Open-access O racismo estrutural e seu impacto na saúde do adolescente afrodescendente brasileiro

Structural racism and its impact on the health of Brazilian Afro-descendant adolescents

Resumo

Objetivou-se refletir sobre o impacto do racismo estrutural na saúde dos adolescentes afrodescendentes brasileiros, considerando o contexto político e social do período pós-abolição, quando foi iniciada uma nova configuração de exploração e manutenção das desigualdades sociais relacionadas aos escravizados libertos e seus descendentes. É na adolescência, fase da vida ligada ao contexto social e cultural, e não apenas determinada pelo período cronológico da vida, quando geralmente o indivíduo negro começa a vivenciar de modo mais consciente o estigma da raça. Este ensaio, inicialmente, apresenta o percurso histórico da construção social da raça nos padrões de dominação e o racismo. Em seguida, reflete, balizado no racismo estrutural, sobre o papel do capitalismo monopolista no desenvolvimento e crescimento econômico do Brasil pós-abolicionista, como um dos principais mecanismos de recrutamento e manutenção da população negra nas classes sociais inferiores e marginalizadas. Por fim, discute como o racismo impacta a saúde dos adolescentes afrodescendentes brasileiros a partir da teoria ecossocial, proposta por Nancy Krieger, e de bibliografia representativa. O racismo estrutural em nossa sociedade impacta na saúde dos adolescentes negros, com forte determinação no processo de saúde-doença. Por isso, é preciso combater as disparidades históricas, no sentido de se construir uma sociedade mais democrática e igualitária.

Palavras-Chave: Desigualdades sociais; Racismo; Saúde do adolescente; Saúde da população negra

Abstract

The objective was to reflect on the impact of structural racism on the health of Brazilian Afro-descendant adolescents, considering the political and social context of the post-abolition period, when a new configuration of exploitation and maintenance of social inequalities related to freed slaves and their descendants began. It is during adolescence, a phase of life linked to the social and cultural context, and not just determined by the chronological period of life, when black individuals generally begin to experience the stigma of race more consciously. This essay initially presents the historical path of the social construction of race in patterns of domination and racism. It then reflects, based on structural racism, on the role of monopoly capitalism in the development and economic growth of post-abolitionist Brazil, as one of the main mechanisms for recruiting and maintaining the black population in lower and marginalized social classes. Finally, it discusses how racism impacts the health of Brazilian Afro-descendant adolescents based on the ecosocial theory, proposed by Nancy Krieger, and representative bibliography. Structural racism in our society impacts the health of black adolescents, with a strong determination in the health-disease process; Therefore, it is necessary to combat historical disparities, to build a more democratic and egalitarian society.

Keywords: Socioeconomic factors; Racism; Adolescent’s health; Health of ethnic minorities

Introdução

O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, segundo estudo lançado pelo World Inequality Lab, divulgado em 2021, já com a análise do impacto da pandemia de Covid-19: 50% dos mais pobres ganham 29 vezes menos do que recebem os 10% mais ricos no país (Chancel et al., 2022). Em nações com histórico colonial, os marcadores sociais de diferenças têm profunda ancoragem na demarcação racial e refletem a disparidade na oferta e no uso de serviços de saúde para a população negra (Oliveira et al., 2020). Essas desigualdades sistemáticas no estado de saúde de diferentes grupos populacionais são denominadas iniquidades, e seus custos sociais e econômicos são expressivos tanto para os indivíduos quanto para as sociedades (WHO, 2018).

A desigualdade no tratamento dos diversos grupos populacionais de acordo com raça/etnia, no caso do Brasil, é resultante do processo de colonização e da escravidão que geraram estruturas sociais, econômicas e culturais que sustentam, ainda hoje, a prática do racismo. O racismo estrutural brasileiro atinge homens e mulheres e adultos e jovens de formas diferentes, com as mulheres negras estando na base da pirâmide de desigualdade (Almeida, 2019; Gonzalez, 2020). Considerando-se que esse é um país de população jovem crescente, a vivência da adolescência é mais desafiadora para negros do que para brancos, tanto em questões de saúde física e mental quanto social.

Nesse sentido, a adolescência, especialmente para o jovem negro, não pode ser reduzida a um momento peculiar de seu ciclo de vida, mas para além disso, deve ser considerada uma fase de exposição ao estigma da raça e às iniquidades causadas e sentidas literalmente na pele. Fato agravado pelas dimensões constitutivas psicossociais da violência racial em um processo de formação de identidades, podendo acarretar a introjeção de sentimentos de inferioridade, submissão e não reconhecimento de si como sujeito de direitos (Souza, 2021), o que pode acarretar aumento da vulnerabilidade desses jovens a danos à saúde.

