Resumo
Esse artigo trata da atuação das companhias de seguros no Brasil entre os anos de 1889 e 1914. Buscamos apresentar quão ampla foi a inserção dessas firmas na economia brasileira de então; constata-se que, para além da concessão de seguros marítimos, terrestres e de vida, essas companhias tiveram ativa participação financeira, concedendo crédito e financiando o Estado brasileiro por meio da contínua compra de apólices da dívida pública federal. Buscou-se enfatizar a transição de uma dinâmica mercantil para outra financeira, comprovada para as companhias de seguros sobretudo a partir da década de 1890, e mostrar como a atividade seguradora no Brasil de então foi influenciada pelas novas condições do capitalismo global.
Palavras-chave: Companhias de seguros; Primeira República; Crédito; Imperialismo; Dívida pública
Abstract
This article analyzes the performance of insurance companies in Brazil between 1889 and 1914. It seeks to present the wide insertion of these companies in the Brazilian economy; it is concluded that in addition to the insurance concession, these firms played an active financial role, granting credit and financing the Brazilian State through the continuous purchase of federal public debt policies. We sought to emphasize the transition from a commercial to a financial dynamic, proven by insurance companies particularly since the 1890s, and also show how the insurance activity of that time was influenced by the new conditions of global capitalism.
Keywords: Insurance companies; First Brazilian Republic; Credit; Imperialism; Public debt
Este artigo discute a atuação das primeiras companhias de seguros no Brasil, cujos anos iniciais de funcionamento remetem à chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro. A abertura dessas firmas cumpria com o papel de fornecer maior segurança econômica e estímulo à expansão do comércio marítimo local. Ao longo do século XIX, acompanhando o crescimento da economia imperial, assistiu-se à expansão do número de empresas de seguros tanto nacionais como do início da entrada de empresas estrangeiras, estas a partir da segunda metade do oitocentos. As companhias de seguros que se instalaram no Brasil estabeleceram suas atividades sobretudo junto às empresas de comércio marítimo, de importação e companhias de navegação. Na sua origem, as empresas estabelecidas respondiam ao caráter mercantil da economia brasileira, buscando assegurar garantias ao transporte marítimo, reproduzindo as regulamentações e os casos das empresas pioneiras da Europa . Aos poucos, notamos a diversificação do perfil de apólices atendidas - que deixam de se relacionar apenas às transações marítimas e voltam-se também ao comércio terrestre, ao seguro de vida, contra incêndio e até mesmo de escravos -, bem como a ampliação de suas áreas de atuação por meio de agências. As companhias passam a alcançar um crescente número de Províncias e a prioridade do negócio, até fins do século XIX, é fomentar o comércio nacional.
Conforme aproxima-se o final do século XIX, notamos uma diversificação na atuação dessas companhias de seguros, que aos poucos passam a ter maior participação financeira. Esse processo de intensificação das atividades financeiras das firmas de seguros é parte de uma das respostas do capitalismo ao que cunhou como a Grande Depressão do século XIX, quando países periféricos testemunharam o aprofundamento de suas relações comerciais e financeiras com os países centrais. A nova dinâmica da relação econômica era resultante da entrada maciça de capital estrangeiro que, impossibilitado de se valorizar em suas nações de origem, passava a encontrar oportunidades de reprodução nos mercados em formação dos países periféricos. Por outro lado, a pouca possibilidade de financiamento das economias desses países fazia da importação de capitais um mecanismo defendido pelas elites nacionais (Bastos, 2011, p. 26). A vinda deste capital, tanto como empréstimo ou como investimento direto por meio da constituição de empresas, obedeceu à contínua expansão do capital do centro em direção à periferia e dos mecanismos institucionais que facilitavam essas transações entre países, como o padrão ouro (Hobsbawm, 1989; Cain; Hopkins , 1993; Polanyi, 1980; Eichengreen, 2007).
As companhias de seguros, nesse sentido, são lembradas pela literatura como uma inovação institucional determinante para aumentar os ganhos de produtividade e para reduzir os custos de transação, gerando desenvolvimento econômico (North; Thomas, 1970; Supple, 1984; Pearson, 1997). Entretanto, menor é o destaque dado ao papel financeiro desempenhado por essas companhias de seguros que, ao movimentarem quantidades crescentes de capital em seus fundos formados pelos segurados, envolviam-se em transações de crédito e financiamento da economia (Hilferding, 1985; Lênin, 1987). Essa dinâmica torna-se mais presente no Brasil nos anos finais do século XIX, quando a estrutura financeira e econômica do país se complexifica.
