Open-access Quando o samba atravessa a Atenção Primária à Saúde: competência cultural sob o olhar de moradores da comunidade de Mangueira-RJ

When samba crosses Primary Health Care: cultural competence from the perspective of residents of the community of Mangueira-RJ

Resumo

O objetivo é identificar e analisar se o atributo da competência cultural é percebido no cuidado prestado na Atenção Primária à Saúde, e como aspectos sociais e culturais atravessam os modos de vida, crenças e comportamentos em saúde. Realizou-se estudo qualitativo por meio de entrevistas com moradores da Comunidade de Mangueira adscritos a uma Clínica da Família (CF) e vinculados ao Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira (GRESEPM), Rio de Janeiro-RJ. A competência cultural foi analisada nas dimensões do sujeito e das práticas profissionais. Sobre a dimensão do sujeito, o GRESEPM atravessa as histórias, modos de conduzir a vida e comportamentos em saúde. A interrupção das atividades carnavalescas na pandemia gerou efeitos na sociabilidade, lazer e piora da autopercepção de saúde. Considerou-se que a equipe de saúde da CF incorpora informações sobre os aspectos socioculturais na adequação dos planos de cuidados e práticas profissionais. A inserção comunitária, empatia e atividades extramuros foram elementos geradores de vínculo, adesão às atividades e facilitadores da comunicação. Os princípios da competência cultural favorecem processos de interação, fortalecem a identidade coletiva, o autocuidado, a autoestima e a diversidade, valores que devem fazer parte da cena de cuidados de uma APS abrangente.

Palavras-Chave: Competência cultural; Atenção Primária à Saúde; Características culturais

Abstract

The article aims to identify and analyze whether the attribute of cultural competence is perceived in the care provided in Primary Health Care and how social and cultural aspects cross the ways of life, beliefs, and health behaviors. A qualitative study was carried out through interviews with residents of the Community of Mangueira assigned to a Family Clinic (CF) and linked to the Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira (GRESEPM), Rio de Janeiro/RJ. Cultural competence was analyzed in the dimensions of the subject and professional practices. Regarding the dimension of the subject, GRESEPM crosses the stories, ways of conducting life and health behaviors. The interruption of carnival activities during the pandemic had effects on sociability, leisure and worsened self-perception of health. It was considered that the health team incorporates information on sociocultural aspects in the adequacy of care plans and professional practices. The empathetic posture and extramural activities were elements that generated bonding, adherence to activities and facilitators of communication. The principles of cultural competence favor interaction processes, strengthen identity, self-care, self-esteem and diversity, values that must be part of the care scene of a comprehensive PHC.

Keywords: Cultural Competency; Primary Health Care; Cultural Characteristics

Introdução

Além dos atributos essenciais – primeiro contato, integralidade, coordenação e longitudinalidade – outros três são reconhecidos como componentes de uma abordagem abrangente de Atenção Primária à Saúde (APS) – abordagem familiar, comunitária e competência cultural (Starfield, 2002). Competência cultural envolve o reconhecimento das necessidades, por vezes implícitas ou invisibilizadas, de subpopulações, relacionadas a características étnicas, raciais ou culturais (Damasceno; Silva, 2018), além de suas representações acerca do processo saúde-enfermidade (Giovanella, 2009). Abrange o respeito por pessoas, famílias e sociedades de várias origens e capacidade de aceitação que possibilite traduzir o conhecimento cultural em habilidades práticas capazes de melhorar a adequação dos cuidados em saúde (Chia-Jung, 2017).

O atributo da competência cultural representa um conjunto de políticas, comportamentos e atitudes que, ao mesmo tempo, influenciam o serviço e capacitam os profissionais de saúde para atuação em situações interculturais (Cross, 1989). Tornar-se culturalmente competente é um processo, e sempre há possibilidades de aprimoramento. Sistemas, serviços e profissionais culturalmente competentes apresentam melhores resultados na relação com os usuários, que pode se refletir em maior satisfação, adesão terapêutica, diminuição dos sintomas, melhoria nas condições gerais de saúde e nos efeitos das ações de prevenção e promoção (Cross, 1989; Stern, 2012; Zeh, 2016; Teunissen, 2017; Damasceno; Silva, 2018; Jongen, 2018). Além disso, os atributos derivados, especialmente a competência cultural e a orientação comunitária fortalecem os atributos essenciais na relação entre equipes de saúde e população (Streit, 2014).

Mesmo em zonas urbanas, a existência de características singulares dos territórios e populações deve ser considerada pelos profissionais de saúde no momento da tomada de decisões e elaboração dos planos terapêuticos individuais e familiares. Argumenta-se que todas as pessoas têm sistemas de valores, que são dinâmicos e não expressam somente hábitos e crenças sobre a percepção de bem-estar, uma vez que refletem práticas e valores políticos, econômicos, legais, éticos e morais (Napier, 2014). Nesse sentido, produzem novas necessidades, por vezes desafiadoras, interpostas às práticas de cuidado em saúde, que variam amplamente entre as sociedades (Napier, 2014). Considerando o papel relevante que os profissionais desempenham na interação e acesso à saúde, a inclusão da competência cultural na formação e no desenvolvimento da força de trabalho é estratégica para sua incorporação aos serviços e sistemas de saúde (Jongen, 2018).

