práticas de saúde, expõe as mulheres às políticas simbólicas que a direcionam no sentido de ser mãe (MANSUR, 2003; SCAVONE, 2001b). Políticas que ordenam o poder sobre os corpos, sobre a vida, sobre a percepção do que é ser mulher.
Com efeito, “no mundo contemporâneo a feminilidade pode ocupar outros espaços distintos da maternidade, contudo, não cremos que seja errôneo afirmar que esta ainda pareça ser uma das funções organizadoras desta categoria” (NOVAES, 2010, p. 99). Reafirmando a construção histórica do ideal feminino de mulher-mãe com suas práticas voltadas aos cuidados materno-infantil, os programas e políticas negligenciam outros aspectos e desconsideram a mulher que escolhe a não maternidade.
Ah... política pública de saúde... mas são aquelas políticas que são voltadas pra toda a população, ou seja, que tão pra atender não só certo tipo de pessoas, mas que tão aí pra todo mundo, ou seja, que vão orientar como a população vai ser atendida no quesito de saúde, que vão dar a diretriz. De saúde pública eu sei de programas mais voltados pra, por exemplo, de mulher eu sei muito de grávida, por exemplo, que é muito comum, de quando a mulher fica grávida, para planejamento familiar, que são mais divulgados. Mas eu sei também que tem os programas de vacinação HPV, pras meninas até doze anos, treze, é que... é mais recente, mas é um programa voltado pra saúde, mais feminina, também, é... Às vezes, tem campanhas específicas, uma que eu fiquei sabendo recentemente foi pra... pra colocar DIU, na rede pública, pra mulheres mais voltados pra isso, ou seja, realmente muito relacionado com essa parte de reprodução. E de resto acho que não é tão voltado para população feminina, mas voltado pra um geral, um público em geral mesmo (C18- solteira, 26 anos).
A política pública é uma expressão do Estado na regulação da sociedade, e pensa a mulher enquanto reprodutora, devido à sua condição biológica, mas o fato de ter útero não significa que ela será mãe, que esta será sua escolha. Quando as políticas públicas reafirmam as práticas voltadas apenas para a maternidade, privilegiando determinados órgãos, fragmentam o corpo feminino, reduzindo a mulher à função reprodutiva, sugerindo técnicas disciplinares do corpo, através da biopolítica. Ao reduzir a mulher a útero e peito, negam-lhe a subjetividade, causando-lhes um mal-estar.
No cotidiano do serviço, muitas vezes pela própria dinâmica, as novas propostas e programas não são implantados de acordo com as demandas apresentadas, pelo que se pode notar nas narrativas das participantes deste estudo. Algumas políticas são implantadas amplamente em grandes centros e não em pequenos centros, como é o caso de uma colaboradora que mora em cidade com menos de cinco mil habitantes. Infere-se que isto também pode acontecer com outras mulheres que utilizam os serviços. É interessante ressaltar, por exemplo, que dentre as colaboradoras, algumas tem diferente orientação sexual, entretanto, não conhecem ou não citaram a política para lésbicas. Ou as políticas não são implantadas e efetivadas em todos os serviços de saúde, ou não atendem de forma satisfatória a população feminina.
Algumas políticas estão fortemente efetivadas, como é o caso das que se referem aos aspectos reprodutivos, que reforçadas histórica e culturalmente, mantém suas práticas centradas na prevenção de câncer de mama e de útero. Outras diretrizes encontram-se fragilizadas, embora façam parte das políticas para mulheres, como o atendimento à mulher a partir de uma percepção ampliada de seu contexto de vida e singularidade; norteamento das políticas pelas perspectivas de gênero, raça e etnia, não focadas apenas na saúde sexual e reprodutiva; atendimento da mulher em todos os seus ciclos de vida e faixas etárias ou grupos populacionais (BRASIL, 2004). Na práxis, tais diretrizes não se encontram efetivadas, preocupação que se percebe nos autores citados anteriormente, sinalizando a necessidade de uma atenção voltada para outras questões do universo feminino.
Ao negar a determinação cultural no qual se insere e transgredir sua função reprodutora da espécie, a mulher que opta pela não maternidade se vê à margem das políticas de saúde. Levada a incluir-se em um novo lugar, a mulher sem filhos circula por diversos espaços, participa ativamente da sociedade, seja nas questões econômicas e políticas, entre outras, entretanto, não encontra acolhimento nas políticas de saúde que preconizam a universalidade, equidade e integralidade dos serviços, mas que excluem grande parte da população ao definir um perfil de mulher a ser atendida: a mãe.
Algumas considerações
Ao possibilitar que mulheres sem filhos apresentassem sua percepção sobre as políticas e programas de saúde, este trabalho trouxe à tona fragilidades da assistência à mulher, como as questões referentes à constituição do feminino. O sentimento de exclusão apontado pelas colaboradoras pode ocorrer por diversos motivos, como o fato de o serviço não atender todas as suas demandas, pelo foco nos aspectos reprodutivos, até mesmo pelo fato destas mulheres não procurarem um serviço de saúde para práticas cotidianas, como exames de rotina, vacinas, entre outras. Esta situação carece de reflexão.
Mesmo com a existência e criação de novas diretrizes e políticas para mulheres, o que se vê na prática é que nem sempre elas têm o alcance a todas as usuárias dos serviços ou até mesmo todos os municípios. Nota-se, ainda, a ênfase na prevenção do câncer de mama e útero, como narrado pelas colaboradoras. Além disso, as narrativas refletem que a maternidade é um valor incorporado socialmente à identidade feminina, e que, apesar dos novos papéis assumidos pela mulher, sua inclusão no mercado de trabalho, ser mãe, ainda hoje, é prioridade tanto no imaginário social como nas práticas e políticas de saúde.
Considerar as transformações no papel feminino, as novas configurações familiares e a liberdade de escolha na reelaboração destas políticas podem significar um passo no sentido de solucionar a questão. Além de que, ao refletir sobre os discursos dessas colaboradoras, pode-se repensar em estratégias para a efetivação de políticas de atenção às mulheres, tais como violência de gênero, saúde sexual, entre outras, considerando a integralidade da atenção a saúde, que em muitos cenários encontram-se como propostas. Logo, se propor a escutar outras histórias, para além da fragmentação do corpo feminino em útero e peito.4
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J. S. de A. Machado: projeto da pesquisa (doutorado), coleta e análise de dados, discussão dos resultados, elaboração do artigo e aprovação da versão final a ser publicada. C. M. de M. Penna: orientação do doutorado, contribuindo para a concepção do trabalho, análise e interpretação de dados, a escrita do artigo, além da sua revisão e correção; aprovou a versão final a ser publicada.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
06 Jul 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
16 Mar 2019 -
Revisado
02 Jul 2019 -
Aceito
08 Ago 2019