Resumos
Após uma trajetória de décadas à sombra do judô masculino, as mulheres começaram a participar de competições internacionais com mais frequência, chegando, em 2012, à conquista do ouro olímpico. Os objetivos deste trabalho são identificar e interpretar as percepções da técnica da seleção brasileira de judô feminino, desde sua chegada à seleção brasileira, em 2000, até a conquista do ouro olímpico, em 2012. Utilizamos o método de história de vida que tem a técnica campeã como centro de interesse. As categorias analíticas são "dificuldades enfrentadas", "alternativas disponíveis" e "decisões tomadas". O estudo constata que Rosiclea Campos rompeu o "teto de vidro", que dificulta às mulheres galgar posições de comando no esporte
esporte; judô feminino; gênero; história de vida
After a trajectory of decades in the shadow of male judo, women began to participate in international competitions more often, coming in 2012 to conquer the Olympic gold medal. The objectives of this study are to identify and interpret the perceptions of the coach of the Brazilian national women's judo since her arrival in the national team in 2000 until the conquest of the Olympic gold medal. We use the method of life history that has the coach as the center of interest. The analytical categories are "difficulties", "alternatives options" and "decisions taken". The study finds that Rosiclea Campos broke the glass ceiling that hinders women to move up command positions in the sport
Sport; Judo Female; Gender; Life History
Introdução
O judô chegou no Brasil na primeira década do século XX, com os imigrantes japoneses, como modalidade que apenas os homens poderiam praticar. Naquele contexto, no cenário brasileiro, as mulheres podiam praticar apenas atividades físicas pouco impactantes; o quadro piorou, para elas, no início da década de 1940, por força da lei (Decreto 3.199, de 1941), que restringiu aos homens a prática de algumas modalidades consideradas então lesivas à capacidade reprodutiva das mulheres. Durante a difusão do judô e seu processo de esportivização, a adesão das mulheres brasileiras foi crescente, porém lenta, em paralelo com o que se passava no resto do mundo.
No cenário brasileiro, o judô feminino era contraindicado por médicos e pensadores, que ganharam apoio legal a partir de 1940, com a lei que determinava restrições às práticas femininas de esportes, e que foi ratificada em 1965, expondo quais seriam as modalidades proibidas, incluindo as lutas de qualquer natureza. Por outro lado, segundo os registros da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1961), na década de 1960, foi realizada uma aula de judô para mulheres, ministrada por uma japonesa visitante. Além dessa evidência, o relato de uma judoca do Rio Grande do Sul, ao declarar que não pôde ter sua faixa preta reconhecida, mostra que outras mulheres vinham praticando o judô, mesmo em tempos de proibição.( 1 )
A história do judô feminino no Brasil foi abordada em estudo( 2 ) que analisa a narrativa de dez judocas pioneiras nesse esporte; nove, das dez atletas consultadas, aderiram ao judô no período de proibição da prática de lutas por mulheres. Duas delas, filhas de professores de judô, praticantes da modalidade desde crianças, participaram de um campeonato internacional de judô feminino em 1979.
De acordo com a narrativa( 3 ) do ex-presidente da Confederação Brasileira de Judô (CBJ), em 1979, ele enviou quatro mulheres judocas para o campeonato de Montevidéu. Em decorrência da proibição legal, afirma que optou por trocar os nomes das atletas por nomes masculinos para conseguir subsídios no Conselho Nacional de Desportos. Ele justificou a razão por que assumiu o risco de punição, para garantir pontuação naquele evento, dado que o Brasil era um dos poucos países da América que não tinha uma equipe feminina. Com efeito, a soma dos pontos das mulheres, naquela competição, garantiu ao Brasil novas vitórias, além das conquistadas pela equipe masculina.
Após o retorno do Uruguai com as medalhas do masculino e do feminino, e com os desdobramentos das reivindicações das mulheres brasileiras, a lei 3.199 foi revogada ao final daquele ano. Em 1980, organizou-se o primeiro campeonato brasileiro feminino de judô, realizado no Rio de Janeiro, com a presença de mulheres do Rio, do Rio Grande do Sul, de São Paulo e da Bahia. Dada a quantidade de participantes do evento, constatou-se que, no Brasil, muitas mulheres praticavam judô. O campeonato serviu como uma seletiva para o primeiro campeonato mundial de judô feminino dos Estados Unidos.
Do início dos anos 1980 ao início dos anos 2000, o judô feminino avançou de forma tímida, à sombra do masculino. Estava restrito, quase sempre, a competições em que se somariam os pontos no geral. Nem sempre, seguindo o critério da Confederação Brasileira de Judô, era possível enviar as duas equipes, havendo preferência explícita pela equipe masculina, que vinha apresentando resultados expressivos desde os anos 1960, e que, em 1972, ganhou a primeira medalha olímpica. Embora as competições internacionais femininas em que as brasileiras poderiam participar fossem muitas, a CBJ permitia apenas uma competição anual para cada mulher atleta.
A partir de 2006, após 26 anos de soberania do judô masculino, o desempenho das mulheres nas competições de alto rendimento ficou mais visível, com a ampliação do apoio da CBJ e das políticas de desenvolvimento ao esporte nacional.( 4 ) Em 2009, o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) firmou políticas de investimento em infraestrutura do esporte, com a criação de um sistema de ranqueamento diferenciado da Federação Internacional de Judô (FIJ), em que cada atleta deveria estar entre os vinte melhores do mundo para ter o direito de participar nos Jogos Olímpicos. Em 2012, ranquearam-se sete judocas no masculino e sete no feminino, para os Jogos Olímpicos de Londres, e o Brasil fez a melhor campanha de todos os tempos, com quatro medalhas olímpicas, duas de bronze no masculino, com Rafael Silva (categoria pesado) e Felipe Kitadai (categoria ligeiro), e duas no feminino, uma de bronze para Mayra Aguiar (categoria meio pesado) e uma de ouro para Sarah Menezes (categoria ligeiro).