Ainda que se considere não haver um dispositivo único adequado a todos os contextos, na literatura são escassos os instrumentos para identificar e analisar a competência cultural no processo de trabalho dos profissionais (Chia-Jung, 2017). O PCATool, por exemplo, utilizado para avaliar o desempenho da APS, proporciona uma análise quantitativa que não permite um aprofundamento teórico-prático sobre a competência cultural.

A importância do tema para a APS justifica-se também pelos rumos da política nacional de saúde nos últimos anos (2017-2022). Em 2017, foi publicada a revisão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) em um cenário político que favoreceu pautas antidemocráticas. A ameaça de enfraquecimento da Estratégia Saúde da Família (ESF) como modelo prioritário e abrangente de APS, agravada por medidas como mudanças no financiamento (Mendes; Melo; Carnut, 2022), pode afastar as práticas de abordagem psicossocial e cultural do processo de trabalho das equipes.

Este artigo tem como objetivo identificar e analisar se o atributo da competência cultural é percebido no cuidado prestado na APS na Comunidade de Mangueira, Rio de Janeiro-RJ, e como aspectos sociais e culturais atravessam os modos de vida, crenças e comportamentos em saúde (Betancourt, 2003). A relação singular do serviço de APS com o Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira – GRESEP – por ser referência histórico-cultural que atravessa a comunidade – é propícia à compreensão das interfaces entre aspectos culturais e saúde. Busca-se dar relevo ao atributo da competência cultural na APS que também deve ser permanentemente considerado e compreendido em cenários urbanos.

Métodos

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo de caso com abordagem qualitativa, cujo objetivo foi compreender a percepção dos usuários quanto ao atributo da competência cultural no cuidado prestado por uma equipe de Saúde da Família (EqSF) que atua na Clínica da Família (CF) Dona Zica, na Comunidade de Mangueira, Rio de Janeiro-RJ, e analisar como aspectos sociais e culturais atravessam os modos de vida, crenças e comportamentos em saúde.

Cenário, participantes da pesquisa e coleta de dados

O estudo foi realizado no município do Rio de Janeiro, que conta com diferentes tipos de unidades de APS – Clínicas da Família (unidades mais recentes e exclusivas para EqSF) e Centros Municipais de Saúde (unidades mais antigas, coexistindo ESF com serviços de atenção secundária) (Prefeitura do Rio de Janeiro, 2021). A cobertura pela APS era de 77,7% (Brasil/MS, 2022).

A CF Dona Zica abrange o território originalmente conhecido como Morro da Mangueira, hoje bairro da Mangueira, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Era responsável pelo atendimento de 16.147 habitantes, adscritos a 5 EqSF. O GRESEPM é a principal referência cultural do território. Serviu de abrigo e moradia para escravos alforriados e seus descendentes, que levavam para a localidade suas manifestações culturais e religiosas de matriz africana. O GRESEPM foi fundado em 1928, recebendo o nome Estação Primeira de Mangueira por ser a primeira parada do trem, que saía da Estação de Dom Pedro (Mangueira, 2022).

Foram realizadas 16 entrevistas de abril a maio de 2021. Os participantes eleitos tinham mais de 18 anos, vinculação às atividades do GRESEPM e eram usuários da CF Dona Zica adscritos à EqSF Buraco Quente (equipe responsável pela área próxima à Quadra do GRESEPM), com atendimento registrado no ano anterior à pesquisa. Junto à EqSF foram identificados integrantes do Grêmio. Após uma primeira relação de sujeitos com vinculação à Mangueira, foi realizada busca no prontuário eletrônico para identificar o registro de contatos com a EqSF no ano anterior ao início do trabalho de campo. Os contatos poderiam ser consultas clínicas, procedimentos de pré-consulta, visitas domiciliares ou atividades educativas.

Os usuários foram contatados com auxílio dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) da Equipe Buraco Quente, para agendamento das entrevistas, realizadas no domicílio, conforme preferência e disponibilidade, respeitando as medidas de precaução impostas pela pandemia da Covid-19 e após etapa de imunização da população maior de 60 anos. A realização das entrevistas nos domicílios permitiu um ambiente confortável e acolhedor para os entrevistados, além de minimizar possíveis constrangimentos, caso realizadas no próprio serviço de saúde.

As entrevistas foram realizadas pela primeira autora do artigo e guiadas por roteiro semiestruturado, com dados da identificação, caracterização sociodemográfica, morbidade referida e contatos com a CF, seguidos pelas vivências junto ao GRESEPM e com a EqSF. O roteiro passou por etapa de teste piloto, com realização de entrevista para ajuste de conteúdo e linguagem, não incluída na análise. As entrevistas, com duração aproximada de 35 minutos cada, foram gravadas (apenas o áudio) e transcritas na íntegra.

