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Influências sociais nas práticas alimentares da dupla mãe-filho nos primeiros seis meses de vida

Social influences on the feeding practices of the mother-child couple in the first six months of life

Resumo

A dupla mãe-filho está inserida em um sistema social que gera diversas influências nas práticas alimentares, inclusive nos primeiros seis meses de vida, período em que é preconizado o aleitamento materno exclusivo pela Organização Mundial da Saúde.

Objetivo:

Compreender o conjunto de influências sociais que incidem nas práticas alimentares adotadas pela nutriz e para o seu filho nos primeiros seis meses de vida.

Método:

Estudo qualitativo, com abordagem metodológica de análise descrito por Minayo e alicerçado na fenomenologia social de Alfred Schütz. Participaram oito duplas mãe-filho recrutados de dois hospitais públicos de Salvador-BA com a Iniciativa Hospital Amigo da Criança. Realizou-se entrevista semiestruturada no domicílio das mães aos seis meses de vida da criança no período de junho a agosto de 2019.

Resultados:

Emergiram três tipificações: o fazer “correto” nos primeiros seis meses de vida da criança; as ações de cuidados com as práticas alimentares da mulher-mãe que amamenta; e o mundo social da dupla mãe-filho.

Conclusão:

para a tomada de decisão sobre as práticas alimentares da nutriz, a mãe exerceu mais influência; já para a criança, a nutriz considerou as orientações recebidas pelos profissionais de saúde.

Palavras-Chave:
Rede Social; Alimentação Infantil; Alimentação materna; Aleitamento materno

Abstract

The mother-child pair is inserted in a social system that generates different influences on eating practices, including in the first six months of life, a period in which exclusive breastfeeding is recommended by the World Health Organization.

Objective:

To understand the set of social influences that affect the eating habits adopted by the nursing mother and her child in the first six months of life.

Method:

Qualitative study, with a methodological analysis approach described by Minayo and based on the social phenomenology of Alfred Schütz. Eight mother-child pairs recruited from two public hospitals in Salvador-BA with the Amigo da Criança Hospital Initiative participated. A semi-structured interview was carried out at the mothers' homes when the child was six months old, from June to August 2019.

Results:

Three typifications emerged: doing “correctly” in the first six months of the child's life; care actions with the feeding practices of the woman-mother who breastfeeds; and the social world of the mother-son duo.

Conclusion:

For decision-making about the nursing mother's eating practices, the mother exerted more influence; for the child, the nursing mother considered the guidelines received by health professionals.

Keywords:
Social Network; Infant Feeding; Maternal feeding; Breastfeeding

Introdução

A discussão sobre a amamentação se faz contemporânea, pois, a partir da historicidade, é possível observar que, ao longo dos anos, lançou-se luz na pluralidade dessa temática. Hernandez e Víctora (2018, p. 9) trazem que “a amamentação é uma prática tão natural quanto política, econômica e social”.

Desde a metade do século XX, tem se desenvolvido um conjunto de medidas para a promoção do aleitamento materno, com o intuito de atender a sua complexidade; no entanto, ainda que se manifeste a necessidade de atenção às questões socioculturais locais, essas iniciativas têm caráter global (HERNANDEZ; VÍCTORA, 2018HERNANDEZ, A. R.; VICTORA, C. G. Biopolíticas do aleitamento materno: uma análise dos movimentos global e local e suas articulações com os discursos do desenvolvimento social. Cad. Saúde Pública, v. 34, n. 9, 2018. Disponível: https://www.scielo.br/pdf/csp/v34n9/1678-4464-csp-34-09-e00155117.pdf. Acesso em: 20 out 2021.).

O sucesso da amamentação depende de diversos fatores, incluindo o apoio e o fortalecimento de políticas públicas com as questões de seguridade social, a exemplo da licença-maternidade, que contribui para a prática de aleitamento materno exclusivo (RIMES; OLIVEIRA, BOCCOLINI, 2019RIMES, K. A.; OLIVEIRA, M. I. C.; BOCCOLINI, C. S. Maternity leave and exclusive breastfeeding. Revista de Saúde Pública, v. 53, 2019.Disponível em: https://doi.org/10.11606/S1518-8787.2019053000244. Acesso em: 14 nov 2021.
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), reduz o tempo de internamento pós-parto, auxilia no preparo dos profissionais de saúde e influencia as redes socais de apoio (LAMOUNIER et al., 2019LAMOUNIER, J. A. et al. Baby friendly hospital initiative: 25 years of experience in Brazil. Revista Paulista de Pediatria [on-line], v. 37, n. 4, p. 486-493, 2019. Disponível: https://doi.org/10.1590/1984-0462/;2019;37;4;00004. Acesso em:14 nov 2021.).

As redes sociais, segundo Guadalupe (2010GUADALUPE, S. Intervenção em rede: serviço social, sistémica e redes de suporte social. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010. DOI:http://dx.doi.org/1014195/9789892608662. Acesso em: 10 out 2021., p. 42), são as relações por meio “de parentescos, de afinidade, de suportes, de mobilização, de vizinhança etc.”. Logo, os atores sociais são: membros da família, os amigos, pessoas de entidades, de instituições religiosas ou de serviços de saúde (NÓBREGA et al., 2019NÓBREGA, V. C. F. et al. As redes sociais de apoio para o Aleitamento Materno: uma pesquisa-ação Social. Saúde debate. Rio de Janeiro, v. 43, n. 121, p. 429-440, abr-jun. 2019. Disponível: https://www.scielosp.org/pdf/sdeb/2019.v43n121/429-440/pt. Acesso em: 02 out 2021.), e grupos sociais por meios virtuais.