No contexto prestigioso e promissor para o judô feminino atual, o objetivo deste estudo é interpretar as percepções de Rosiclea Campos (RC), técnica da seleção brasileira de judô feminino, sobre seu papel na consolidação do judô feminino. Especificamente, procuramos compreender como ela conquistou o cargo de técnica nacional, qual foi o percurso percorrido por ela até atingir o cargo, o que teve que fazer e faz para nele permanecer, e o que tal permanência implicou e implica, em diferentes aspectos da sua vida pessoal, familiar e profissional.
Ao destacarmos RC como personagem no cenário esportivo nacional, pretendemos ampliar as discussões e os estudos sobre o processo histórico de inserção e permanência de mulheres nos esportes de impacto, de alto rendimento.
Ao focalizarmos o discurso dessa líder do judô feminino brasileiro, procuramos compreender como ela alcançou o cargo de técnica da seleção brasileira que, em 2012, foi eleita( 5 ) a segunda melhor equipe do mundo, perdendo apenas para a seleção do Japão. O estudo se justifica por dar visibilidade às narrativas de mulheres técnicas dos esportes de alto rendimento e ilustrar parte das barreiras com que elas se deparam para alcançar tal cargo e nele permanecer. O estudo permite compreender percalços e embates associados à legitimação das mulheres no esporte competitivo, na conquista de cargos de comando, sobretudo em áreas que, na tradição, são consideradas de reserva masculina, na qual, como sugerido por Devide,( 6 ) "as mulheres tendem a sofrer questionamentos em relação às identidades de gênero e sexual, além de sofrerem com o estereótipo da masculinização".
Com efeito, a história da participação das mulheres em desportos considerados como de perfil masculino gera resistências. Uma vez que esse tipo de desporto tem sido convencionalmente considerado como espaço privilegiado para a construção, a afirmação e a expressão da masculinidade, a participação das mulheres tende a ser vista, por alguns homens, e por algumas mulheres, como uma ameaça à noção convencional de masculinidade e feminilidade.
A metáfora da reserva masculina, com delimitação de campos esportivos privativos ou preferenciais dos homens, vem se esvaindo no que tange à atividade propriamente esportiva, e também vem perdendo sentido quando pensamos em gestão, comando e funções de técnica e treinadora.
O uso da expressão reserva masculina foi aplicado ao rugby, no início dos anos 1970, no sentido de que apenas homens podiam praticar o esporte e assistir às competições. Outros esportes, que eram proibidos às mulheres, também foram rotulados como reserva. Segundo Dunning e Maguire,( 7 ) essas modalidades são caracterizadas por virilidade e agressividade. As mulheres não se enquadrariam no perfil desses esportes, que supõem força, resistência e agressividade, tipicamente masculinas. Os indivíduos aptos a participar desses esportes seriam homens fortes e agressivos. Entretanto, a evolução das ideologias e dos valores sociais atesta como as mulheres inovam nesse campo e mostram potencial para participar nas práticas esportivas, tornam-se influentes e adquirem um poder relativo que lhes confere o direito de exigir presença expressiva em meios antes prioritariamente masculinos.
O judô se enquadra no perfil de "desportos de confronto", descritos por Dunning:( 8 ) em alguns desportos (ele cita o rúgbi e o boxe), a violência, na forma de "representação de luta" ou de "confronto simulado" entre dois indivíduos ou grupos, é um ingrediente fulcral e legítimo. Dunning prenuncia o fim das reservas esportivas, o que nos leva a inferir que, se as mulheres, em princípio, não poderiam participar de esportes de combate, elas superam as diferenças de força, velocidade e peso, e optam por competir, entre elas, em esporte de combate.
Não é raro que mulheres atletas, envolvidas em desportos considerados como mais apropriados aos homens, para além da resistência que possam encontrar, vejam sua identidade e, por vezes, sua orientação sexual questionadas, pois estão envolvidas em desportos que não se conformam às ideias convencionais de feminilidade.
Método
Optamos por uma variante do método de história de vida, que tem o próprio indivíduo como centro de interesse.9 Nesse caso, a trajetória da pessoa entrevistada é fulcral, por ser o nosso objeto de estudo a narrativa da vida do sujeito. A abordagem é adequada para conhecer e compreender a trajetória de vida de determinada "categoria profissional ou social, seu desempenho, sua estrutura ou suas transformações na história".( 10 )
Freitas( 11 ) concebe o método da história de vida como um relato autobiográfico acerca de uma reconstrução do passado, elaborado pelo próprio entrevistado. A coleta e análise do relato de RC oferecem suporte à interpretação que oferecemos a sua trajetória, enquanto técnica da seleção brasileira de judô feminino.
O método de história de vida vem sendo utilizado na área da educação física e dos esportes para analisar as trajetórias de técnicos e atletas a partir de suas próprias narrativas e de suas reflexões. Nessa abordagem, Rúbio( 12 ) relatou e analisou a história de vida dos atletas brasileiros medalhistas olímpicos; Valente Filho( 13 ) estudou a participação de Zagallo à frente da seleção brasileira de futebol a partir de suas próprias narrativas e de pessoas envolvidas com sua profissão; Farias( 14 ) tratou da história de vida de duas ex-atletas negras que atuaram nos anos de 1970, durante o período da ditadura brasileira; Tralci Filho e Rúbio( 15 ) abordaram a história de vida de sete atletas de variados desportos; Talamoni, Oliveira e Hunger( 16 ) analisaram a história de vida de um ex-técnico de futebol da cidade de São Paulo, que atuou como técnico no Brasil e no exterior. Dos estudos citados, que tratam de histórias envoltas de subjetividades percebidas do passado, inferem-se representações que a sociedade constrói sobre o esporte de alto rendimento, com novas alternativas de interpretação de carreiras no campo esportivo.