No que se refere à produção científica relativa à influência do racismo estrutural na saúde do adolescente afrodescendente no Brasil, ainda são incipientes os artigos publicados em periódicos. Isto pode ser demonstrado a partir de uma revisão entre os periódicos disponíveis na Scientific Electronic Library Online – SciELO, por meio de uma busca simples realizada em janeiro de 2022, sem filtro de tempo, utilizando a chave de busca: (Saúde do adolescente) AND (Raça OR Etnia OR Racismo), e que resultou em apenas 34 artigos publicados a partir de 2005, com apenas dois estudos trazendo nos títulos as iniquidades raciais em adolescentes (Taquette; Meirelles, 2013; Costa et al., 2021). Apesar da incipiente mudança, esta ainda é uma lacuna da literatura científica, que, frequentemente, é ignorada pela maioria dos estudiosos e profissionais de saúde, principalmente ao se tratar de adolescentes negros. Quando existentes, há nos estudos um predomínio de análise em nível individual para investigar discriminação e saúde baseadas na orientação biomédica dominante, sem considerar os determinantes sociais da saúde (Krieger, 2014) e a análise contextual.

O presente artigo tem como objetivo refletir sobre como o racismo estrutural impacta na saúde dos adolescentes afrodescendentes brasileiros. Diante disso, apresenta inicialmente o percurso histórico da construção social de raça. Em seguida, o papel do capitalismo monopolista no desenvolvimento e crescimento econômico do Brasil pós-abolicionista como um dos principais mecanismos de recrutamento e manutenção da população negra nas estruturas de classe inferiores e na marginalização, balizado no racismo estrutural. Por fim, fornece uma discussão acerca do racismo, considerado uma iniquidade em saúde, que influencia negativamente a saúde dos adolescentes afrodescendentes brasileiros.

A teoria ecossocial proposta por Nancy Krieger (2001) foi a abordagem teórica utilizada neste estudo com vistas a explicar o racismo como um determinante social da saúde da população negra. Outros intelectuais importantes também foram citados ao longo do texto através das suas contribuições acerca do racismo estrutural de Silvio Almeida, da interseccionalidade de Lélia Gonzalez e da subjetividade por Neusa Santos e Frantz Fanon.

Percurso histórico da construção social de raça e racismo

Ao longo da história humana, sempre existiram fenômenos de discriminação violenta associados à crença da superioridade de um grupo sobre outros, mas o conceito de “raça” como critério para justificar as diferenças entre grupos humanos é relativamente novo na história (Jahoda, 1999). Deste modo, a ideia de raça como referência a diferentes categorias de seres humanos surge na modernidade, momento que a Europa se tornou o “centro” do mundo a partir de conquistas e explorações coloniais. E ao passo que o colonialismo europeu iria avançando, a raça foi utilizada para justificar o tráfico de escravos e a exploração pelo uso extensivo de sua mão de obra.

No século XVIII, o movimento intelectual iluminista foi a base filosófica das grandes revoluções liberais contra instituições absolutistas e o poder tradicional da nobreza a pretexto de estabelecer a liberdade e erradicar os preconceitos religiosos e obscuros do mundo. O Iluminismo, que tinha o Homem como principal objeto, tinha o conhecimento baseado na observação de muitos aspectos do ser humano, bem como nas diferenças biológicas, econômicas, psicológicas e linguísticas (Almeida, 2019). O desenvolvimento da ciência moderna nos séculos XVIII e XIX, resultou na formulação das primeiras teorias científicas de hierarquização humana demonstradas pela exclusão sistemática de grupos humanos aos quais não eram reconhecidas qualidades humanas superiores – as crianças, as mulheres e os “selvagens” (Amâncio, 1998).

Teorias formuladas no século XIX contribuíram com a concepção de que negros poderiam ser escravizados, com o fim de prevalecer a superioridade da “raça” branca – considerada “superior” sobre as demais, criando-se assim um conceito baseado em aspectos biológicos. Discursos pseudocientíficos, sobre diferenças, entre seres humanos, com origem biológica, tiveram ampla difusão na sociedade europeia e em todo o mundo, possibilitando a hierarquização da humanidade, a definição de papéis e a hostilidade segundo esse critério (Venâncio; Takata, 2014; Almeida, 2019).

Contudo, a raça, enquanto noção sócio-histórica, não carrega nenhum componente biológico justificável de diferenciação humana. Neste ensaio, utiliza-se o conceito dado por Neuza Souza (1983, p. 20) que a entende como “noção ideológica, engendrada como critério social para distribuição de posição na estrutura de classes”. Portanto, é razoável usá-la como uma categoria de análise na pesquisa em ciências sociais porque ainda constitui uma realidade social que tem um impacto efetivo e real na vida das pessoas e comunidades (ASA, 2003) através do racismo.

O pensamento científico do iluminismo tem sido apontado como base científica para o que mais tarde viria a ser o racismo científico, bastante aceito entre políticos e acadêmicos no século XIX. Fato que corrobora com a afirmação de Linda Smith que diz “o termo ‘pesquisa’ está indissociavelmente ligado ao colonialismo e ao imperialismo europeu” (Smith, 2018, p. 11), o que resultou em conhecimento científico baseado em práticas racistas, como a exaltação da eugenia e branqueamento da população, com consequente discriminação e desvalorização de povos colonizados (Souza, 2021).