O fechamento amostral foi realizado a partir de critérios de saturação teórica (Bardin, 1977), ou seja, a suspensão de inclusão de novos participantes ocorreu quando os dados obtidos passaram a apresentar, na avaliação das pesquisadoras, uma certa repetição e convergência no alcance dos objetivos do estudo. Tal análise foi realizada de forma contínua, desde o início da coleta, tendo em vista cada uma das dimensões/componentes abordados no roteiro de entrevistas.

O nome dos participantes e dos profissionais de saúde mencionados foram substituídos por nomes fictícios, preservando suas identidades e garantindo o sigilo e a confidencialidade. Todos os participantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O processo de seleção e entrevistas com os usuários teve anuência da gestão local/municipal.

Análise e produção dos resultados

As entrevistas passaram por análise de conteúdo temática, com suas respectivas etapas de pré-análise, com organização e leitura do material empírico; exploração do material, pela codificação, realização de recortes no texto; tratamento dos resultados, inferência e a interpretação, na qual se operam os dados brutos de forma a serem significativos e válidos (Bardin, 1977).

Foram definidas categorias de análise, a priori, complementadas pelos dados emergentes a partir das narrativas. Neste artigo, foi adotada uma concepção de competência cultural multifatorial, explorada a partir do olhar e experiência de usuários com base em duas dimensões: sujeito – que buscou identificar os atravessamentos provocados pela vinculação ao GRESEPM e relações com a percepção de bem-estar e comportamentos em saúde; práticas profissionais – que se referiu à percepção acerca da incorporação de componentes da competência cultural aos cuidados em saúde pelos profissionais da APS (Cross,1989; Stern, 2012; Mobula, 2014; Zeh, 2016). As categorias de análise foram dispostas em uma matriz que guiou o roteiro de entrevistas e serviu de base à análise temática e apresentação dos resultados (Quadro 1). Nos resultados, especial ênfase foi dada à apresentação literal de excertos de falas dos participantes da pesquisa, pela intensidade e força das narrativas.

Quadro 1
Matriz de análise para análise da competência cultural

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal Fluminense (Parecer Nº 4.199.668) e pelo CEP da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (Parecer Nº 4.321.097).

Resultados e Discussão

Características dos participantes do estudo

Quase todos os participantes (14) tinha mais de 60 anos. Metade apresentava renda de até 1 salário-mínimo, pouco mais da metade com nível de escolaridade fundamental/fundamental incompleto. A despeito da idade, parte relativamente pequena dos entrevistados (7) referiu ser aposentado, sendo que destes, cinco relataram aposentadoria concomitante a outra ocupação ou recebimento de benefício de transferência de renda (Programa Bolsa Família). Mais da metade se declarou o principal provedor da família. Planos de saúde eram residuais. Como um dos critérios de inclusão era vinculação ao GRESEPM, o grupo de entrevistados foi composto por membros que exerciam as mais diversificadas e intensas atividades na Agremiação, com longos tempos de moradia (em muitos casos, toda a vida) no mesmo endereço (Tabela 1).

A hipertensão arterial sistêmica era o principal agravo em saúde autorreferido, acometendo a maior parte dos participantes, seguido pelo diabetes mellitus. Outros agravos mencionados foram: câncer de mama, osteoporose, sequela de acidente vascular cerebral isquêmico, artrite reumatoide, hipotireoidismo, glaucoma, obesidade e fratura de fêmur, configurando um perfil de adoecimento que demanda grande utilização dos serviços de saúde.

A Tabela 2 mostra que, mesmo no período pandêmico de Covid-19, foram expressivos os contatos referidos com a CF D. Zica no ano anterior à realização do estudo, quase todos muito recentes, sendo o último, predominantemente em função da vacinação. Os relatos revelaram boa adesão à vacina e a variados serviços ofertados pela CF, mesmo em face às medidas de isolamento (Tabela 2).

Tabela 1
Caracterização dos participantes da pesquisa, Clínica da Família Dona Zica, Rio de Janeiro, 2021
Tabela 2
Características dos participantes da pesquisa, Clínica da Família Dona Zica, Rio de Janeiro, 2021

Os participantes compuseram um grupo com prolongada vinculação com o território da comunidade de Mangueira e ao GRESEPM, o que tornou ainda mais expressivo o conjunto dos achados. Ao mesmo tempo, destacaram-se as diversas vulnerabilidades expressas pela renda e escolaridade. O elevado número de contatos com a APS demonstra intensa relação com a EqSF, aponta para centralidade do adoecimento na vida desses usuários e foi compatível ao perfil de multimorbidade por agravos crônicos não-transmissíveis, mais frequente em mulheres, pessoas com idade mais avançada e com menor nível de escolaridade (Rzewuska, 2017), como neste estudo. Estas características confirmam a necessidade de um equipamento de saúde de base territorial dimensionado para um conjunto de pessoas que têm o SUS como principal recurso de saúde.

Dimensões da competência cultural

Sujeito: “a Mangueira me pega no colo, me balança, me nina...”