O presente artigo pretende analisar as transações do setor de seguros a partir do estudo de caso de empresas seguradoras, cujas operações podem ser verificadas por meio de fontes primárias tais como os relatórios anuais das empresas para os acionistas, os relatórios do Ministério da Fazenda e notícias de jornais. O recorte temporal nos parece relevante por abarcar dois momentos bastante particulares da economia brasileira: se a primeira década republicana revela um ambiente de euforia econômica, gerado pelo Encilhamento, também apresenta um cenário de instabilidade herdado da crise especulativa dos primeiros anos da República. O segundo período, já no início do século XX, marca, por sua vez, uma fase de maior estabilidade econômica e de abundante entrada de capital estrangeiro no país, o que poderia sugerir mudanças tanto no perfil das atividades econômicas seguradas pelas companhias, como das possibilidades financeiras abertas para as empresas. A análise da trajetória de companhias, nacionais e estrangeiras, que atuaram no Rio de Janeiro e em São Paulo entre os anos de 1889 e 1914, portanto, pode ilustrar o percurso de formação do capitalismo no Brasil daquele período, indicando a trajetória tomada pelos negócios de um caráter eminentemente mercantil, para uma atuação também financeira.
Origem e evolução do setor de seguros no Brasil de século XIX
As primeiras companhias de seguros no Brasil surgiram logo após a chegada da Corte Portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808. Sua constituição era resultado do interesse de grupos locais, mas também de membros da Corte, agora estabelecida na cidade do Rio de Janeiro, de estimular as atividades comerciais no país. O comércio marítimo e os contratos dos seguros eram regulados pelo Tribunal do Comércio e pela Provedoria de Seguros, ambos instituídos em 1808 tendo como base a legislação da Casa de Seguros de Lisboa (Bohrer, 2008). Em 1810, a colônia publicava a doutrina Reflexões sobre o commercio de seguros, obra de José da Silva Lisboa (o Visconde de Cairú), que afirmava a importância do negócio para os rumos da sociedade: “O comércio de seguros, animando todos os outros, e por consequência a civilização, é sem dúvidas um dos mais beneméritos da humanidade” (Lisboa, 1810). A doutrina não se desvinculava das diretrizes da legislação de Portugal, mas já demonstrava certa autonomia na formulação de princípios próprios, incorporando influências não somente lusas, mas também francesas, como do Marques de Condorcet, em sua Enciclopédia Metódica (Saes; Gambi, 2009) .
Nesse contexto foram criadas, em 1808, as companhias de seguro Boa Fé e Conceito Público e, em 1810, a Identidade. Eram empresas formadas por grupos locais e voltadas ao atendimento das demandas de seguro do comércio marítimo, respondendo ao típico perfil dos empreendimentos formados até meados do século XIX. Afinal, ainda que a conjuntura brasileira das primeiras décadas dos oitocentos tenha sido de limitado crescimento econômico e de pouca inserção comercial, o país constituía-se fundamentalmente como uma economia exportadora, e os grupos mercantis exportadores e importadores respondiam por parte significativa da renda nacional.
Antes da promulgação do Código Comercial, em 1850, foram dezoito as companhias autorizadas a funcionar no país. Esse fato merece uma ressalva, todavia, pois o fato das empresas serem autorizadas a funcionar não significava que tivessem efetivamente entrado em atividade . Nas décadas entre a chegada da Corte e 1850, o Brasil alcançaria sua independência e, por isso, precisaria constituir uma legislação definitivamente própria sobre o tema. O primeiro passo foi dado em 1831, quando decretou-se a lei que extinguia as Provedorias de seguros do Império, estas que obedeciam ainda ao regime da Casa de Seguros de Lisboa. No entanto, foi somente com a promulgação do Código Comercial brasileiro de 1850, dedicando capítulo específico para os seguros marítimos, que o país passou a dispor de regulamento próprio . Eram anos de domínio dos saquaremas no comando da política Imperial brasileira, fase em que se constituiu um arcabouço institucional fundado na ordem e na civilização. (Mattos, 2004; Gambi, 2015).
O Código Comercial significava, portanto, um marco institucional relevante para a economia nacional, definindo regras sobre o transporte e o comércio marítimo, sobre a abertura de companhias de sociedade anônimas e a abertura de empresas comerciais e de seguros, e sobre regras de quebras e falências, dentre outros negócios; mas, vale destacar, o período marcava também uma tendência de retomada do crescimento econômico nacional passadas as primeiras décadas de instabilidade pós-Independência. Seria o momento da abertura das primeiras estradas de ferro do país, da reorganização do sistema financeiro nacional, com a centralização bancária por meio do Banco do Brasil, embebidos pela expansão da cultura do café, a base da riqueza econômica nas décadas seguintes .