Antes de avançar com o tema, torna-se imprescindível diferenciar o racismo de outras categorias que também aparecem associadas à ideia de raça: discriminação e preconceito. A manifestação social do racismo é a discriminação racial, ou seja, todo tratamento diferenciado, deliberado ou não, dado ao sujeito em virtude da raça ou da cor da pele, que podem colocar em risco as liberdades básicas e o exercício de direitos em qualquer campo. Já a manifestação pessoal do racismo é o preconceito racial, ou seja, ideias, atitudes e julgamentos pré-concebidos sobre pessoas ou grupos de cor de pele e raça específicas, e não podem ser facilmente modificados (Santos, 2012).

O racismo pode se manifestar através da discriminação direta, conhecido como racismo interpessoal ou individual, e abrange interações discriminatórias diretamente percebidas entre indivíduos, seja em ambientes públicos ou privados (Krieger et al., 2010), em que as pessoas são vítimas de diversos tipos de violência devido à cor/etnia. Contudo, é superficial considerar o racismo apenas pelo aspecto comportamental do outro, como também pela concepção institucional, em que as organizações apresentam uma dinâmica que confere tratamento desigual, desvantagens e privilégios baseados na raça, a exemplo da desconfiança praticada por agentes de segurança e empresas contra pessoas negras. As instituições resultam dos conflitos e lutas pelo monopólio do poder social, reproduzem padrões e normas existentes na sociedade e que orientarão as ações e os comportamentos dos indivíduos cujos significados foram previamente estabelecidos na estrutura social (Almeida, 2019). Portanto, entendendo que o racismo é uma forma sistemática de discriminação a grupos marginalizados que só ocorre se forem reproduzidas as condições sociopolíticas que a naturalizam, Almeida (2019) defende que sempre é estrutural, ou seja, um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade.

Face ao exposto, as disparidades étnico-raciais resultantes do racismo estrutural no Brasil têm seu fundamento no processo de colonização, apesar do apagamento das contribuições africanas e indígenas das narrativas oficiais, e se renovaram com o desenvolvimento e manutenção do capitalismo monopolista no período pós-abolição.

O Brasil pós-abolição se encontrava na implantação da dinâmica capitalista – manifestada nos negócios relacionados à exportação do café, como bancos, ferrovias, bolsas de valores etc. – radiando-se na base produtiva. Isso transformou parte da oligarquia agrícola em uma burguesia próspera, criou novas relações sociais e transformou desde as características do mercado de trabalho até o funcionamento do Estado (Maringoni, 2011). Segundo Florestan Fernandes (1975), o capitalismo, que surgiu na Europa, foi inserido no Brasil sujeito aos interesses econômicos e políticos das nações imperialistas e à participação mundial na transformação econômica dos países. Entretanto, essa condição de subordinação não deve ser entendida como uma imposição externa, e sim, como um interesse da burguesia brasileira, interessada na reprodução interna do domínio ideológico e da exploração econômica (Fernandes, 1972).

As condições de trabalho no período pós-abolição e o consequente ajuste às normas das relações de produção em uma sociedade plenamente capitalista conformaram a exploração do trabalho. Os ex-escravizados tinham que atuar no sistema de produção em condições análogas às anteriores ou ficar à margem da sociedade, sem ocupação, ou trabalhando por subsistência. Para ser absorvido por fábricas com níveis altos de produção, com uma maior organização de trabalho e crescimento econômico, os recém-libertos – sem o devido preparo – teriam que concorrer com os brancos na civilização industrial (Fernandes, 2011). Ou seja, diante de uma concorrência desleal, restavam-lhe ocupações flutuantes, descontínuas e mal remuneradas, com sua consequente marginalização.

A burguesia brasileira seguiu o modelo burguês europeu, típico de pensadores liberais, tendo em vista a “acumulação primitiva” na qual a riqueza concentra-se nas mãos de poucos e expropria uma maioria trabalhadora colonizada (Silva; Maciel; França, 2020), hierarquizando a classificação social a partir da raça/etnia. Deste modo, esse fenômeno se mantém e possibilita a divisão social do trabalho exigida pelo capitalismo e pelo Estado. Logo, as hierarquias surgiram para garantir a superioridade dos brancos (grupo dominante) sob uma massa segregada de pessoas de cor, sejam elas, pretos, mestiços ou índios (Gonzalez, 2020). É importante ressaltar que as possíveis mudanças nas relações de poder e nos conflitos sociais têm como premissa a capacidade do Estado de manter “estruturas socioeconômicas fundamentais” e de se adaptar às mudanças sociais, sem afetar sua unidade relativa e sua capacidade de manter a estabilidade política e econômica (Hirsch, 2010).

Destaca-se também, a construção da “identidade nacional brasileira”, na transição do século XIX para o XX, com base no ideal do branqueamento e na ideologia da democracia racial (Brasil, 2005). O ideal de branqueamento foi apresentado pela elite e por uma monarquia de origem europeia como solução para o “problema” racial no Brasil, que se tratava da necessidade de controle do elevado número de negros no país, no final do século XIX. A proposta era reduzir gradualmente a população negra através da mestiçagem e do investimento massivo na migração europeia. A primeira proposta se baseou na crença de que a mestiçagem iria embranquecer progressivamente os descendentes de pessoas de origem africana (Martins, 2021). Já a segunda, era uma forma de negar benefícios aos ex-escravizados brasileiros, privilegiando imigrantes de países brancos, para cristalizar a ideologia do branqueamento da sociedade brasileira (Gonçalves, 2018).

