Resumo
Entendendo que problemas de saúde sempre são inacabadas, este trabalho examina consequências da declaração do fim de uma emergência de saúde sobre práticas de diferentes redes de cuidado interconectadas. Parte da pesquisa “Etnografando Cuidados...”, é um estudo de caso qualitativo de três documentos produzidos depois do anúncio do fim da epidemia da síndrome congênita de Zika vírus. Mostra contextos de produção de narrativas envolvendo redes de pesquisadores, gestores/prestadores de serviço, mães e famílias de acometidos e associações de mães e suas perspectivas diferentes sobre o que é cuidado. Análises de uma apresentação para pesquisadores e de um texto de discussão no IPEA questionam a narrativa técnica da celebração do fim da emergência com base em conhecimento e atendimento, sem tomar em conta a importância dos cuidados relacionais e afetivos e políticos (das redes de mães/familiares e de associações), deixando-os invisibilizados. Descreve o processo da elaboração da moção para o Fórum Zika na Pandemia, elencando e sistematizando propostas de ações através de um diálogo explícito entre integrante das diferentes redes para abordar questões inacabadas pós-emergenciais. Sugere que práticas semelhantes de diálogo entre redes possam promover maior inclusão e sensibilidade a cuidados que contribuem para diminuir sofrimento e defender direitos de pessoas que continuam a conviver cotidianamente com uma síndrome ou doença cujas consequências persistem.
Palavras-Chave: Síndrome congênita do Zika vírus; Fim de emergências de saúde; Narrativas de sucesso e sofrimento; Redes de cuidados
Abstract
Understanding health problems as always unfinished, this article examines consequences of the declaration of the end of a health emergency on the practice of different and interconnected care networks. As part of the “Action Ethnography on Care…” research project, this is a qualitative case study of three documents produced after the announcement of the end of the Congenital Zika Virus Syndrome epidemic. It shows the contexts of narrative production involving researchers, managers/ public service workers, mothers and families of the ill, and mothers’ associations and their different perspectives about what care is. Analyses of a presentation for researchers and of a working paper for the Applied Economics Research Institute (IPEA) question the technical narrative celebrating the end of the emergency based on knowledge and health service without taking into account the relational, affective and political care (of mothers, families and associations), leaving the latter invisible. It describes the process of elaboration of a motion by the Zika Pandemic Forum, listing and systematizing action proposals produced in an explicit dialogue among participants in different care networks to approach unfinished post-emergency questions. It suggests that similar practices of dialogue between networks can promote greater inclusion and sensitivity to care that contribute to reducing suffering and defending the rights of people who continue to live daily with a syndrome or disease whose consequences persist.
Keywords: Zika congenital syndrome; End of health emergencies; Narratives of success and suffering; Care networks
Introdução
Este trabalho indaga sobre as consequências da declaração do fim de uma emergência de saúde sobre as práticas de diferentes redes de cuidado, interconectadas em um contexto epidêmico. Um estudo de três documentos produzidos depois do anúncio do fim da epidemia da síndrome congênita de Zika vírus (SCZV) lida com duas questões: 1) seus contextos de produção e os diferentes domínios de cuidados realçados neles; e 2) as diferenças no tensionamento de sofrimento e do seu alívio entre redes que operam diferentes compreensões sobre o que é cuidado. Com este estudo de caso, o conhecido adágio “terminou a epidemia, mas não terminou a doença” ganha não somente uma perspectiva que ilumina as relações de poder que cercam diferentes práticas de cuidado, mas também uma agenda para defender as pessoas que continuam a conviver cotidianamente com uma doença cujas consequências persistem.
A emergência de saúde de interesse nacional da SCZV, declarada pelo Ministério de Saúde brasileiro, durou 18 meses, de novembro de 2015 a maio de 2017. A emergência de interesse internacional declarada pela Organização Mundial da Saúde foi ainda mais curta. Durou nove meses, de fevereiro a dezembro de 2016. Tornou-se mais uma endemia entre muitas. A mobilização de “interesses nacionais e internacionais” rendeu uma visibilidade enorme à qualidade e intensidade da dedicação e articulação de uma resposta por agentes diversos (sobretudo pesquisadores, profissionais de saúde e serviços relacionados, famílias com bebês acometidos e associações). A epidemia de sintomatologia complexa e desconhecida afetou séria e permanentemente o desenvolvimento infantil e a vida em torno dessas pessoas afetadas. A resposta à declaração movimentou investimentos, redes e investigações que conseguiram descobertas científicas velozes sobre uma síndrome até então desconhecida. Tal resposta à declaração rendeu inusitadas ações, frequentemente elogiadas, que articularam o Sistema Único de Saúde (SUS) com uma diversidade de atores para fornecer um atendimento sensível às necessidades da população afetada e do sistema de atendimento à saúde. Mobilizou, ainda, milhares de mulheres e famílias no cuidado exaustivo de bebês e crianças afetadas pela SCZV. Estimulou a formação e crescimento de associações e frentes de pressão para reivindicarem e contribuírem diretamente para a eficácia das políticas destinadas ao atendimento das necessidades dos que o precisavam. Era uma frenesia sofredora repleta de aspectos positivos.
A emergência de SCZV acabou mais de dois anos antes da chegada da avassaladora pandemia de Covid-19, e no início de 2020, foi declarada uma nova emergência de interesse internacional. Os que estavam mais diretamente envolvidos em cuidar dos impactos da SCZV mesmo depois do anúncio do fim da sua prioridade, agora enfrentavam a declaração oficial de outra ameaça que constituiu novas prioridades emergenciais oficiais e mobilizadoras. Quem anuncia o fim de uma emergência costuma perceber seu anúncio como uma vitória contra a adversidade. Um anúncio de que cuidaram de sua parte. No entanto, essa vitória toma feições de uma derrota, ou pelo menos um desafio, por outros envolvidos, que continuam a cuidar das pessoas afetadas, mas que perdem a alavanca política de argumentar prioridade e agir num relativo consenso sobre sua continuada importância. Todos se descobrem numa nova rotina que convida a uma intensificação de competição sobre novas priorizações e significações em torno do sofrimento a alívio com suas práticas de cuidados.
A disputa emerge entre colaboradores cujas práticas movimentam diferentes domínios de cuidados. Frequentemente, toma as feições de uma disputa entre o técnico e o científico, de um lado, e o doméstico, do outro (Diniz, 2016; Marques et al., 2021; Scott 2020a). É uma disputa em um campo comum, compartilhado na vontade de aliviar o sofrimento causado por uma doença. Múltiplos canais de comunicação mostram que há divergências sobre o que seria o alcance do sucesso no cuidado e como a abrangência da existência do sofrimento afeta a cooperação e o conflito em diferentes momentos de diálogos com participações de atores de diferentes domínios de cuidados.
Neste trabalho, documentamos parte dos processos de redefinição e negociação de prioridades pós-emergenciais pelos diversos atores que cuidam dos impactos e desafios da SCZ entre narrativas de colaboração que ora apontam sucesso, ora apontam sofrimento, num diálogo ambíguo e polimorfo sobre os conteúdos relacionais e objetivos de cuidados dispensados por agentes em diferentes domínios. Discutimos, inicialmente, como processos de fim de epidemia se contextualizam em geral como períodos de expectativas e vulnerabilidades em um processo sempre inacabado de diálogos que reforçam desigualdades e criatividade. Em seguida, enfocamos três documentos produzidos em função do “fim” de emergências, realçando como se associam redes de cuidados, e como se configuram as interrelações entre sucesso e sofrimento em cada contexto de produção e direcionamento dos documentos. A equipe de “Etnografando Cuidados...”1 teve participação ativa em duas dessas produções. Os primeiros dois documentos são de março de 2018, pouco menos de um ano depois da declaração do fim da emergência: uma palestra de abertura do evento de avaliação de pesquisas sobre a zika (na qual participamos como pesquisadores), e um texto para discussão do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) – elaborado por autores do Instituto e disponibilizado ao público sem participação direta da nossa equipe. O terceiro document, de 2021, foi co-produzido por nossa colaboração durante nossa pesquisa.