Somente na década de 1850, cerca de vinte companhias de seguro nacionais seriam autorizadas a funcionar, tendo como particularidade a formação das primeiras seguradoras destinadas aos seguros de incêndio, de vida e, inclusive, duas voltadas para o seguro de escravos. Talvez o caso mais bem-sucedido de empresa do período tenha sido a Companhia de Seguros Marítimos e Terrestres. Fundada em 1856 no Rio de Janeiro, localidade em que estavam registradas as principais empresas do setor, chegaria a abrir agências em outras sete províncias do país como também em cidades como Montevidéu, Buenos Aires e Londres (Saes; Gambi, 2009, p. 56). De maneira geral, as companhias de seguro não eram tão numerosas se comparadas a outros ramos industriais, como as sociedades anônimas de comércio e de fazenda; tratavam-se, no entanto, de grandes empresas em volume de capital: conforme dados de Maria Bárbara Levy, as seguradas representavam 23,1% do capital das sociedades anônimas transacionadas na Corte entre 1850-1865, atrás em volume de capital apenas do setor bancário e das estradas de ferro (Levy, 1994, p. 56).
Outra importante mudança em curso no período seria a chegada das primeiras empresas estrangeiras de seguros no país, uma tendência observável também em outros setores da economia brasileira, tanto em função da crescente renda exportadora nacional resultante do comércio cafeeiro, como também do maior interesse do capital estrangeiro pela periferia (Rippy, 1966; Stone, 1977; Guimarães, 2012). Para regular minimamente a participação das empresas estrangeiras no setor de seguros, o governo promulgou dois decretos que obrigavam a apresentação de pedidos de autorização de funcionamento e aprovação dos estatutos das companhias estrangeiras - protocolo que era realizado com as seguradoras nacionais -, assim como exigia a publicação anual dos balanços das companhias autorizadas a funcionar (Costa, 2001, p. 26-27).
Entre as décadas de 1860 e 1890, as empresas estrangeiras que se instalaram no país eram fundamentalmente inglesas, nacionalidade igualmente dominante em setores como bancos, companhias de navegação e estradas de ferro (Castro, 1979). No caso das companhias de seguros, observamos também a atuação de firmas portuguesas, compreensível pelo forte nexo comercial entre os dois países e pela maciça presença dos comerciantes portugueses, especialmente na cidade do Rio de Janeiro. As empresas portuguesas, no entanto, teriam menor participação no mercado se comparadas às alemãs, cuja presença se faz mais representativa a partir da década de 1870, já apontando a uma tendência de diversificação da participação da nacionalidade do capital, mais comum nos primeiros anos do século XX .
As duas primeiras companhias estrangeiras instaladas no Brasil, em 1862, foram a Companhia de Seguros Garantia e a Companhia de Seguros Fidelidade, ambas registradas em Portugal. No caso das sociedades inglesas, as primeiras a serem instaladas foram a Imperial Fire Insurance Company em 1863, a The Royal Insurance Company em 1864, e a Liverpool and London Insurance Company em 1866. A partir de então, o mercado antes dominado por empresários brasileiros passou a ser dividido com as companhias estrangeiras: um setor de baixo custo para a entrada e com alta lucratividade, favorável para uma primeira incursão no emergente mercado brasileiro (Costa, 2001, p. 28).
O sistema normativo para o setor de seguros ainda era aquele voltado às empresas de sociedade anônima. Diferentemente dos países da Europa, que vinham constituindo suas legislações para a fiscalização das atividades de seguro, as empresas no Brasil, tanto nacionais como estrangeiras, eram obrigadas - como qualquer outra sociedade anônima - a remeter seus balanços anualmente às juntas comerciais. Isso mudaria com a reforma liberal de 1882, que deixava de exigir o registro das sociedades anônimas, com exceção, contudo, das companhias estrangeiras, das caixas econômicas e dos bancos de circulação, assim como as companhias de seguros mútuos . Mesmo com a exigência dos registros das sociedades anônimas, as companhias estrangeiras se valeram da limitada legislação para estruturar suas operações de acordo com as matrizes no exterior, transferindo seus fundos obtidos por meio de prêmios e provocando evasão de divisas (Alvim, 1980, p. 58-59). Até a Proclamação da República, era esse o cenário de funcionamento das 58 empresas de seguros atuantes no Brasil, segundo o Almanak Laemmert .
O setor de seguros e o crescimento do investimento externo no Brasil, 1889-1914
A vinda do capital estrangeiro para a periferia a partir da década de 1870 corresponde a um momento específico do capitalismo, possível de ser compreendido indiretamente por meio da análise das companhias estrangeiras que aqui abriram suas filiais. A partir de então, o cerne das exportações dos países ricos não estava mais em bens de consumo não duráveis e sim em máquinas e bens intermediários, além de capital monetário e investimentos diretos que não encontravam mais demanda suficiente em seus países sedes.