A amamentação, além de ser biológica, é uma prática alimentar construída pela mulher, e os atores que se relacionam com ela podem influenciar o desmame precoce, mesmo com tantas ações do Estado para promover e apoiar o aleitamento materno (SOUZA; NESPOLI; ZEITOUNE, 2016SOUZA, M. H. N.; NESPOLI, A., ZEITOUNE, R. C. G. Influência da rede social no processo de amamentação: um estudo fenomenológico. Esc. Anna Nery, v. 20, n. 4, e20160107, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.5935/1414-8145.20160107. Acesso em: 28 out 2021.
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). Essa rede de apoio pode ser fortalecida pelas ações de cuidado dos profissionais de saúde, balizadas na observância das dimensões sociais e subjetivas da mulher-mãe, iniciando-se ainda no período do pré-natal (WAGNER et al., 2020WAGNER, L. P. B et al. Strengthening and weakening factors for breastfeeding from the perspective of the nursing mother and her family. Rev Esc Enferm USP, v. 54, e03563, 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/S1980-220X2018034303564. Acesso em: 15 out 2021.). Inclusive, no sistema social, a mulher-nutriz é cobrada a ter alimentação saudável, pois, segundo esse sistema, sua nutrição pode influenciar diretamente na saúde da criança através do leite materno (DODOU et al., 2017DODOU, H. D et al. A prática educativa realizada pela enfermagem no puerpério: representações sociais de puérperas. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 70, n. 6, 2017. Disponível: http://www.redalyc.org/html/2670/267053415019/. Acesso em: 10 out 2021.). Desta forma, observa-se que o ato de se alimentar no período da amamentação, ou fora dele, ultrapassa a dimensão fisiológica, pois traz as questões socioculturais de uma população (LIMA et al., 2016LIMA, M. M. L. et al. A influência de crenças e tabus alimentares na amamentação. O mundo da saúde, v. 40, n. 2, p. 221-229, 2016. Disponível: https://search.bvsalud.org/gim/resource/en/biblio-972989. Acesso em: 20 nov 2021.).

Assim, a participação da rede social da dupla mãe-filho é importante, mas sempre respeitando as decisões da mulher-mãe no processo (BRASIL, 2019BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primaria à Saúde. Guia alimentar para crianças brasileiras menores de 2 anos. Brasília: Ministério da Saúde, 2019.). Inclusive, a atuação do profissional de saúde deve ser empática, para compreender que as mulheres-mães possuem algum conhecimento pregresso, baseado no seu meio social e nas suas experiências de vida, e que não deve ser minimizado ou anulado, pela forma como as novas orientações serão transmitidas (MARTINS; MONTRONE, 2017MARTINS, R. M. C.; MONTRONE, A. V. G. O aprendizado entre mulheres da família sobre amamentação e os cuidados com o bebê: contribuições para atuação de profissionais de saúde. Rev APS, v. 20, n. 1, p. 21-9, 2017. Disponível: https://doi.org/10.34019/1809-8363.2017.v20.15942. Acesso em: 6 nov 2021.).

Portanto, buscar a compreensão de como ocorrem as influências sociais nas tomadas de decisões da mulher-mãe para as suas práticas alimentares e para seu filho nos primeiros seis meses de vida foi uma lacuna observada na literatura e que pode fornecer elementos sobre o seu cotidiano, sobre suas experiências de vida e sobre como ela interage com sua rede social, aproximando o profissional de saúde a um olhar mais atento às construções socialmente aceitas e que podem não ser palpáveis se forem desconsiderados os atores envolvidos nesse processo.

Face ao exposto, o objetivo desta pesquisa foi compreender o conjunto de influências sociais que incidem nas práticas alimentares da nutriz e seu filho nos primeiros seis meses de vida em uma capital do Nordeste brasileiro.1 1 Esta pesquisa é produto de uma dissertação de mestrado. Para a realização do estudo não foi destinado nenhum apoio financeiro de forma direta, pois o mesmo se inseriu em um estudo maior. Todos os autores declaram não ter nenhum tipo de conflito de interesse.

Métodos

Trata-se de um estudo tipo transversal, exploratório e fundamentado nos preceitos metodológicos da pesquisa qualitativa (POPE; MAYS, 2009POPE, C.; MAYS, N. et al. Pesquisa qualitativa na atenção à saúde. Porto Alegre: Artmed, 2009. Disponível em: http://srvd.grupoa.com.br/uploads/imagensExtra/. Acesso em: 30 out 2021.
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). Adotou-se a abordagem metodológica de análise de material empírico hermenêutico-dialético descrito por Minayo et al. (2009MINAYO, M. C. S.; GOMES, R.; DESLANDES, S. F. Pesquisa social: Teoria, método e criatividade. Petrópolis: Ed. Vozes, 2009. Disponível: http://www.mobilizadores.org.br. Acesso em: 14 set 2021.
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), em que é possível interpretar os sentidos dos discursos e compreendê-los em seu contexto social e histórico. O cenário da pesquisa foi na Região Nordeste do Brasil, na cidade de Salvador-BA.

Esta pesquisa fez parte de um estudo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Maternidade Climério de Oliveira (Parecer 2.809.016), intitulado “Avaliação da efetividade de estratégia para prevenção de consumo de açúcar e alimentos ultraprocessados no primeiro ano de vida em três regiões do Brasil: ensaio de campo randomizado”, iniciado em 2018 tendo a conclusão da última fase no final de 2019, dividido em três fases. Entre as fases maternidade e fase seis meses, foram realizadas ligações mensalmente para as mães do grupo intervenção, com o intuito de esclarecimento de dúvidas e reforço da intervenção.

Os procedimentos foram realizados de acordo com as normas estabelecidas pela Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 2012BRASIL. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Considerando o respeito pela dignidade humana e pela especial proteção devida aos participantes das pesquisas científicas envolvendo seres humanos. Disponível: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html. Acesso em: 14 de set 2018.
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) e pela Declaração de Helsinki (ASSOCIATION, 1964The World Medical Association (WMA). Declaration of Helsinki - Ethical Principles for Medical Research Involving Human Subjects. 1964.).

Para composição da amostra, foram considerados os seguintes critérios de elegibilidade: mães primíparas e multíparas com idade a partir de 18 anos, testadas negativas para HIV e HTLV1, com parto não gemelar, sem intercorrências clínicas que a impedissem de amamentar, e bebês nascidos a termo sem intercorrências clínicas e sem outras patologias que impedissem a amamentação.

Cada uma das fases pode ser assim descrita: Fase maternidade – recrutamento aleatório conforme randomização para formar o grupo controle e o grupo intervenção, com mães primíparas e multíparas, em duas maternidades públicas de Salvador-BA, com a Iniciativa Hospital Amigo da Criança. Na primeira fase, as mães foram convidadas e informadas sobre o objetivo do estudo e, após o aceite, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE); foi realizada a intervenção com material didático elaborado com base no “Guia Alimentar para a População Brasileira” (2014). Fase de seis meses – foram coletados dados nos domicílios das mães, através da aplicação de questionários semiestruturados, avaliação do consumo alimentar e avaliação nutricional. Fase doze meses – foi realizada a coleta de dados na Escola de Nutrição e no consultório escola de Odontologia da UFBA, com a mesma forma de coleta da fase seis meses, incluindo, porém, avaliação da hemoglobina, avaliação de cáries precoce na infancia e avaliação do ambiente alimentar.

