Resumo
O SUS trouxe os princípios de universalidade, integralidade e equidade para nortear as ações e os serviços de saúde, que devem ser livres de preconceito e discriminação. A rede formal de cuidados foi compreendida como a que está institucionalizada e a rede informal é uma rede afetiva. O objetivo da pesquisa foi compreender o acesso à rede de cuidados à saúde na percepção de transexuais em um município da Zona da Mata mineira, por meio da abordagem metodológica qualitativa com estudo descritivo. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com oito pessoas transexuais. As informações foram analisadas por meio da hermenêutica-dialética. Foram identificadas como barreiras à rede formal de cuidados o desrespeito ao uso do nome social nos serviços de saúde e o preconceito dos profissionais. Buscam-se cuidados e informações sobre uso de hormônios nas redes informais. A rede informal acolhe, mas a busca por cuidados somente nessas redes pode trazer riscos à saúde. A pesquisa evidenciou a existência de uma forte rede afetiva no município e a necessidade do estabelecimento de uma sólida rede formal de cuidados para a população transexual com ampla participação da rede informal. A rede formal é instável e não atende as necessidades de saúde dessa população.
Palavras-Chave: Transexualidade; Rede de cuidado; Sistema Único de Saúde
Abstract
SUS brought the principles of universality, integrality, and equity to guide health actions and services, which must be free from any form of prejudice and discrimination. The formal care network was understood as the one that is institutionalized, and the informal network is an affective network. This research aimed to understand the access to the health care network in the perception of transsexuals in a municipality in Zona da Mata, Minas Gerais, through the qualitative methodological approach with descriptive study. Semi-structured interviews were conducted with eight transsexual people. The information was analyzed using hermeneutics-dialectics. Barriers to the formal care network were disrespect to the use of the social name in health services, prejudice, and unpreparedness of professionals. Therefore, care and information on hormone use are sought in informal networks. The informal network welcomes, but the search for care only in these networks can bring health risks. The research showed the existence of a strong affective network in the municipality and the need to establish a solid formal care network for the transsexual population with wide participation in the informal network, since the formal network is unstable and does not meet health needs of that population.
Keywords: Transsexuality; Healthcare System; Unified Health System
Introdução
Para fazer algumas considerações relativas à rede de cuidados à saúde para as pessoas transexuais, é fundamental considerar não só as redes formais de cuidado, mas também as redes informais (KEMPER et al., 2015).
A rede formal pode ser compreendida como aquela que está instituída, limitada a um espaço físico, com foco no procedimento e na produtividade, cujos procedimentos são formalizados para a produção do cuidado. Pode impor um cuidado que não considera a realidade do usuário, seus saberes e suas experiências, o que contribui para uma possível não adesão às propostas de tratamento e para a não construção de vínculos entre os usuários dos serviços e a equipe de saúde (KEMPER et al., 2015; MERHY et al., 2014).
Os usuários dos serviços de saúde, carregando suas experiências, produzem saberes e formas de cuidado diferentes daquelas cristalizadas pelos profissionais e impostas na rede formal de cuidado à saúde, o que pode gerar um processo de tensão e de necessidade de negociação com a equipe de saúde (MERHY et al., 2014).
As redes e conexões construídas pelos usuários devem ser consideradas como redes potencialmente criadoras de formas de cuidado. Atravessam a rede formal de cuidados à saúde e são redes vivas, marcadas pela presença da comunidade, do trabalho, de familiares, de amigos, formando uma rede de cuidados informal e também afetiva. São redes não lineares, não limitadas a um espaço definido geograficamente, estão em constante construção pelos próprios usuários e, em geral, são desconhecidas pelos profissionais de saúde (KEMPER et al., 2015; MERHY et al., 2014). Nesse sentido, o usuário estabelece conexões ao mesmo tempo com a rede formal e com as redes informais, devido às necessidades de compartilhamentos, de solidariedade e de trocas (MERHY et al., 2014).
Quando se pensa na rede formal de cuidados à saúde para a população LGBT, observa-se que as necessidades de saúde dessa população não são atendidas na perspectiva da integralidade. Os serviços públicos de saúde são ainda orientados pelo modelo cisgênero e binário, o qual limita as identidades transexuais e violam o exercício do direito à saúde desta população (GOMES et al., 2018; PRADO et al., 2017).