A leitura dos dois documentos de 2018, com uma abordagem qualitativa que combinou etnografia com participação em eventos e análise de documentos, visou identificar quais as ações destacadas, como as narrativas dos autores/apresentadores avaliavam as ações tomadas para realizar o enfrentamento da epidemia, e a atribuição de iniciativas e criação de resultados julgados relevantes pelos autores. Essas observações foram associadas ao realce e às ausências da narrativa sobre conhecimento, atendimento, afetividade e política para entender diferentes perspectivas de “como, com quem e de que se cuida” na epidemia e depois dela. O documento de 2021 já vinha organizado pelos objetivos que orientaram a equipe de pesquisa para promover diálogo entre gestores, profissionais, mães e associações. Os procedimentos são detalhados mais adiante, no presente texto. O aprofundamento e apresentação de informações sobre o caso específico da SCZV em si mesmo já é uma das contribuições concretas para todos que se interessam por ele. A discussão sobre a compreensão e práticas de diferentes redes de cuidado no contexto de emergências contribui para debates que possam ajudar a entender processos marcantes nas respostas a epidemias em geral, favorecendo práticas de inclusão e diálogo que reconheçam a diversidade das perspectivas, a importância de compreensão mútua, defesa de direitos e a diminuição de vulnerabilidades e sofrimento.
O primeiro dos documentos analisados é a apresentação organizada pela Rede Nacional de Especialistas em Zika e Doenças Correlatas (RENEZIKA) na abertura do Segundo Seminário de Avaliação para setenta responsáveis pelos projetos em andamento na Chamada Pública n. 14/2016 (Prevenção e Combate ao Zika Vírus). Teve a finalidade de orientar o debate entre os pesquisadores, coordenadores especializados para grupos de trabalho e técnicos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Ensino Superior (CAPES) e o Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério de Saúde (DECIT-MS). A reunião ocorreu em Brasília, em março de 2018. Foi sucedida por outras reuniões de avaliação até dezembro de 2021. Os slides com palestra foram apresentados nove meses depois do encerramento da emergência nacional, para atualizar pessoas comprometidas em continuar seus esforços de pesquisa e gestão para cuidar da resposta à síndrome, já que as pesquisas tinham um prazo definido de quatro anos.
O outro documento examinado foi produzido nesta mesma época de saída da emergência do zika. É um balanço da situação: um “enfrentamento” caracterizado por Letícia Garcia (2018), do IPEA, publicado para discutir seus alcances e suas implicações.
O terceiro documento produzido foi em outro período histórico, quando a nova emergência já tinha sido declarada e a população enfrentava a longa quarentena. O fim da pandemia internacional de Covid-19 estava se aproximando, mas ainda estava indefinido, e o alerta geral ficava aceso por qualquer sinal de recrudescimento que provocaria uma extensão da emergência. O documento é uma moção produzida pelo “Fórum Zika na Pandemia em Pernambuco”, em setembro de 2021, como parte da IV Reunião Nacional de Antropologia de Saúde (IVRAS), com articulação da nossa equipe de pesquisa, para visibilizar as demandas existentes no período promissor da aproximação, oscilante e duvidosa,2 do encerramento oficial nacional da emergência da pandemia de Covid-19, formalizada em 22 de abril de 2022. A declaração do fim da emergência internacional ocorreu depois de muitas deliberações, apenas em 5 de março de 2023.3
As saídas de emergências nacionais trazem balanços de narrativas de sucesso e de sofrimento continuado. Apresentam desafios alimentados pelas consequentes desmobilizações generalizadas dos mecanismos de controle e vigilância de alguns dos cuidados com a zika. No segundo período, da aproximação do final da emergência de Covid-19, a discussão disponível na Rede de Ciências Sociais e Zika4 mostra que pesquisadores já entendiam que a epidemia de zika estava se tornando uma doença negligenciada. O documento do Fórum foi produzido num diálogo criativo e propositivo entre diversos cuidadores, stakeholders no empenho de visibilizar as necessidades continuadas, usando narrativas de sucesso, sofrimento e desafios que refletem e redundam em práticas de cooperação e competição de diferentes atores em diferentes domínios no processo sempre inacabado de cuidar do zika.
Cuidados emaranhados em epidemias que (não) findam
Uma epidemia sempre autoriza muitas ações de governança, colocando-as em prioridade (Silva et al., 2017) e misturando narrativas de sucesso, empenho e sofrimento. Desde os níveis locais aos internacionais, combina narrativas bélicas com outras humanizadas e assistenciais, para debelar os efeitos e imagens nocivos da epidemia. Fassin (2012) caracteriza bem os apelos à ação em situações humanitárias que perpetuam redes de poder desiguais, mesmo quando pareçam estar amenizando tais desigualdades. O autor entende que sentimentos morais conduzem a uma preocupação com o sofrimento dos outros e aponta que a compaixão ao se dirigir para os outros costuma ocorrer num contexto de distanciamento e diálogos incompletos que favorecem a governança, regulando e administrando a existência desses outros seres humanos. As ações que são altamente motivadas para aliviar sofrimentos das mais diversas origens também são fortemente influenciadas por noções de agudez que impelem a uma circunscrição temporal que favorecem uma busca de reconhecimento de que elas provocaram um alívio e podem ser encerradas ou pelo menos reduzidas claramente.
A narrativa das pessoas mais diretamente afetadas provém dos impactos deletérios nos seus meios e lugares cotidianos de viver (Escobar, 2008) que exigem cuidados próprios cotidianos mesmo quando suscitam apoio especializado também para aliviar o sofrimento. Como observam Duarte e Leal (1998), o sofrimento vivido e narrado confere valor social à dedicação das pessoas que sofrem. O sofrimento de uma pessoa cuidadora, mesmo quando a isola fisicamente de muitas outras, na prática evoca uma insistência na relacionalidade como um elemento que a valorize. Facilmente isto se converte numa nova fase de atividade reivindicadora, tanto individual quanto coletiva. Tal disposição pode redundar numa criatividade política que torna a voz, simultaneamente doméstica e coletiva, uma evidência de um lado afetivo e relacional que clama por inclusão em considerações sobre como cuidar dos seus impactos de forma horizontalizada e sensível.5 O próprio sofrimento, e a busca do seu alívio, favorecem o surgimento de grupos de biossociabilidade e de ativismo bioidentitiário (Rabinow, 1996; Rose, 2012), os quais combinam domesticidade, afetividade, cuidado e alívio com a continuidade e permanente adaptação de atenção e conhecimento, e não com o anúncio de nenhum fim da urgência de cuidar. Geralmente, a direção desses grupos de associados é das pessoas que convivem diretamente com os próprios afetados pela doença.