Para construirmos os dados deste estudo, procedemos a uma entrevista em profundidade com a treinadora de judô feminino RC, que representa posição única na história do judô brasileiro. Concluído o exame do conteúdo da entrevista e do seu contexto de produção, depreendemos três categorias analíticas, que são: dificuldades enfrentadas por RC, alternativas com que contou e decisões que tomou.
A decisão de trabalhar com o conteúdo verbal expresso é pertinente, uma vez que o ponto forte da entrevista é a ênfase na retomada de tópicos sobre atitudes polêmicas que a treinadora assumiu em sua luta por mais espaço para as mulheres no judô nacional.
Após a assinatura de termo de consentimento livre e esclarecido, em que autoriza (e solicita) a utilização de seu nome, a treinadora nos concedeu longa e detalhada entrevista, em 19 de outubro de 2012, no clube em que atuava, na cidade do Rio de Janeiro. Levando em conta que as condições de produção são fundamentais para o processo de elaboração do discurso,( 17 ) realizamos a entrevista no ambiente de trabalho da técnica, por opção da própria entrevistada, o que lhe trouxe conforto e tranquilidade, além de tempo para refletir antes de responder, concentrada e enfática, a cada questão da entrevista, e para fazer considerações e comentários espontâneos.
A transcrição foi apresentada à informante, que indicou sugestões de algumas mudanças no texto transcrito, a que atendemos imediatamente.
Análise e discussão
O envolvimento de RC com o judô começou em 1982, em uma academia da Zona Norte do Rio de Janeiro, quando ela tinha 15 anos de idade. Certo dia, no trajeto para o catecismo, Rosiclea entrou em uma academia e assistiu a uma aula de judô. Desse dia em diante, começou a faltar ao catecismo para assistir ao judô, escondida de seus pais. Quando o pai descobriu, tirou-a do catecismo e a matriculou no judô, de onde nunca mais saiu. Na época, não havia muitas mulheres no judô, nem no Rio nem na sua academia, e sua primeira oportunidade para competir em alto rendimento foi nos Estados Unidos, em 1985. Desde então, integrou a seleção nacional, participando dos primeiros Jogos Olímpicos, na estreia oficial das mulheres em 1992, na cidade de Barcelona; e, na edição seguinte, em Atlanta, 1996, tendo sido estas as suas duas principais competições como atleta.
Em 1998, o limite de peso para sua categoria (até 66 kg) foi alterado, e ela não foi ranqueada para os Jogos Olímpicos de Sydney. Decidiu descer de categoria de peso (até 63 kg), embora seu médico a desaconselhasse. Ela não teve sucesso na seletiva em 2000. Derrotada, aos 30 anos de idade, com falta de apoio e muitas lesões, decidiu encerrar a carreira de atleta e se colocou à disposição de seus superiores, como candidata à técnica.
Segundo suas palavras, já em 1998, expressou a vontade de não prosseguir em mais um ciclo olímpico como atleta, e sim de tentar a carreira de técnica: "eu já tinha desistido de ser atleta e já estava pensando mesmo em trabalhar com o judô, em me tornar técnica" (RC, 2012). Portanto, RC demonstrava explicitamente suas intenções em continuar envolvida com o judô, mas como técnica, e os dirigentes estavam cientes dos planos dela para o futuro imediato. No mesmo ano, como resposta a seu pedido explícito, RC foi convidada pelo presidente da CBJ para integrar a seleção brasileira como auxiliar técnica nos Jogos Olímpicos de Sydney. Dava-se início a sua carreira como integrante da comissão técnica. Naquele momento, a equipe nacional feminina de judô contava com Cristina Madeira na função de técnica.
O convite feito a RC, aparte o detalhe de já ter se manifestado claramente( 18 ) como postulante ao cargo para atuar como técnica, seguia os parâmetros regulares de indicação no esporte de alto rendimento. Ferreira( 19 ) constatou que oito de dez técnicas consultadas em seu estudo foram convidadas por algum homem, em cargo de poder dentro da instituição esportiva, para assumirem a função de técnicas. Todas iniciaram como técnicas das categorias de base, antes de assumirem as equipes principais. Ainda segundo a autora, há uma tendência em homens contratarem homens, principalmente para assumirem cargos de liderança, sobretudo quando se trata de esportes de combate, como o judô.
A passagem pelas categorias de base, antes de assumir a seleção principal adulta, é uma possibilidade para se adquirir experiência e conquistar confiança de atletas e dirigentes no processo de ascensão gradativa para alcançar o cargo pretendido. Em estudo de Souza de Oliveira,( 20 ) entre dez técnicas consultadas, cinco passaram por equipes de base antes de chegar às seleções principais, enquanto cinco começaram suas carreiras em equipes principais.
No caso de RC, não houve mudança gradativa, mas sim idas e vindas à equipe principal adulta feminina e às equipes de base. No mesmo período em que se disponibilizou para seus superiores, teve a indicação para assumir o cargo de auxiliar técnica da equipe adulta feminina; em 2001,( 21 ) foi convidada pela comissão técnica da CBJ para assumir a equipe feminina juvenil e, em 2002, a equipe feminina júnior.
A análise de indicações e convites para cargos de liderança corrobora a teoria das relações de poder simbólico, elaborada por Bourdieu,( 22 ) nas esferas sociais, entre homens e mulheres. Os fatos do judô, aqui analisados, confirmam que as mulheres contavam com espaço concedido por homens para terem a oportunidade de atuar enquanto técnicas, devido ao baixo número de mulheres postulantes e às relações de poder, estabelecidas entre eles, para selecionar pretendentes aos cargos.
