Open-access Fluxo da violência contra crianças e adolescentes na Rede de Atenção à Saúde: desafios e necessidades

O contexto histórico da violência contra crianças e adolescentes era um comportamento naturalizado, pois acreditava-se que a violência física em forma de castigos era um processo educativo para repreensão de atitudes não aceitas pela sociedade (Sanchez; Minayo, 2004). Os séculos XVI e XVII foram marcados pela exploração e diferentes formas de violência contra as crianças, que eram tidas como fardos, não essenciais à estrutura familiar (Martins; Jorge, 2010). Somente a partir do século XIX, as organizações e sociedades de proteção contra a violência infantil surgiram nos Estados Unidos da América, resultando, em 1959, na Declaração Universal dos Direitos da Criança, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (Gotlieb; Laurenti; Mello Jorge, 2002).

A Constituição Federal do Brasil determina, em seu artigo 227, “que é dever da família, da sociedade do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, a cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência familiar e comunitária salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completou 33 anos, inclui artigos que garantem a proteção e penalidades a qualquer tipo de violência para o público infanto-juvenil, tendo como órgão instituído autônomo e permanente que não detém poderes judiciais, o Conselho Tutelar para menores. A criação do Conselho Tutelar está prevista no artigo 132 do ECA, sendo de responsabilidade dos municípios, que devem escolher cinco membros para compor este serviço e submeter a eleições públicas. Não existem critérios para a escolha dos conselheiros, não sendo exigida formação de nível superior. O artigo 134 do ECA estabelece que o município deve oferecer educação permanente aos conselheiros.

Em casos de denúncia, a Polícia Militar não acolhe o chamado, mas direciona a vítima ou denunciante a procurar pelo Conselho Tutelar, que apresenta limitações em suas intervenções justamente por não portar nenhum poder judicial para que possa executar o que está previsto em lei. A ausência de autoridade por parte desse órgão impede muitas vezes que o mesmo adentre em edifícios e/ou residências mesmo sem a permissão da família. Muitas vezes, quando se consegue o acesso à vítima e seus familiares, utilizam-se abordagens antiéticas e desatualizadas, em decorrência da falta de formação especializada para tal finalidade. Isso enfraquece, na família assistida, a confiança no serviço.

Em relação aos profissionais de saúde e da educação, quando suspeitam de situações análogas a qualquer tipo de violência, cabe-lhes acionar o Conselho Tutelar por meio de denúncia e relatar o ocorrido através da ficha de notificação de violência doméstica (Garbin et al., 2015). As fichas de notificação de qualquer agravo e/ou doenças constam no SINAN (Sistema de Informação de Agravos de Notificação). A ficha de notificação de violência doméstica, sexual e outras violências foi criada por meio da Portaria nº 104, de 25 de janeiro de 2011, que a tornou compulsória para todos os serviços de saúde, públicos ou privados do Brasil (Brasil, 2011).

Esse tipo de notificação favorece que os segmentos populacionais de vulnerabilidade (mulheres, crianças, adolescentes e idosos) saiam da invisibilidade, descrevendo características tais como gravidade, tipologia, tipos das pessoas envolvidas e localização, contribuindo para a cultura da paz e combatendo qualquer tipo de violência. Entretanto, os indicadores relacionados à violência doméstica permanecem centralizados nos Sistemas de Informação e pelos profissionais do serviço de vigilância epidemiológica, dificultando o acesso dos demais profissionais de áreas afins e pesquisadores a investigarem os dados obtidos e ampliarem o conhecimento acerca da temática.

O fluxo da violência dentro da Rede de Atenção à Saúde (RAS) se inicia na Atenção Primária de Saúde (Unidades Básicas de Saúde) e no nível terciário (Unidades de Pronto Atendimento e hospitais). Uma vez identificada a vítima de violência doméstica, o órgão responsável é acionado. A identificação, denúncia e notificação dos casos de violência constatados em escolas e unidades de saúde quase nunca seguem o fluxo da rede de atenção à saúde e acabam subnotificados. Dentre as principais causas de subnotificação, estão a não familiaridade de alguns profissionais com os manuseios da ficha de notificação, o receio de uma represália por parte de familiares autores do crime de violência contra a criança e a falta de apoio dos órgãos competentes, como o Conselho Tutelar (Assis et al., 2012).

Em resumo, a situação da violência infantil demanda uma reformulação de portarias e criação de políticas públicas robustas, que vislumbrem maior resolutividade nos casos de violência contra crianças e adolescentes e interliguem as áreas responsáveis dentro da RAS.