Essa mudança no perfil das exportações respondia ao excesso de liquidez das companhias europeias, cuja rentabilidade se via ameaçada pelas escassas possibilidades de investimento e absorção do capital excedente. Essa seria uma das características da Grande Depressão de 1873-96, que afetou sobretudo a Inglaterra, mas teve impacto relevante em outras economias europeias em meados da década de 1880. A crise interrompeu o ciclo virtuoso entre produção e consumo ao qual as economias centrais estavam submetidas durante grande parte do século XIX. A magnitude de capitais em busca de investimento produziu a queda da taxa de juros na Inglaterra e em outros países europeus. Paralelamente, a tendência declinante das taxas de lucro e a insuficiência da demanda gerou um processo deflacionário, tendo como resposta a busca por investimentos seguros no exterior . Observa-se, assim, a expressiva participação financeira das companhias estrangeiras, que se engajavam em investimentos de títulos da dívida pública ou em inversões no exterior com perspectivas mais elevadas de lucros.
A mobilização geográfica do excedente em busca de novos espaços de valorização tornava-se então um novo padrão de investimento para os países europeus, cujo grau de amadurecimento do capitalismo possibilitou uma inserção bastante direta nos países periféricos. À época do Imperialismo, o capital estrangeiro seria capaz de comandar empreendimentos e investimentos diretos na periferia, com alto nível de maturidade tecnológica, bem como a ampla disponibilidade de liquidez, tornando possível às empresas outro tipo de extração de excedente, bastante diverso daquele que marcou o liberalismo dos anos anteriores. Para a periferia, o resultado foi a expansão da participação dos investimentos estrangeiros na economia. O serviço de capitais, categoria bastante rígida no balanço de pagamentos brasileiro, aumentou em comparação à quantidade das exportações, de 9,4% em 1861-64 para 12,1% em 1880-92 (Furtado, 1959, p. 189).
O perfil dos investimentos estrangeiros no Brasil no início do período republicano caminhou para uma razoável diversificação. Entre 1889 e 1914 as empresas que migraram para o país variaram em termos de origem e setor de atuação. Os investimentos dominantemente voltados à construção de estradas de ferro passaram a dar espaço para o crescimento do número de companhias de serviços urbanos e de seguros: as últimas representariam 30,7% do capital aportado entre 1886-1896 (CASTRO, 1979, p. 71). No período compreendido entre 1897 e 1902, a participação das companhias de seguros e de serviços básicos atinge cerca de 80 % do investimento total, 19,2% representado pelas seguradoras. Os aportes de capital em outras áreas foram 36,7% de ferrovias, 10% de empresas de iluminação e transporte e 5,3% de portos. (Castro, 1979, p. 71).
Seguindo a tendência de diversificação dos setores com investimentos estrangeiros, a predominância inglesa também apresentou queda relativa na década de 1890. Seria o momento de maior entrada do capital alemão, francês e norte-americano, cuja ascensão se deu em meio à chamada Segunda Revolução Industrial. Em todo caso, apesar da última década do século XIX ser marcada por essa relativa perda de posição do capital inglês, a inserção financeira do país na economia brasileira continuou sendo bastante expressiva: os Rothschilds, por exemplo, continuariam como os fiadores da dívida externa, assim como os bancos e as companhias de seguros inglesas permaneceriam com representativo papel nos negócios realizados no Brasil. Essa foi a tendência de transformação da economia britânica na segunda metade do oitocentos, quando sua balança comercial, apesar de deficitária, era amplamente compensada por superávits na conta de serviços e capitais. Vale dizer que parte considerável do resultado positivo da balança de serviços inglesa era devida aos serviços de empresas, tais como as seguradoras. (Hobsbawm, 2000; Cain; Hopkins, 1993).
A exportação de capital e o estreitamento comercial com os países centrais geraram grandes oportunidades de crescimento para as economias periféricas como a brasileira. Por outro lado, a integração com a estrutura financeira internacional ampliava o cenário de instabilidade da economia nacional, que se tornava mais suscetível às flutuações não somente da demanda dos produtos exportáveis, como também aos fluxos de capital do centro do capitalismo. Assim, as crises cambiais passaram a ser ainda mais comuns e advindas tanto da instabilidade da oferta de financiamento do exterior, bem como dos próprios mecanismos de transferência de valor das companhias estrangeiras, que repatriavam seus lucros, rendas, royalties e dos juros cobrados sobre os títulos da dívida pública. A condição de vulnerabilidade cambial pode ser bem ilustrada pela dificuldade do país em adentrar efetivamente ao sistema do padrão-ouro internacional, fazendo-o apenas após a entrada em funcionamento da Caixa de Conversão em 1906, quando a disponibilidade de recursos estrangeiros permitiu a valorização do câmbio e o controle da inflação (Fritsch , 2014; Franco, 2014; Furtado, 1959).