Além da carreira de atleta, deve ter contribuído para a escolha de RC o fato de ela ter formação acadêmica, com graduação em Educação Física, concluída em 1992. Por outro lado, após assumir responsabilidades técnicas na CBJ, ela concluiu duas pós-graduações lato sensu, uma em treinamento desportivo e outra em judô. Além disso, fez um curso de capacitação para técnicos no Canadá e um de especialização em judô, nos Estados Unidos, pagos com recursos próprios.
Ao procuramos suporte para interpretar a carreira de técnica da informante, encontramos dados sobre as formas de capacitação e de formação de treinadores/as no Brasil, descritas por Ferreira,( 23 ) Souza de Oliveira,( 24 ) Egerland et al. ( 25 ) e Drigo et al., ( 26 ) que mostram uma engrenagem que leva em consideração especialmente a experiência pessoal do indivíduo no esporte, acima de sua formação acadêmica. Por vezes, a bagagem do ex-atleta, independentemente da sua formação acadêmica, é considerada crítica, no desempenho de suas funções, ao assumir uma seleção esportiva.
Souza de Oliveira( 27 ) mostrou que, das dez técnicas a quem entrevistou, nove, além de terem sido expressivas atletas e formadas em Educação Física, também fizeram o curso de formação de técnicos em suas respectivas modalidades, mas apenas uma delas levou em conta a experiência pessoal para desenvolver seu trabalho como técnica.
Em se tratando do judô, a própria graduação, simbolizada pelas cores das faixas que compõem a vestimenta do/da lutador/a, adquirida ao longo dos anos de prática, ilustra o tempo de experiência, obtida através do conhecimento teórico do judô e de sua prática como atleta. No caso de RC, sua graduação é 6o Dan, que corresponde a kodansha.
As Federações de Judô do Rio de Janeiro e de São Paulo criaram Cursos de Credenciamento Técnico para aumentar a qualidade de atuação de suas equipes técnicas. Os candidatos a treinadores devem estar vinculados aos Conselhos Regionais e Nacionais de Educação Física e possuir, no mínimo, a graduação de 3o Dan. Segundo Drigo,( 28 ) não basta aos treinadores da seleção nacional de judô estar capacitados academicamente, pois há uma valorização das experiências pessoais, conforme se ratifica na fala da técnica:
Você chegar a ser técnico da seleção é uma questão de respeito. Hoje, na era do professor Paulo, eles usam bastante o sistema do Comitê Olímpico Brasileiro, usam ex-atletas olímpicos, formados em Educação Física (RC, 2012).
As credenciais da informante estavam asseguradas, uma vez que ela era graduada em Educação Física, tinha formação e experiência. Em 2001, além de integrar como técnica principal a equipe brasileira feminina juvenil de judô, RC foi convidada a assumir a equipe principal feminina em clube da Zona Sul do Rio de Janeiro, onde atua como técnica. Nas suas palavras, a transição de atleta para técnica foi rápida:
As coisas aconteceram de forma atropelada, foi tudo muito rápido, a transição não existiu. Sem dúvida, o que me fez encarar foi exatamente o tamanho do desafio, o que me move sempre é o desafio, a bagagem como atleta me deu bastante tranquilidade (RC, 19/10/2012).
O cargo que preencheu já havia sido ocupado antes por outras mulheres. Segundo o estudo de Souza e Mourão (2011), os dirigentes da CBJ indicavam pessoas que fossem de seu interesse. Ao assumir a liderança da equipe, RC procurou oferecer o suporte de que as atletas precisavam. Na percepção da informante sobre a figura feminina como técnica, lemos:
A gente não tinha a figura feminina de técnica, ela não tinha o peso que tem hoje, porque a gente sempre teve técnico (e eu estou falando de gênero, gênero masculino), então era um cargo de muita importância. De você chegar a ser técnica da seleção é uma questão de respeito. [...] Eu não pensava no glamour de ser técnica, a minha grande vontade era a de suprir uma lacuna de quanto eu sentia falta quando eu era atleta. Não é só quem senta na cadeira, é todo o processo, o que eu me tornei é algo que eu gostaria que tivesse sido para mim. É a cumplicidade, você entender pelo olhar, pelo gesto (RC, 19/10/2012).
Em 2002, a FIJ realizou uma reportagem sobre a atuação da técnica brasileira com suas atletas e seu comportamento alegre e enérgico. Chesterman( 29 ) fez uma analogia da alegria do samba com a alegria da técnica, ao vibrar pelas conquistas das medalhas das atletas no Campeonato Mundial Junior na Coréia do Sul. A cumplicidade e as demais indicações de representação de boa técnica, retratadas na entrevista, estavam sendo reconhecidas pelas organizações internacionais.
Em 2005, RC assumiu a equipe principal feminina adulta para o campeonato mundial do Egito. Ao fazerem a indicação, o chefe de delegação da CBJ e um representante do COB causaram desconforto em alguns dirigentes. Na avaliação de RC, a receptividade dos dirigentes foi "muito ruim!":
[...] quando eu assumi a seleção sênior, só não me colocaram na cruz, porque de restante fizeram de tudo [...] a casa caiu! 'por que ela?'; 'ela é mulher!'; 'ela é muito jovem!'; 'ela não tem capacidade nenhuma para estar lá!'. Então assim, foi muito duro (RC, 19/10/2012).
Além da desconfiança sobre a capacidade para treinar a seleção brasileira de judô, RC se deparou com barreiras invisíveis, a exemplo da descrita por Pfister( 30 ) como "teto de vidro". Essa metáfora passou a ser utilizada para referir impedimentos invisíveis ou velados, que não permitem às mulheres atingirem o topo da carreira, por mais que o vislumbrem a sua frente, o que implica na manutenção dos homens nos cargos mais importantes e decisórios. No caso do judô feminino, tal oportunidade foi oferecida a uma mulher por homens de grande influência no cenário nacional esportivo: COB e CBJ, tendo como base a competência da contemplada. A referência da técnica sobre o quanto foi "duro" aguentar e permanecer no cargo indica que a intenção dos dirigentes ao convidá-la era a de que ela efetivamente assumisse o cargo.