Muitas histórias de vida pessoais e familiares estavam vinculadas ao GRESEPM, ao longo de muitos anos e expressavam a intensidade da Agremiação no cotidiano dos moradores. No mesmo sentido, os sambas e enredos de Mangueira davam materialidade às histórias individuais e coletivas:

Desde criança, desde os cinco anos, vestida de baianinha. Minha tia saía, minha avó, minha família... Então você já cresce com aquele amor. É um amor incondicional, você não vive, você torce, se você não sai, fica agoniada... (Cândida)

Perdi minha mãe no Carnaval... A baiana mais alegre dentro dessa Mangueira. Ela desfilou no domingo de Carnaval de 77... Então ela se encontrou na Avenida com muitas pessoas antigas que ela não via, ficou emocionada. Desfilou domingo e chegou em casa segunda de manhã. Aí ela deitou e não acordou mais... Chegou a se despedir da Mangueira... (Solange)

Cada samba da Mangueira, assim, cada ano que canta, parece que tá cantando um pedaço da minha história, da minha vida, sabe? Eu consigo me enxergar em cada pedacinho ali daquele samba. (Clara)

Goldwasser (1975) define como “Ideologia Mangueirense” um conjunto de ideias e práticas simbólicas que confere a seus membros uma visão explicativa tanto de seu papel social na dimensão histórica quanto em seu quadro de interações, que atravessa de forma intensa as histórias, modos de conduzir a vida, autopercepção e comportamentos em saúde em suas diversas dimensões.

A importância do GRESEPM se expressava na geração de renda, uma vez que moradores desempenhavam atividades remuneradas na Agremiação, sendo este outro importante lugar ocupado pelo equipamento. O cancelamento dos desfiles e, consequentemente das atividades pré-carnavalescas, devido à pandemia de coronavírus, representou importante impacto na economia local:

Eu quero que volte, porque foi o que falei! Graças a Deus as pessoas me ajudam! Eu não tenho nada o que falar dos meus vizinhos. Eles me ajudaram, mas, tem pessoas que tá passando necessidade mesmo, cara! E voltando a atividade (carnavalesca)... a gente coloca isopor para venda de bebidas nos ensaios! Eu já trabalhei muito com isopor! (Vania)

Considerando que os sistemas de valores (éticos, culturais, entre outros) refletem dimensões da vida econômica (Napier, 2014), não menos importante é o lugar do GRESEPM na economia local, a partir da extensa cadeia produtiva e inovativa vinculada ao carnaval, cujos esforços também se direcionam à preservação de características desta manifestação cultural (Matos, 2007). Uma das entrevistadas, que tem nos shows de samba uma das suas fontes de renda, relatou as dificuldades para manutenção durante a pandemia, destacando que as soluções digitais, como “lives”, não atendem ou substituem todos os tipos de atividades: “Agora tudo é ‘live’, né!?... E ‘live’ é poucas pessoas. Fizemos uma, do trem do samba, poucas pessoas, aí fomos em sete, foi dia 2 de dezembro.” (Solange)

Nesse sentido, ainda que se reconheça a relevância dos processos espontâneos de busca de solução para problemas locais, é premente o reconhecimento da necessidade de integração entre práticas e saberes locais, políticas públicas e demandas globais (Giatti, 2019) como um caminho possível para superação da precariedade e informalidade.

A Mangueira se configurava como um espaço de resiliência, reconstrução da vida após momentos de dificuldades e perdas, a partir da formação de uma rede de solidariedade que influenciava na autopercepção de saúde, principalmente em aspectos da saúde mental:

Quando minha mãe veio a falecer, a gente não iria desfilar, mas a presidente da ala veio e: ‘não, vocês têm que desfilar’. A gente ficou meio... estava meio triste, não estava indo ao ensaio. Quando eu entrei na Avenida, eu falei: ‘Jesus, esse aqui é meu lugar, aqui é meu berço...’. Era uma sensação de ser acalentada, de tá no colo... parece que a Mangueira me pega no colo, me balança, me nina, sabe? É como se ela me...: ‘Ah, vem cá, que eu vou curar suas feridas’... (Clara)

Então a escola é um divisor dos seus problemas. Quando você sai daquela porta ali, que encontra o povo todo, que você entra na quadra pro ensaio, acabou,

né!? Fica todo mundo de bem, de boa... uma união só, uma força só! (Luiz Renato)

O GRESEPM é um espaço de sociabilidade e lazer, sobretudo para a população idosa. Tal característica deve ser valorizada pelos serviços e profissionais de saúde na medida em que são nos bairros mais empobrecidos ou periféricos, nos quais se encontra populações vulnerabilizadas, onde se concentram os temas do exílio da periferia em relação aos direitos essenciais inerentes à saúde e ao direito à cidade (Giatti, 2019). Nessa perspectiva, as ações de saúde com competência cultural devem ser guiadas pelas especificidades dos contextos dos territórios e territorialidades, nos lugares onde a vida acontece (Faria, 2020), que definem e conformam práticas adequadas a essas singularidades.