Para este estudo, a fase considerada para a coleta de dados foi a de seis meses, realizada no domicílio das mães, entre junho e agosto de 2019, considerando os seis primeiros meses de idade do lactente, quando é preconizado o aleitamento materno exclusivo pela Organização Mundial da Saúde (OPAS, 2018ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE (OPAS). OMS e UNICEF lançam novas orientações para promover aleitamento materno em unidades de saúde de todo o mundo [internet], 2018. Disponível: https://www.paho.org/bra/. Acesso: 13 set 2021.
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). Para conhecer melhor o perfil do grupo deste estudo, foram utilizados dados socioeconômicos coletados do estudo maior: idade, escolaridade, renda, profissão, estado civil, número de filhos e pessoas que moravam no mesmo domicílio.

Aplicou-se como instrumento de coleta de dados um questionário semiestruturado com questões norteadoras, com o intuito de conhecer a percepção da mãe sobre sua alimentação no período de amamentação, além da alimentação da criança nos primeiros seis meses de vida. Em seguida, se ela recebeu orientações sobre alimentação para ela e para a criança e de quem; se houve alguma mudança nas suas práticas alimentares e da criança nesse período e os motivos que levaram a realizar essas mudanças, e por fim, quais foram as orientações recebidas que influenciaram nas suas tomadas de decisões. A entrevista durou cerca de 20 minutos.

Para este estudo, foram selecionadas oito mães pela técnica de amostragem não probabilística, sendo, portanto, amostra por conveniência. Considerando a amostra randomizada do estudo maior, foram acessadas mães que estavam disponíveis para entrevistas no cronograma para a coleta de dados. Ao final, participaram quatro mães do grupo controle e quatro mães do grupo intervenção. Importante ressaltar que as entrevistas nos dois grupos não visararm comparar os grupos, mas observar as influências sociais que pudessem interferir nas tomadas de decisões, visto que, no estudo maior, as mães do grupo intervenção receberam orientações com material educativo. Houve saturação dos dados após a realização das oito entrevistas, tornando-se repetitivos os discursos apresentados. Como a natureza da pesquisa foi qualitativa, o número de participantes não foi a prioridade, mas a profundidade dos discursos e a relação do pesquisador com o sujeito (MINAYO, 2014MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2014.; TURATO, 2005TURATO, E. R. Métodos qualitativos e quantitativos na área da saúde: definições, diferenças e seus objetos de pesquisa. Rev Saúde Pública, v. 39, n. 3, p. 507-14, jun. 2005. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0034-89102005000300025. Acesso em: 30 out 2021.
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).

Ao final do período de coleta, todas as entrevistas foram transcritas na íntegra e fez-se a releitura do material, dando início à etapa de categorização e construção estruturada das análises.

Na análise de dados, foi utilizada a análise e tratamento do material empírico e documental (MINAYO et al., 2009MINAYO, M. C. S.; GOMES, R.; DESLANDES, S. F. Pesquisa social: Teoria, método e criatividade. Petrópolis: Ed. Vozes, 2009. Disponível: http://www.mobilizadores.org.br. Acesso em: 14 set 2021.
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) em três etapas: Fase 1 - Ordenação de dados: após leitura exaustiva, foram sistematizadas as ideias presentes nos depoimentos; na Fase 2 - após a saturação dos dados, foi realizada a categorização, com o intuito de aprofundar a análise e melhor compreender as influências sociais nas práticas alimentares da dupla mãe-filho nos primeiros seis meses de vida. Consideraram-se o Sistema de Relevâncias e Tipificações e o conceito de mundo social descrito por Schütz (1979SCHÜTZ, A. Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.), que propõe estudar o fenômeno por meio da tipificação, reunindo as vivências e experiências conscientes de uma pessoa ou grupo, tornando-a homogênea, ou seja, considerando as semelhanças. E na fase 3, buscou-se compreender, a partir da convergência das tipificações, os “motivos a fim de”, que são as ações realizadas com o intuito de alcançar um objetivo, e os “motivos por que”, que emergem das observações dos motivos das ações, somente após as ações serem realizadas dentro do mundo social. Estes consistem em um mundo estruturado no cenário cotidiano, historicamente dado antes mesmo do nascimento do sujeito, no qual acontece o compartilhamento de conhecimentos e experiências através das interações humanas. Estas têm a capacidade de gerar diversas influências e, assim, determinar a situação biográfica do indivíduo, que consiste na compreensão a partir da sua própria construção social, segundo Schütz (1979SCHÜTZ, A. Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.). Também foi utilizada a literatura para melhor interação e análise dos dados. Para preservar a identidade das participantes, foram utilizados nomes próprios escolhidos aleatoriamente.

Resultados e Discussão

Para discorrer sobre as influências sociais das duplas de mãe e filho que participaram do estudo, caracterizou-se essa população. A idade das mulheres que participaram esteve entre 18 e 39 anos. Sete eram casadas ou viviam em união estável. Cinco eram multíparas. Metade (n=4) das mulheres moravam com outras pessoas da família, além do filho e companheiro. Quanto à escolaridade, a maioria (n=6) havia finalizado o ensino médio, uma não o tinha completado e uma tinha o ensino fundamental incompleto. A média salarial delas foi de um salário mínimo e meio (R$ 954,00 em 2018). Três mulheres estavam desempregadas. Todas moravam em Salvador-BA.

Questões como escolaridade, emprego e renda influenciam diretamente na saúde, e aprofundam as desigualdades sociais, poisas condições econômicas, políticas, culturais e sociais circunscrevem a nossa vida e moldam o nosso comportamento (MARMOT; ALLEN, 2014).

À luz da fenomenologia social de Alfred Schütz (1979SCHÜTZ, A. Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.), foi trazida a possibilidade de compreender as influências sociais nas práticas alimentares da mulher que amamenta e para o seu filho nos primeiros seis meses de vida. Desta forma, emergiram três tipificações dentro da perspectiva dos “motivos a fim de” e dos “motivos por que”, a partir dos discursos, resultando nos seguintes núcleos temáticos: o fazer “correto” nos primeiros seis meses de vida da criança; as ações de cuidado com as práticas alimentares da mulher-mãe que amamenta; e o mundo social da dupla mãe-filho.

O fazer “correto” nos primeiros seis meses de vida da criança

Nesta categoria, os discursos das mães trouxeram as expectativas sobre a alimentação da criança nos primeiros seis meses de vida, juntamente com sua avaliação do que seria correto ou não para este período e seu sentimento de satisfação ou insatisfação com o que foi realizado.

