Resumo
Ainda não existe uma definição consolidada de reforma tributária na literatura de finanças públicas. Este artigo se propõe a apresentar um conceito próprio de reforma tributária. Juntamente com a definição de reforma tributária, apresenta-se uma tipologia para a classificação destas reformas. Para aplicação do conceito e tipologia propostos, construiu-se uma base de dados de alterações e reformas tributárias na América Latina entre 1990 e 2004 com informações do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Verificou-se que as reformas tributárias promovidas na América Latina se caracterizaram por se concentrarem em tributos relevantes sobre o consumo e a renda, com o objetivo de aumentar a arrecadação, implantadas de maneira gradual e de incidência geral. A experiência latino-americana pode ser útil para o caso brasileiro, que há vários anos vem tentando reformar o seu sistema tributário. Assim, reformas graduais, direcionadas para grandes tributos e de incidência ampla parecem ter mais chance de aprovação junto ao legislativo.
Palavras-chave: Reforma Tributária; Conceituação; Tipologia
Abstract
There is still no consolidated definition of tax reform in the public finance literature. This article proposes to present its own concept of tax reform. Together with the definition of tax reform the text presents a typology for the classification of these reforms. In order to apply the proposed concept and typology, a database of tax changes and reforms was built for Latin American countries between 1990 and 2004 with data from the Inter-American Development Bank. It was found that the tax reforms promoted in Latin America were characterized by focusing on relevant taxes on consumption and income, in order to raise revenue, and were implemented in a gradual manner and with overall incidence. The Latin American experience can be useful for Brazil, which for years has been trying to reform its tax system. Thus, gradual reforms, directed toward taxes of widespread incidence seem to have more chance of approval by the legislative body.
Keywords: Tax Reform; Concept; Typology
Introdução
O que se entende por reforma tributária? Há grande dificuldade em caracterizar o que é reforma tributária. A expressão reforma tributária é usada até mesmo por renomados autores sem preocupação com a respectiva definição. A literatura é muito pobre quando se trata de definir reforma tributária, apesar da grande quantidade de textos em que essa expressão é utilizada.
Talvez as minudências que envolvem cada reforma, as disposições várias que modificam impostos, contribuições, alíquotas, bases de incidência, contribuintes, prazos, declarações, penalidades, garantias etc., fizeram com que até mesmo especialistas evitassem uma definição formal para algo que aparentemente todos sabem o que seja.
A literatura é bem incipiente. Há definições de reforma tributária nos trabalhos de Morley, Machado e Pettinato (1999), Mahon (2004) e Castanheira, Nicodème e Profeta (2012). Tais definições, porém, limitavam-se ao escopo dos respectivos trabalhos e aos dados disponíveis, i.e., não poderiam caracterizar reformas tributárias em todas as situações, mas apenas em cenários muito específicos. Por exemplo, Castanheira et al. (2012) incluem os impostos sobre a renda das pessoas físicas na definição de reforma tributária, mas excluem os impostos sobre consumo, propriedade e vários outros. Outros autores, como Souza (2013) e Samayoa (2011), intentaram definições abrangentes, cabíveis em diversas situações, mas, ainda assim limitadas.
Este artigo se propõe a apresentar um conceito próprio de reforma tributária. Entende-se que a definição apresentada é abrangente o bastante para utilização em futuros estudos e será discutido os seus contornos e restrições. Juntamente com a definição de reforma tributária, apresenta-se uma tipologia para a classificação destas reformas.
Em seguida, aplicou-se a definição e a tipologia para identificar as reformas tributárias promovidas na América Latina entre 1990 e 2004, bem como as suas principais características. Os dados foram obtidos com o apoio do Centro Interamericano de Administrações Tributárias (CIAT), que permitiu o acesso aos questionários da pesquisa de campo realizada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para a realização do relatório Informe de Progreso Económico y Social em América Latina (IPES), 2006.
De maneira geral, as reformas na região se caracterizam por serem voltadas para as bases renda e consumo, concentradas nos maiores tributos, com preferência por mudanças expansivas na arrecadação e conduzidas de forma gradual.
O artigo está estruturado em cinco seções. Além desta introdução, a primeira seção trata da revisão da literatura sobre conceituação de reformas tributárias, enquanto a segunda apresenta a proposta conceitual de reforma tributária. A terceira seção trata de elencar as tipologias aplicáveis a reformas tributárias, a quarta seção aplica a conceituação a base de dados da América Latina para caracterizar as reformas tributárias na região, e finalmente a última seção apresenta as conclusões.