A política de branqueamento colaborou para a formação do fenômeno da branquitude, reforçado pelos status sociais e significados atribuídos à brancura. A branquitude é um discurso ideológico que considera o “ser branco” como o padrão estético neutro, normal e mesmo superior. Ou seja, as imagens “neutras” de pessoas “normais” são, nesse caso, sempre de pessoas brancas. A brancura e o “ser branco” passam a se expressar por meio de uma relação de poder que encontra na diferença racial os parâmetros de desigualdade e categorização humana (Martins, 2021) e, assim, para o processo de manutenção das lógicas hegemônicas de dominação por meio de privilégios simbólicos, subjetivos e objetivos. A natureza desigual dessa relação permite que os brancos definam e propaguem o significado de si mesmos e do outro através de projeções, exclusões, negações e atos de repreensão (Bento, 2019).

Outra estratégia racista utilizada na construção da “identidade nacional brasileira”, no século XX, foi o discurso socioantropológico da democracia racial brasileira que consiste na crença de plena igualdade entre pessoas independente da raça, cor ou etnia, com inexistência de barreiras e segregação racial (Souza, 2021). Esse discurso se originou na década de 30, com Gilberto Freyre, após a publicação de “Casa grande & senzala”, no qual prevalece a ideia de que não haveria discriminação racial e sim um convívio pacífico entre as raças/etnias (Venâncio; Takata, 2014). Também, foi este sociólogo e escritor que cunhou o termo branquitude no sentido de identidade étnica branca em 1962, em analogia com a palavra negritude. No desenvolvimento de seu raciocínio, Freyre critica o uso do conceito de negritude e branquitude em relação à realidade brasileira, já que seria uma espécie de dualismo e mitologia sectária, avessa à prática da democracia racial através da mestiçagem (Cardoso, 2010).

O discurso da democracia racial reforçou a ideia de que o país tem boas relações raciais devido à uma suposta miscigenação e definições raciais imprecisas (Bailey, 2009), resultando em discursos de neutralidade, que persistem na atualidade, que levam à naturalização das iniquidades raciais existentes (Werneck, 2016), dificultam o avanço do desenvolvimento e da implementação de políticas, incluindo as de saúde, e ações afirmativas, assim como favorecem o sistema judicial que, em geral, resiste em reconhecer casos de discriminação (Almeida, 2019).

Racismo, interseccionalidade e o impacto na saúde dos adolescentes afrodescendentes brasileiros

O racismo, conceituado como a crença na hierarquia natural entre grupos raciais (Munanga, 2019), é responsável por desigualdades em saúde que poderiam ser evitadas. O contexto social racista afeta a subjetividade do negro aumentando sua vulnerabilidade à transtornos psicológicos e físicos, ao acesso e tratamento dificultados nos serviços de saúde e a viver em condições sociais de maior exposição à pobreza, à violência e à criminalização. As disparidades em saúde na população negra persistem, em razão do racismo ser um processo, em que as condições de subalternidade e de privilégio distribuídas entre grupos raciais, são reproduzidas nos âmbitos da política, da economia, das relações cotidianas e no funcionamento das instituições (Almeida, 2019).

No âmbito social, econômico e político observa-se uma naturalização das desigualdades, exemplificadas por investimentos insuficientes em saneamento, educação e serviços de saúde. No âmbito das instituições, mais especificamente da saúde, é importante falar sobre a repercussão das representações negativas da população negra, para os profissionais de saúde, que levam a conflitos, opressão e violências sentidas pelos usuários dos sistemas de saúde. Nesta perspectiva, Krieger coloca como uma preocupação “a responsabilização e o agenciamento” das desigualdades sociais em saúde e das formas com que elas são (ou não) monitoradas, analisadas e tratadas (Antunes, 2015).

O racismo repercute na saúde e constitui, portanto, a personificação de exposições evitáveis, injustas e desnecessárias (Krieger, 2001). Assim, os maiores obstáculos à saúde, enfrentados pelos negros, estão intimamente ligados às desvantagens e desigualdades das relações sociais. Nessa perspectiva, a teoria ecossocial de Krieger (2001) traz uma abordagem integrada e sistemática entre o biológico e o social, na qual fatores e agentes levam à disparidade na distribuição populacional de doenças e das desigualdades sociais em saúde combinando raciocínios biológicos e sociais com perspectivas ecológicas e históricas.

Os construtos da teoria ecossocial compreendem três aspectos. O primeiro trata dos conceitos de corporificação (embodiment), nos quais os indivíduos, desde a concepção até a morte, incorporam biologicamente as experiências sociais e expressam essa incorporação em padrões de saúde, doença e bem-estar. O segundo aspecto aborda a interação cumulativa, em múltiplos níveis e domínios, entre exposição, suscetibilidade e resistência. E por último, o terceiro se refere a agência e a responsabilidade, que é expressa nos caminhos e no conhecimento da corporificação em relação a instituições, comunidades, habitações e indivíduos (Laguardia, 2005).