O pertencimento ao GRESEPM foi associado à percepção de melhor estado de saúde por representar uma fonte de alegria, conforto e bem-estar e até mesmo estímulo ao autocuidado. No entanto, muitos participantes expressaram medo provocado pela pandemia e reconheceram impactos provocados pelo isolamento, com impossibilidade de frequentar a Agremiação. O cancelamento do Carnaval de 2021 e o fechamento do GRESEPM foram mencionados como um dos fatores que contribuíam para uma autopercepção negativa de saúde:

A Mangueira para mim, sei lá... É um... É um remédio. Tudo pra mim, depois de Deus e de minha família, a Mangueira pra mim é tudo, entendeu? (Pedro)

A minha saúde tá ruim, tá péssima. E eu acho que se tivesse a Mangueira funcionando... Não teve nem Carnaval esse ano. Tem um ano que não abre a quadra... Eu acho que se ela tivesse funcionando, eu não tava tão doente assim. Eu juro. Porque aí eu ia para lá, eu bebia cerveja, conversava com meus amigos. Eu vivo sozinha aqui agora... (Zara).

Com essa, essa pandemia né, que a gente viu como, como que faz falta, porque é uma higiene mental. Ali a gente conversa, tem muitos amigos. Antes de começar o samba, a gente interage com aquele pessoal todo, conta casos, eles contam casos e com isso muita coisa saiu da nossa cabeça... muitos problemas... (Vanessa)

A interrupção das atividades carnavalescas, em decorrência das medidas de isolamento, agravou os efeitos econômicos, na sociabilidade, lazer e piora da autopercepção de saúde. Desenvolver e manter relações sociais e com grupo/organizações da sociedade são necessidades humanas vitais. O enfraquecimento dessas relações, em função de vários aspectos relacionados ao envelhecimento (perda de amigos, companheiro, problemas de saúde), aumenta os riscos de solidão e isolamento (Jerliu, 2014). A falta de rede social e contatos relaciona-se ao aumento da mortalidade por diversas causas, principalmente cardiovascular, enquanto são verificados efeitos benéficos para a manutenção da funcionalidade e o bem-estar numa perspectiva de envelhecimento saudável (Jerliu, 2014). Nessa direção, o cuidado à saúde física e mental em contexto pós-pandemia seguirá como um desafio aos serviços e profissionais de saúde (Ornel, 2020), exigindo ações ampliadas em sinergia aos cuidados biomédicos, entre as quais o apoio a dispositivos culturais comunitários.

As atividades realizadas pela Agremiação promoviam espaços de sociabilidade, dentro e fora da comunidade, contato com outros grupos e pessoas:

A velha guarda quase todo domingo tem passeio. É, agora não tem mais. Então a gente fica,... Que a gente sente falta das amizades, de conversar com a outra... Dá aquela tristeza, presa... Ainda quando foi outro dia, eu falei pra minha neta: ‘Ó foi aniversário da Portela [outra escola de samba do Rio de Janeiro]! A essa hora eu já tava lá toda ‘tchan’, toda arrumadinha’. (Irene)

Em Mangueira tem novidade, tem as pessoas que chega novo, tem uma visita que vem de fora. Isso tudo distrai a gente. E aquilo ali você vai vivendo e não vai se aborrecendo e nem sentindo as certas coisas né? (Solange)

As pessoas ficam mais alegres, não fica aquela ‘picuinha’, ficam mais unidas. A rua fica mais agitada. É samba da Mangueira pra tudo quanto é canto. Ficam mais receptivas. As casas ficam cheias... em julho, agosto, minha casa já tá cheia, as pessoas vindas, a família, colegas [...] pra poder ir pro samba. (Clara)

O próprio significado de ter saúde era condicionado a poder viver a vida com o Carnaval. Saúde significava menos estar em dia com os cuidados médicos e mais se deixar envolver pelo Carnaval. Alguns entrevistados dedicavam tanto tempo às preparações que deixavam em segundo plano a busca por serviços de saúde, expressando a magnitude e o espaço ocupado pela Mangueira em suas vidas. Contudo, a autopercepção era de que a saúde na comunidade, de forma geral, melhorava na época do Carnaval:

Assim, eu vou ser sincera, eu não vou nem no médico, porque pra mim não dá tempo, porque eu estou envolvida. É inscrição, eu tenho que tomar conta das coisas, é eu que sou responsável... (Cândida)

[...] às vezes eu vejo aí... pessoas da Velha Guarda, entendeu, baianas, tá morrendo, mas prefere morrer na Avenida. E isso também eu vou levar para mim. Se eu tiver de morrer pela Mangueira, eu vou morrer dentro da Avenida. (Pedro)

Para os profissionais da APS, presentes no território, a aparente piora da autopercepção do estado de saúde, importante preditor da utilização de serviços, é um achado que deve ser valorizado. Estudos realizados em alguns cenários mostram que indivíduos de meia-idade e idosos, com presença de condições crônicas, menor renda familiar e sofrimento psicológico apresentam maiores chances de pior autopercepção de saúde (Boner, 2017), fatores também presentes entre os participantes deste estudo. De toda forma, profissionais com maior competência cultural e formação específica têm expectativas mais positivas de intervenções para reduzir as disparidades de saúde, independentemente do tipo de auxílio buscado pelos pacientes (Mobula, 2014).