A metáfora de guerra que acompanha “o combate a epidemias” produz narrativas heroicas e sofredoras multifacetadas pela bravura e pela abnegação, pela defesa de populações, pelo delineamento de fronteiras sociais e territoriais, pelos tempos extenues de dedicação aos cuidados, pela intensidade dos sentimentos, bem como pela importância da velocidade acelerada do tempo como medida de eficácia. As narrativas de sucesso e sofrimento produzem desigualdades, ao mesmo tempo que atiçam a criatividade e carimbam várias ações relacionadas a cuidados como ideias meritórias na vida dos grupos mobilizados para cuidar do que for preciso durante uma epidemia e depois dela.
A epidemia de zika, com particularidades, mas semelhante a outras epidemias, apresentou desafios importantes, incluindo conhecer a própria síndrome, adaptar o sistema de atendimento a novas demandas, criar condições para apoiar a vida cotidiana de mães e familiares dos acometidos, ajustar os direitos de assistência e rever responsabilidades, e saber escutar e apreciar as múltiplas vivências da experiencia das perspectivas das pessoas (Marques et al., 2021; Fleischer; Lima, 2020; Scott; Lira, 2020; Scott et al., 2018)
A ativação da Rede Nacional de Especialistas em Zika e Doenças Correlatas (RENEZIKA) e a publicação de um edital multidisciplinar e multisetorial de combate ao zika são dois exemplos abrangentes, dentre milhares de esforços de enfrentamento em espaços de vigilância preventiva, combativa e também afetiva. No relato detalhado de Garcia (2018), produzido no fim da epidemia, descrevem-se as sequências mirabolantes de protocolos, alertas, decretos, planos de ação, diretrizes, notas técnicas, portarias, regulamentações, comitês, registros obrigatórios, notificações, salas de “situação”, promoção de eventos, monitoramentos, liberações de orçamento, buscas de financiamento, orientações, chamadas, mobilizações, conscientizações em escolas, formações de redes de divulgação etc. que povoaram o enfrentamento da epidemia.
O ambiente de prioridade entre as prioridades contaminou todos os domínios de cuidado relacionados à nova síndrome, que incluem domínios de: a) cuidados relacionais, das mães e famílias com a sua afetividade e atenção à saúde dos filhos e bebês nascidos com microcefalia e outros sintomas relacionadas com o vírus Zika; b) cuidados assistenciais, do sistema de saúde que reorganiza seus serviços para abrir espaço para atendimento e tratamento; c) cuidados de compreensão, através dos pesquisadores que investigam o conhecimento e etiologia da doença; e d) cuidados políticos, das associações que agem política, administrativa e judicialmente para assegurar o alcance do apoio a quem convive cotidianamente com a doença. Cada elemento nesse conjunto multifacetado de redes de cuidados constitui, simultaneamente, um domínio particular à parte e um domínio intersectado com os outros, estreitamente emaranhados como cuidados misturando o técnico e o humano a um só tempo. Na prática, sem perder seu valor explicativo, ficam pouco separáveis os aspectos ontológicos, genealógicos e críticos de cuidado que Ayres descreve (2004). Também realçam a construção de pessoas em marcos de relações de poder diferentes (Bustamante; McCallum, 2011). É uma rede tensionada com narrativas desiguais na resposta comum à emergência.6
Um tanto laconicamente, mesmo havendo uma imensidão de diretivas técnicas específicas, nas suas orientações, a Fundação Nacional de Saúde do Ministério da Saúde glosa detalhes e declara que a saída de uma emergência depende do “fortalecimento de sistemas municipais de vigilância epidemiológica, dotados de autonomia técnico-gerencial para enfocar os problemas de saúde próprios de suas respectivas áreas de abrangência” (MS-Funasa, 2004, p. 12).
Essa capacidade técnica associada a “áreas de abrangência” presume desfechos esperados – ações que exigem a confiança de que haverá continuidade suficiente de processos em implementação para alcançar respostas, mesmo depois de finalizar a epidemia. Em termos de domínios de redes de cuidados: a rede de cuidados compreensivos faria com que a compreensão da etiologia e características da patologia seria suficiente para prevenir e remediar e restringir sua expansão; a rede de cuidados assistenciais asseguraria que o sistema de saúde teria espaços para tratamento e reabilitação das pessoas acometidas; a rede de cuidados relacionais juntaria afetividade e sensibilidades humanizadas e integrais do sistema com as respostas das pessoas socialmente próximas às pessoas acometidas para habilitar a vivência cotidiana de cuidar; e a rede de cuidados de políticas articularia as demandas e efetivo alcance de apoios necessários para as pessoas acometidas e afetadas, vigiando, executando e identificando demandas e direitos.
Na perspectiva de João Biehl (2020), os processos sociais, e especificamente os processos de saúde e de doença, são sempre inacabados. Presume-se que o anúncio do fim de uma emergência seja um anúncio de uma nova escalação de prioridades, ao tratar de uma doença epidêmica, e não simplesmente um fim. É um reordenamento das redes de cuidados que acentua simultaneamente sucessos e vulnerabilidades construídos por pessoas relacionadas e associadas às suas áreas de abrangência irremediavelmente misturadas – técnicas e cotidianas.
Quem olha para o fim da epidemia de zika aponta uma série de alcances, com sucesso ou não, sofredores ou não, do ângulo de algum aspecto dos cuidados, e também aponta muitas preocupações das implicações para a vida e a criatividade das pessoas, construindo seus projetos em diálogo com outras nesses processos anunciados e inacabados.
Terminou a emergência da SCZV: narrativas técnicas de sucesso?
No início de março de 2018, os/as pesquisadores/as da chamada nacional número 14, convidados/as à sede do CNPq para discutir suas pesquisas financiadas em oito linhas temáticas, chegaram em Brasília. Foram instruídos a comparecer à palestra de abertura do Seminário de Avaliação. A palestra precedia três dias de ricos debates temáticos em quatro grupos de trabalho7 para discutir, tematicamente, cada esforço específico de entender e cuidar da zika e seus efeitos. A apresentação com 34 slides, de autoria da RENEZIKA, foi intitulada “Dengue, chikungunya e zika: plano de enfrentamento ao Aedes e suas consequências”. Bem atualizada, a data limite de referência de dados era 17 de fevereiro de 2018 (duas semanas antes da reunião).
Foi um banho autocongratulatório de informações preciosas desenhado para disseminar positividade entre os pesquisadores sobre a construção do conhecimento e entre os gestores sobre a organização dos serviços de prevenção, combate e capacitação para atendimento. Após informar o nascimento formal da RENEZIKA e o timeline das respostas públicas, dimensiona a transversalidade e elaboração de parcerias entre instituições e países que sintonizam o trabalho, identificando três eixos de ação principal. Dois dos três eixos organizativos da rede informados, receberam trato explícito ao longo da apresentação: mobilização e combate ao vetor e desenvolvimento tecnológico, educação e pesquisa, deixando o eixo menos quantificável, cuidado, sem abordagem explícita, sendo subentendido, talvez, que tudo era, de alguma forma, cuidado, não cabendo nessa hora falar nem de afetividade relacional nem de direitos.