A abordagem da teoria ecossocial pode contribuir para o entendimento da adolescência, que é delimitada por um marco etário, biológico e histórico, construído a partir de relações intergeracionais e de conceitos sociais. O adolescente apresenta picos de desenvolvimento físico, mental, emocional, sexual e social, em paralelo aos esforços para corresponder às expectativas culturais (Nothaft et al., 2014) que poderiam representar o primeiro construto da teoria ecossocial, descrito no parágrafo anterior. O segundo construto poderia ser representado pela diversidade dos contextos de vida de adolescentes e jovens brasileiros, refletida na variedade de experimentações, condições de vida e características sociais e individuais, com experiências diferenciadas e com significados específicos.

Na contemporaneidade, a adolescência pode não estar presente em todas as culturas e, naquelas em que se apresenta, pode estabelecer-se de diversas maneiras. Moraes e Weinmann (2020) não se referem a uma adolescência universal, que se mantém a mesma, independentemente das particularidades de cada tempo e lugar, mas sim, às adolescências: as várias adolescências que vão sendo construídas por determinadas culturas. Como também, algumas manifestações desta fase da vida se relacionam com o meio social, e não especificamente, com um determinado momento cronológico da vida. Mais uma vez, pode-se aproximar os dois últimos construtos da teoria ecossocial.

Nesse sentido, é importante considerar adolescência, para além de desenvolvimento e crescimento biológico, como um processo complexo de emancipação em três grandes dimensões: a macrossocial, na qual se situam as desigualdades sociais de raça/etnia, a institucional, que inclui os sistemas de ensino e de saúde, bem como as relações produtivas do mercado de trabalho e dimensão biográfica, representada pela trajetória pessoal (Brasil, 2010a).

No âmbito político, as Diretrizes Nacionais para a Atenção Integral à Saúde de Adolescentes e Jovens na Promoção, Proteção e Recuperação da Saúde reconhecem que a vivência da adolescência perpassa por um “processo articulado de ações e de decisões dos sujeitos que, por seu turno, sofrem constrangimentos das estruturas sociais e econômicas e dos diferentes dispositivos institucionais” (Brasil, 2010a, p. 46), desta maneira o racismo estrutural pode aumentar a vulnerabilidade desse segmento populacional aos mais diversificados agravos à saúde.

Entre os possíveis danos à saúde, surge o adoecimento mental gerado pelo racismo (Damasceno; Zanello, 2018). Neste campo, vale trazer a experiência de Fanon (2008) gerada a partir do contexto colonial francês. Através da observação, o psiquiatra concluiu que as imagens criadas pelo branco, em benefício de sua supremacia, influenciam, quase que como “catarse coletiva”, a visão de negros e negras sobre si, produzindo um sentimento de incontornável inadequação. Com base neste raciocínio, o autor rejeita a naturalização da doença mental e enfatiza o papel das dimensões institucionais, sociais e culturais na construção de subjetividades que expressam a condição de dependência e subserviência econômica, política e sociocultural a que são submetidos indivíduos racializados com consequente “epidermização dessa inferioridade”.

A introjeção do pensamento racista na formação da subjetividade de indivíduos também foi reforçada por Neusa Santos Souza (2021). Esta autora, especialista em psiquiatria, afirmou que sujeitos negros introjetam o “complexo de inferioridade” e incorporam os valores da ideologia do branqueamento. O modelo idealizado de riqueza e brancura, culmina com a tentativa de realização impossível e consequentemente, com um efeito psíquico de culpa, inferioridade, defesa fóbica e depressão. A autora e psiquiatra chama a atenção para o custo emocional do racismo para esses sujeitos devido a uma dupla negação de si: enquanto corpo negro, e enquanto pertencente a um contingente social/racial.

O indivíduo que sofre com o racismo cotidianamente pode apresentar sintomatologia física e psíquica, transitória ou não, advinda do estado permanente de tensão emocional, ansiedade e angústia. A exposição constante à discriminação racial, com elevação da pressão emocional, produz repetidas frustrações e falta de oportunidade e perspectiva para o futuro é um fator de exposição a transtornos físicos e psíquicos, como taquicardia, hipertensão arterial, úlcera gástrica, ansiedade, ataques de pânico, depressão, introspecção, ataques de raiva violenta e aparentemente não provocada, comprometimento da identidade e distorção do autoconceito. Portanto, seja pelos processos desorganizadores dos componentes psíquico e emocional (Silva, 2005) que o racismo produz, seja pelas condições de vida precárias e falta de perspectiva para um futuro melhor, a população negra está vulnerável ao adoecimento mental.

Assim, o racismo, por meio da exclusão moral e econômica, aumenta a vulnerabilidade dos adolescentes afrodescendentes ao adoecimento físico e mental. Observa-se, então, a necessidade da construção de estratégias, movimentos, políticas e práticas antirracistas concretas, a fim de combater as desigualdades e iniquidades relacionadas à raça, a partir da tomada de consciência e reconhecimento às demandas e necessidades desse segmento populacional (Almeida, 2019).