Segundo a informante, o salário não compensava, e os sacrifícios eram muitos: "não é fácil, é sacrificante, as viagens são sacrificantes, o retorno financeiro está aquém do que você gostaria". Porém, o gosto e o envolvimento com o esporte motivaram a sua permanência: "isso tudo me dá muito prazer. Eu sou muito movida a desafios". A técnica aceitou os embates inevitáveis, o que a tornou mais robusta a cada situação de desafio. O depoimento se refere à importância relativa do retorno financeiro e vai ao encontro de estudos aqui apresentados, quando mostram mulheres que sequer recebem remuneração para estarem à frente de suas equipes, e enfrentam o problema financeiro como um dos fatores de desmotivação para permanecerem no cargo de técnicas.( 31 )
No ano de 2005, RC constatou que era boa a aceitação das atletas. Dada a tradição de mulheres atletas judocas serem treinadas por homens, o fato de as atletas a aceitarem como técnica lhe facultou assumir efetivamente o controle da equipe durante o campeonato mundial do Egito: "vocês estão num campeonato mundial e estão indo entrar para a luta como se estivessem indo para um abatedouro? [...] eu quero brigar por vocês, mas para poder brigar, vocês têm que me dar munição" (RC, 2012).
Segundo a técnica, o divisor de águas do judô feminino se deu em 2006. Com efeito, passando por restrições e subversões, a equipe feminina começava a se remodelar quanto ao próprio comportamento das atletas, individualmente, e como grupo. À certa altura daquele ano, a equipe masculina foi inteira para o circuito europeu, e a equipe feminina foi passar 21 dias em Cuenca, no Equador, juntamente com as equipes de Equador, Cuba e Colômbia. No início, as atletas não se conformavam em estar em um ambiente irrelevante para o judô mundial, com exceção da presença das cubanas. Como o clima de tensão aumentava, RC aproveitou a oportunidade para corrigir rumos e realinhar expectativas:
Diariamente as meninas reclamavam: 'Ah! Os meninos estão na Europa e a gente neste fim de mundo!'. 'Agora, o que vocês ganharam para vocês terem o status que os homens têm? [...] Não é para Cuba que a gente perde? Cuba está aqui, vamos treinar todos os dias com estas maledetas, vamos fazer tudo que elas fazem!'[...] para vocês entenderem que elas não têm quatro pernas e quatro braços (RC, 19/10/2012).
Foi no contexto desse evento que RC iniciou a construção de uma identidade própria ao judô feminino, sem dependências do masculino: "eu comecei a ter identidade e foi a partir daí que eu tive força para brigar contra tudo e contra todos".
Os anos seguintes foram de mudanças positivas para o judô feminino. A técnica propôs ajustes nos procedimentos de treino da CBJ, o que nem sempre era fácil: "tive muitos atritos no início porque...". E Rosiclea fez uma longa pausa, seguida de recomeços e hesitações, fez menção a fatos que pediu para retirar da entrevista, mostrou desconforto em responder, o que permite inferir um período de dificuldades no seu relacionamento com a coordenação técnica e indicia a necessidade de sua adaptação ao contexto masculino da CBJ para permanecer no cargo: "talvez, falta de habilidade política em tratar dos assuntos, não deixar de argumentar, mas não confrontar, porque talvez essa não seja a maneira certa, tive sorte em permanecer no cargo" (RC, 2012).
A decisão de RC, de ajustar seu comportamento ao contexto de pressões, mostra os ajustes identitários na prática e se enquadra nas estratégias de sobrevivência de mulheres atletas que se envolvem com as atividades de técnicas. Resgatamos, no estudo de Souza de Oliveira,( 32 ) a fala de dez técnicas do alto rendimento no Brasil: três afirmaram ter sido necessário ajustar seu comportamento para assumirem as responsabilidades de técnicas no alto rendimento, para os enfrentamentos com os gestores do esporte, com a mudança de postura e, mesmo, de comportamento. As demais técnicas relataram que não alteraram seus comportamentos, e que a ternura feminina lhes permitiu conquistar mais espaço. RC teve que realizar adaptações em suas palavras e atitudes e em seu comportamento para se adequar às contingências do judô.
Após ajustar-se ao contexto do judô de alto rendimento e aprender a se relacionar com seus superiores, RC passou a sugerir mudanças na estrutura técnica da seleção, a começar pelo planejamento do treinamento das equipes masculina e feminina: "porque na verdade a gente tinha oportunidades diferentes com cobranças iguais e eu não achava justo, eu não achava justo porque os investimentos eram diferenciados" (RC, 2012).
A segunda mudança era sobre questões estéticas, que geram polêmicas para o judô, que demanda excelente condicionamento físico para a conquista de bons resultados. A proposta de treinamento de RC, ao romper com a identidade pressuposta para a lutadora feminina, representou uma quebra da rotina de procedimentos:
Fazer a preparação física, fazer musculação. Eu falei: "Esquece! Gisele Bündchen é da moda... Gisele Bündchen não é do judô... [...]. Na hora que você tira a roupa para pesar aparece a cubana com o braço do tamanho da perna de vocês e vocês com este braço fininho!". Já o psicológico já fica mastigado na pesagem e você tira com o corpinho bonitinho e as meninas todas armários! A gente revolucionou o treino. [...] (RC, 2012).