A importância das atividades carnavalescas se expressava até na busca por assistência e no autocuidado, de forma que problemas de saúde não interferissem nos festejos: “Olha, quando chega dezembro eu vou... procuro logo um médico pra fazer meu check up, pra chegar fevereiro pra poder desfilar.” (Juraci).

Por exemplo, começa o desfile, começa os ensaios, eu fico mais ativa, porque aí eu vou pro samba, vou pro ensaio. Eu penso em comer melhor, porque quero ficar mais leve, mais disposta. Aí a gente pode fazer aquela caminhada, porque ‘Ah, tem que aguentar o desfile’. Me sinto mais alegre, mais bonita, me cuido mais; ‘ah, eu quero botar um brinco, um batom...’, ‘ah, porque eu vou pro desfile, vai estar todo mundo lá’. Ah, eu acho que interfere muito no meu emocional. (Clara).

Uma das participantes resgatou em seu relato que ser da Mangueira é uma distinção, em uma sociedade que não valoriza e exclui pretos e pobres:

Uma coisa que acho que... A gente não... A gente já tem a dificuldade de ser visto, de ser lembrado... é difícil um preto, pobre tá na mídia, por uma coisa boa, né?! [...] Ah, eu visto minha fantasia, que as pessoas vêm e: ‘ah, vamos tirar uma foto!’... Eu me sinto ‘a pessoa’, né?! Eu ainda acho assim: ‘ah, eu sou Mangueira hoje’! (Cândida)

Quando eu tô rodando ali, parece que eu sou o centro do mundo. Eu me sinto a pessoa mais importante, mais livre, mais leve. (Clara)

Estar na Mangueira, principalmente no desfile de Carnaval, significava um momento de evidência individual e coletiva. No Carnaval, observa-se a conjugação de elementos contraditórios, em que as comunidades dos morros, das favelas, descem para desfilar no asfalto da Passarela do Samba, o Sambódromo, seus protestos, sonhos, aspirações e esperanças, na folia, na alegria e no luxo de suas fantasias (Costa, 2003). A relação com a Agremiação é emblemática de um conjunto único de atitudes, crença e comportamentos associados a uma “cultura do samba”, símbolo resultante de estruturas musicais híbridas, da cultura e resistência negras que descontrói o mito da brasilidade paradisíaca e da democracia racial brasileira (Azevedo, 2018).

Os resultados da dimensão do “sujeito” mostram que o GRESEPM é um equipamento sociocultural vital na comunidade de Mangueira, com destacado papel na manutenção da saúde e das condições de vida dos moradores, especialmente em momentos críticos. É parte da história coletiva e individual dos moradores e, como tal, deve fazer parte da cena de cuidados de uma APS culturalmente sensível.

Práticas profissionais: “a maioria ali [na Clínica da Família] é tudo mangueirense. É tudo prata da casa”

Cinco elementos podem ser considerados essenciais para que um serviço de saúde seja culturalmente competente: a valorização da diversidade, a autoavaliação cultural, a consciência da dinâmica da interação cultural, o desenvolvimento de adaptações à diversidade e a institucionalização da interação cultural (Cross, 1989). Alguns desses elementos puderam ser observados na dimensão das práticas profissionais.

Os ACS eram conhecidos por todos e identificados como os profissionais mais próximos. Pelo fato de morarem na comunidade também eram atravessados pelas questões afeitas ao GRESEPM. A presença da equipe no território foi mencionada como um fator positivo e de criação de vínculo entre a comunidade e o serviço de saúde:

Conheço todos de lá. A maioria do pessoal, tudo, praticamente que vão, até os médicos vêm aqui em casa. A gente conhece todos. (Vicente)

Ah, eu vejo sempre elas [ACS] com essas roupas aí, com gorro, andando, nas casas, com as doutoras, vêm aqui. Quando a pandemia tava muito forte, veio o doutor aqui nessa moça que passou mal à beça, minha vizinha. (Eliane)

Em estudo realizado por Müller (2019), médicos de família e comunidade apontaram ferramentas da Clínica Ampliada e da Medicina Centrada na Pessoa como formas de análise do perfil sociocultural dos seus pacientes. No mesmo estudo, foi evidenciada a importância dos ACS como elemento transformador das práticas assistenciais tanto no diálogo com os usuários quanto com os profissionais de saúde, legitimando a presença desse profissional nas EqSF (Müller, 2019).