Trazer à reflexão as práticas alimentares dos primeiros seis meses da criança mobilizou as participantes a acessarem um leque de informações e conhecimentos adquiridos sobre alimentação para essa fase da vida. Todas as mulheres-mães que participaram desse estudo, trouxeram a importância do aleitamento materno e de que ele deve ocorrer nos primeiros seis meses de forma exclusiva:

[...] dei só mama nos seis primeiros meses (Maria);

[...]consegui amamentar os seis meses exclusivo...(Joana);

[...] porque eu fiz o correto, né? Amamentei seis meses depois inseri o alimento[...] (Ester).

Foi possível observar, nos discursos, que a amamentação exclusiva nos primeiros seis meses de vida da criança foi um conhecimento adquirido antes do período do aleitamento materno ou durante, mas ainda no início, pois trouxe repercussão no processo, como “motivo a fim de”. Ou seja, a fim de garantir a alimentação adequada para a criança nos primeiros seis meses de vida, foi efetivada a amamentação. Desta forma, a percepção sobre a importância da amamentação, evidencia uma interação da mulher-mãe que amamenta com o mundo cultural e social, e que, percebendo benefícios, torna-se, para algumas, uma prática obrigatória (LIMA et al., 2018LIMA, S. P. et al. Desvelando o significado da experiência vivida para o ser-mulher na amamentação com complicações puerperais. Texto & Contexto - Enfermagem, v. 27, n. 1, 2018. Disponível: https://doi.org/10.1590/0104-07072018000880016 Acesso: 30 out 2021.).

As orientações e condutas que resultam na experiência do indivíduo são, na maioria, influenciadas pela forma de comunicação, cultura e pelas interações sociais que ocorrem no mínimo com dois indivíduos que orientam um ao outro e geralmente estão inseridos em complexas redes de relacionamentos sociais (SHÜRTZ, 1979).

Shürtz (1979) afirma que, no cotidiano, o conhecimento prático não é homogêneo. Esse conhecimento está sujeito aos interesses do indivíduo e linhas de relevância que ele aplica ao objeto. Isso quer dizer que, mesmo sabendo que a amamentação exclusiva é importante nos primeiros seis meses, esse conhecimento é ressignificado pelas circunstâncias do que ocorre na vida e pelos papéis sociais que a mulher-mãe desempenha, como observado nas falas:

[...] Na verdade eu queria que ele continuasse mamando até os 6 meses né, mas só que eu tive que voltar ao trabalho [...] (Helena);

[...]eu queria só dar mama durante 6 meses, mas infelizmente tive um contratempo com o meu pai, não tive como dá continuidade só mama (Ana).

Nesses discursos, observam-se os desdobramentos, em que a mulher-mãe que amamenta desempenha o papel de filha e também de profissional. Há, portanto, diversos elementos fortalecedores e fragilizadores que geram influências no período da amamentação, como família, profissionais de saúde, orientações, apoio, experiências anteriores, disponibilidade de tempo, expectativas e ansiedades, que podem contribuir para o êxito ou não desse período (WAGNER et al., 2020WAGNER, L. P. B et al. Strengthening and weakening factors for breastfeeding from the perspective of the nursing mother and her family. Rev Esc Enferm USP, v. 54, e03563, 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/S1980-220X2018034303564. Acesso em: 15 out 2021.). Assim, a participação do governo, garantindo o direito à licença-maternidade, indica um benefício que fortalece a proteção ao aleitamento materno exclusivo (RIMES; OLIVEIRA; BOCCOLINI, 2019), embora ainda deficiente, visto que na legislação contempla apenas 120 dias (BRASIL, 1988BRASIL. Senado Federal. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília-DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 14 nov 2021.
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) e não os 180 dias que seriam equivalentes ao período do aleitamento materno exclusivo.

As orientações recebidas para alimentação da criança nos primeiros seis meses partiram basicamente de profissionais de saúde:

Pediatra [...] ela pediu que eu continuasse dando a mama a ele e nunca largasse a mama (Ana); Eu consegui com a ajuda, né, do livro... eu tive a visita na maternidade [...] consegui, é… manter sem açúcar... né? E só mama (Julia).

Vocês me ligavam, mandava eu deixar só no peito. A pediatra dela: só peito, só peito (Maria).

Só no pediatra, o pediatra sempre vem me [...] informando a alimentação que vou dando a ele... (Helena).

O suporte e as orientações dos profissionais de saúde podem ser elementos fortalecedores para amamentação (WAGNER et al.,2020WAGNER, L. P. B et al. Strengthening and weakening factors for breastfeeding from the perspective of the nursing mother and her family. Rev Esc Enferm USP, v. 54, e03563, 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/S1980-220X2018034303564. Acesso em: 15 out 2021.), inclusive, o acompanhamento da gestante desde o pré-natal proporciona o conhecimento das possíveis dificuldades que possam ocorrer no período do aleitamento materno. Isso ajuda ao profissional de saúde a ter uma conduta mais assertiva e sensível às necessidades da dupla mãe-filho para essa fase (VARGAS et al., 2016VARGAS, G. S. A. et al. Atuação dos profissionais de saúde da estratégia saúde da família: promoção da prática do aleitamento materno. Revista Baiana de Enfermagem, Salvador, v. 30, n. 2, p. 1-9, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.18471/rbe.v30i2.14848. Acesso em: 22 nov 2021.
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).

Na fala das mães, foi possível observar duas abordagens – “o livro” e as “ligações” –, que fizeram parte da intervenção realizada pelo estudo “guarda-chuva”. Percebe-se a familiaridade que essas abordagens passaram a ter como fonte de orientação, influenciando também suas tomadas de decisões. Desta forma, o binômio “educação e saúde” é uma forma de ampliar a autonomia da mulher em suas escolhas e faz parte da promoção de saúde, juntamente com o acompanhamento para apoiar essas mulheres durante todo o processo de amamentação (MOIMAZ et al., 2013MOIMAZ, S. A.S. et al. Desmame precoce: Falta de conhecimento ou de acompanhamento? Pesquisa Brasileira em Odontopediatria e Clínica Integrada, v. 13, n. 1, p. 53-59, 2013. Disponível: https://www.redalyc.org/pdf/637/63727892008.pdf. Acesso em: 14 nov 2021.).

Outra questão que emergiu nos discursos foi a ideia de que a criança saudável e nutrida é a mais corpulenta, sendo considerado o peso, ou aspecto físico, uma referência construída social e culturalmente e que ainda hoje é utilizado para classificar uma criança bem alimentada:

Oh como tá a bichinha, isso aí é mais leite, porque começou o alimento tem pouco tempo. Quem é que diz que [...] nunca tomou mingau na vida? Todo mundo acha que ela tomava mingau. (Maria).