1 Conceituação de reformas tributárias - revisão da literatura
Ainda não existe definição consolidada de reforma tributária na literatura de finanças públicas. A ideia aparentemente parece ser de simples compreensão, pois vários autores a utilizam ostensivamente, sem preocupação com o estabelecimento de uma definição prévia. Em realidade, a variedade de elementos em uma reforma tributária torna complexa a tarefa de estabelecer um conceito universal e ao mesmo tempo preciso. Por essa razão, alguns autores preferem defini-la em função dos respectivos testes empíricos. Por exemplo, Castanheira et al. (2012) consideram reformas tributárias as mudanças na tributação da pessoa física e nas contribuições sociais de empregados e empregadores, ocorridas entre 2000 e 2007, em 27 países da União Europeia.
Para Mahon (2004), reforma tributária é toda alteração legislativa que compreenda um ou mais dos seguintes eventos: a introdução ou expansão do imposto sobre o valor agregado (IVA), a eliminação de taxas sobre selos e outras imposições de menor expressão, a simplificação ou expansão dos impostos sobre ativos e renda (pessoa física e jurídica), a revisão do código tributário com a finalidade de aperfeiçoar a administração de tributos ou de impor punições criminais contra a evasão tributária.
As diferenças entre essas duas definições são claras. Alterações no IVA seriam computadas por Mahon (2004), mas não por Castanheira et al. (2012), enquanto que mudanças nas contribuições sociais seriam percebidas pelo segundo, mas não pelo primeiro. Ademais, nenhuma das duas computaria as alterações nos impostos seletivos, ou sobre propriedade, por exemplo. Ambas são definições limitadas aos respectivos escopos de pesquisa, sem intuito de generalidade; i.e., não são apropriadas a uma abordagem conceitual genérica, de modo a abranger inúmeros casos.
Outros autores conceituaram reforma tributária de modo teórico e demasiadamente abrangente. Souza (2013) a define como a “passagem legislativa de iniciativas destinadas à revisão do sistema fiscal1, ao aumento da receita fiscal e à promoção da equidade fiscal, ou uma combinação desses objetivos”. Samayoa (2011) afirma que reforma tributária é “a mudança intencional no sistema tributário vigente em um país, caracterizada por mudanças sistêmicas nos parâmetros dos impostos, formuladas mediante a modificação dos objetivos de política tributária e dos meios de implementação”. Samayoa (2011) acrescenta que isso pode ocorrer por mudanças na estrutura tributária, por introdução de novos impostos, pela modificação intencional nos elementos que causam impacto na incidência tributária, pelas mudanças na carga tributária e pela otimização da administração tributária. Se comparadas às definições de Mahon (2004) e de Castanheira et al. (2012), as de Souza (2013) e Samayoa (2011) são inegavelmente mais abrangentes, mas perdem em precisão. Com efeito, se fosse tentado seguir Samayoa (2011), haveria dificuldade em caracterizar as referidas mudanças sistêmicas, assim como os parâmetros por ele mencionados.
Na falta de uma definição consagrada, é importante discutir o conceito de reforma tributária. Afinal, o que se deve entender por reforma tributária? Uma dificuldade inicial é que somente é possível observar objetivamente as alterações nos sistemas tributários, mas não propriamente reformas tributárias. Para estabelecer se uma alteração (ou conjunto de alterações) no sistema tributário2 é uma reforma tributária, é preciso, necessariamente, de uma definição para reforma tributária. Mesmo que certos atos legais sejam denominados “reforma tributária”, não se pode aceitá-los sem exame, porque a denominação dada por legisladores de diferentes jurisdições não se baseia nos mesmos critérios.
Por outro lado, há alterações que não receberam rótulos, mas poderiam ser identificadas como reformas tributárias. Dessa forma, o caminho para se reconhecer uma reforma tributária passa pela análise das alterações tributárias passíveis de observação, selecionando as que preenchem os requisitos de uma definição prévia de reforma tributária.
Portanto, a proposição de uma definição para reforma tributária deve ser precedida de discussão conceitual a respeito dos seus elementos constitutivos e das condições de contorno. Nesse ponto, é razoável conceituar alterações tributárias, que são observáveis, agregar elementos de contorno para, então, definir reforma tributária.