É interessante notarmos o quanto a referida dependência de produtos agrícolas para sustentar o balanço de pagamentos - e a vulnerabilidade cambial daí subsequente - eram percebidas pelas autoridades econômicas e tidas como condições a serem superadas. Tampouco escapava aos políticos do período o impacto das atividades das empresas estrangeiras no país, cujos lucros ou outras formas de remessas de capital expedidos às matrizes se valiam das reservas cambiais locais, em um movimento financeiro prejudicial à conta de capitais nacional. Nesse sentido, a forte representação do setor de seguros entre as empresas de capital estrangeiro que atuavam no país exigiu que modificações na legislação fossem realizadas após a Proclamação da República. É preciso lembrar que tal período, após a política econômica de Rui Barbosa, apresentava um contexto de desvalorização da moeda nacional, de ampliação do endividamento externo e, portanto, de uma forte pressão sobre o balanço de pagamentos . O setor de seguros permanecia sem nenhuma regulamentação própria até 5 de setembro de 1895, quando por meio da Lei n. 294 foi promulgado o primeiro regulamento de seguros do país .
A regulamentação de 1895 voltava-se para o setor de seguros de vida, ramo pouco conhecido no país e dominado por empresas estrangeiras, mas logo estendido para o restante dos negócios. A lei procurava garantir fiscalização sobre as companhias estrangeiras, exigindo que apresentassem relatórios de suas operações e que aplicassem os prêmios e suas reservas técnicas no país (em imóveis no território nacional, apólices da dívida pública, títulos com garantias da União, hipotecas sobre propriedades, ações de empresas nacionais ou depósitos a prazo fixo) . O receio dos parlamentares que aprovaram a lei era de que empresas estrangeiras, ao remeterem para suas matrizes as reservas acumuladas no país, poderiam encerrar suas operações gerando elevados prejuízos para os segurados, sem que as autoridades pudessem intervir legalmente (Alvim, 1980, p. 60-61; Costa, 2001, p. 37). Para tanto, o Decreto também exigia um depósito de Rs 200:000$000 em moeda corrente no Tesouro Federal ou em apólices da dívida pública; apenas após o depósito, as firmas poderiam receber suas cartas patentes de funcionamento, e o valor total depositado servia como garantia para possíveis contenciosos entre empresa e segurados.
Em certo sentido, a regulamentação de 1895 buscava circunscrever a atuação das empresas estrangeiras, medida também influenciada pela crise econômica do período. Se a desvalorização da moeda nacional, o risco de crise da dívida externa e a pressão internacional sobre o funcionamento da economia deram margem para que o discurso florianista se perpetuasse na política nacional, também levaram os republicanos históricos a buscarem uma agenda de saneamento monetário e estabilização da economia brasileira. Esse processo alcançaria seu auge com a eleição de Campos Sales em 1898 e a ascensão de Joaquim Murtinho ao Ministério da Fazenda. O compromisso do governo com o saneamento da economia ficaria ilustrado com o acordo do funding loan para recuperar a credibilidade internacional e retomar o acesso ao mercado internacional de capitais, tendo como consequência o compromisso do governo com uma política de estabilização de grande envergadura: a inflação foi contida com a retirada de moeda de circulação, a economia sofreu uma retração brusca entre 1898-1900, a alfândega e as ferrovias brasileiras ficariam penhoradas .
Foi nesse ambiente que o Decreto de 1895, voltado apenas às empresas de seguros de vida internacionais, seria ampliado para atender os outros ramos do setor, tornando-se a primeira grande legislação exclusiva para as companhias de seguros, nacionais e estrangeiras. O Decreto n. 4.270, de 10 de dezembro de 1901, e seu regulamento anexo, conhecido como “Regulamento Murtinho”, regulamentaram o funcionamento das companhias de seguros de vida, marítimos e terrestres, nacionais e estrangeiras, já existentes ou que viessem a se organizar no território nacional. Além de estender as normas de fiscalização a todas as seguradoras que operavam no País, o Regulamento Murtinho criou a “Superintendência Geral de Seguros”, subordinada diretamente ao Ministério da Fazenda (dividida, depois, entre a Superintendência de Seguros Marítimos e Terrestre e a Superintendência de seguros de vida) .