As propagandas higienistas difundidas no jornal O Estadão (1901-1940) trouxeram os concursos de crianças que eram premiadas segundo a sua robustez. A finalidade desses concursos, na época, era o incentivo ao aleitamento materno, mas esses eventos trouxeram a necessidade de que a nutriz deveria consumir diversos tipos de suplementos, alimentos específicos, entre outros, para garantir que seu leite ficasse forte o suficiente para proporcionar uma criança robusta (ROCHA, 2018ROCHA, A. M. Nutrizes fracas, crianças fracas: a saúde da lactante e do lactente pela propaganda higienista e publicidade alimentar do jornal O Estadão (1901-1940). Caderno Espaço Feminino. Uberlândia, v. 31, n. 2, jul-dez. 2018. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/neguem/article/view/46000. Acesso em: 10 out 2021.).

O mundo social é dotado de sistemas de signos e de símbolos, considerados pressupostos pelas pessoas que vivem nele e que socialmente aprovados dispensam explicações ou justificativas (Schütz, 1979SCHÜTZ, A. Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.). Tomando este caso como exemplo, percebe-se que a própria estrutura física da criança já expressava um símbolo social de criança bem nutrida.

As expectativas de como deveria ser a alimentação da criança nos primeiros seis meses se estenderam também para as práticas alimentares da nutriz. A mulher-mãe, de forma inconsciente, considerou a criança a extensão do próprio corpo, ainda que já estivesse fora dele, pois no entendimento dessas mulheres seu leite e os resultados desse alimento para a criança refletiam sua alimentação. Ressalta-se que o investimento em propagandas pode ter colaborado extensamente para fortalecer e incentivar a questão do “leite fraco”, sendo um dos motivos mais citados pelas mães para promover o desmame precoce (PINHEIRO; NASCIMENTO; VETORAZO, 2021PINHEIRO B. M.; NASCIMENTOR. C.; VETORAZOJ. V. P. Fatores que influenciam o desmame precoce do aleitamento materno: uma revisão integrativa. Revista Eletrônica Acervo Enfermagem, v. 11, e7227, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.25248/reaenf.e7227.2021. Acesso em: 28 dez 2021.
https://doi.org/10.25248/reaenf.e7227.20...
; ARAUJO et al., 2021). Por outro lado, os estudos para analisar a qualidade da alimentação da mulher e sua influência na composição do leite materno avançaram na verificação de macro e micronutrientes (COUTINHO et al., 2019COUTINHO, S. F et al. Teor lipídico e composição mineral do leite materno e suas correlações. Ciência et Praxis, v. 12, n. 24, p. 23-28, 2019. Disponível: https://revista.uemg.br/index.php/praxys/article/view/4288. Acesso: 28 dez 2021.; RODRIGUES, 2020RODRIGUES, D. C. Efeito da suplementação com castanha-do-brasil (Bertholletia excelsa) na dieta materna sobre o perfil nutricional do leite humano: ensaio clínico randomizado. 2020. 142 f. Tese (Doutorado em Ciência e Tecnologia de Alimentos) - Universidade Federal de Viçosa, 2020. Disponível em: https://locus.ufv.br//handle/123456789/28063. Acesso em: 28 dez 2021; FREITAS et al., 2021FREITAS, R. F. et al. Relationship between the diet quality index in nursing mothers and the fatty acid profile of mature breast milk. Revista Paulista de Pediatria, v. 39, e2019089, 2021. Disponível: <https://doi.org/10.1590/1984-0462/2021/39/2019089>. Acesso em: 28 dez 2021.)

Ações de cuidado com as práticas alimentares da mulher-mãe que amamenta

Cuidar é uma das ações subjetivas naturais apresentadas ao ser humano e que transcende a ação dos profissionais de saúde. Desta forma, os tipos de relações podem trazer diversos significados do cuidar, ou seja, o autocuidado e o cuidar no coletivo, no âmbito familiar ou não, podem ressignificar a ação do cuidar (JESUS et al., 2013JESUS, M. C. P. et al. A fenomenologia social de Alfred Schütz e sua contribuição para a enfermagem. Rev Esc Enferm USP, v. 47, n. 3, p. 736-41, 2013. Disponível: https://www.scielo.br/j/reeusp/a/hLcpxVjMwdJC74hNhqfTVNg/?lang=pt&format=pdf. Acesso em: 30 out 2021.).

Dentro dessa tipificação, foram encontrados os “motivos para” e os “motivos por que”, pois as ações de cuidado estiveram em flutuação entre os objetivos e as vivências no âmbito psicossocial. As mudanças nas práticas alimentares da mulher que amamenta se movimentam entre o que seria mais apropriado para essa fase e a interpretação dos sinais e sintomas do corpo biológico da dupla mãe-filho no vivenciar a amamentação. Assim, a perspectiva do saudável inunda as falas dessas mulheres, com o discurso biomédico muito presente:

Porque não comia besteira quando estava amamentando, só coisas que dava nutriente. [...] Eu procurava me alimentar de coisa mais saudável pro meu leite ficar melhorzinho pra ela [...] passei a comer mais fruta, verdura, “comê” sempre nos horários... (Joana).

[...] eu que achei que era melhor, natural. Comer folha, verdura, essas coisas. (Ester).

Nessas falas, foi possível observar que para realizar algumas mudanças nas práticas alimentares, essas mulheres tiveram que acessar sua vida de conhecimentos e experiências sobre o que seria uma alimentação saudável e qual alimentação seria apropriada para o período da amamentação, trazendo aqui a reflexão sobre o autocuidado, mas pensando nos benefícios para a criança.

No Brasil, o último guia alimentar para crianças brasileiras menores de 2 anos de idade (2019), ressalta que “todo leite materno é adequado, não é fraco” e que todas as mulheres, independente de condição social, de raça, de ser magra ou obesa, ainda que não tenha uma alimentação adequada, o seu leite terá qualidade e quantidade suficiente para amamentar.

No entanto, na vida cotidiana dessas mulheres, emergiram os “motivos por que” novas práticas alimentares foram incorporadas no período da lactação que culminou na produção de mais leite e de melhor qualidade:

[...] aumentava bastante o meu leite, quando minha mãe fazia eu comer aipim, cuscuz.... Eta! comi tanto cuscuz. o dia amanhecia e a cama toda jorrada de leite (Maria).