Alguns pontos cruciais para melhorias na abordagem da violência infantil incluem uniformização de ações, o acesso às informações nos Sistemas de Informação e investimentos em pesquisas, para qualificação específica dos profissionais que atuam direta e indiretamente com esse fenômeno social. Partindo dessa premissa, é inegável que a violência contra a criança e o adolescente sejam incorporadas à lista de agravos e doenças no contexto da saúde pública, decorrentes do impacto individual e coletivo de tal questão.

Dessa maneira, a notificação de violência é tida como um instrumento de ruptura desse comportamento, reforçando a necessidade de profissionais preparados para assistir e responsabilizar-se pela notificação de tais casos. Em nível nacional, existe uma insuficiência de investigação sobre a frequência de casos de violência contra crianças e adolescentes nos serviços de saúde, resultado da instituição conflitante da prática de notificação nos diferentes estados, como também o desconhecimento, por parte dos profissionais de saúde, sobre os fluxos de atendimentos frente a essas situações.

O processo de notificar o agressor no âmbito intrafamiliar é algo complexo, considerando as diferentes vulnerabilidades da criança e do adolescente, o que dificulta a identificação do agressor. Culturalmente, o ato de notificar está relacionado à punição, ao invés de assistir, cuidar e auxiliar, o que prejudica a abrangência dos casos, quando o agressor tende a ocultar o ato ou evadir. Faz-se necessário direcionar a abordagem da violência doméstica por outra ótica, salientando que o indivíduo que produz a violência contra a criança e o adolescente reproduz as mesmas experiências das quais também foi vítima, naturalizando a situação (Silva; Pereira; Andrade, 2023).

Trabalhar o vínculo afetivo com os pais garante um diálogo preventivo para a redução da violência doméstica, como também a ruptura definitiva de uma cadeia de violência que transpassa gerações. Pode-se inferir que o formato atual do fluxo de notificação contra a violência infantil é obsoleto no que tange à resolutividade dos casos, ao acolhimento e à conscientização dos integrantes familiares.

Em conclusão, estudar o fenômeno da violência contra a criança e o adolescente é um compromisso social e ético entre a comunidade científica, poder público, gestores das esferas municipais e estaduais de saúde e educação.1

Referências

  • SANCHEZ, R. N.; MINAYO, M. C. D. S. Violência contra crianças e adolescentes: questão histórica, social e de saúde. Violência faz mal à saúde, Brasília: Ministério da Saúde, p. 23-28, 2006.
  • MARTINS, C. B. G; JORGE, M. H. P. M. Maus-tratos infantis: um resgaste da história e das políticas de proteção. Acta Paul Enfermagem, v. 23, n. 3, p. 423-428, 2010.
  • GOTLIEB, S. L. D, LAURENTI, R., MELLO JORGE, M. H. P. Crianças, adolescentes e jovens do Brasil no fim do século XX. In: WESTPHAL, M. F. Violência e criança. São Paulo: Edusp, 2002. p. 47-72.
  • GARBIN, C. A. S.; DIAS, I. D. A.; ROVIDA, T. A. S.; GARBIN, A. J. Í. Desafıos do profıssional de saúde na notifıcação da violência: obrigatoriedade, efetivação e encaminhamento. Ciência & Saúde Coletiva, v. 20, p. 1879-1890, 2015.
  • BRASIL. Portaria nº 104, de 25 de janeiro de 2011. Define as terminologias adotadas em legislação nacional, a relação de doenças, agravos e eventos em saúde pública de notificação compulsória em todo território nacional e estabelece fluxos, critérios, responsabilidades e atribuições aos profissionais de saúde. Diário Oficial [da] União. Brasília, 2011.
  • ASSIS, S. G. D. et al. Notificações de violência doméstica, sexual e outras violências contra crianças no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 17, p. 2305-2317, 2012.
  • SILVA, C. M.; PEREIRA, D. R. P.; ANDRADE, F. S. Quebra do silêncio em grupos on-line de enfrentamento ao abuso sexual infantil. Psicologia em Estudo, v. 28, p. e51583, 2023.
  • 1
    M. M. Campoamor: redação e análise textual. E. Z. Martinez e C. B. dos Santos: análise textual.

Editado por

  • Editora responsável:
    Jane Russo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Nov 2023
  • Revisado
    08 Dez 2023
  • Aceito
    23 Dez 2023
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