O médico que atuava na CF no momento das entrevistas, mas também outros que passaram pela EqSF, foram mencionados como profissionais de referência na busca por cuidados. A maioria dos participantes afirmou que suas opiniões eram apreciadas durante os atendimentos e nos momentos de tomada de decisão. A inserção comunitária do médico, que era médico de família e comunidade, foi ressaltada nos relatos:

Eu vou falar uma coisa, eu acho que o Doutor Davi tem uma identificação muito grande com a comunidade, porque é como a gente... Nós não chegamos lá e encontramos uma outra pessoa, nós encontramos uma pessoa que parece que ele mora aqui, que ele é daqui! (Vanessa)

As explicações e a comunicação com os profissionais foram consideradas compreensíveis. Os participantes avaliaram que a equipe da CF procurava informações relacionadas com os hábitos de vida, aspectos socioculturais e do cotidiano, buscando uma compreensão ampliada do processo saúde-doença e individualizando os planos de cuidado. Havia a percepção de que os profissionais teriam algum tipo de relação com o GRESEPM e estavam cientes do vínculo dos usuários, suas famílias e comunidade, mesmo porque o tema fazia parte do diálogo com as EqSF:

Porque a gente vai em médico doutora que fala umas palavras tão difícil que a pessoa chega lá praticamente morto né, porque é tanta coisa, meu Deus do Céu! Ele não, ele [o médico da equipe] simplifica, que a gente entende tudo direitinho. (Vanessa)

Ah, todo mundo sabe! [risos] eu sou muito velha, a minha ala é a mais antiga da Mangueira, tem mais de 40 anos. Eu é que falo tudo, precisa nem me perguntar [risos]. (Zara)

Aí [na consulta] eu falava como que era a Mangueira... Aí sempre que dá, eu convido pra sair [na Mangueira], então a pessoa vive também, acaba vivendo, vira Mangueira. É um conjunto, não dá pra separar. (Cândida)

A busca por informações a respeito dos aspectos culturais e sociais pela equipe da CF Dona Zica foi um fator relevante para uma maior compreensão sobre os atravessamentos do GRESEPM no cotidiano da população e adequação dos planos de cuidados ao idioma do samba. Um sistema de saúde culturalmente competente é definido como aquele que reconhece e incorpora em todos os níveis assistenciais a avaliação das relações interculturais, a conscientização das dinâmicas resultantes das diferenças e os mecanismos de adaptação para atender às necessidades culturais (Zeh, 2016).

A inserção comunitária foi considerada um elemento criador de maior vinculação da EqSF com os moradores da comunidade, facilitando a comunicação. Os saberes popular e profissional se articulam quando há coleta de informações sobre valores, expressões e padrões de cultura de um indivíduo ou comunidade, sendo que a abordagem culturalmente fundamentada amplifica as práticas de cuidado, estimula a participação social, a autonomia e satisfação dos usuários ao terem seus hábitos culturais, costumes e religião respeitados pelos profissionais de saúde (Lima, 2016).

Houve relatos de que os profissionais da CF consideravam o contexto carnavalesco na definição de condutas clínicas diferenciadas para mitigar possíveis intercorrências de saúde no período do Carnaval:

Pelo que acontece, eu já vou perante a enfermeira, que aí ela, ela mesmo fala: ‘oh, conforme o Carnaval é puxado você tem que tomar muito líquido, a alimentação tem que ser diferente. (Vicente)

Havia a percepção de que a EqSF compreendia a importância da Mangueira para a comunidade como espaço de lazer, geração de renda e bem-estar que interferia e impulsionava a vida dos moradores. Foram constantes relatos de que: “todos (os profissionais) seriam mangueirenses. Eu acho que sim, porque a maioria ali é tudo mangueirense. É tudo prata da casa [risos] (Zara).” Na mesma direção, a CF foi apontada como um equipamento fundamental para a comunidade:

Ah, a Clínica da Família é importante aqui porque tem essas doenças braba: sarampo, agora tem essa tal de Covid, mas antes de ter Covid, muitas doenças: tuberculose. Teve uma amiga minha que teve tuberculose e disse pra mim que descobriu lá na Clínica da Família. Então a Clínica da Família é importante pra Mangueira. (Eliane)

A participação nos desfiles e atividades pré-carnavalescas alcança não somente benefícios biológicos (de condicionamento físico, regulação e fortalecimento de sistemas metabólicos), mas também interfere em outros determinantes como sociabilidade e acesso à cultura, que podem contribuir para a manutenção da saúde em uma perspectiva mais global (Batista, 2012). Os achados deste estudo ratificam a necessidade de incorporar habilidades culturais ao cuidado clínico, que podem se expressar na capacidade de realizar avaliações físicas com base em aspectos culturais, usar recursos em saúde de forma a respeitar crenças e valores na proposição de planos terapêuticos culturalmente apropriados (Chia-Jung, 2017).

A realização de ações fora dos limites da CF e a presença da equipe multiprofissional foram destacadas como uma forma de aproximar a população do serviço de saúde. Foram relatadas algumas atividades realizadas na Vila Olímpica da Mangueira pelos profissionais do Núcleo Ampliado da Saúde da Família com a temática do Carnaval, tendo boa adesão da população.