[...] comia sim cuscuz, mingau de aveia… Aumentou o leite... fez muita muita diferença. (Joana).

[...] quando eu tomava mingau o leite ficava mais forte e enchia bastante (Helena).

[…] minha mãe dizia [...] tem que comer coisa que produza leite [...] leite, tomar mingau[...] (Ana).

[…] minha avó... ela não deixava era jaca [...] (Bia).

Ainda que não se explicitem nas falas os “motivos a fim de” para serem realizadas essas mudanças nas práticas alimentares, a forma como essas orientações ocorreram foi imperativa, visto que a própria fala dessas mulheres traz esse elemento, quando é observado no discurso “tem que comer”, “minha mãe fazia eu comer” ou “ela não deixava”, por exemplo. Desta forma, observou-se que para a mãe ou a avó da mulher que amamentava, já existia um motivo para aquela ação.

Mesmo sem saber ou entender as origens dessas orientações, existe uma relação de confiança dentro desse grupo para que essas mulheres-mães tenham aderência a elas, pois, no mundo social a que pertencem, compartilham de forma harmônica com os seus semelhantes (SCHÜTZ,1979SCHÜTZ, A. Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.).

O desconhecimento sobre as propriedades do leite materno pode levar a nutriz a desacreditar que tem capacidade de suprir as necessidades do seu filho (ROCCI; FERNANDES, 2014ROCCI, E.; FERNANDES, R. A. Q. Dificuldades no aleitamento materno e influência no desmame precoce. Rev. bras. Enferm, v. 67, n. 1, jan-fev. 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/reben/a/BgSk56gwbzsDh4fpVLpXVSN/?lang=pt. Acesso em: 30 out 2021.). No entanto, o modelo higienista, de só passar as informações para as mães sobre a importância da amamentação, é insuficiente quando a visão é acolher a mulher de forma integral nesse processo (BEZERRA et al., 2020BEZERRA, A. E. M.; BATISTA, L. H.; RENATA, G. A. Breastfeeding: what do women who participate in a prenatal group think? Revista Brasileira de Enfermagem, v. 73, n. 3, 2020. Disponível: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0338. Acesso em: 21 nov 2021.). Para que isso aconteça, se faz imprescindível a prática do diálogo com a mulher e sua rede de apoio com a atenção das questões subjetivas e das práticas (MARTINS; MARTRONE, 2017).

Outra questão que emergiu nos discursos foram os sintomas gastrointestinais da criança sendo relacionados diretamente com a alimentação da nutriz, confirmando a perspectiva de interpretação do corpo/organismo da criança como continuidade do corpo/organismo da mulher-mãe:

Eu tirei o pão porque se o pão prende a gente, vai prender ela. [...] Eu procurava comer coisa que não desse azia, gases à ela porque tudo o que eu comia passava pra ela [...] (Maria).

[...] ele chorava muito no começo e eu não sabia o porquê, achava que eu comia um acarajé, um abará [...] minha mãe pegou e me disse deve ser das “comida pesada”, que tudo que a gente come vai pro leite...aí eu aí evitei (Joana).

[...]quando eu comecei a tomar refrigerante [...]não era para tomar, muita fritura, gordura essas coisas, [...] ele começou a ficar diferente, né? Sentindo muita gases, muito agonia (Ester).

Devido ele também teve prisão de ventre por causa da minha alimentação mesmo, eu [...] comendo farinha. (Ana).

Segundo o Guia alimentar para crianças brasileiras menores de dois anos (2019), não se incentiva a retirada de nenhum alimento da nutriz por conta das cólicas da criança, que é comum até os seis meses de vida. No entanto, ele faz um alerta para que ela observe os alimentos que consome e as reações da criança, para buscar orientação de um profissional de saúde, se necessário. Nos discursos, a percepção dos sintomas gastrointestinais da criança foi um elemento motivador para as ações de mudanças, nesse caso os “motivos a fim de” impulsionaram as ações, visto que após a observação dos sintomas gastrointestinais dos seus filhos é que mudaram as suas práticas alimentares a fim de melhorarem desses sintomas.

Nas relações sociais dentro de um grupo – neste caso, percebemos que na família, e mais precisamente com as mulheres dessas famílias, mãe e avó – pareceu existir uma compreensão inquestionável, por parte das mulheres-mães, a respeito das transmissões de conhecimentos e experiências dessas mulheres para lidarem com uma situação cotidiana, no intuito de conseguirem os melhores resultados, de acordo com o esquema “pronto-feito” descrito por Schütz (1979SCHÜTZ, A. Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.), ou seja, a transmissão de uma receita daquilo que se pode fazer para se obter um resultado correspondente e sem problemas.

Nessa relação, parece existir uma melhor adesão às orientações, pois o sentimento de pertencimento se faz presente. Assim, o profissional de saúde deve conhecer o contexto de vida das nutrizes, o que ajuda no acolhimento e esclarecimento, de forma efetiva, das dúvidas e dificuldades (CARVALHO et al., 2020CARVALHO, A.T. et al. Fatores socioculturais, mitos e crenças de nutrizes potenciais causadores do desmame precoce: uma revisão integrativa. Saúde Coletiva (Barueri), v. 10, n. 56, 2020. Disponível: http://revistas.mpmcomunicacao.com.br/index.php/saudecoletiva/.Acesso em: 28 abr. 2021.). Isso permite que a mulher-mãe expresse os saberes adquiridos pelas experiências familiares e no seu próprio cotidiano, participando de forma ativa e sendo valorizada como sujeito que pratica e vivencia a amamentação.

O mundo social do da dupla mãe-filho

O mundo social (SCHÜTZ, 1979SCHÜTZ, A. Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.) é um mundo intersubjetivo e estruturado no cenário cotidiano, construído pelas relações sociais. A compreensão das relações do mundo social se dá apenas pelo agir do indivíduo e seu conteúdo visado de sentido (SCHÜTZ, 2018SCHÜTZ, A. A contrução significativa do mundo social: uma introdução à sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes, 2018.).

Neste estudo, foi possível observar o mundo social da dupla mãe-filho e suas relações sociais mais próximas. Segundo Schütz (2018SCHÜTZ, A. A contrução significativa do mundo social: uma introdução à sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes, 2018., p. 222), as “perspectivas de apreensão” acontecem em “distintos graus de intimidade”, pois têm com esses indivíduos o mesmo “mundo circundante social”, mas é apenas um fragmento do mundo geral.

[...] livro, minha avó, a nutricionista também [...] (Bia).

Tudo meu é pra ir pro médico porque eu não sou médica [...] minha mãe me orientou também (Maria).