Para enfrentar o inimigo, mosquito-vetor, identificado no título “mosquitocêntrico” como principal alvo de atenção, contabilizaram-se 82 milhões de reais investidos em larvicidas (Piriproxyfen e Melation) e equipamentos de aplicação, outra quantia alta indefinida para 404 veículos de fumacê, vigilância sobre a presença do mosquito no universo total dos municípios da nação, e educação escolar sobre focos de mosquitos em 188 escolas municipais e 103 federais (universidades e institutos técnicos). Já sobre tecnologia, educação e pesquisa, informa-se sobre investimento ainda mais elevado: acima de 872 milhões de reais para centros de reabilitação no país inteiro, disposição de novos profissionais de áreas terapêuticas, capacitações com continuidade anual de altos valores, além de despesas não reportadas para algumas oficinas e publicações de orientação de profissionais, famílias e equipes de apoio à atenção básica. Reconhecendo a necessidade de ajudar as famílias sobre como lidar com as consequências da SCZV, identifica-se a ênfase em estimulação precoce, terapia ocular e “terapias de brincar” como prioritárias para a atenção à zika e a patogenias STORCH8 em geral. Os resultados dessas ações apontam para as tendências até 17 de fevereiro de 2018: 3.817 casos confirmados com rigor técnico de coleta e investigação e intenso declínio de casos. Os slides finais mostram que do ano de 2016 a 2017, todas as doenças causadas pelo mosquito tiveram quedas: 33% de queda para chikungunya, 83% para dengue e 92% para zika. Uma positividade embalada pelas palavras na primeira parte da apresentação:
OMS reconhece RENEZIKA como exemplo de resposta rápida e eficaz no enfrentamento ao Zika: Em reunião em Londres para discutir o enfrentamento de emergências em saúde pública, a RENEZIKA foi destacada por contribuir para os avanços científicos e tecnológicos. O modo como o Brasil está lidando no combate ao Aedes despertou interesse internacional em investimentos e na formação de parcerias com instituições brasileiras de pesquisas (Fonte: slides da apresentação), segundo seminário de avaliação.
A justificativa heroica de sucesso internacionalmente reconhecido com tantos detalhes e cifras altas do esforço coletivo dispendidas em cuidados de conhecimento e de atendimento subsidia uma busca de concordância de que a epidemia acabou e de que as pesquisas que continuam a ser discutidas no 2º Seminário de Avaliação continuarão sendo contribuições à proveitosa resposta brasileira à epidemia depois da emergência. Referência explícita ao sofrimento ou a ações de reivindicação de direitos encontra-se totalmente ausente.
No mesmo mês de fevereiro de 2018, em outro contexto técnico (o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas - IPEA), foi publicado o texto para discussão “Epidemia do Vírus Zika e Microcefalia no Brasil: Emergência, Evolução e Enfrentamento”, de Garcia (2018), escrito com a maior acuidade que um texto extenso permite. O documento contribui como perspectiva adicional de orientação técnica de políticas e ações. Enumera as muitas ações que esse texto apresenta. Numa narrativa técnica cuidadosa e com uma positividade mais comedida do que a palestra, passa pela trajetória da doença e as formalizações administrativas e de organização disciplinadora de lidar e de enfrentar, relatando definições causais e as complexidades de manifestações. Ao mesmo tempo, assume a produção da narrativa de sucesso em muitos locais no texto, dando realce aos detalhes nominais de atores, à eficiência e à abrangência da organização da vigilância sanitária brasileira. Contribui para o “grande acontecimento científico” e ao reconhecimento internacional recebido da Margareth Chan, diretora da Organização Mundial da Saúde (OMS), que disse que “nunca tinha visto um envolvimento, uma liderança tão forte de um presidente para com um problema como esse, tanto em relação à velocidade das suas ações quanto à seriedade e nível de envolvimento” (Garcia 2018, p. 16).
O sucesso heroico assumido pela rede de combate se enaltecia com as descobertas científicas desde a causalidade entre “uma exposição rara – vírus Zika – e um defeito congênito raro – microcefalia” (Garcia 2018, p. 23-24) até diversas outras descobertas subsequentes. Esse reconhecimento internacional está reiterado na finalização da documentação:
Salienta-se que a resposta brasileira à epidemia do vírus Zika foi elogiada pelas representantes da OMS e da OPAS, que destacaram a transparência do país ao compartilhar os dados e os protocolos, o que permitiu a transferência de conhecimento para outros países (Garcia, 2018, p. 38).
No final do texto, Garcia assume um tom mais reflexivo, ocupando cinco páginas para abrir os desafios e apontar o que está inacabado. As últimas páginas são chamadas de “Desafios atuais e futuros para a prevenção e o controle da febre pelo vírus Zika e suas consequências no Brasil”. De primeiro enumera os desafios:
[...] aqueles relacionados à atenção às crianças com microcefalia e suas famílias, à saúde reprodutiva, a lacunas no conhecimento biológico, clínico e epidemiológico a respeito da infecção pelo vírus Zika e suas complicações, à pesquisa e ao desenvolvimento de vacinas e testes laboratoriais, além do aprimoramento e desenvolvimento de novas estratégias para o controle do Aedes aegypti (Garcia 2018, p. 38).
Os primeiros dois itens da lista são destrinchados em demandas de cuidados intensos por parte das famílias de mulheres jovens, negras e pobres que residem em áreas de vulnerabilidade. Além de valorizar indiretamente a experiência das mães e sugerir direitos provenientes de suas vulnerabilidades e sofrimento, insiste-se que, mesmo que o SUS tenha um importante papel em assegurar direitos do cidadão, as mães (e seus parceiros) são mal atendidas/os sobre saúde reprodutiva. Para detalhar direitos, recorre-se às recomendações do Grupo de Gênero e Saúde da Associação Brasileiro de Saúde Coletiva (ABRASCO), citando o lapso de ação concernente à confirmação da transmissão sexual da patologia, numa ação simultaneamente disciplinadora e potencialmente empoderadora das mulheres. Seguindo sua característica de documento de discussão sobre economia (afinal, trata-se do IPEA - Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), essas questões que provocam dilemas para as famílias que convivem com as consequências da síndrome mesmo reconhecidas, não são aprofundadas.
O texto aborda com mais atenção os custos implicados para o Estado e a economia na forma de desistências e ausências de trabalho e quedas de produtividade – o que afeta “cruelmente” as famílias faz a economia sofrer também. A abordagem possibilita a visibilização indireta de dilemas relacionais, bem como de assistência social, humanitária e previdenciária, reconhecendo ações de outros setores do governo, como transporte (para os que residem longe de locais de atendimento), habitação (prioridade na participação no programa Minha Casa Minha Vida), de assistência social para as mais pobres (Benefício de Prestação Contínua – BPC) e saneamento (para acabar com o mosquito e contribuir para ambientes salubres de viver).
A parte final do texto reconhece o inacabado e apela à relação entre domínios diferenciados de cuidados na própria governança das pessoas, objetificando-as como uma população sofredora e merecedora de ações de assistência. As sugestões de ação de diversos setores do governo deixam totalmente silenciada a possibilidade de criativa colaboração dessas pessoas que adaptam respostas e reivindicam políticas para aliviar os impactos do SCZV na sua vida cotidiana. Além de identificar alguns desafios de questões científicas (diagnósticos claros, vacinas, outros vetores transmissores) e de atendimento ainda não resolvidos com burocracias insensíveis e dificuldades de acesso, tem a sensibilidade de referir a dimensões relacionais, sociais e de direitos que precisam de atenção, mesmo sem referir-se a informações provenientes diretamente dessas cuidadoras. Curiosamente, o texto não fala nada sobre as associações que lutam pelas condições de vida, sociabilidade e os direitos dessas famílias, que nessa época estavam muito atuantes publicamente em distribuir informações, doações e reivindicações, unidas numa Frente Nacional de Defesa criada em 2017, quando se anunciou o fim da emergência (Matos; Silva 2019, 2020; Scott, 2020b, 2021; Moreira et al., 2018).