Ao buscar os serviços de saúde, as pessoas transexuais se deparam com diversas barreiras materializadas em situações de violência e de preconceito, como o desrespeito ao uso do nome social, o despreparo e o preconceito dos profissionais de saúde. São situações que causam constrangimento e medo de sofrer preconceito ao buscar por esses serviços (GOMES et al., 2018; PRADO et al., 2017; SILVA et al., 2017; FRANKLIN et al., 2016).
A partir do diálogo com pessoas LGBTQIA+, foi possível perceber que as dificuldades enfrentadas pelas pessoas transexuais ao buscar os serviços de saúde pareciam existir também no município em questão. Dessa forma, a busca por cuidados à saúde ficava submetida a uma rede formal instável que não atendia suas necessidades de saúde, e às redes afetivas, protagonistas no município. Assim, a pesquisa teve como objetivo compreender como é o acesso à rede de cuidados à saúde na percepção de transexuais em um município da Zona da Mata mineira.
Metodologia
Foi realizado um estudo descritivo, de abordagem qualitativa, em um município da Zona da Mata Mineira. Conforme dados do último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o município conta com uma população equivalente a 516.247 pessoas (IBGE, 2018). Segundo dados do Plano Diretor de Regionalização de Minas Gerais (2011), o município é também sede de macro e microrregião de saúde.
Em relação à rede de cuidados à saúde existente no município até o momento da pesquisa, destacava-se um projeto de extensão vinculado à Universidade Federal na cidade, composto por estudantes de graduação em Psicologia em sua maioria, mas que também contava com estudantes de graduação de áreas afins. Eram realizados encontros quinzenais nos quais se discutiam questões relativas à saúde da população travesti e transexual, que tinham como objetivo a criação de vínculos e a construção de uma rede de apoio, além da mobilização política (RODRIGUES, 2018).
No ano de 2016, o grupo construiu uma articulação com profissionais da assistência no município, o que possibilitou a construção do Ambulatório Trans, não formalizado e sediado por uma unidade de saúde de média complexidade componente da RAS do município. Eram oferecidos serviços de atendimento psicológico além de acompanhamento médico, hormonal e nutricional (RODRIGUES, 2018).
Segundo Barros (2016), a cidade tem como marca o concurso Miss Brasil Gay, patrimônio imaterial da cidade, e o Rainbow Fest, evento que conta com atividades de caráter político, artístico e cultural. A cidade também conta com a presença de uma ONG que busca a promoção da cidadania e a garantia de direitos. O município também contava com um grupo de mães e familiares de pessoas LGBTQIA+ e com um Centro de Referência desenvolvido a partir de um projeto de pesquisa e extensão vinculado à Universidade Federal localizada no município.
Participaram da pesquisa quatro mulheres transexuais e quatro homens transexuais, com faixa etária entre 20 e 30 anos. As entrevistas aconteceram no período de 14 de outubro de 2019 a 24 de janeiro de 2020. Os participantes foram recrutados pela técnica Bola de Neve. Ao final da entrevista, pediu-se que o entrevistado indicasse pessoas de sua rede de contatos para realizar a entrevista, e assim sucessivamente com cada entrevistado.
Para a coleta de dados, foi realizada entrevista semiestruturada com roteiro norteador elaborado pela pesquisadora. Após os esclarecimentos sobre a pesquisa e a autorização do participante, as entrevistas foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas na íntegra, para posterior análise. Para manter o sigilo da identidade dos participantes, a identificação foi realizada pela letra E (entrevista), seguida de números arábicos, em ordem crescente (E1, E2, E3...).
Em relação à caracterização dos participantes da pesquisa, E1 se reconhecia como uma mulher trans branca de 25 anos, cuja renda era de um salário-mínimo e meio. Moradora de um bairro da Zona Norte da cidade, vivia com sua mãe. Possuía ensino médio completo e trabalhava como operadora de produção industrial. E2 se identificou como um homem transexual negro de 25 anos, que residia com seus pais em um bairro da região central da cidade. Sua renda era de um salário e meio, tinha formação técnica e trabalhava como segurança. E3 se reconhecia como um homem trans branco de 20 anos. Vivia de favor no centro da cidade com uma senhora que ele considerava como avó. Era estudante de graduação e sua renda era de R$ 400,00 relativa à bolsa de graduação. E4 se identificou como um homem trans branco latino, de 22 anos. Vivia com sua avó na região central da cidade e sua renda era de R$500,00, equivalente à bolsa de graduação. Cursava ensino superior e era também militante e artista. E5 se identificava como uma mulher trans branca de 28 anos, cuja renda era flutuante e variava de três a quatro mil reais. Vivia junto com seu namorado em um bairro da Zona Norte da cidade, possuía curso superior e cursava doutorado.