Com a criação da Superintendência, foram concentradas numa única repartição especializada, todas as questões atinentes à fiscalização de seguros, antes distribuídas entre diferentes órgãos. Sua jurisdição alcançava todo o território nacional e, de sua competência, constavam as fiscalizações preventiva, exercida por ocasião do exame da documentação da sociedade que requeria autorização para funcionar, e repressiva, sob a forma de inspeção direta, periódica, das sociedades. Posteriormente, em 12 de dezembro de 1903, através do Decreto n. 5.072, a Superintendência Geral de Seguros foi substituída por uma Inspetoria de Seguros, também subordinada ao Ministério da Fazenda, mantendo, contundo, as mesmas atribuições .
Segundo Marcelo de Paiva Abreu e Felipe Tâmega, o Regulamento Murtinho possuía aspectos xenófobos pois discriminava as empresas estrangeiras e colocava-as sob a jurisdição das leis brasileiras, levando ao enfraquecimento destas no setor (Abreu; Fernandes, 2010, p. 9). O caráter xenófobo apresentado pelos autores pode ser questionado, considerando que o regulamento Murtinho determinava as mesmas exigências às empresas nacionais e estrangeiras, tais como os depósitos de Rs 200:000$000, o teto de 20% do capital realizado para cada contrato de seguro assumido e a apresentação de relatórios semestrais para a Superintendência. As empresas já estabelecidas seriam obrigadas a realizar esse depósito num período de sessenta dias. As exigências específicas para as empresas estrangeiras visavam garantir aos segurados nacionais os serviços contratados; por exemplo, a exigência de que a empresa possuísse sede no país, com um agente principal no Rio de Janeiro, e que realizasse o mesmo depósito de Rs 200:000$000 necessário para seu funcionamento .
O sentido da legislação, portanto, deve ser compreendido a partir do receio da instabilidade econômica que marcou o período republicado, ainda que de fato o número de empresas estrangeiras no setor tenha decrescido. Conforme os dados de Ana Célia Castro, a participação das empresas de seguros no total das empresas estrangeiras constituídas entre 1903-1913 teria caído para menos de 1% (Castro, 1979, p. 132). No Relatório do Ministério da Fazenda de 1901, ao justificar a importância de estabelecer maior controle sobre o setor de seguros por meio do decreto n. 4.270, Joaquim Murtinho faz referência ao cenário do Encilhamento, em que: “Companhias havia que compromettiam os capitais entregues à sua guarda em ruinoso jogo de bolsa e outas especulações identicas” .
Após a promulgação da legislação de 1901, as companhias estabelecidas no Rio de Janeiro que fizeram o depósito de 200 contos de réis para garantia de suas operações foram: Companhia Argos Fluminense, Previdente, Vera Cruz, Confiança, Garantia, Mercurio, Integridade, Indemnisadora, Nacional do Seguro Mutuo, Varegista e União dos Proprietários. Pediram prazo para assumirem tal exigência a Vigilancia, Lloyd Americano, Geral de Seguros e Prosperidade . Por outro lado, nenhuma das companhias estrangeiras que possuíam agências no Rio de Janeiro aceitou a nova legislação, e o Relatório do Ministério da Fazenda pressupõe que teriam esgotado suas atividades no país. Dentre as companhias nacionais, apenas A Equitativa não aceitou as novas mudanças. Outras duas, Atalaya e Bonança, entraram em liquidação. Em oposição ao Regulamento Murtinho, especialmente no que diz respeito às regras que impediam às seguradoras concederem seguros de vida e de outras categorias ao mesmo tempo, a Equitativa publicou na imprensa suas opiniões contrárias à nova legislação. Nos outros estados, outras 19 companhias aderiram ao novo regulamento, sendo 7 no Pará, 4 em Pernambuco, 3 no Maranhão, 2 na Bahia e no Rio Grande do Sul e 1 no Ceará. As companhias estrangeiras, entretanto, não aceitaram o regulamento e foram proibidas de manter seus negócios (Abreu; Fernandes, 2010, p. 10).
Leopoldo de Bulhões, o Ministro da Fazenda sucessor de Joaquim Murtinho, alegaria que o regulamento de 1901 havia efetivamente “ferido a liberdade” das companhias estrangeiras . O setor de seguros, todavia, não deixou de crescer no período. As aproximadamente trinta companhias em funcionamento no início do século, com um capital realizado de 13 contos de réis, passariam em 1904 a cinquenta e uma empresas, quarenta nacionais e onze estrangeiras . Em 1906, o número total caiu para quarenta e nove empresas, com 20 contos de réis de capital realizado no Brasil . Em 1908, funcionavam cinquenta e uma companhias, quarenta nacionais e onze estrangeiras; em 1909 encontramos quarenta e seis empresas, trinta e quatro nacionais e doze estrangeiras .