A política de visibilização e inclusão de mães e associações no que deve ser considerado como cuidados foi muito bem pontuada quando uma associação de mães, tocada pelo esquecimento excludente, interpelou os pesquisadores e gestores da área de Medicina Tropical, no seu Congresso em setembro de 2018, a incluir a participação delas, as associações, como a voz das mães, na reunião simultânea deles e da RENEZIKA, bem documentada porMatos e Silva (2020) da equipe de pesquisa “Etnografando Cuidados” no trabalho “Nada sobre nós, sem nós”.
“Vai terminar a pandemia de Covid-19”: um Fórum sobre cuidados para a epidemia inacabada do zika
Com a perda do status prioritário ocasionada com a declaração do fim da epidemia de SCZV, os recursos para pesquisa e atendimento vinham definhando. Os bebês acometidos, cada um se desenvolvendo dentro das suas possibilidades, contavam com cuidados dispensados pelas mães, famílias e associações, que procuravam mostrar e lutar para satisfazer a necessidade de continuado atendimento, apoio e conhecimento sensíveis às mudanças pelas quais estavam passando. A maior parte dessas/es cuidadoras/es mantinha uma consciência aguda da sua dedicação como uma combinação ambígua de sofrimento e de um compromisso afetivo relacional expresso em repetidos e variados gestos de apego maternal e familiar. Cada vez menos pesquisas e espaços de atendimento se dedicavam à resolução dos problemas da resposta à epidemia, tão elogiada como eficiente e geradora de conhecimento compartilhado nacional e internacionalmente. As crescentes dificuldades de serem atendidos e de descobrir novos conhecimentos para resolver problemas que surgiram colocaram em xeque aquela condição que a FUNASA tinha anunciada para sair de uma emergência de saúde: “autonomia técnico-gerencial para enfocar os problemas de saúde próprios de suas respectivas áreas de abrangência” (Brasil, 2004, p. 12). A história reservou uma acentuação muito mais contundente deste processo de invisibilização.
A pandemia de Covid-19 (i)mobilizou o mundo a partir do início de 2020. Teve profundas consequências para todos. Não poderia ser diferente com os afetados pela SCZV (Grossi; Toniol, 2021). O anúncio do seu fim foi muito esperado no mundo e em cada nação. Meio ano antes de o Brasil anunciar o fim da pandemia (22 abril de 2022), o país ainda mantinha confinamentos e restrições de movimento com tempo para abertura indeterminado. Todos buscavam se organizar para o novo momento.
Para favorecer a atenção sobre os conhecimentos e demandas formulados por atores nos diferentes domínios de cuidado, a pesquisa “Etnografando Cuidados” incentivou a elaboração da “Moção do Fórum Zika na Pandemia” aprovada na IV Reunião de Saúde de Antropologia no Brasil, em 24 de setembro de 2021, apoiando ações recomendadas para lidar com os impactos do vírus Zika para examinar a reconfiguração temática das complexas conexões na rede de cuidados, privilegiando o diálogo entre representantes dos diferentes domínios de cuidado afetados, tanto pelo fim da epidemia de SCZV em si, quanto pela pandemia de Covid-19.
A moção foi uma hora culminante (mas não finalizadora) dos objetivos de promoção e produção, almejada desde 2016 na pesquisa engajada, de um diálogo para aumentar a sensibilidade à experiência e conhecimento entre mães e famílias cidadãs e serviços do Estado e pesquisadores relacionados ao “Combate ao Zika.” Muitas atividades preparam esse momento. Realçamos:
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Acompanhamento etnográfico cotidiano de itinerários terapêuticos entre casa e serviços (Scott et al., 2018) e mais de 112 entrevistas gravadas e outras informais;
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diálogo com Secretarias de Saúde e órgãos técnicos associados;
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organização de eventos, apresentações, produção e publicação de trabalhos escritos;
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convivência colaborativa com duas associações atuantes a favor das mães de filhos afetados com a SCZV;
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realização de um curso de audiovisuais com mães que produziram (roteiro, direção e narração) as suas histórias em cinco vídeos contando a experiência e exibidos e discutidos em locais-chave9 e disponibilizados na internet;10 e
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participação como testemunhas coprotagonistas em decisões jurídicas (Matos; Silva, 2019; Matos, 2020).
Com tudo isso, havia sido criada uma multiplicidade de canais de comunicação e diálogo que pretendia conectar mães com gestores e pesquisadores. Muitos desses canais vinham perdendo a sua efetividade e visibilidade no contexto desmobilizador da pandemia. Respondemos durante a pandemia, aumentando a formação e participação em numerosos grupos “sociais” (WhatsApp, Instagram e Facebook) funcionando com variadas eficiências no contexto de quarentena estendida. Foi no segundo ano da pandemia que se criou o documento que virou Moção.11
Enviamos o convite, em junho de 2021, a um grupo intencionalmente escolhido pelo seu conhecido compromisso com a resposta à SCZV evidenciado nos quatro anos de pesquisa até então: quatro mães de filhos com SCZ, as duas diretoras de associações, cinco profissionais de saúde e gestão, e três pesquisadores. Cada participante foi entrevistado virtualmente com câmera por dois relatores para transcreverem as entrevistas e, em diálogo com essas pessoas, tornarem as respostas frases temáticas de demandas integrantes do texto a ser discutido em conjunto no fórum pré-evento, no dia 22 de setembro. A redação final foi apresentada e aprovada no dia 24 de setembro como “Moção” na assembleia da IV Reunião de Antropologia de Saúde, aberta aos mais de 500 inscritos.
O convite aos/às incentivadores/as para participar na elaboração do documento do fórum registrou preocupação com o “eclipse de atenção ao zika” e explicitou dois objetivos:
a) documentar os relatos de experiência dos impactos da Covid-19 na elaboração de respostas à epidemia de zika para os diversos grupos associados a ela; e
b) recomendar medidas que poderiam contribuir para redirecionar ou retomar ações que foram prejudicadas pela Covid-19.
Pediu-se para que discorressem de forma livre sobre um roteiro de três indagações: as mudanças que a epidemia de zika trouxe às suas atividades nas ações de cuidados em que estavam envolvidos; as mudanças que a pandemia de Covid-19 trouxe às ações relacionadas com o zika, e as recomendações sobre ações atuais e futuras em relação ao zika. As duas primeiras indagações produziram narrativas contextualizadoras para esclarecer as motivações das recomendações que constam da moção. As pessoas da equipe de pesquisa foram participantes incentivadoras na elaboração da versão da moção levada para discussão. A versão foi comentada, discutida e emendada por 50 pessoas no Fórum. As recomendações que resultaram deste processo são autoexplicativas e contidas no documento completo anexado no final deste artigo.
Recorrendo ao formato virtual que o confinamento exigia, toda essa discussão ocorreu em pé de igualdade na tela. Recomendações de pesquisadores, prestadores de serviços, mães e associações, refletia a nossa compreensão das redes compreensíveis, assistenciais, relacionais e políticas serem domínios discretos, mas intersectados. A análise temática das recomendações permitiu extrair temas transversais e convergentes nas narrativas de cuidados reivindicados. O texto foi encaminhado para associações e instituições relevantes e também para cada participante para que fosse compartilhado da forma que julgassem mais efetiva para subsidiar a adaptação de todos os cuidadores aos impactos.
Da mesma forma que Mol (2002, 2008) discute, ficou evidente que diferentes práticas levam a múltiplas percepções para entender uma doença e seus efeitos, e isto afeta como grupos de diferentes domínios de cuidados formulam ações sugeridas para retomar ou iniciar medidas que possam reerguer os processos de combate e de dedicação na rede de cuidados com a SCZV.