2 Proposta de conceituação de reforma tributária
2.1 Alterações tributárias - Definição e classificação
O que distingue uma reforma tributária de uma simples alteração no sistema impositivo? Apenas o aumento da alíquota do imposto seletivo sobre cigarros é uma reforma tributária? E se a pergunta dissesse respeito ao incremento da alíquota geral do IVA? Pela definição de Souza (2013), o aumento isolado da alíquota do IVA poderia ser uma reforma tributária, pois, afinal, tenderia a aumentar a arrecadação. O critério de Mahon (2004) admitiria que sim, mas não o de Castanheira et al. (2012). A definição de Samayoa (2011) oferece pouca segurança para responder. Como então distinguir?
Propõe-se que todas as alterações tributárias devam ser examinadas, porque, a priori, todas teriam potencial para fazer parte de uma reforma tributária. Trata-se, então, da definição de alteração tributária, que seria qualquer dispositivo formalmente estabelecido que introduza alguma modificação no sistema tributário até então vigente.
Alterações tributárias seriam observáveis, pois a cada edição de um novo ato legal ou administrativo é possível verificar se o mesmo contém ou não dispositivo atinente a tributo. Uma vez que identificamos uma alteração tributária, é preciso de critérios para selecioná-la e classificá-la, visando caracterizá-la ou não como reforma tributária.
Certamente, a ausência de parâmetros gera dificuldades para a caracterização de uma reforma tributária. A mencionada mudança da alíquota do imposto seletivo sobre cigarros pode ser uma alteração tributária pontual e de menor importância para uma economia grande, cujo sistema tributário seja composto de vários tributos, alguns de grande peso econômico e social. Entretanto, a mesma alteração pode ter capital importância em uma economia pequena, que se baseie fundamentalmente no comércio tabagista. No primeiro caso, essa alteração isolada provavelmente não seria considerada reforma tributária, mas o que dizer do segundo caso? A importância de tal alteração para uma economia incipiente poderia levá-la a ser considerada uma reforma tributária? Sobre quais parâmetros deve se desenvolver o julgamento?
Esse exemplo reforça a necessidade de critérios para classificar as alterações tributárias. Existe uma ampla variedade de modificações nos sistemas tributários, fato que dificulta o estabelecimento de critérios para classificação de alterações. Para obter simplicidade, Mahon (2004) esboçou uma classificação3 levando em conta três aspectos: a simplificação do sistema, a ampliação da base tributária e medidas administrativas.
Neste artigo preferiu-se classificar as alterações tributárias segundo o efeito que produzem no sistema tributário. Assim, as alterações tributárias podem ser classificadas da seguinte forma: (i) criação de tributo, (ii) revogação de tributo, (iii) expansão de base de incidência4, (iv) aumento de alíquota5, (v) redução de base de incidência, (vi) redução de alíquota e (vii) outras medidas tributárias, que incluem medidas administrativas e ajustes diversos no sistema tributário6.
Esses critérios para classificar as alterações tributárias estão vinculados à configuração do sistema tributário, pois cada alteração gera uma nova configuração sistêmica. Permite, dessa forma, examinar as diferentes configurações resultantes, favorecendo a avaliação posterior do impacto econômico de uma medida, por exemplo. Essa distinção de tipos facilita a construção de uma base de dados com maior objetividade, lembrando que Mahon (2004) assumiu que a dificuldade em reproduzir seu exercício estava justamente na subjetividade com que pautou a construção de sua base de dados.
2.2 Elementos de contorno
Havendo definido alteração tributária e estabelecido sua classificação, falta agregar os elementos de contorno necessários para definir se uma determinada alteração é ou não uma reforma tributária ou parte de uma reforma tributária. Esses elementos são a caracterização por atos formais, o tempo e o local de observação.
a) Caracterização das alterações tributárias por atos formais
Alterações tributárias têm origem nos atos formais das autoridades competentes. Ainda que possam ter influência de costumes e princípios, é por meio de normas escritas que passam a ser observadas. Vários atores praticam atos tributários, dentre eles estão o chefe do executivo, os líderes dos parlamentos, juízes e autoridades tributárias. Entretanto, foram selecionadas apenas as alterações tributárias que ocorrem por ato de autoridade investida da competência de sancionar ou promulgar leis, que tenham sido submetidas ao processo político, em país democrático. Desta forma, conclui-se que uma condição necessária (mas não suficiente) para uma reforma tributária é a existência de ato formal do chefe do poder executivo, quando sanciona e faz publicar leis ou expede decretos. Alternativamente, admite-se ato do chefe do poder legislativo, quando, por uma resolução de amplo alcance ou ratificação de tratado internacional, estabelece mudança significativa na configuração do sistema tributário então vigente7.
b) Limites temporais e espaciais
O espaço geográfico das alterações tributárias limita-se à jurisdição onde são válidas, i.e., o município, estado, província ou país. É, portanto, condição necessária, mas não suficiente, para haver reforma tributária, a observação de alteração nas leis que dizem respeito aos tributos de determinada jurisdição.