A menor participação das companhias estrangeiras pode estar relacionada, dentre outros motivos, à legislação restritiva de Murtinho. Outros Ministros da Fazenda se refeririam ao seu Regulamento como “rigoroso”; afirmou-se também que o governo brasileiro não poderia ficar indiferente à crescente especulação por parte das empresas estrangeiras, que assumiam amplos compromissos no Brasil e desviavam as reservas destinadas aos pagamentos de sinistros para fora do país. Sob a administração de Murtinho, empresas cujo capital realizado resultava em Rs 200:000$000 assumiam responsabilidades no valor de Rs 55.000:000$000 . O sistema de fiscalização inaugurado tinha como objetivo central acabar com tais circunstâncias.
A proibição de acumulação de funções por parte das companhias, distinguindo-se de forma rígida a concessão de seguros de vida dos seguros terrestres ou marítimos, era, para Murtinho, característica das seguradoras de outros países. Segundo o Ministro, a criação da Superintendência tinha dentre seus objetivos esclarecer o funcionamento das sociedades estrangeiras, cujas atividades no Brasil eram marcadas por pouca publicidade e prestação de contas. Nas suas palavras:
Ao contrario do regimen de maior publicidade, adoptado nos paizes onde ellas tem as suas matrizes, ou naquelles em que funcionam como simples agencias, as companhias estrangeiras no Brazil cercearam sempre suas operações e sua vida de um segredo impenetravel, de modo a não se poder julgar com segurança dos seus processos, dos seus capitaes e das suas reservas (Brasil. Relatório do Ministério da Fazenda, 1901, p. 280).
Segundo o próprio Murtinho, dentre todas as trinta companhias de seguros estrangeiras funcionando no Brasil apenas uma constou como tendo pago os impostos devidos na Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro; de acordo com os dados apresentados, todas as empresas nacionais, ao contrário, teriam pago.
É fácil notar a pressão das companhias de seguros nacionais contra a participação das empresas estrangeiras no emergente mercado brasileiro, e muitas se manifestaram publicamente contra a concorrência do capital estrangeiro. No Relatório de 1901, Murtinho cita o caso da diretoria da Companhia Vigilancia, que publicou em seu relatório de 1891 o seguinte texto:
As companhias nacionais continuam assoberbadas pela concurrencia de agencias da companhias estrangeiras, e nada teríamos a oppor a essa liberdade, si, niveladas quanto a direitos, também estivessem a nós equiparadas a deveres. Infelizmente, assim não succede, e dessa desigualdade emanam taes inconvenientes, que chegam a fallar ao patriotismo do poder publico, pedindo a sua intervenção nesse grave e momentoso assunpto (Brasil. Relatórios do Ministério da Fazenda, 1901, p. 282).
A esse respeito também tratou a Companhia Prosperidade:
Esforçam-se as companhias nacionaes por merecer a confiança de todas as classes, como o demonstram os seus relatórios; infelizmente, porém, continuamos a encontrar os maiores embaraços na propaganda feita em favor das companhias estrangeiras. O exportador não se contenta com o seguro de toda a exportação de café, ainda impõe ao ensacador a ao commissairio o seguro em transito pelos armazéns a titulo de maior garantia. Parece, à primeira vista, não haver diferença alguma para o commercio, em segurar nas companhias estrangeira de preferencia às nacionaes, mas é um engano que a razão esclarecida dos negociantes não tardará em reconhecer, mormente quando se capacitarem de que não prejudicam somente companhias nacionaes, mas sim também a praça desta capital, porque mais de dous mil contos de prêmios são enviados anualmente ao estrangeiro, não fallando no seguro de exportação que monta a milhares de contos (Brasil. Relatórios do Ministério da Fazenda, 1901, p. 282).
Após a entrada em vigor do Regulamento, Murtinho buscou defender a legislação sancionada e afirmou que o capital realizado das companhias nacionais da praça do Rio de Janeiro passou de Rs 4.200:000$000 para Rs 6.500:000$000. Ao referir-se ao funcionamento das companhias de seguros nacionais para o ano de 1900, Murtinho apresenta os seguintes dados: sinistros equivalentes a Rs 1.200:000$000 sobre uma responsabilidade assumida de incríveis Rs 952.048:000$000, produzindo como prêmios cerca de Rs 3.000:000$000. Os acionistas obtiveram prêmios que variaram de 8% a 40%.