Cuidados no fim de emergências: menos sucessos técnicos excludentes, mais diálogos, sensibilidade e direitos
Do espaço intersectado de diálogo para formalizar a criação do documento de recomendações de ações no Fórum, prevendo um fim da pandemia, emergem temas transversais convergentes entre os diversos cuidadores. Não é apenas um resultado do formato e procedimentos da moção aprovada. O cenário comum de sofrimento e negligência da Covid-19 mudou o cenário precedente, mais restrito, depois do fim do estado de emergência em 2017. O novo cenário abrandou as narrativas de sucesso e trouxe à superfície questões inacabadas e emergentes no trato possível da SCZV do interesse de todos os cuidadores.
Os temas de recomendações transversais, formadas através da junção de recomendações específicas e sua caracterização em categorias discretas mais agregadas, incluem:
Ampliar os serviços em saúde integrados com vários outros entre setores
A insuficiência dos serviços oferecidos se tornou mais evidente na pandemia com desmontes e impedimentos já em andamento mais acelerados em nome da prioridade da Covid-19. A ampliação deveria incluir uma diversidade de serviços de saúde, e extrapolar o limite da área, exigindo uma integração adequada com outros setores de serviços, como educação, assistência social, transporte, habitação e saneamento.
Adequar serviços aos ritmos observados no desenvolvimento das crianças
Com respaldo na experiência das mães e em novas informações de pesquisas e atendimento, sugere-se terapia para o sofrimento psíquico e físico das mães sobrecarregadas e para os atrasos no desenvolvimento das crianças que tiveram que se ausentar de terapias. Além de terapias renovadas, deve haver ampliação que vai além da estimulação precoce e da atenção às diversas manifestações de desordens identificadas no decorrer da epidemia, acrescendo mais terapias de manutenção e de cuidados paliativos dirigidos à convivência, sensíveis às novas condições. Pela idade, também deve incluir mais espaços em creches.
Junção com outras categorias e grupos para reforçar demandas
É visto como importante não restringir as demandas apenas ao zika, reconhecendo que a inclusão em categorias de grupos mais amplos fornece uma continuidade de atenção também a questões de interesse dos que cuidam do zika. Como foi feito desde o início, recomenda-se atenção a arboviroses em geral (zika, chikungunya, dengue e Guillan-Barré), bem como a inclusão de atenção mais vitalícia ao atendimento de todas as pessoas com deficiência e doenças raras; e, em função das demandas sobre as mães e a informação de transmissão sexual, a inclusão em políticas de saúde reprodutiva para reforçar decisões conscientes das mães e casais.
Mais sensibilidade à integralidade e ao compartilhamento de ação/informação
Entender o indivíduo e as demandas para atenção integral à saúde pode ajudar a superar excessos de burocratização, fragmentação, especialização e excessos na ênfase de criação de dados para pesquisa. Deveria evitar que tais excessos levem a impedimentos de ação, retenções de informação e exclusão. Ações para permitir eficiência de registro e especialmente compartilhamento mais aberto de informações com as mães e inclusão de mães/familiares e associações nos diálogos e decisões sobre políticas se adicionam como respostas sensatas que possam contribuir para diminuir a exclusão.
Agir diante de questões negligenciadas técnica e politicamente
O reconhecimento de questões não respondidas exige continuada ação de pesquisa e colaboração em torno do desenvolvimento de vacinas, descoberta de novos ou intensificados meios e sequelas da infecção, e da dinâmica de transmissão sexual, bem como exige mais ações e políticas de saneamento e promoção de combate às desigualdades.
Atenção especial a momentos de sofrimento aguçado
Com a mortalidade alta experimentada na Covid-19, renovou-se a preocupação sobre índices e efeitos da mortalidade alta de pessoas acometidas com a SCZV, que tem recebido pouca atenção. É importante ver os efeitos da morbidade e mortalidade e recomposição familiar provenientes do zika e da Covid-19 sobre pessoas nas redes de cuidado domésticos.
Em geral, os efeitos da Covid-19 na rede complexa de cuidados foram múltiplos: centros de terapia, UPAs, UTIs e centros de referência fechados, redirecionados e desmontados; creches sem funcionar, meios de transporte indisponíveis, atendimentos e consultas presenciais preteridas e substituídas por telessaúde, isolamento em casa com demandas de cuidados aumentando preocupações e redução drástica de trabalhos formais e informais, o estresse do confinamento que exigia ainda mais dedicação de mulheres a serviços domésticos, associações com menos doações e impossibilitadas de promover ações de sociabilidade e auxílio, menos doações oficiais e filantrópicas, pesquisas suspensas e redirecionadas, saúde de crianças debilitada com atrasos de desenvolvimento por ausência de fisioterapia e outras terapias e com preocupação sobre hospitalizações impossibilitadas ou dificultadas devido aos perigos de contágio e prioridade voltada para a Covid-19.12 São possibilidades de conhecer, atender, relacionar-se e reivindicar que estão se redimensionando em um ambiente de sofrimento e de limitação de narrativas de sucesso que agem para atiçar os efeitos negativos do fim de uma epidemia que, acabada e inacabada ao mesmo tempo, redefiniu as atividades de muita gente.
Considerações finais
O fim da epidemia de zika, nos documentos vistos de 2018, provocou narrativas compartilhadas de sucesso, de conhecimento, de gestão e de atendimento com reconhecimento internacional. A dedicação a parcerias e buscas de financiamento para as muitas pesquisas, ações e capacitações exigia muito esforço e negociação, mas não era vista principalmente como sofrimento. Foi narrada pelos pesquisadores, profissionais e gestores como empenho e articulação. A dedicação das mães aos filhos, compreendida como sofrimento aliviado por atores nesses domínios de conhecimento e atendimento foi vivida pelas mães como um sofrimento eivado por afeto que a sua relação com o filho exigia como cuidadora, que frequentemente precisou ser alavancada a um relato de sucesso na participação numa luta coletiva dos seus direitos como cidadã. Esta narrativa de sucesso, pouco visibilizada nos documentos vistos, foi reforçada, direta e indiretamente, por associações onde também havia outras mães na mesma situação. O relato de sucesso dessas mães foi em conseguir tornar sua dedicação uma arma política para que pudessem desfrutar dos seus direitos de cidadã com acesso ao conhecimento e atendimento adequados para seus filhos. Sucesso, também, em se tornarem cidadãs, conseguindo, parcialmente, não ser relegadas apenas à invisibilidade ou à identificação como sofredoras e conseguirem criar, na sua sociabilidade com outras mães atuantes, um espaço positivo para si mesmas, acionando a “bioidentidade” que as unia. Como pessoas que conviviam e ainda conviverão diariamente com os filhos que crescem e mudam suas demandas, o sucesso delas apontava para uma necessidade de reconhecerem que o crescimento dos filhos, demandas de saúde e de cidadania nos seus filhos especiais requereria sempre um olhar para a realidade inacabada e para o porvir pós-epidemia que exigiria novas frentes de ação e novas qualidades de dedicação.
Abriu-se uma perspectiva diferente com a pandemia de Covid-19. A incompetência técnica e política brasileira na resposta à pandemia precluiu narrativas plenas de sucesso com atrasos no uso de vacinas, faltas de materiais e equipamentos, recomendação de fármacos inadequados, cifras de mortalidade muito acima da média mundial. Levou boa parte dos pesquisadores, gestores e profissionais a criticar e reivindicar para reparar erros. Pesquisadores perderam visibilidade e gestores e profissionais estavam bem mais sobrecarregados. O sucesso público de reconhecimento de profissionais de saúde foi pela exposição ao sofrimento e pela abnegação e dedicação num sistema muito exigido, e pouco operante. Brechas esperançosas por períodos de pós-pandemia apareciam e sumiam logo em seguida.