E6 afirmou, durante a entrevista, que sua identidade de gênero era masculina, pois só se identificaria como uma mulher trans totalmente após colocar silicone, fazer a cirurgia que desejava e modificar os documentos. Tinha 28 anos, sua renda era equivalente a R$1.500,00 e trabalhava como cuidador de idosos. Tinha ensino médio completo e morava com seus pais em um bairro da Zona Sul da cidade. E7 é uma mulher trans branca de 29 anos, que morava sozinha em um bairro da região oeste da cidade. Sua renda era equivalente a um salário-mínimo, possuía ensino superior incompleto, era estudante e também acrobata. E8 é um homem trans pardo de 30 anos, que vivia com seus pais na região central da cidade. Sua renda era de R$1.100,00, tinha formação técnica em enfermagem e trabalhava como representante de atendimento em uma empresa de telemarketing.
A análise dos dados foi realizada pela análise de conteúdo por meio da abordagem da hermenêutica-dialética. A hermenêutica tem como ponto central a linguagem no contexto e na cultura na qual foi produzida, tendo como ponto primordial o consenso. Já a dialética busca as contradições presentes nos fatos, na linguagem e na cultura, ressaltando como primordial o dissenso. Ao unir a hermenêutica com a dialética torna-se possível valorizar tanto as suas divergências quanto suas complementaridades presentes nas falas (ALENCAR; NASCIMENTO; ALENCAR; 2012; ARAÚJO; PAZ; MOREIRA, 2012).
A análise dos dados foi realizada inicialmente com a transcrição das entrevistas. Foram identificadas as principais ideias explicitadas pelas falas dos entrevistados, o que permitiu a construção dos seguintes núcleos de sentidos: Nome social; Dificuldades relacionadas ao acompanhamento hormonal; Dificuldades relacionadas aos profissionais de saúde mental; Acolhimento nos serviços de saúde; Busca por informações relacionadas à saúde e Hormonização por conta própria.
Após a identificação dos núcleos de sentido, foram extraídos das entrevistas os fragmentos de fala que representavam tais núcleos, de modo que estes fragmentos foram organizados em um quadro de análise (Quadro 1) (ALENCAR; NASCIMENTO; ALENCAR; 2012).
Após a organização dos núcleos de sentido no quadro de análise, foi realizada uma síntese horizontal identificando as divergências, as convergências e as particularidades presentes nas falas de cada participante da pesquisa. Já a síntese vertical possibilitou analisar a articulação dos núcleos de sentido para os participantes de forma individual.
Emergiram da análise as seguintes categorias: A rede formal de cuidado à saúde; e A rede informal de cuidado à saúde. A primeira categoria foi composta pelos núcleos de sentido: nome social; dificuldades no acompanhamento hormonal; dificuldades relacionadas aos profissionais de saúde mental; acolhimento nos serviços de saúde. A segunda foi composta pelos núcleos de sentido: busca por informações relacionadas à saúde e hormonização por conta própria.
A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Juiz de Fora e aprovada pelo parecer número 3.038.612. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Resultados e Discussão
Nesta categoria será apresentado e discutido o acesso dos participantes às redes de cuidados à saúde no município. O desrespeito ao uso do nome social nos serviços de saúde, bem como a carga que o nome carrega para esses sujeitos foram observados em diferentes falas.
[...] e uma outra coisa que eu senti muita falta também foi a questão da falta de preparo das pessoas. Então a gente chegava lá, falava que tinha o nome social e mesmo assim a gente era chamado pelo nome de registro. Então isso acaba afetando muito a saúde mental das pessoas trans [...] (E3)
Também foi destaque, em uma das falas, a dificuldade relacionada ao nome social durante a compra de hormônios.