Com relação ao tempo, muito embora as alterações legislativas sejam marcadas por data, reformas tributárias não devem possuir limites fixos. Isso porque a forma de alterar os sistemas impositivos varia muito entre jurisdições. O Paraguai, por exemplo, concentrou as alterações tributárias, tendo promovido reformas em 1991 e em 2004 (Zárate, 2010)8. No intervalo entre esses anos, praticamente não houve alteração tributária importante. Já a Argentina, que está permanentemente alterando seu sistema tributário, espalhou cinquenta alterações tributárias no período compreendido entre 1990 e 2004. Esse padrão gradual é condizente com as predições de Dewatripont e Roland (1992, 1995). Segundo esses autores, alguns governos procuram dividir as reformas em etapas para que possam vencer a oposição gerada pelas incertezas inerentes a esses processos. Nesses casos, é difícil identificar uma grande reforma, mas é fundamental não desprezar as alterações pontuais, pois, ao longo do tempo, é possível identificar configurações bastante distintas de um sistema tributário que tenha sofrido diversas alterações de menor expressão.
2.3 Proposta de definição de reforma tributária
Após essa discussão, estão presentes os elementos para a definição de reforma tributária:
Reforma tributária é toda e qualquer alteração (ou conjunto de alterações) de natureza tributária, selecionada por determinado critério de relevância, prevista em lei de determinada jurisdição, que importe mudança de base de incidência ou de alíquota de tributo, ou, ainda, a definição de novos tributos ou extinção de tributos existentes.
3 Tipologia das reformas tributárias
É raro encontrar referência explícita aos tipos de reformas tributárias, exceção feita a Lerda (2002), cuja tipologia abrange aspectos administrativos, estruturais e arrecadatórios. Reformas tributárias são muitas vezes fenômenos complexos, que podem ser melhor estudados se desagregados em tipos mais simples.
3.1 Classificação das reformas tributárias
A classificação proposta a seguir compila observações próprias e dos autores Focanti et al. (2013) e Castanheira et al. (2012).
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I) Quanto aos tributos alterados e bases de incidência
Podemos classificar as reformas tributárias em função dos tributos que modificam e das respectivas bases de incidência9.
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Reformas tributárias sobre a base renda: compreendem as alterações em um ou mais dos seguintes tributos e seus assemelhados: imposto sobre a renda da pessoa física, imposto sobre a renda da pessoa jurídica, impostos sobre ativos e sobre a renda presumida10.
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Reformas tributárias sobre a base consumo: compreendem as alterações em um ou mais dos seguintes tributos e seus assemelhados: imposto geral sobre vendas, imposto sobre o valor agregado, impostos seletivos, impostos sobre transações bancárias e financeiras11.
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Reformas tributárias sobre a base propriedade: compreendem alterações nos tributos sobre a propriedade.
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Reformas sobre bases específicas: compreendem alterações em outras bases (por exemplo: tributos sobre folha de salários).
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Reformas de múltiplas bases: as que combinam duas ou mais das bases anteriores.
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II) Quanto à relevância orçamentária
Segundo Focanti et al. (2013), as reformas podem ser:
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Reformas maiores: aquelas que abrangem tributos de maior relevância arrecadadora (IVA e IR).
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Reformas menores: aquelas que abrangem tributos de menor relevância arrecadadora.
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III) Quanto à multiplicidade e variedade das alterações
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Reformas amplas: aquelas que abrangem mais de um tributo, incluindo as bases renda e consumo e mais de duas alterações, uma pelo menos de caráter geral (não direcionadas).
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Reformas reduzidas ou minirreformas: as que se referem a um único tributo ou poucos tributos de menor relevância e poucas alterações.
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IV) Quanto à incidência
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Gerais: as que incidem sobre todos os contribuintes do(s) tributo(s) envolvido(s).