É importante destacar que a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), instituída em 2009, refere em suas estratégias à defesa, promoção da saúde e fortalecimento da saúde mental integral dos adolescentes com prevenção dos agravos decorrentes dos efeitos da discriminação racial e exclusão social, incluindo os que estão em conflito com a lei e vítimas de violência (Brasil, 2010b). Esta política também discute o conceito de racismo institucional e apresenta como um de seus objetivos “promover a saúde integral da população negra, priorizando a redução das desigualdades étnico-raciais, o combate ao racismo e à discriminação nas instituições e serviços do SUS” (Brasil, 2010b, p. 33). Entretanto, em dez anos após aprovação desta Política, apenas 57 municípios brasileiros a implementaram e a maioria dos profissionais de saúde desconhecem sua existência (Silva; Lima, 2021).

Este fato demonstra a resistência do Sistema de Saúde em reconhecer a vulnerabilidade desse grupo social agravada pela constante negação do racismo nas relações cotidianas e traz à tona a discussão sobre a efetividade da abordagem da temática racial nos cursos de saúde no cotidiano das Instituições de Ensino Superior mesmo com a já anterior promulgação da Resolução CNE/CP 01/2004, instituindo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana nestas instituições. O cenário atual aponta para a invisibilidade ou negligência do tema em questão como conteúdo pertinente à formação dos novos profissionais, o que acarreta sérias falhas no atendimento integral à saúde, em especial da população negra. Mudanças nos processos formativos a partir do reconhecimento do racismo como Determinante Social de Saúde e da produção bibliográfica existente levariam a uma readequação curricular no ensino, pesquisa e extensão rumo à efetivação do ideário dessas políticas (Santana et al., 2019).

O racismo institucional, que se refere às formas como as instituições funcionam, contribui para a naturalização e para a reprodução da desigualdade racial, assim como, influencia o acesso e o cuidado recebidos nos serviços de saúde (Lopez, 2012). Estudo realizado com puérperas observou que mulheres de cor preta e parda referiram menor grau de satisfação em relação às brancas quanto ao atendimento recebido no pré-natal, parto e em relação ao cuidado oferecido ao recém-nascido (Leal et al., 2004). Outra pesquisa de base populacional constatou disparidades raciais no processo de atenção à gestação e ao parto em mulheres negras, entre elas adolescentes, como pré-natal inadequado e redução da anestesia no momento do parto (Leal et al., 2017).

A dor dentária, mais prevalente em negros, é um exemplo de prejuízo à saúde observado nos dados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), realizada com adolescentes em 2009, 2012 e 2015. Segundo os autores, a prevalência de dor de dente em adolescentes brasileiros aumentou ao longo do tempo de tal modo como suas desigualdades, que se mantiveram em populações marginalizadas (Costa et al., 2021). Em outro estudo, com o objetivo de verificar a discriminação racial vivenciada por adolescentes negras moradoras em favelas da cidade do Rio de Janeiro e sua possível influência no processo de vulnerabilização ao HIV/Aids, Taquette e Meirelles (2013) revelaram que as adolescentes negras sofrem discriminação racial no seu cotidiano quanto ao aspecto físico, ao caráter e à capacidade intelectual, assim como dificuldades no acesso aos serviços e insumos de saúde, condições importantes para a manutenção ou restabelecimento da saúde.

Diversos mecanismos estruturantes, como sexismo, racismo, condições socioeconômicas e culturais, atuam de forma articulada no acesso da população negra aos serviços de saúde (Goes; Nascimento, 2013; Silva et al., 2020). No âmbito das instituições de saúde, o racismo pode ser um fator dificultador ao acesso da população negra, pois reproduz a desvalorização desta população durante seu atendimento através de comportamentos discriminatórios dos profissionais no cotidiano do trabalho (Goes; Nascimento, 2013). Somado a isso, a ação isolada de grupos ou de indivíduos racistas pode refletir conflitos raciais nas instituições. A institucionalização do racismo se revela através da imposição e naturalização de práticas discriminatórias baseadas na raça, uma vez que fundamentalmente as instituições são hegemonizadas por determinados grupos raciais que utilizam mecanismos para impor seus interesses políticos e econômicos, ultrapassando assim a concepção individualista (Almeida, 2019).

Na rede de atenção à saúde existem problemas não só no acesso e cuidado prestados à população negra nas unidades, mas também, nos registros dos sistemas de informação em saúde no que se refere ao quesito raça/cor. Como resposta a um objetivo específico desta política, PNSIPN, a fim de aprimorar a qualidade dos sistemas de informação em saúde, foi publicada a Portaria GM/MS n° 344/2017, que dispõe sobre o preenchimento do quesito raça/cor nos formulários dos sistemas de informação em saúde. Esta estratégia representa um passo inicial para combater as iniquidades em saúde tornando mais notórias as estatísticas de saúde.

Entretanto, o registro qualificado de dados ainda é frágil (Oliveira et al., 2020), considerando a falta de qualificação da prática profissional, bem como a complexidade dos processos de descoberta e autorreconhecimento exigidos para a autodeclaração, configurando-se como um ato de resistência face a uma construção sócio-histórica da identidade negra a partir da negação. A autodeclaração de ser negro é um processo complexo que exige do indivíduo a exposição à discriminação e reflete a dificuldade no reconhecimento do seu corpo, como defende Fanon (2008, p. 108): “No mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na elaboração de seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é unicamente uma atividade de negação”.