Fui na nutricionista. [...] Pediatra. Minha mãe falava muito da minha alimentação (Ana); [...]minha mãe fala, minha sogra também (Clara).

Busquei através das pessoas que… mais velhas né... que tiveram filhos e me orientaram...minha mãe, minha irmã (Joana);

Nesses discursos, observou-se a busca de orientação através das mulheres da família, dos profissionais de saúde e da internet. Além disso, a experiência da maternidade já vivida esteve presente nas falas quando se solicita o acesso ao sistema de orientações:

Até porque eu não sou mãe de primeira viagem, então eu já sei os alimentos que fariam bem a ele ou mal, no caso por conta da mama, né? (Joana).

Vivenciar o nascimento de outro filho traz orientações familiares, por já ter experienciado essa fase da vida antes, ainda que em outro contexto social. E a busca pela orientação de pessoas mais velhas que já vivenciaram a maternidade também denota a percepção da busca por essa experiência, reforçando que a amamentação é uma prática construída, e não institiva e natural. Observa-se que o suporte social ocupa espaço primordial na prática da amamentação, acima até das técnicas de manejo. Percebe-se, entretanto, a ressignificação da amamentação tornando-se uma prática desejada pela mulher (KUSCHNIR, 2008KUSCHNIR, K. Maternidade e amamentação: biografias e relações de gênero. Sociologia, problemas e práticas, n. 56, p. 85-103, 2008. Disponível: https://scielo.pt/pdf/spp/n56/n56a05.pdf. Acesso em: 08 out 2022.). A perpetuação de práticas e costumes reafirma a posição do sujeito que orienta nesse espaço de convívio na transmissão de conhecimentos no ambiente familiar (MOREIRA et al., 2018MOREIRA, L. V. et al. “Quando tem como comer, a gente come”: fontes de informações sobre alimentação na gestação e as escolhas alimentares. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 28, n. 3, p. e280321, 2018. DOI:http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312018280321. Acesso em: 20 jul 2021.).

Neste estudo, observou que a formação familiar não nuclear residindo no mesmo ambiente físico, propiciou trocas e interrelações de gerações de forma mais próxima. De acordo com o observado nas falas, pessoas que conviviam no mesmo domicílio exerceram forte influência nas práticas alimentares. No entanto, a dupla mãe-filho que residia com a família nuclear também teve influência, em suas práticas alimentares, de pessoas membros da família não nuclear e de outros grupos sociais.

As relações com as mulheres da própria família estiveram em lugar de destaque como relações interpessoais de mais influência nas tomadas de decisões da mulher-mãe em relação às suas práticas alimentares. Isso corrobora estudo realizado sobre a rede de suporte social de mulheres em amamentação cuja rede de suporte interpessoal contribuiu como suporte, mas também interferiu negativamente em alguns aspectos intergeracionais (BARALDI et al., 2020BARALDI, N. G et al. The meaning of the social support network for women in situations of violence and breastfeeding. Rev. Latino-Am. Enfermagem, v. 28, e3316, 2020. Disponível: DOI:http://dx.doi.org/10.1590/1518-8345.3313.3316. Acesso em: 04 out 2022.).

Alguns estudos trazem que a família tem influência maior, principalmente a mãe e a sogra. Em virtude de suas experiências de vida, elas parecem exercer o papel de detentoras de conhecimentos e são consideradas um apoio para a mãe, como também uma ajuda no cuidado da criança (PRATES et al., 2015PRATES, L. A.;, CHMALFUSS, J. M.; LIPINSKI, J. M. Rede de apoio social de puérperas na prática da amamentação. Escola Anna Nery, v. 19, n. 2, p. 310-315, 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ean/a/mK9rgcTD9PbtsDWHNqVTJJC/?lang=pt. Acesso em: 22 out 2021.; MARTINS; MONTRONE, 2017MARTINS, R. M. C.; MONTRONE, A. V. G. O aprendizado entre mulheres da família sobre amamentação e os cuidados com o bebê: contribuições para atuação de profissionais de saúde. Rev APS, v. 20, n. 1, p. 21-9, 2017. Disponível: https://doi.org/10.34019/1809-8363.2017.v20.15942. Acesso em: 6 nov 2021.; MOREIRA et al., 2018MOREIRA, L. V. et al. “Quando tem como comer, a gente come”: fontes de informações sobre alimentação na gestação e as escolhas alimentares. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 28, n. 3, p. e280321, 2018. DOI:http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312018280321. Acesso em: 20 jul 2021.; JERÔNIMO; QUINTEIRO; CASTRO, 2021). Ressalta-se que a maternidade traz uma sobrecarga maior para a mulher, pois o homem-pai costuma ser visto como uma ajuda para a mãe, e não como corresponsável pelos cuidados da criança, por exemplo.

É notório que a dimensão do cuidado dos filhos ainda prevaleça como sendo de cunho feminino; há, ainda, a falta de suporte e incentivo de políticas públicas para mulheres carregam há gerações o peso moral das decisões sobre os cuidados de seus filhos (FAZZIONI, 2021FAZZIONI, N. Nem bom, nem mau: reflexões sobre “arranjos de cuidado” materno em dois contextos de pesquisa. [SYN]THESIS, Rio de Janeiro, v. 14, n.2, p. 18-27, 2021. Disponível: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/synthesis/article/view/64350/40544. Acesso em: 04 out 2022.).

A internet também esteve presente nos discursos como fonte de orientação:

[...] eu sempre fico na internet, né? Pesquisando e quando eu tenho dúvida, quando eu vou no pediatra, eu pergunto a médica (Ester).

Eu leio muito pela internet [...] dicas [...] (Clara).

Porém, houve a necessidade de buscar a consulta com o profissional de saúde para respaldar as informações recebidas por essa ferramenta. Além disso, a busca por informações pelo meio virtual pode trazer orientações que traduzem as crenças de quem está transmitindo a mensagem e que nem sempre estão em consonância com a comprovação científica. Há, ainda, a possibilidade de serem informações de aspecto duvidoso e desatualizadas, muitas vezes utilizadas para substituir ou complementar o papel do profissional de saúde habilitado (NÓBREGA et al., 2019NÓBREGA, V. C. F. et al. As redes sociais de apoio para o Aleitamento Materno: uma pesquisa-ação Social. Saúde debate. Rio de Janeiro, v. 43, n. 121, p. 429-440, abr-jun. 2019. Disponível: https://www.scielosp.org/pdf/sdeb/2019.v43n121/429-440/pt. Acesso em: 02 out 2021.; SORRENTINO; VENANCIO, 2019SORRENTINO, E.; VENANCIO, S. I. Conhecimentos e práticas dos pais de crianças de 6 a 12 meses sobre alimentação complementar: desafios do cuidado em saúde. Demetra, v. 14, n. 1, p. 1-18, 2019. Disponível em: DOI: https://doi.org/10.12957/demetra.2019.43550. Acesso em: 22 out 2021.; BRASIL, 2019BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primaria à Saúde. Guia alimentar para crianças brasileiras menores de 2 anos. Brasília: Ministério da Saúde, 2019.).