Com a receita [...] teve uma vez que eu tive problema por causa do meu nome, que quando eu fui pro plano ele não botava mais meu nome social, ele não podia botar meu nome social na receita, então ele botava o nome de registro. Teve uma única vez que uma pessoa falou que não podia me vender, aí eu pedi pra ele falar com o farmacêutico [...] (E4)
O nome social no cartão SUS é garantido pela Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde. Segundo esta portaria, o uso do nome social deve ser respeitado nos serviços de saúde, buscando-se um atendimento humanizado, livre de todo tipo de discriminação ou de negação de direito. Deve haver no documento do usuário da saúde um espaço destinado ao registro do nome social, cujo uso deve ser assegurado (BRASIL, 2009).
O nome social possibilita que as pessoas transexuais sejam chamadas pelo nome com o qual se identificam (QUEIROZ; ALMEIDA, 2016). Porém, vale ressaltar que o nome social permite a reflexão acerca da restrição da ampliação da garantia de direitos para populações excluídas. A aceitação do nome social nas instituições não significa uma mudança consistente na vida dos sujeitos, e refere-se a ele como uma cidadania precária, pela metade. Permanecem assim as situações de constrangimento nos diversos espaços onde esses sujeitos transitam (BENTO, 2014).
É possível observar tal cidadania precária nas falas dos entrevistados, pois, mesmo diante de um direito previsto por uma legislação, o nome social permanecia sendo desrespeitado nos serviços de saúde, ou seja, não se verificava uma mudança substancial no comportamento dos profissionais nestes serviços, que permaneciam considerando como nome válido o que constava nos documentos de registro.
Uma das estratégias para consolidar os princípios do SUS e garantir um cuidado à saúde integral seria a organização do SUS baseado em Redes de Atenção à Saúde (RAS). Os sistemas de saúde foram organizados em sistemas integrados com uma APS resolutiva e ordenadora de todo o cuidado. Devem prestar serviços com quantidade e qualidade, garantir o acesso, o acolhimento e a construção de vínculos entre os usuários e a equipe de saúde (MENDES, 2010).
A rede formal de cuidado à saúde, porém, limitada a um espaço físico, a procedimentos formalizados para a produção do cuidado, vinculada ao cuidado centrado na produtividade e no procedimento, frequentemente desconsidera os saberes e as experiências dos usuários, o que dificulta o acesso e leva os usuários a buscar a rede formal de cuidado privado ou as redes informais de cuidado à saúde (MERHY et al., 2014).
Outro ponto destacado refere-se à dificuldade em encontrar médicos endocrinologistas que façam o acompanhamento hormonal.
[...] mesmo quando a gente tem condições e se dispõe a pagar também não é tão simples, tem profissionais que simplesmente não sabem te atender. Já ouvi falar em casos de pessoas que foram a endócrinos e eles não sabem sequer o que é uma pessoa trans e, tipo assim, “eu não posso receitar hormônios, quê que eu vou fazer com você?” e fica por isso mesmo. (E1)
[...] quando eu comecei a querer fazer a transição hormonal eu fiquei praticamente um ano procurando um médico para poder me atender [...] eu fiquei praticamente um ano procurando algum médico que pudesse me ajudar e eu não consegui médico nenhum. Eu procurei particular do meu plano, procurei SUS, procurei outros particulares [...]. Então, pra começar a transição foi muito difícil. (E2)
Além disso, foi relatado que alguns médicos se recusam a fazer o acompanhamento. Outros solicitam que o usuário do serviço assine um termo de responsabilidade caso aconteça algo em decorrência do uso do hormônio.
[...] quando a gente chega em profissionais tanto da rede particular quanto da rede pública eles às vezes se negam a fazer isso porque eles acham que isso é mutilar o corpo humano [...]. Já ouvi caso de gente que fala que o médico manda você assinar um termo de responsabilidade, que se você se arrepender ou acontecer alguma coisa em decorrência do uso do hormônio, a responsabilidade é toda sua, tipo, isentando ele de qualquer coisa. (E3)
Observa-se, na fala de E3, a interferência médica em sua autonomia, em sua possibilidade em decidir sobre seu próprio corpo. É importante que o profissional que fará o acompanhamento hormonal informe ao usuário os riscos e os benefícios da hormonização, mantendo a autonomia do usuário.