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Direcionadas (targeted): as que incidem sobre parte dos contribuintes ou grupos, que geralmente podem abranger um setor econômico, uma classe profissional etc.
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V) Quanto ao impacto orçamentário
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Expansivas: são as alterações que buscam aumentar as receitas;
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Contracionistas ou redutoras: aquelas que impõem redução de receitas com objetivos diversos: estimular determinada indústria, redistribuir a carga fiscal etc.
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Neutras: são as que não buscam aumentar nem reduzir receitas, mas promovem mudanças no sistema sem intenção de alterar a carga tributária. Esse tipo de reforma geralmente comporta várias alterações, algumas com efeito expansivo e outras com efeito redutor, de modo que as alterações tendem a se compensar.
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O Quadro 1 resume os tipos apresentados.
4 Aplicação - Tipologia das reformas tributárias na América Latina
Os dados de reformas tributárias na América Latina foram obtidos com o apoio do Centro Interamericano de Administrações Tributárias (CIAT), que gentilmente nos deu acesso aos questionários da pesquisa de campo realizada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para a realização do relatório IPES 2006. Esses questionários foram respondidos por funcionários especialistas em legislação tributária, pertencentes aos quadros dos ministérios de finanças latino-americanos. Esses especialistas identificaram as reformas tributárias ocorridas em seus respectivos países. Com base na definição de reforma tributária proposta neste artigo e na tipologia adotada, foi construída base própria de dados de reformas e alterações tributárias na América Latina ocorridas entre 1990 e 2004.
A Tabela 1 consolida os resultados das alterações tributárias em dezesseis países12 da América Latina.
A criação de tributos (14,4% do total) superou a retirada de tributos dos sistemas (5,8% das alterações), ao passo que alterações para aumentar tributos (45,8% do total) foram mais frequentes que as que objetivaram reduzir tributos (24,7% das alterações). As alterações de alíquotas (43,6%) foram mais regulares que as de base de incidência (26,9%), algo esperado, se considerarmos que a boa técnica tributária (Sevilla, 2004) recomenda as alterações de alíquotas para ajustes nos sistemas impositivos.
No entanto, a expansão de base de incidência (21,5%) foi substancial. No total, foram captadas 312 alterações, consideradas relevantes pelos especialistas que responderam aos questionários do BID13.
Portanto, o que se percebe é que a maior parte das medidas visou ao aumento da tributação, condizente com o esforço fiscal dos governos da região, que buscaram aumentar receitas no período (Lora, 2007; Melo; Pereira; Souza, 2010). O Gráfico 1 mostra que a carga tributária na região de fato aumentou substancialmente no período.
Até o momento tratou-se de alterações tributárias na América Latina. Para se chegar às reformas tributárias, foram impostas duas restrições a base de dados. A primeira restrição diz respeito à extinção de tributos. Considerou-se que todas as extinções de tributos da base foram irrelevantes, porque contá-las levaria à multiplicidade de contagem. Revogações foram acompanhadas da inserção quase imediata de um novo tributo ou de expansão de tributos existentes. Ocasionalmente, concorrem para a eliminação de vários tributos de pouca expressão arrecadatória. Por exemplo, a introdução do IVA na Guatemala, em 1992, foi acompanhada da revogação de diversos pequenos impostos.
Também foram excluídas as alterações coletadas em tributos sobre comércio exterior. São eles os impostos sobre importação e exportação, direitos alfandegários de diversa ordem e outros tipos de menor expressão. Observamos que esses tributos se modificam segundo uma dinâmica quase sempre muito distinta, pois as alterações não costumam seguir o rito legislativo, como nos demais tributos. Elas seguem predominantemente as variações nos fluxos de comércio exterior. Geralmente, o poder executivo tem liberdade para promover alterações de alíquotas. Em contrapartida, alterações em tributos internos seguem-se normalmente a intensos debates políticos.
Assim, expurgando-se da base das alterações as revogações, as medidas administrativas/outras provisões e as alterações relativas a comércio exterior, é possível obter a base das reformas tributárias na América Latina entre 1990 a 2004. Esse corte tem a vantagem de evitar o mergulho na miscelânea de medidas tributárias de cunho administrativo e pouca expressão econômica, e de desprezar a revogação de tributos, que, como já dito, implicaria em multiplicidade de contagem de reformas.