Para as próprias atletas, mesmo percebendo que seus corpos não estavam treinados o suficiente quando comparados aos das campeãs olímpicas cubanas, não havia a preocupação com um treinamento que equilibrasse essa diferença. A análise desse discurso contém indícios de que essa geração, além de viver à sombra do judô masculino no planejamento para os treinamentos, as competições e os intercâmbios, tinha uma preocupação em não se "masculinizar", ou em mostrar que esta atividade não "masculinizava" essas mulheres atletas. Elas recorriam a diferentes estratégias, sobretudo fazendo referências aos ideais de beleza e às comparações com mulheres ícones, tidas como referencial de estética feminina. Tal preocupação poderia remeter ao período de proibição quando era atribuído o estereótipo de esporte masculino às lutas.
As novas propostas de treinamento não foram aceitas de pronto, mas a necessidade e a vontade de uma conquista maior foram os fatores desencadeadores da divisão entre as gerações de atletas que participaram dos momentos de oficialização do judô e das atletas medalhistas olímpicas.
Em 2007, consolidaram-se as mudanças, durante a preparação e formação da equipe para os Jogos de Pequim e os Jogos Pan-americanos do Rio, quando as sete brasileiras subiram ao pódio, algumas delas encerrando suas carreiras no alto rendimento e caracterizando a renovação da equipe feminina.
Para a técnica, esse foi um período delicado, com mais uma transição na carreira:
Quando teve esta transição dos Jogos Pan-americanos para a equipe de Pequim eu sofri muito! Porque as atletas que fizeram parte da minha vida, do meu amadurecimento como técnica [...] nenhuma delas foi para Pequim. [...] fiquei de pernas quebradas. [...] eu tinha um vínculo afetivo muito grande com aquelas meninas, porque elas me deram força, elas cresceram junto comigo (RC, 19/10/2012).
Com efeito, a equipe que representou o judô feminino nos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008, foi completamente renovada. A definição da nova equipe se fez com as atletas que vinham conquistando mais resultados e que estavam em ascensão no cenário internacional. O resultado foi uma medalha de bronze da atleta Ketleyn Quadros, na categoria meio médio, até 57 kg. Segundo o depoimento da técnica, a medalha sintetizava toda a sua trajetória:
Ela materializou toda a minha vida de atleta, tudo que eu passei. Ali não era a Ketleyn que estava ganhando, era a gente, era o judô feminino. Toda a ralação que a gente passou, toda a história, passou um filme na minha cabeça, "gente! Olha aonde a gente chegou? Onde a gente achava que não seria possível!.
A contribuição da medalha de bronze para o judô feminino brasileiro foi reduzida a uma palavra pela técnica: "respeito!" (RC, 2012). E continuou:
Respeito mundial, principalmente. [...] Quando eu comecei como técnica, eu era confundida com atleta [...] com a medalha da Ketleyn... [...] eu finquei a bandeira, sabe? [...] Tapa na cara de quem não acreditou. E mudou para o judô feminino, por isso: "olha só! Nós somos capazes pode botar mais munição aí! Coloca mais munição aí que a gente pode ir além" e foi isso que aconteceu. Não existe nada que eu tenha pedido que eu não tenha sido atendida (RC, 2012).
RC transformou a medalha em vitória pessoal, com o reconhecimento de sua trajetória. Ao mesmo tempo, foi uma vitória de todas as mulheres que estiveram presentes na trajetória do judô feminino desde a década de 1960.
Após a conquista dessa medalha, as mudanças eram inevitáveis. A infraestrutura para o judô feminino aproximou-se da que era oferecida para o judô masculino. A conquista do novo espaço era algo a ser monitorado para não ser perdido, como se constata na fala da técnica:
Tudo que o masculino tem o feminino tem, tudo! É linear, é tudo muito igual e se não tem eu brigo por tudo.[...]
Se saem duas matérias do masculino e se a terceira não for do feminino ou se não for alternado, eu ligo para lá para dizer: "Por que saiu dois espaços do masculino e a gente do feminino nada? Eu sou militante do judô feminino (RC, 2012).
É tensa a relação entre a quantidade de recursos destinados a cada segmento e a necessidade de constante afirmação da participação das mulheres. No relato de RC, a ilustração da permanência de desigualdades está representada pela quantidade de matérias disponíveis acerca do judô feminino e do judô masculino. A pesquisa de Saint' Clair e Devide( 33 ) discute as representações da mídia esportiva sobre a visibilidade de mulheres nos Jogos Olímpicos de Pequim em 2008, constatando haver desigualdades na quantidade de matérias. Existem sutis mudanças no tratamento das imagens que se referem ao desempenho atlético, sobretudo de atletas de modalidades de reserva masculina, em detrimento dos aspectos relativos à feminilidade, já indicados por outros estudos, o que corrobora a preocupação de RC em estar atenta à visibilidade das atletas. Esta preocupação está ancorada na vitrine que a mídia oferece para os patrocinadores: quanto mais um/a atleta aparece, maiores são as chances de patrocínio individual.
Após os jogos de Pequim em 2008, o cenário do judô feminino se alterou, a delegação feminina passou a contar com psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas, massoterapeutas, preparadores físicos e médicos. Ela lamentou que muitas atletas da nova geração não valorizassem essas conquistas: hotéis, alimentação especial, atendimento individualizado, médicos das mais variadas especialidades: "se vocês chegaram até aqui e têm isso, foi porque muita gente lá ralou para pavimentar este caminho, então deem valor!". Em 2011, a técnica teve mais um motivo para seguir em frente na liderança da equipe feminina de judô brasileiro, ao conquistar o título de melhor técnica do Brasil, no Prêmio Brasil Olímpico, oferecido pelo COB. Era o reconhecimento público de sua trajetória.