Para os que continuavam nas redes de cuidados com o zika, como em outras frentes de ação, a expectativa de um fim da pandemia desembocava na possibilidade de reestabelecer um ordenamento perdido de cuidados. Uma espécie de reconfiguração para alcançar aonde já se tinha chegado, ao mesmo tempo em que demandava uma criatividade para entender as novas demandas criadas pela inusitada experiência histórica num diálogo não triunfal, bastante reflexivo e de respeito mútuo e de convergência. A presença das mães e das associações como stakeholders muito reconhecidas é um fator que contribui para um ambiente maior de trocas, colaboração e um caminho para horizontalização mútuo das narrativas e recomendações para uma diminuição do sofrimento. O Fórum Zika na Pandemia foi uma ação limitada e isolada com potencial de ampliação. Sobretudo, abriu espaços para um diálogo entre redes que incluía as redes relacionais, afetivas e políticas de mães e associações com as redes de cuidado de conhecimento e atendimento. Todos têm muito a aprender com esse diálogo interconectando redes de cuidados.
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1
“Etnografando Cuidados e Pensando Políticas de Saúde e Gestão de Serviços para Mulheres e Seus Filhos com Distúrbios Neurológicos Relacionados com Zika em Pernambuco, Brasil”. FAGES (Núcleo de Família, Gênero, Sexualidade e Saúde), Universidade Federal de Pernambuco CAPES (8888.130742/2016-01), CNPq (440411/2016-5),DECIT-MS e “Action Ethnography on Care, Disability and Health Policy and Administration of Public Service for Women and Caretakers of Zika Virus affected Children in Pernambuco, Brazil, FACEPE/Newton Fund (APQ 0553-7.03/16).
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2
Veja questionamentos no próprio Conselho Nacional de Saúde (http://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/2446-quem-define-o-fim-da-pandemia-nao-e-o-ministerio-da-saude-e-nenhum-pais-mas-a-oms-diz-pesquisador-em-reuniao-do-cns#:~:text=CNS%2C%20Fernando%20Pigatto.-,%E2%80%9CQuem%20define%20o%20fim%20da%20pandemia%20n%C3%A3o%20%C3%A9%20o%20Minist%C3%A9rio,Fiocruz)%2C%20Raphael%20Mendon%C3%A7a%20Guimar%C3%A3es. Acesso em: 3 jan. 2023.
-
3
https://gauchazh.clicrbs.com.br/saude/noticia/2022/10/o-que-falta-para-a-oms-declarar-o-fim-da-emergencia-sanitaria-internacional-da-covid-19-cl9rh7mcf001p01g7lhjyg2db.html Acesso em: 3 jan. 2023.
-
4
https://fiocruz.tghn.org/zikanetwork/ no vídeo Epidemia do Zika Virus 5 anos depois https://www.youtube.com/watch?v=nSHsQlnytCE&t=693s Acesso em: 2 jan. 2023.
-
5
Bonet e Tavares (2006) discutem interstícios e complexidades das redes tecidas nesse nível com as de atendimento do PSF.
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6
Ver Scott (2020c) sobre domínios de cuidado.
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7
GT 1: diagnóstico, imunobiológicos, imunologia, virologia; GT 2: Tecnologias sociais e inovação, Inovação em gestão de serviços, epidemiologia e vigilância; GT 3: Avaliação de repelentes, Controle de vetores; GT 4: Fisiopatologia e clínica.
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8
A bactéria Treponema pallidum, que causa sífilis (S); o protozoário Toxoplasma gondii, que causa toxoplasmose (TO); e o vírus da rubéola (R), citomegalovírus (C), vírus herpes simplex (H), juntos compõem o acrônimo STORCH para referir a patógenos que apresentam riscos potenciais ao feto. Depois da epidemia de zika, passou a denominar-se STORCH+Z.
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9
UFPE, Secretaria Estadual de Saúde, IPEA, Reuniões Cientificas Nacionais de Ciências Sociais, Columbia University, Johns Hopkins University, Sussex University.
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10
YouTube (YouTube https://www.youtube.com/watch?v=6o6UyOx8tqs, Rede Zika das Ciências Sociais do FIOCRUZ, Epidemics cluster da Sussex University
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11
Veja o documento aprovado no Anexo 1.
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12
Matos (2021) elabora uma lista detalhando impactos focando nas mães.
Referências
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» http://anpocs.org/index.php/ciencias-sociais/destaques/2458-livro-cientistas-sociais-e-o-coronavirus-ebook-dezembro
ANEXO 1
MOÇÃO em apoio a ações recomendadas para lidar com os impactos do Vírus Zika aprovada na plenária da IV Reunião de Antropologia de Saúde no dia 24 de setembro de 2021, divulgando às instância decisórias para subsidiar suas ações.Mães, cuidadores, associações, gestores e profissionais, e pesquisadores com experiência pessoal em lidar com os efeitos e impactos da Síndrome Congénita do Zika, preocupados com o eclipse que vem ocorrendo sobre o atendimento das demandas desta síndrome, após um período de três meses de conversas, reuniram no dia de 22 de setembro, quarta-feira, de 9;00 às 12:00, antes da Quarta Reunião de Antropologia de Saúde e deliberaram sobre um conjunto de 59 recomendações de ações para reforçar a efetividade da atenção à síndrome para que ela seja adequadamente tratada. Os nomes dos que contribuíram para a elaboração destas recomendações ao longo dos três meses e que participaram no debate aberto para o público no fórum Zika na Pandemia em Pernambuco: Impactos e Possibilidades no dia 22 de setembro, constam no fim do documento.
A elaboração foi coordenada por Parry Scott e Marion Teodósio de Quadros de FAGES – PPGA-UFPE com uma equipe de relatores, incluída na lista de contribuintes no fim do documento.