A pesquisa na internet, muitas vezes, está relacionada ao que as mães já pretendiam realizar, pois já tiveram contato com o seu sistema de referência anterior que foi construído ao longo de suas vidas (SILVA, 2022SILVA, L. A. “Mães de primeira viagem” na cultura digital: o uso das plataformas para informação e apoio social. 2022. 165 f., il. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade de Brasília, Brasília, 2022. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/44795. Acesso em: 08 out 2022.).

Schutz (1979) traz o conceito de grupos “existenciais”, que está relacionado com a herança social. Nesse grupo já existe uma tipificação, ou seja, o papel do individuo é preconcebido. Se pensarmos na família, por exemplo, cada membro desempenha seu papel preestabelecido socialmente nesse sistema, considerando diversos aspectos como leis, estilos de vida, contexto cultura etc. E também os grupos voluntários, que são os grupos nos quais, de forma voluntária, o individuo procura fazer aproximação. Seu papel, neste caso, não é vivenciado de forma individual, e ocorre um processo dinâmico de evolução entre os membros para a construção dos papéis.

O importante, nesse caso, é observar que o individuo participa de diversos grupos sociais e que estes estão de acordo com os interesses da personalidade de cada um. Além disso, é somente nos grupos voluntários que o individuo tem a liberdade de escolher a que grupo quer pertencer e quais pápeis quer desempenhar de acordo com seus próprios objetivos (SCHÜTZ, 1979SCHÜTZ, A. Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.).

Sendo assim, foi possível observar que, no grupo da família, considerado como grupo existencial, as mulheres-mães tiveram mais interações. O grupo familiar esteve em primeiro lugar, tanto para as que residiam com a família nuclear, como as que residiam com a família não nuclear. E o grupo de profissionais de saúde que faz parte do grupo voluntário esteve em segundo lugar nas interações relacionadas às práticas alimentares da mulher-mãe, e em primeiro lugar nas práticas alimentares do filho nos primeiros seis meses de vida. A internet, por sua vez, serviu de consulta, mas parece não ter influenciado nas tomadas de decisões.

O uso da internet para busca de informações denota o exercício da autonomia da mulher em ampliar suas fontes. Apesar de a ferramenta ser contemporânea, a busca por informações sempre ocorreu por meio de parentes e amigos para além das orientações dos profissionais de saúde (CHIODI et al., 2020CHIODI, L. C. et al. As vivências e necessidades de informação das gestantes com risco para o nascimento. ReBraM, v. 23, n. 2, supl. 2020. Disponível: https://www.revistarebram. com/index.php/revistauniara/issue/view/66. Acesso em: 04 out 2022.).

Nesse núcleo temático, foi possível observar que o cuidado com as práticas alimentares está voltado para atender às necessidades da criança, sendo este o ponto principal para as tomadas de decisões da mulher-mãe em relação a suas práticas alimentares. Já para as práticas alimentares da criança, esta sofre a interferência de diversas questões relacionadas à dinâmica da vida da mulher e que pode tanto facilitar como dificultar a amamentação nos primeiros seis meses de vida da criança.

A fenomenologia social de Alfred Schütz trouxe a possibilidade de se aproximar das relações sociais estabelecidas no mundo da vida da dupla mãe e filho, neste estudo, como eixo central na valorização tanto do sujeito individual como de forma coletiva, observando suas relações com outros indivíduos/grupos e permitindo refetir sobre as formas de cuidado na prática profissional, considerando a importância das relações sociais.

Conclusão

A mulher-mãe está inserida em diversos grupos sociais que geram influência ou não, a depender do seu grau de relacionamento e confiança, considerando a reflexão sobre os grupos existenciais e os grupos voluntários descritos por Schütz (1979SCHÜTZ, A. Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.). Dessa forma, quando observada a tomada de decisão sobre as práticas alimentares da mulher que amamenta, a mãe exerceu mais influência; em segundo lugar, outras mulheres da família, como avó e irmã. Já na tomada de decisão para a alimentação da criança nos primeiros seis meses, a mulher-mãe considerou as orientações recebidas pelos profissionais de saúde, embora algumas de suas decisões tenham sido modificadas de acordo com a dinâmica da vida cotidiana.

Além disso, o mundo social da dupla mãe-filho é permeado pelo discurso biomédico, que por sua vez é ressignificado de acordo com o mundo social da mulher que amamenta. No entanto, esta é a oportunidade para os profissionais de saúde lançarem mão de novas práticas que se aproximem das necessidades dessa dupla.

Foi possível observar que todos os olhares estavam voltados para as necessidades da criança nos primeiros seis meses de vida, inclusive o olhar da própria mulher-mãe. No entanto, através das práticas profissionais de saúde, deve-se valorizar a mulher-mãe, gerando relações de confiança a partir da aproximação com sua dimensão social, para melhor adesão às orientações e intervenções necessárias para a saúde dessa dupla ainda no pré-natal, momento oportuno para tal aproximação.

Quanto à limitação do estudo, deve-se observar que a especificidade dos sujeitos não permite a generalização dos resultados, mas aguça a reflexão a respeito das influências sociais que incidem nas tomadas de decisões da mulher-mãe nos primeiros seis meses de vida da criança em relação a suas práticas alimentares e para seu filho. Além disso, é sabido que temas centrais como a desigualdade de gênero, classe e raça permeiam essa temática, mas devido à robustez dessas questões e à falta de dados para dialogar, foi inviável discorrer a respeito. Assim, é necessário realizar novas pesquisas para aprofundar essas temáticas e a compreender as influências sociais nessa fase da vida.

  • 1
    Esta pesquisa é produto de uma dissertação de mestrado. Para a realização do estudo não foi destinado nenhum apoio financeiro de forma direta, pois o mesmo se inseriu em um estudo maior. Todos os autores declaram não ter nenhum tipo de conflito de interesse.

Referências

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Editora responsável: Jane Russo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Jan 2022
  • Aceito
    27 Dez 2022
  • Revisado
    03 Nov 2022
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