A preparação para os Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, revelou mais potencial do que se poderia esperar ou imaginar. O judô feminino conquistou duas medalhas nos Jogos de Londres: uma de bronze, com Mayra Aguiar, na categoria meio pesado, até 78 kg; e uma de ouro, com Sarah Menezes, na categoria ligeiro, até 48 kg. Pela primeira vez, o judô feminino teve um resultado melhor do que o masculino, que conquistou duas medalhas de bronze com Felipe Kitadai na categoria ligeiro, até 60 kg, e Rafael Silva, categoria pesado, mais de 100 kg.
Para a técnica, o resultado garantia o acerto do que fez como técnica: "onde a carreira de técnica possibilita você chegar, eu cheguei! Passei por todos os estágios e hoje a gente tem uma medalha de ouro". Os vários estágios desse caminho, com 27 anos de prática, foram cumpridos a risca pela técnica vitoriosa.
Em estudos como o de Ferreira( 34 ) e Souza de Oliveira,( 35 ) encontramos relatos de mulheres que adiaram ter filhos ou abandonaram a carreira para ter seus filhos. No caso da técnica, houve adiamento prolongado e consciente da maternidade: "eu tenho que engravidar em 2009, porque aí dá tempo de eu ter filho em 2010 e para eu estar de volta [...]. Porque, se eu tivesse parado, eu não teria chegado aonde eu cheguei." (RC, 2012). Ela se refere à preocupação em se ausentar do mercado de trabalho entre um ciclo olímpico e outro, em decorrência da gravidez: "porque na minha transição de atleta para técnica eu não podia parar, porque se eu parasse eu sairia do mercado e já era difícil no mercado, como é que eu ia voltar para o mercado e conquistar o meu espaço? Então, eu abri mão de ter filho." (RC, 2012). As decisões da técnica, para conciliar vida pessoal e familiar, de um lado, e a carreira esportiva, de outro, enquadram-se no contexto difícil em que se movem atletas e técnicas de esporte de rendimento.
De acordo com Trindade,( 36 ) ao retratar como jogadoras de vôlei conciliavam a carreira de atleta com a maternidade, a autora constatou que tal conciliação era possível a partir da contribuição de parentes, como avós e empregadas, mas que a participação dos homens nesse processo ocorria de forma auxiliar. Ficou claro que ser mãe não era um impedimento para a carreira profissional. Entretanto, a autora também apontou o sentimento de culpa de não poder estar presente integralmente com os filhos. Por fim, Trindade infere que a maternidade é uma realização íntima do privado, e suas carreiras são realizações pessoais no espaço público.
Para que isso seja possível, elas se dividem emocionalmente, construindo múltiplas identidades para suportarem as múltiplas jornadas, superando a culpa por não seguirem o modelo padrão de maternidade. Embora este estudo tenha sido realizado com jogadoras de vôlei, ao analisarmos tanto este estudo como os anteriores que tratam deste assunto, percebemos, em seus argumentos, que, até este momento, a técnica de judô estava indo ao encontro dos discursos apresentados por Souza de Oliveira( 37 ) e Ferreira( 38 ) adiando a maternidade, contrariamente ao que Trindade( 39 ) descreveu, em que não se adiou a maternidade. Além de ser técnica da seleção nacional e da equipe de judô feminino de um grande clube do Rio de Janeiro, RC atua na Academia Brasileira de Treinadores (ABT), pertencente ao COB, no qual centenas de técnicos se encontram para estudar e complementar experiências.( 40 ) Ela entrou em licença maternidade, substituída por um técnico,( 41 ) que acompanhou a seleção como auxiliar-técnico.
A análise da entrevista de RC propicia uma reflexão sobre o seu lugar no debate sobre gênero e esporte. Acolhemos o enunciado de Guacira Louro,( 42 ) de pensar a proposta dinâmica queer como uma disposição existencial e política, que supõe a ambiguidade, o não lugar, o trânsito, um movimento pós-identitário.
Nesse contexto, podemos inferir que RC está em processo de dar a luz a si mesma, como pessoa que está além e acima da dicotomia de gênero. Sua fala e suas práticas permitem inferir que ela precisou e precisa transitar entre ser masculina, quando lida com o poder masculino, e ser feminina, quando lida com as atletas. Rejeita a tese da fragilidade feminina, em esporte de combate com oponentes que desenvolvem massa muscular, força e resistência, o que compromete os aspectos estéticos e plásticos do ser feminino.
Portanto, marcada por palavras e práticas na fronteira entre posições binárias e invenção pós-estruturalista, que poderíamos denominar queer, RC se reajusta e se redefine, molda sua identidade, no contexto das pressões com que convive, por vezes de forma ambígua ou pouco explícita. Ela rompe com o binarismo homem versus mulher e está em movimento, não apresenta identidade estática, nem constante. É performativa, no sentido de Austin, e transforma os atos de fala constativos em atos performativos. Suas preleções às atletas ilustram o poder transformador de suas preleções verbais.
RC não escapa completamente à binaridade homem versus mulher, que é fundante das rupturas provocadas por mulheres, em esporte de origem masculina. Oferece indícios dos conflitos que sua orientação profissional, suas opções de militância e as condições de trabalho propiciam.
Reflexões finais
Neste estudo, identificamos e interpretamos as percepções de RC sobre suas dificuldades, alternativas, decisões e mudança de discurso e de prática, enquanto técnica da seleção brasileira feminina de judô.
As mulheres representam 7% do total de técnicos do alto rendimento no Brasil;( 43 ) incluída nesse percentual, destacamos a informante aqui retratada, por ser representante de um esporte que outrora foi proibido às mulheres. RC é um exemplo de perfil profissional de sucesso que conquistou seu espaço à custa de abdicações e de ajustes, principalmente pessoais e profissionais. Seu processo de capacitação até se tornar técnica, somado a sua experiência como atleta, permitiram-lhe exercer o cargo de técnica, propondo ações para o desenvolvimento do judô feminino nacional, levando sua equipe a conquistas inéditas.