De toda forma, houve narrativas de que a CF deveria ocupar de forma mais intensa e contínua o espaço do GRESEPM para o desenvolvimento de ações de saúde, uma vez que a quadra era o principal equipamento do território, o que poderia ampliar a adesão às atividades:

A clínica acaba sendo um pouco mais longe, tem pessoas que têm problemas de locomoção, tem senhoras... Eu acho legal. Até porque, fica mais chamativo, né? Mais atraente. As pessoas veem que é na quadra. Eu, por exemplo [risos], é alguma coisa na quadra da Mangueira, aí já vou lá... Eu acho que seria até interessante uma integração... Eu acho que chamaria mais as pessoas. Ficaria mais atrativo. (Clara).

No Brasil, a concepção de uma APS abrangente inclui a participação da comunidade e a intersetorialidade para o enfrentamento da determinação social do processo saúde-adoecimento. Todos esses elementos ratificam a importância do GRESEPM para a comunidade e a necessidade de que seja incorporado como parceiro estratégico. Tal fato ganha relevo na medida em que o componente intersetorial, ainda que de reconhecida importância, é um dos nós críticos das EqSF (Giovanella, 2009). No contexto do estudo, a pujança do GRESEPM pode se tornar um elemento facilitador de tais práticas.

Argumenta-se que, neste e em outros cenários, considerar o contexto das práticas de cuidado, importando-se também com o vínculo cultural e as interações que as pessoas estabelecem com os ambientes, é uma expressão de competência cultural. Promover a motivação e incentivar comportamentos culturais nos profissionais de saúde podem aumentar a disposição dos serviços para incorporar elementos da competência cultural (Mobula, 2014). Nessa direção, a formação direcionada aos cuidados culturalmente apropriados tem sido advogada como estratégica para superar falhas de comunicação entre os profissionais de saúde e pessoas com inserções socioculturais diversas, além de favorecer maior interação entre saberes e práticas de saúde (WONCA, 2014). No âmbito da APS, vale ressaltar a importância de programas formativos que envolvam o cuidado culturalmente sensível, como residências em Medicina de Família e Comunidade e Enfermagem de Família e Comunidade e residências multiprofissionais para a Saúde da Família.

Como limitações, trata-se de um estudo de caso com uma população específica, com longa e marcante inserção no GRESEPM, o que pode não refletir a percepção dos moradores da comunidade de Mangueira. Outras abordagens que aprofundem a dimensão cultural e suas relações com os subsistemas de saúde são campos abertos à investigação. Neste estudo, foram privilegiados aspectos da relação com o sistema formal de saúde. De toda forma, argumenta-se que o cenário do samba e de suas agremiações fazem parte da vida cotidiana do município do Rio de Janeiro, de sua Região Metropolitana e de outros cenários urbanos, o que torna os achados representativos de um conjunto expressivo de populações atravessadas por esta expressão da cultura popular.

Por fim, destaca-se que as categorias que compuseram a dimensão do sujeito se destacaram neste estudo, expressando o atravessamento do GRESEPM na história de vida dos participantes da pesquisa e sua relação com a melhoria da autopercepção de saúde e bem-estar, além da importância na vida socioeconômica da comunidade. As práticas profissionais das EqSF incorporam elementos da competência cultural, sobretudo na percepção do protagonismo de Mangueira na vida comunitária, buscando conhecer e adaptar os cuidados em saúde ao contexto carnavalesco. De toda forma, ações intersetoriais, que prestigiem o espaço do GRESEPM como campo de práticas e ações de saúde foram indicados pelos participantes com capazes de fortalecer a adesão e vínculo comunitário com a EqSF.

Considerações finais

A PNAB de 2017 e medidas posteriores, inclusive no que se refere ao financiamento, representam um retrocesso em relação aos atributos da APS, entre os quais a competência cultural, cujas ações ainda são pouco desenvolvidas no país. Este trabalho explicitamente defende que a APS deve considerar o sujeito em sua singularidade e inserção sociocultural, sem os quais se compromete o alcance do cuidado integral. A compreensão é que a valorização dos aspectos culturais pelos profissionais da APS pode favorecer que pessoas de culturas diversas possam entender-se mutuamente. Os princípios da competência cultural favorecem os processos de interação entre pessoas, fortalecem a identidade coletiva, o autocuidado, a autoestima, a diversidade e as diferenças, valores que devem ser promovidos agora mais que nunca!

Ainda que se reconheça a expressividade do sistema formal, saúde, enfermidade e cuidado são parte de um sistema cultural e, assim, devem ser entendidos em suas relações mútuas. Espera-se que este trabalho contribua para compreensão da dinâmica que determina e motiva o uso dos serviços de saúde, à luz de referenciais mais ampliados, que possam informar políticas, ações e práticas de saúde mais apropriadas às necessidades das populações.

Agradecimento

P. F. Almeida é bolsista de Produtividade (PQ) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e agradece o apoio recebido para o desenvolvimento de estudos sobre o tema.

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  • Editor responsável: Rogerio Azize

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Mar 2023
  • Aceito
    31 Jul 2023
  • Revisado
    17 Jul 2023
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