A medicina, em geral, atribui um caráter patologizante à transexualidade e frequentemente não respeita as identidades de gênero, reproduzindo o dimorfismo e considerando que a verdade sobre uma identidade está no sexo, na natureza. Dessa forma, são determinadas características padrões que universalizam as identidades transexuais. Porém, as identidades e as experiências são múltiplas (BENTO, 2006).
Destacam-se ainda as microrrelações construídas entre pessoas transexuais e profissionais de saúde, que se mostram frequentemente como relações de favor, e não como um direito, podendo interferir nos rumos de suas vidas (BENTO, 2006).
Através do relato dos participantes da pesquisa, percebe-se a dificuldade em encontrar profissionais que façam o acompanhamento hormonal, que estejam preparados para esse tipo de atendimento e que não responsabilizem apenas o usuário pelos resultados obtidos a partir da hormonização. Observa-se ainda que o saber médico opera em uma relação de poder com as pessoas transexuais no que diz respeito às decisões sobre as mudanças corporais que desejam fazer, sendo necessário adotar estratégias de negociação com os profissionais de saúde, que interferem na autonomia das pessoas transexuais em decidir os rumos de sua própria vida.
A dificuldade em encontrar um profissional para o acompanhamento, o desrespeito e o despreparo dos profissionais de saúde contribuem para que as pessoas transexuais façam o uso de hormônios por conta própria. Outra forma usada é a busca de informações por meio da internet e da própria rede de contatos, a partir de outras pessoas transexuais que já fazem o uso de hormônios há mais tempo. Entretanto, a hormonização por conta própria pode acarretar uma série de problemas de saúde, sendo importante e necessário o acompanhamento por uma equipe de profissionais de saúde que sejam formados e preparados para realizar esse tipo de atendimento.
Algumas dificuldades relacionadas aos profissionais de saúde mental foram relatadas.
[...] os psiquiatras faziam umas perguntas [...] querendo saber se você mudou de ideia ou não [...] Ele nem sabia o quê que tava rolando sabe, parecia que ele ficava muito a parte de tudo assim. (E5) [...] no início desta transição, quando eu tava ainda tipo descobrindo a minha transexualidade e tal, eu tinha muitos ataques de ansiedade, tinha crise de pânico [...] Então eu fui procurar um psiquiatra, marquei um psiquiatra e quando eu fui falar com ele sobre essas questões todas ele simplesmente me disse que eu não precisava de atendimento psiquiátrico e que eu podia ir embora [...] (E3)
[...] as psicólogas e os psicólogos que atendem a população trans eles são muito restritos assim, eles têm muito medo de sabe [...]. Eu acho que uma coisa que falta muito muito muito mesmo é o cuidado com a saúde mental [...] não tem tantos psicólogos capacitados pra acompanhar, tantos psiquiatras que têm essa capacitação também, então fica um pouco difícil. (E3)
Conforme os relatos, ao buscar os serviços de saúde no processo de transição de gênero foram identificadas algumas imposições, normas e exigências. Criam-se protocolos que definirão como será a terapia hormonal, quais serão os exames de rotina que devem ser feitos, bem como qual o tempo de terapia necessário para que a pessoa esteja apta à cirurgia de redesignação sexual, quando há o desejo de fazê-la. Esse processo também acontece para que a equipe de saúde não tenha dúvidas de que o candidato (a) é um (a) transexual de verdade (BENTO, 2006).
Tal prática é incompatível com o respeito à autonomia do usuário e com o cuidado integral humanizado livre de preconceitos, pautado na escuta, no diálogo, no acolhimento e na construção de vínculos, que não foram identificados nos atendimentos. Isso demonstra que os princípios de integralidade e de igualdade na assistência à saúde, livre de preconceitos, de modo que todos tenham suas necessidades de saúde atendidas foram desrespeitados, contribuindo para que fossem criadas barreiras no acesso à rede formal de cuidados, dificultando o atendimento das necessidades de saúde dessa população (BRASIL, 1990).