As principais dificuldades enfrentadas por RC foram: a redefinição de suas palavras e ações; a reconstrução constante de sua identidade pessoal e profissional para se adaptar ao contexto de trabalho; a aceitação da comissão técnica, formada por homens que destinavam o cargo preferencialmente para homens; a falta de infraestrutura para o judô feminino até 2006, quando as mulheres participavam de menos competições e treinamentos de intercâmbio do que os homens; a cultura do treinamento das mulheres, que atenuava a preparação física, por questões de beleza e por falta de conhecimento específico sobre preparação; a conciliação da vida de técnica com a vida pessoal, quando não conseguia estar presente nos eventos da própria família; o retorno financeiro aquém do esperado.
Diante das alternativas para se tornar técnica, RC se encontrava no final de sua carreira como atleta, o que a levou à opção de se capacitar e não continuar treinando como atleta. Durante o período de 1998 a 2000, ainda tentou ser atleta, mas já com formação acadêmica propícia para técnica, que foi complementada no início dos anos 2000 em cursos no Brasil e no exterior. Quando já se encontrava como técnica, RC postergou a gravidez para permanecer como técnica; optou por repensar a forma de falar e de agir durante sua atuação frente à equipe feminina e seus superiores.
As decisões tomadas por RC a levaram a quebrar o "teto de vidro", mas a necessidade de constante superação de dificuldades a pôs diante de um "chão de vidro", uma vez que o que já foi ultrapassado agora precisa ser cautelosamente conduzido para que nada se rompa.
RC se encontra em uma nova etapa de vida e de autoconstrução como pessoa: ser mãe. Seu cargo, durante a licença maternidade, foi ocupado por um homem, o que poderia representar um retrocesso nos avanços conquistados pela técnica ou um resgate dos valores anteriormente pregados por esse tipo de esporte.
Por outro lado, com o fato de o judô feminino ter conquistado notoriedade no cenário internacional e independência nas propostas de investimentos da CBJ, há indício de uma nova geração que dispensa as relações de "ser mulher para treinar mulher" e "ser homem para treinar homem". Se houver uma valorização das competências profissionais e experiências atléticas, como se enuncia nas novas políticas do COB e da CBJ, não há razões para ameaça à continuidade do desenvolvimento do esporte feminino. Após a licença maternidade, RC imediatamente reassumiu a equipe feminina principal de judô.
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-
1
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-
2
Gabriela SOUZA e Ludmila MOURÃO, 2011. As informantes consultadas eram atletas de alto rendimento que participaram dos primeiros campeonatos internacionais representando o Brasil, a exemplo de: Sul-Americano em Montevidéu em 1979, Primeiro Campeonato Mundial Feminino em 1980, Jogos Panamericanos em 1983, Jogos Olímpicos de Seul em 1988 e Jogos Olímpicos de Barcelona em 1992.
-
3
Ludmila MOURÃO; Gabriela SOUZA, 2007.
-
4
Lei de Incentivo ao Esporte (BRASIL, 2006).
-
5
Eleita pelo site Judô Inside, seguindo critérios de classificação mundial dos resultados das atletas. O masculino ficou em 4o lugar (Time Brasil, 2012).
-
6
Fabiano DEVIDE et al., 2011, p. 96.
-
7
Eric DUNNING e Joseph MAGUIRE, 1996, p. 335.
-
8
DUNNING, 1992, p. 394.
-
9
Verena ALBERTI, 2005.
-
10
ALBERTI, 2005, p. 38.
-
11
Sônia Maria FREITAS, 2002.
-
12
Kátia RÚBIO, 2004.
-
13
Jayme Pimenta VALENTE FILHO, 2006.
-
14
Cláudia Maria FARIAS, 2009.
-
15
Márcio Antônio TRALCI FILHO e Kátia RÚBIO, 2012.
-
16
Guilherme Augusto TALAMONI; Flávio OLIVEIRA; e Dagmar HUNGER, 2013.
-
17
Eni Pucinelli ORLANDI, 2012.
-
18
Cidadania reclamada, no sentido de Os lugares da exclusão social, de Stoer et al. (2007). Os indivíduos reclamam e garantem o direito de fazer o caminho com os próprios pés.
-
19
Heidi Jancer FERREIRA, 2012.
-
20
Gabriela SOUZA DE OLIVEIRA, 2002.
-
21
2001 foi o fim da "Era Mamede", período de 21 anos em que o judô brasileiro esteve sob o comando de Joaquim Mamede. Paulo Wanderley Teixeira dava início a sua gestão na CBJ, em que permanecerá até 2017.
-
22
Pierre BOURDIEU, 2001.
-
23
FERREIRA, 2012.
-
24
SOUZA DE OLIVEIRA, 2002.
-
25
Ema Maria EGERLAND; Juarez VIEIRA DO NASCIMENTO; e Jorge BOTH, 2009.
-
26
Alexandre Janotta DRIGO; Samuel de SOUZA NETO; Juliana CESANA; e João Baptista Andreotti Gomes TOJAL, 2011.
-
27
SOUZA DE OLIVEIRA, 2002.
-
28
DRIGO et al., 2011.
-
29
Barnaby CHESTERMAN, 2002.
-
30
Gertrud PFISTER, 2003.
-
31
FERREIRA, 2012; SOUZA DE OLIVEIRA, 2002.
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32
SOUZA DE Oliveira, 2002.
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34
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-
35
SOUZA DE OLIVEIRA, 2002.
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37
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CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE JUDÔ, 2012.
-
42
Guacira LOURO, 2001.
-
43
Euza GOMES, 2008.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Ago 2015
Histórico
-
Recebido
01 Abr 2014 -
Revisado
29 Dez 2014 -
Aceito
05 Fev 2015