Ainda para complementar esta discussão, vale destacar que mesmo com o registro de dados, não é assegurada a visibilidade da categoria raça/cor em pesquisas científicas em saúde. Se por um lado há ausência de estudos que analisem as desigualdades raciais em saúde, por outro há o risco de, na presença do registro da categoria raça, os dados serem utilizados de forma mal-intencionada para reforçar argumentos racistas. Para demonstrar a falta de estudos recorremos ao estudo de Gomes, Deslandes e Moreira (2020) e a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar - PeNSE, realizada em 2019 (IBGE, 2021). Em um acervo de 429 artigos qualitativos publicados entre 1996 e 2020, nenhum artigo abordou as questões de saúde-doença da população negra (Gomes; Deslandes; Moreira, 2020). Fato também evidenciado na ausência da análise de dados por raça/cor em categorias importantes como hábitos alimentares, atividade física e comportamento sedentário, uso de cigarro, álcool e outras drogas, saúde sexual e reprodutiva e uso do serviço de saúde, na quarta edição da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar - PeNSE, realizada em 2019 (IBGE, 2021).

Por outro lado, também é preciso considerar o risco de a análise de dados por raça/cor promover a racionalidade científica baseada em traços ideológicos deterministas genéticos simplistas que podem perpetuar noções reificadas de “raça”, racializando certas doenças indevidamente. Tal fato pode incorrer no erro de atribuir uma relação causal entre um fenômeno clínico ou fisiológico complexo e o fenótipo observado. Diante disso, pesquisas em saúde que coloquem em prática questões relacionadas à “raça” devem ser discutidas a partir dos contextos históricos e políticos que interajam na construção deste conceito e sua utilização em distintos grupos sociais. Portanto, estudos devem considerar a inter-relação de fatores históricos, sociopolíticos, econômicos e culturais que contribuem para existência, manutenção ou ampliação de gradientes de saúde entre subgrupos populacionais, uma vez que existe uma desvantagem social historicamente produzida e restrições macrossociais impostas ao comportamento em saúde de populações racializadas (Laguardia, 2004). Nesse ínterim, escolher classe, gênero ou etnicidade como categorias de análise e conhecimento nas produções científicas da determinação da reprodução social e da saúde, evidencia o quanto o seu entendimento é complexo e considera seu rico movimento e suas relações dialéticas como parte de uma estrutura de poder.

A interseccionalidade também deve ser considerada quando se trata das repercussões a saúde do adolescente negro resultante das iniquidades. No Brasil, a questão de gênero está atrelada à colonialidade mantida pelo capitalismo, que coloca as mulheres negras na base do cuidado através de um sistema ideológico de dominação. Isto é argumentado por intelectuais como Lélia Gonzalez (2020) e Beatriz Nascimento (2018), que propõem a interseccionalidade, na qual capitalismo, sexismo e patriarcado racista são estruturalmente inseparáveis. Este termo, definido por Kimberlé Crenshaw (2002), visa capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos de subordinação. O indivíduo além de experimentar o racismo estruturado na sociedade, pode vivenciar múltiplas formas de discriminação, por exemplo, enquanto as mulheres brancas podem estar sujeitas, como mulheres, à discriminação de gênero, mulheres de cor, independentemente da etnia, podem estar sujeitas à discriminação racial e de gênero (Krieger, 2014). A opressão racial e a social fazem da mulher negra “o foco, por excelência, de sua perversão” (Gonzalez, 1988, p. 2).

Importante enfatizar que a criação de estereótipos negativos do corpo negro está no imaginário social, que por sua vez, são imagens de controle, que promovem a definição de mulher negra como objetificante e desumanizada, e por isso, pode ser controlada. Essas imagens são projetadas para mascarar o racismo, o sexismo, a pobreza e outras injustiças sociais, fazendo com que pareçam naturais, normais e uma parte inevitável da vida cotidiana e, assim, sustentam a manutenção da desigualdade social (Collins, 1986). Por exemplo, o mito do Homem viril herdado da condição colonial de animal e reprodutor (Gonzalez, 2020; Davis, 2016), levam os adolescentes negros à predisposição a relações sexuais desprotegidas e/ou violentas, sujeitando-os à paternidade ou maternidade indesejada e a aquisição de infecções sexualmente transmissíveis, entre outros danos.

Do mesmo modo, a hipersexualização histórica do corpo da mulher negra, reforçada pelos estereótipos que a inferioriza, a exemplo da “mulata do carnaval”, a vulnerabiliza à violência sexual, que é uma violência de gênero, praticada por alguém que não se considera igual e nem nas mesmas condições de existência e valor da vítima (Bandeira, 2014). Um fenômeno histórico, cultural e socialmente construído, pertinente às contradições presentes nas relações sociais desiguais, de gênero, de classe e étnico-raciais, que, frequentemente, são assimétricas, de dominação e exploração (Gessner; Fonseca; Oliveira, 2014). Estudo com análise das vítimas de violência sexual do sexo feminino de 10 a 19 anos por raça/cor, constata que a maioria delas é negra. Acerca do estupro, em 2020, houve uma redução de 26,8% do número de vítimas brancas, e um aumento de 6,5% do número de vítimas negras em relação a 2017, resultando na inversão da distribuição (UNICEF, 2021).