A Tabela 2 mostra a frequência de reformas por tipos. Foram 246 reformas, exceto na contagem por multiplicidade de alterações, que identificou 98 reformas. A diferença deve-se ao fato de que nas primeiras consideramos cada alteração uma reforma, enquanto que na última, agregamos as alterações por ano e país. Ambas as contagens satisfazem a definição de reforma tributária proposta neste artigo14.
Quando se vislumbra a classificação por base de incidência, verifica-se que as modificações nas bases renda e consumo respondem por mais de 95% das reformas. Por outro lado, menos de 1% das reformas dedicou-se à propriedade, mostrando o decréscimo de importância de tributos sobre a propriedade na região neste período
Em outro prisma, as reformas maiores (que alteraram impostos muito relevantes como o imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas ou o IVA) computaram 71% das reformas contra 29% de reformas em tributos de menor importância arrecadatória. Esse indicador, porém, é impreciso, pois os especialistas que responderam aos questionários da pesquisa de campo IPES do BID, realizada em 2006, puderam responder livremente sobre as alterações que consideravam mais relevantes. Acredita-se que esse “limiar de relevância” possa variar entre os especialistas, principalmente, no caso de alterações em tributos de menor expressão econômica. Com efeito, para Focanti et al. (2013), que utilizaram dados15 da Pricewaterhouse Coopers, as reformas maiores somaram 142 contra 185 reformas menores. Comparando com os nossos dados, ainda que as fontes sejam diferentes, percebe-se que é maior a diferença entre as reformas menores, como esperado.
O indicador referente à expectativa de impacto orçamentário registrou 181 reformas expansivas contra 65 reformas redutoras. É importante esclarecer que o enquadramento nesses tipos levou em conta simplesmente a descrição que os especialistas respondentes da pesquisa IPES 2006 do BID obtiveram dos textos legais. Por exemplo, se a medida estivesse descrita como “aumento da alíquota de IVA de 10% para 15%”, a medida foi classificada como expansiva, pela expectativa de um aumento de receitas. Com efeito, a real verificação16 do impacto orçamentário exigiria que a medida fosse avaliada a posteriori, algo fora do escopo deste estudo. Os dados corroboram a afirmação de Lora (2007) de que a maior preocupação dos governos da região no período foi reformar para aumentar receitas ou pelo menos para evitar a sua deterioração.
Foram identificadas 23 reformas amplas contra 75 minirreformas. Esses dados parecem indicar que é mais difícil reformar amplamente os sistemas tributários. O argumento de Dewatripont e Roland (1992, 1995) sobre reformas graduais encontra nesses dados algum mérito. Nesse sentido, não se deve desprezar minirreformas, que ao longo do tempo modificam substancialmente os sistemas tributários. Assim como reformas amplas, elas também passam por debates no poder legislativo e submetem-se à aprovação do poder executivo. Por outro lado, também não se pode tomar o gradualismo como regra. Os dados sobre reformas amplas confirmam a sua ocorrência, porém não se sabe sob quais condições são adotadas e preferidas às reformas graduais.
Verificou-se 27% de direcionamento nas reformas tributárias da América Latina, em contraste com Castanheira et al. (2012), que afirmaram ser a maioria das reformas, na Europa, direcionadas. Esse tipo de reforma é conhecido na literatura como targeted reforms, ou seja, reformas direcionadas, que foram desenhadas para beneficiar ou gravar certos grupos sociais. Supondo que o sistema tributário esteja balanceado, reformas direcionadas podem afetar negativamente a equidade do sistema. O princípio da equidade horizontal estabelece que indivíduos em posições iguais devam receber o mesmo tratamento tributário (Rosen, 2005). Logo, o risco do direcionamento é justamente o de ferir esse princípio, na medida em que diferencia certos grupos ou indivíduos.
Conclusões
Este artigo apresentou uma proposta de conceituação de reforma tributária. Identificou-se uma lacuna na literatura econômica que apesar de usar o termo reforma tributária de forma corrente, não se tem ainda uma definição consolidada. Além da definição, sistematizou-se uma tipologia de reformas tributárias o que permite uma melhor compreensão das características das reformas tributárias.
De forma a aplicar o conceito e a tipologia propostos, construiu-se uma base de dados de alterações e reformas tributárias na América Latina entre 1990 e 2004 com informações da pesquisa IPES 2006 do BID.
Verificou-se que as reformas tributárias promovidas na América Latina se caracterizaram por se concentrarem em tributos relevantes sobre o consumo e a renda, com o objetivo de aumentar a arrecadação, implantadas de maneira gradual e de incidência geral.