Contrapondo-se ao modelo médico centrado, ao cuidado fragmentado focado nas especialidades, a integralidade remete à necessidade de compreender as necessidades dos usuários de uma forma mais geral, que considere o contexto em que o indivíduo está inserido (MATTOS, 2009). Nesse processo de cuidado e de atendimento às necessidades de saúde dos usuários, é fundamental a criação de vínculos entre o usuário e o profissional ou entre o usuário e a equipe de saúde que o assiste, o que possibilita a construção de uma relação baseada na confiança (CECÍLIO, 2009).
O cuidado humanizado, por sua vez, tem como base o diálogo, a escuta qualificada e a transversalidade nas relações, possibilitando que o usuário estabeleça uma relação de confiança com os profissionais e tenha um cuidado que respeite sua singularidade, suas necessidades de saúde (BRASIL, 2019).
Os atendimentos realizados por psicólogos e psiquiatras no processo de transição de gênero citados pelos participantes podem ser compreendidos como práticas profissionais que não vislumbram o cuidado humanizado pautado no princípio da integralidade e à necessidade de construção de vínculos, o que causa um impacto negativo e prejudicial à saúde mental dos usuários e demonstra a necessidade de formação profissional nessa área. Dessa forma, vislumbra-se que a rede formal de cuidados para as pessoas trans apresenta-se limitada e com a presença de profissionais que necessitam ainda de formação e de preparo para lidar com as diversidades.
No que diz respeito às redes informais de cuidado à saúde, estas são redes vivas, afetivas, inacabadas e que estão em processo constante de construção e de desconstrução. Atravessam a rede formal de cuidados à saúde e incluem a construção e compartilhamento de saberes e de conexões entre sujeitos e coletividades com o território por estes habitados. Influenciam a produção do cuidado e são marcadas pela presença da comunidade, do trabalho, de amigos e de familiares (MERHY et al., 2014).
As redes afetivas se fizeram presentes nas trajetórias das pessoas transexuais entrevistadas, como, por exemplo, na busca por informações relacionadas à saúde, com destaque para a busca por informações vinculada ao uso de hormônios.
Eu fui buscando informação na internet, que é terra sem lei né, a gente não sabe o que é verdade o que não é [...]. Antigamente, na época que eu tava querendo começar, eu não tinha condição, era mais difícil de ter acesso assim a esse tipo de informação [...] Hoje em dia você já acha grupos no Facebook sobre informação dessas coisas, é bem mais comum [...] pegava informação com alguma amiga que é trans e já tava em transição há algum tempo (E1)
Escolhi o hormônio por indicação de outra trans “Oh, tô tomando Perlutan, muito bom, experimenta para você ver”. A pessoa que indicou não é próxima, encontrei ela na rua, conversando, uma trans. (E6)
Também foi destacada a possibilidade de compra de hormônios sem receita médica.
[...] Só consegue também com receita médica, ou se você não conseguir um médico pra poder te atender você tem que comprar ilegal, que acaba saindo mais caro e arriscado [...] Geralmente é um amigo que vende, pessoas que trabalham com esse tipo assim, vamos colocar assim, academia [...] sempre tem um que usa anabolizante e acaba passando os contatos de anabolizantes [...] como eu não estava conseguindo em um ano e meio, não estava conseguindo médico nenhum eu falei “eu vou ter que apelar pra através do clandestino” [...] (E2)
Assim, grande parte das pessoas entrevistadas afirmaram já ter feito o uso de hormônios por conta própria.
[...] primeiramente eu comecei a fazer o tratamento por conta própria, como muitas garotas e garotos também fazem né, foi um método beeem assim... arriscado né. (E1) [...] com 24 anos eu me hormonizei por conta própria [...]. Eu usei seis meses, tudo pela internet. Escolhi o hormônio e bloqueador pela internet, comecei a tomar por conta própria. Eu entrei em desespero porque eu não vi resultado nenhum, dobrei a dose. (E7)
[...] eu comecei por conta. Eu comprei uma receita falsa, uma receita falsa mesmo pela internet, aí vinha por correio [...]. Eu comprei uma receita dessa, levei na farmácia e o médico pegou. E aí o médico queria me denunciar, e botando terror, falando que ia mandar me prender, que eu tava comprando receita com carimbo dele. Aí eu tive que falar que eu tava comprando pela internet [...] (E8)
A questão referente ao uso de hormônios é um dos pontos centrais para saúde da população trans e muito recorrente em suas falas, pois o uso de hormônios contribui para que ocorram rápidas mudanças no corpo. O uso do hormônio, no entanto, será feito com ou sem o acompanhamento profissional, uma vez que essas mudanças são importantes e geram impactos na vida de cada sujeito (LIMA; CRUZ, 2016).