Recomendações na organização de serviços para atender as demandas do ZikaMães |
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1. Mais educação, mais saúde, mais médicos e terapias avançadas. |
2. Maior agilidade na marcação de atendimentos e administração de centros de terapia. |
3. Ampliar cuidados com contatos que podem prejudicar com cuidadores e na merenda escolar. |
4. Retomar o transporte do governo e melhorá-lo. |
5. Realizar mais tratamentos da saúde dos cuidadores que enfrentam muita ansiedade, dificuldades, e preocupações que precisam de psicólogos e psiquiatras. |
6. Voltar a ter mais terapias específicas para evitar piora da saúde dos filhos. |
7. Melhorar oferta de tratamento no interior para diminuir necessidade de deslocamentos. |
8. Abrir capacitações e vagas especialmente sensíveis a mães ou demais cuidadoras ou cuidadores de filhos com deficiência, e com saúde estável. |
9. Voltar ao nível anterior de doações porque houve diminuição. |
10. Evitar o retorno ao fim de listas de espera dos que precisaram se ausentar dos atendimentos durante a pandemia. |
11. Atenção aos perigos de transmissão do vírus na volta ou inserção das crianças, suas cuidadoras ou cuidadores e demais integrantes da escola. |
12. Reconhecer o empenho destacado de alguns profissionais que se colocaram à disposição das famílias mesmo na pandemia. |
13. Mais atenção nas mudanças na composição das famílias ao longo do desenvolvimento da criança. |
14. Inclusão generalizada e acompanhamento de atenção ao cuidado à saúde integral das mães e demais cuidadoras. |
Associações |
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1. Fluxo mais contínuo de doações para que a UMA possa seguir com suas atividades. |
2. Políticas públicas direcionadas para as cuidadoras. |
3. Reabilitação de qualidade. |
4. Disponibilidade de equipamentos que as crianças precisam para o seu desenvolvimento. |
5. Mais voz das associações nas políticas públicas. |
6. Que os gestores e os pesquisadores possam conversar mais com as associações, porque as associações sabem das demandas e dores dessas mulheres, porque frequentemente as coisas são feitas sem consultar. |
7. Dar visibilidade às associações pois somos frágeis e invisibilizadas. |
8. Acesso prioritário de mães e demais cuidadoras ou cuidadores à vacinação da COVID-19, bem como das crianças com SCZ, dentro da faixa etária aprovada. |
Prestadoras de serviços |
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1. Necessidade de repensar as doenças causadas pelo Zika e as demais doenças raras de maneira mais ampla. |
2. Melhorar o entendimento do quadro clínico das crianças com SCZ. |
3. Realizar mais estudos e pesquisas, visto que o Zika vírus é uma síndrome nova e a compreensão de suas sequelas ainda é incipiente. |
4. Adequar as ações e assegurar o acompanhamento às demandas das crianças com SCZ que estão em constante mudança, para além da primeira infância. |
5. Alterar os indicadores, tendo em vista a mudança das necessidades com o crescimento das crianças. Foco maior na manutenção terapêutica e cuidados paliativos, pois a ênfase na reabilitação não se mostra suficiente. |
6. Capacitar os profissionais de saúde de modo a qualificar e sensibilizar para os cuidados e demandas das crianças afetadas pelo Zika e para uma escuta qualificada das mães. |
7. Realizar campanhas e concursos para a contratação de profissionais de saúde e educação que sejam sensíveis às demandas de crianças com a Síndrome Congênita do Zika Vírus. |
8. Aumentar a equipe e o espaço, criando novos horários de atendimento. |
9. Continuar a expansão e regionalização da rede de saúde visto as lacunas ainda presentes na oferta dos serviços. Por exemplo, a oferta de serviços ortopédicos como a Risotomia, que está em vias de implementação. |
10. Assegurar a melhoria na assistência medicamentosa e alimentar, dado que anti-convulsivantes e suplementos nutricionais são caros. Muitas crianças não têm acesso a esse apoio e não se desenvolvem da maneira adequada. |
11. Reforçar campanhas e medidas de prevenção, tendo em vista o recente aumento de casos de arboviroses. |
12. Estimular a articulação intersetorial entre os serviços públicos para melhor compreensão da realidade das famílias atingidas pelo Zika Vírus. |
13. Capacitar os novos gestores que integram as redes de serviços de modo a informar o seu funcionamento e o acompanhamento histórico de demandas sociais. |
14. Manter as bases de dados federais, estaduais e municipais atualizadas e disponíveis para os serviços assistenciais. |
15. Facilitar a troca de dados de bases diferentes, pois cada setor municipal, estadual, regional e federal [das áreas de Saúde, Educação, Assistência Social etc.] tem bancos de dados e informações coletadas e disponibilizadas de forma diferenciada. |
16. Coleta dos dados necessários para o acompanhamento das famílias pela assistência social de cada município. |
17. Inclusão do NIS e/ ou CPF da mãe/cuidadora /cuidador ou da criança na base de dados das Secretarias de Saúde. |
18. Pensar em estratégias para construção e disponibilização de informações que privilegiem o conhecimento do indivíduo na totalidade. |
19. Maior atenção à saúde sexual e reprodutiva das mulheres cuidadoras e casais. |
20. Estabelecimento de um fluxo de acompanhamento das crianças com SCZ a nível municipal. |
21. Acompanhamento das famílias no âmbito do SUAS (Sistema Único da Assistência Social). |
22. Inclusão generalizada e acompanhamento de atenção ao cuidado à saúde integral das mães ou demais cuidadoras. |
23. Suporte público financeiro e de atendimento relacionado às medicações e equipamentos necessários ao acompanhamento e evolução das crianças com SCZ. |
24. Encaminhar cirurgias de urgência de crianças com SCZ e deficiências associadas de maneira efetiva, com prioridade para enfrentar o problema da escassez de vagas de UTIs pediátricas. |
25. Evitar a ocorrência notada de fechamento ou redução de atendimentos e serviços relacionados às crianças com SCZ decorrente da pandemia. |
26. Conceder pensões às crianças com SCZ ou outras deficiências que ficaram órfãs. |
Pesquisadoras/es |
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1. Acompanhamento a longo prazo das crianças acometidas pela SCZ para entender como o crescimento das crianças e como a COVID impactou a vida das famílias. |
2. Criar um maior diálogo e transparência com as mães ou demais cuidadoras ou cuidadores na produção dos dados de pesquisa, somando saberes e visões. |
3. Maior atenção nas campanhas de combate as arboviroses e disposição da informação sobre a transmissão sexual do Zika. |
4. Diálogos interdisciplinares e transdisciplinares (medicina, serviço social, educação, fisioterapia, etc.) sobre resultados e aplicações de pesquisa para diminuir a fragmentação das ações relacionadas com as pesquisas. |
5. Atenção aos novos nascimentos com suspeita de relação com síndrome congênita de Zika em vez de negligenciar a importância destas informações. |
6. Maior apoio e financiamento para a continuidade de pesquisas relacionadas com a Sindrome e seus impactos na vida das pessoas envolvidas. |
7. Integrar a pesquisa com os movimentos sociais/associações para aumentar relevância para populações, comunidades e famílias. |
8. Retomar práticas de compartilhamento de resultados de pesquisa que tenham sido adiadas e canceladas pelo advento da COVID-19. |
9. Reforço a programas de renda social reconhecendo sua efetividade em contribuir para diminuir impacto de doenças. |
10. Realizar pesquisas e atenção no atendimento sobre o efeito da morte de familiares na pandemia aos cuidados das crianças com SCZ. |
11.Estudar os efeitos a longo prazo das sequelas da COVID-19 nas crianças e familiares. |
12. Maior atenção à saúde sexual e reprodutiva das mães ou demais cuidadoras e casais. |
Incentivadoras que contribuíram:
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Mães: Suzana Lima; Inabela Souza; Marcione Rocha; Andréa Avelino.
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Associações: Pollyana Dias – AMAR; Germana Soares – UMA.
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Prestadoras de serviços: Regina Coeli Ramos; Laura Patriota; Graça Lobo; Michelle Rodrigues; Rose Magna.
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Pesquisadoras: Tereza Maciel Lyra; Bernadete Peres Coelho; Sandra Valongueiro.
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Relatorias: Ana Katarina de Brito; Carolina Albuquerque; Raquel Lustosa Alves; Luciana Campelo de Lira; Silvana Sobreira de Matos; Fernanda Meira de Souza; Diego Rodrigues; Thaiza Raiane Vasconcelos Canuto; Parry Scott, Marion Quadros.
Debatido e aprovado num Fórum com um total de 50 pessoas no dia 22 de setembro de 2021, e aprovada como moção na plenária da IV Reunião de Antropologia de Saúde, 24 de setembro de 2021.
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Editora responsável: Jane Russo
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
24 Maio 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
19 Jan 2023 -
Aceito
26 Out 2023 -
Revisado
15 Out 2023 -
Corrigido
24 Maio 2024