A experiência latino-americana pode ser útil para o caso brasileiro. Afinal o que foram analisadas foram reformas que foram conduzidas com sucesso na região, no sentido de que foram aprovadas, promulgadas e colocadas em vigor. Apesar de o espaço para novos aumentos de carga tributária seja limitado no Brasil, o que os dados sugerem é que reformas graduais, direcionadas para grandes tributos e de incidência ampla parecem ter mais chance de aprovação junto ao legislativo.
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(1)
O sistema fiscal pode abranger não apenas os tributos, mas também os gastos do governo. Além disso, o uso do termo “revisão” abre demasiadamente o campo de observação.
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(2)
Musgrave (1976) define sistema tributário como “o complexo orgânico formado pelos tributos instituídos em um país ou região autônoma e os princípios e normas que os regem”. O sistema tributário, com seu conjunto de leis, principios e atos, é o objeto de observação para identificação de reformas tributárias.
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(3)
Mahon (2004) não faz distinção entre alterações e reformas, classificando os eventos que coletou como reformas tributárias.
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(4)
A base de incidência de determinado tributo é o agregado que compreende o montante passível de ser tributado. Por exemplo, a base de incidência do imposto sobre importação em determinado ano corresponde ao total das importações naquele ano, exceto pelas isenções e deduções a determinados produtos e contribuintes.
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(5)
Alíquota é o percentual ou valor por unidade de medida aplicável sobre a base de cálculo para obter o valor do respectivo tributo.
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(6)
As medidas jurídico-administrativas de caráter tributário são aquelas que tratam de aspectos jurídicos e administrativos do sistema tributário, sem alterar bases de incidência ou alíquotas de tributos. Exemplos: reformas do código tributário, reformas do sistema de penalidades por descumprimento de obrigações tributárias, mudanças nas garantias de que goza o Estado na realização de créditos tributários etc. Essas medidas usualmente trazem alterações que importam mudanças nos custos de administração do sistema tributário, bem como nos custos de cumprimento de obrigações de mesma natureza por parte dos contribuintes. Embora importantes e recorrentes, não são tratadas como reformas tributárias neste estudo.
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(7)
Esses atos são referenciados neste texto simplesmente como “leis”, ainda que a nomenclatura oficial seja diversa.
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(8)
Em 2012, o Paraguai reformou o imposto de renda da pessoa física.
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(9)
Essa classificação baseia-se em Government Finance Statists Manual (FMI, 2014).
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(10)
Os impostos sobre ativos, muito comuns na América Latina, funcionam como substitutos imperfeitos do imposto sobre a renda, quando há dificuldade em determiná-la. Na mesma situação encontram-se os impostos sobre a renda presumida.
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(11)
São tributos sobre o consumo geral de bens e serviços: o imposto sobre vendas e o imposto sobre o valor agregado. Impostos seletivos, impostos sobre transações bancárias e financeiras são tributos sobre o consumo específico de bens e serviços.
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(12)
Os países da base de alterações tributárias são Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Costa Rica, República Dominicana, Guatemala, México, Nicarágua, Peru, Panamá, Paraguai, Uruguai, Venezuela.
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(13)
A contagem de alterações tomou por base apenas os tributos do governo central, exceto para o Brasil. O sistema tributário brasileiro é o único que possui um imposto sobre consumo geral com características de IVA (ICMS) de competência das unidades federadas. As respostas da pesquisa IPES não captaram as alterações de base e alíquotas do ICMS dos 26 estados e do Distrito Federal, mas captaram grandes alterações, como foi o caso da Lei Kandir.
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(14)
Na Tabela 2, preferimos, por simplicidade, a relação unívoca entre alteração e reforma exceção feita à caracterização de reformas amplas, que necessariamente exige que se olhe para um conjunto de alterações, no período de um ano-calendário.
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(15)
A amostra desses autores compreende o mesmo período e apenas acrescenta El Salvador, que teve apenas duas reformas maiores e três menores, e Honduras, com 6 maiores e 3 menores.
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(16)
De fato, a classificação por impacto orçamentário (expansivas e redutoras), assim como por incidência (gerais e direcionadas), baseia-se no teor descritivo dos atos de reforma e não em avaliação posterior dos efeitos das reformas.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Maio 2020 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2020
Histórico
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Recebido
10 Jul 2017 -
Aceito
14 Jun 2019