Ao buscar transformações corporais através do uso das tecnologias, as pessoas trans buscam adaptar seus corpos à cisheteronormatividade, tornando-os corpos possíveis, o que remete também à concepção de corpos inteligíveis os quais devem manter uma relação de coerência estabelecida entre sexo/desejo/gênero. Os corpos que não seguem essa coerência são então corpos abjetos, ou seja, corpos ilegítimos, corpos que não importam (BUTLER, 2003).
Por encontrarem dificuldades em acessar os serviços de saúde, as pessoas acabam por recorrer a meios clandestinos para obter os hormônios que necessitam e para fazer alguns procedimentos como, por exemplo, a aplicação de silicone, a qual é feita pelas bombadeiras, o que se faz em condições inadequadas e que podem causar riscos à saúde (AMARAL, 2011).
Mesmo que se reconheça a existência de possíveis riscos no tratamento hormonal sem um acompanhamento profissional adequado e sem a realização de exames periódicos, pode-se observar que as pessoas transexuais não irão deixar de fazer o uso do hormônio, pois para muitas pessoas as transformações corporais são muito importantes. Diante desses relatos é fundamental compreender as necessidades de saúde das pessoas transexuais que, se não acompanhadas adequadamente, podem se tornar riscos para sua saúde.
É necessário que se tenha acesso não somente ao medicamento, ao hormônio isoladamente, mais sim a toda uma rede de cuidado, que envolve o acompanhamento longitudinal, a corresponsabilidade e o estabelecimento de vínculo através do respeito e da escuta qualificada, que são atributos aos modelos de saúde que vislumbram o cuidado de modo integral.
Considerações finais
A experiência de poder conversar e ouvir as pessoas transexuais sobre o acesso às redes de cuidado à saúde foi uma experiência muito enriquecedora, que possibilitou observar que as discussões sobre o gênero ainda são incipientes na formação dos profissionais em saúde.
Também foi observado que a população transexual passa por situações de constrangimento nos serviços de saúde, o que faz com que evitem usar esses serviços e sintam medo quando precisam buscar algum tipo de atendimento nesses espaços. Diante do constrangimento criam estratégias para conseguirem permanecer nos serviços. Logo, foi possível inferir que a população transexual se encontra submetida ao descaso, ao preconceito institucional, e não tem suas necessidades de saúde atendidas. Encontram inúmeras barreiras no acesso à rede formal de cuidados à saúde, fazendo-as recorrerem a outras alternativas para a construção desse cuidado, que às vezes podem ser pouco seguras para a saúde.
É fundamental que as políticas de saúde estabeleçam diretrizes que contemplem a população transexual, construindo assim uma rede de cuidados à saúde formal sólida para que as necessidades de saúde dessa população sejam atendidas e para que o direito à saúde se efetive. Essa construção de uma rede formal poderia ser feita a partir das demandas expostas pela população transexual, a fim de valorizar a participação social, tão preconizada pelo SUS. Ações com a população em geral, que discutam o combate ao preconceito também são fundamentais.
Para contribuir para a efetivação do direito à saúde, é importante investir na formação profissional. Questões relativas ao respeito à diversidade, ao gênero e à sexualidade deveriam ser debatidas em sala de aula, desde a formação básica até o ensino superior. Nos cursos da área de saúde deveriam ser amplamente discutidas, vivenciadas nos diversos cenários de formação à saúde dessa população. Seria necessário investir ainda, através da educação permanente, na formação dos profissionais de saúde que já estão inseridos nos serviços.
Apesar de a presente pesquisa ter sido realizada em um cenário específico, acredita-se que a realidade da população transexual no país ainda é congruente com a apresentada. São pontuais os serviços que servem de exemplo de política digna e integral a essa população.
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Editora responsável: Jane Russo
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
03 Abr 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
07 Jan 2022 -
Aceito
24 Mar 2022 -
Revisado
03 Out 2022