Em informativo sobre desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019) constatou-se que 75% dos mais pobres são negros, como também apontou como pretos e pardos trabalham, estudam e recebem menos que os brancos no país. O Instituto também revela que em todos os grupos etários, a taxa de homicídios da população negra superou a da população branca, contudo, destaca a violência letal a que os jovens pretos ou pardos de 15 a 29 anos estão submetidos, onde nesse grupo, a taxa chegou a 98,5 (por 100 mil) em 2017, contra 34,0 entre os jovens brancos. Considerando os jovens pretos ou pardos do sexo masculino, a taxa, inclusive, chegou a atingir 185,0.

De acordo com o Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil (2021), divulgado pela Unicef, meninos negros são a maioria das vítimas de mortes violentas intencionais entre 2016 e 2020, intensificadas na faixa entre 15 e 19 anos, em que são quatro em cada cinco vítimas. Oliveira et al. (2020) denuncia a política de exceção e da emergência do Estado, que normaliza o terror e legitima morte em territórios periféricos, resgatando conceito de necropolítica por Mbembe (2018), compreendido como a relação entre Estado e um padrão de genocídio de populações racializadas.

Neste cenário, os adolescentes negros e pobres vivem em periferias, herança histórica da exclusão social, e ainda vivenciam de perto a marginalização da pobreza e o processo desenfreado da criminalização adotado pelo Estado, por meio do encarceramento indiscriminado dessa população (Bonalume; Jacinto, 2019), principalmente a masculina. Tal fato os vulnerabilizam para as mais diversas situações e agravos à saúde, como depressão, vício de substâncias químicas, problemas de aprendizado e até o suicídio. Segundo Krieger, a avaliação completa da extensão das desigualdades em saúde, como a violência, requer que se leve em consideração as experiências diárias de saúde e sofrimento humano, não apenas dados de mortalidade (Antunes, 2015).

A restrição do acesso ao ensino formal aos negros também é uma herança do período escravocrata e é demonstrada pelo ingresso mais tardio na rede de ensino e pela saída mais precoce impulsionada pela imperativa entrada no mercado de trabalho, muitas vezes o informal. O IBGE (2019) afirma que embora o abandono escolar tenha diminuído entre os jovens negros, ainda é mais forte que entre os brancos. A taxa de conclusão do ensino médio da população preta ou parda de 61,8%, embora tenha aumentado desde 2016 (58,1%), continua menor que a taxa da população branca (76,8%). Outro dado importante consiste na proporção de pessoas pretas ou pardas de 18 a 24 anos de idade com menos de 11 anos de estudo e que não frequentavam escola caiu de 30,8% para 28,8%, mas a proporção de pessoas brancas na mesma situação, em 2018, era 17,4%. Tal fato submete o adolescente negro às piores condições de trabalho com consequentes efeitos na saúde.

Portanto, os efeitos da “raça” na saúde do adolescente não são devidos à classificação racial, mas às noções de superioridade de grupos hegemônicos inerentes ao racismo com consequências psicossociais e econômicas que resultam na desigualdade em saúde. A interseccionalidade repercute principalmente em violência perpetrada contra meninas negras que sofrem com as desigualdades de gênero e raça. Além disso, o racismo institucional, juntamente com sexismo, condições socioeconômicas e culturais, levam ao acesso desigual às instituições de saúde. Como também, as disparidades existentes na conclusão do ensino médio pelos negros, inferior se comparado aos brancos, submetem os jovens a trabalhos subalternos, e por consequência, às piores condições de vida. Todos esses fatos têm consequências diretas na saúde dos adolescentes negros.

Considerações finais

As permanências e desigualdades provenientes do processo de colonização e a persistência do racismo estrutural em nossa sociedade sob os efeitos do capitalismo e dos valores de uma cultura ocidental burguesa impactam na saúde dos adolescentes negros, com forte determinação no processo de saúde-doença, considerando o acesso aos serviços de saúde e as condições em que os adolescentes vivem. As relações de poder que emergem deste contexto naturalizam condutas desiguais e injustas contra o adolescente negro, resultando em subalternização do ser e hierarquização de determinadas subjetividades, com consequências na saúde física e mental desse grupo, em período de construção de identidades e comportamentos que tendem a se solidificar na fase adulta. Outro ponto que merece destaque consiste na legitimação da branquitude na luta antirracista, a partir da crítica de seus privilégios e tomadas de decisão para mudanças efetivas. Portanto, torna-se necessário a coletividade voltar o olhar para o adolescente afrodescendente com o reconhecimento de suas vulnerabilidades enquanto sujeito racializado, visando ressignificar sua subjetividade, além de refletir sobre suas práticas com o fim de combater as disparidades históricas mantidas pelo racismo, no sentido da construção de uma sociedade mais democrática e igualitária.

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  • Editor responsável: Francisco Ortega

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    26 Ago 2022
  • Aceito
    22 Ago 2023
  • Revisado
    03 Fev 2023
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