Os rumos da legislação recém promulgada e das companhas estrangeiras ainda sofreriam novas mudanças. Em 1903, sob a presidência de Rodrigues Alves, Leopoldo de Bulhões assumiu o Ministério da Fazenda. Apesar de sua administração pouco ter mudado em relação à de Joaquim Murtinho, Bulhões apresentou divergências no que diz respeito à regulação do capital estrangeiro. Afirmou o novo Ministro da Fazenda:
Porque companhias nacionaes desviavam as reservas destinadas ao pagamento de sinistros em ruinosas especulações da Bolsa, acarretando desastrosas liquidações; porque outras, extrangeiras, praticavam tal ou qual abuso, a necessidade de legislar levou-nos a exigências, que se poderiam classificar de impertinentes, se não constituíssem antes verdadeiras disposições proibitivas (Brasil. Relatório do Ministério da Fazenda, 1902, p. 101).
O argumento da ausência de capitais esteve por detrás dos apelos pela mudança de legislação:
Sem attenção às condições de tempo e de logar, e, principalmente, a de sermos um país novo, onde os capitais escasseam sempre, sendo necessario recorrer constantemente ao extrangeiro, creamos uma legislação, cujo menor inconveniente é ser de todo ponto illusoria nos seus intuitos (Brasil. Relatório do Ministério da Fazenda, 1902, p. 102).
Leopoldo de Bulhões se referia ainda à impossibilidade de os saldos ociosos das companhias de seguros serem produtivamente empregados no Brasil, dada a indisponibilidade de investimentos e a pouca quantidade de negócios num país tão jovem:
Essa legislação, se afugenta do país as companhias extrangeiras, pela impossibilidade de empregarem nelle todas as reservas que produzirem todas as sua apólices (...), não tem ao menos o merecimento de evitar que os cidadãos desse paiz façam inscrever os seus seguros em companhias estrangeiras, com selos fora dele (Brasil. Relatório do Ministério da Fazenda, 1902, p. 101).
Cabe aqui considerarmos a percepção do novo Ministro no que diz respeito às possibilidades de investimento que o Brasil da época oferecia; ser um país recém-saído do pacto colonial, pouco industrializado e com ausência de capitais parecia, para Bulhões, características que apenas afastariam companhias estrangeiras, que pelos poucos focos produtivos deixariam de investir no nosso território. Por outro lado, a capacidade de absorção de novos capitais por uma economia periférica do século XIX pode ser considerada muito mais ampla e abrangente do que aquela encontrada no centro; o debate a esse respeito está presente na discussão indireta travada entre Joaquim Murtinho e Leopoldo de Bulhões. Em última instância, tem-se entre ambos os Ministros diferentes visões a respeito do investimento em uma economia jovem e periférica.
Em 1903, o Regulamento Murtinho passou a ser taxado como inconstitucional por algumas companhias; a pressão destas últimas foi importante para que a nova legislação fosse revogada. Pelo Decreto n. 5.072, de 12 de dezembro de 1903, a Superintendência Geral de Seguros Terrestres e Marítimos foi revogada e substituída por uma instituição mais modesta, dependente do Ministério da Fazenda e sob o título de Inspetoria de Seguros. Funcionariam ainda sub-inspetorias regionais, em oposição ao Regimento, considerado excessivamente centralizador . Segundo Leopoldo de Bulhões:
Envolver o governo na gestão dos negócios das companhias, seria attribuir-lhe para com terceiros uma responsabilidade, pelo menos moral, que não lhe cabe, não se devendo supor que ele a possa assumir. (...) o rigorismo excessivo occasionaria o retrahimento de capitaes e o prejuízo da própria rendas do Thesouro (Brasil. Relatório do Ministério da Fazenda, 1903, p. 108).
O Congresso nacional aprovou as modificações propostas pela legislação de 1903; de fato, houve até mesmo a flexibilização das regras por parte do Legislativo. O documento enviado previa que as companhias de seguros terrestres e marítimas não assumissem riscos em cada seguro isolado superiores a 40% de seu capital. Segundo o texto aprovado pelo Congresso:
A essas companhias, porem, será lícito excederem esses limites, desde que o excesso seja, no mesmo dia da emissão da apólice, ressegurado em outra companhia que esteja autorizada a funcionar e isto conste da apólice emitida (Brasil. Relatório do Ministério da Fazenda, 1903, p. 109).
O artigo 70 da referida lei estabelecia que todas as companhias de seguro nacionais e estrangeiras são iguais perante a lei fiscal; segundo Leopoldo de Bulhões, a distinção anterior, de autoria de Joaquim Murtinho, seria “um vexame, ou, melhor, uma lesão de direito, contra a qual os tribunaes se pronunciariam, enfraquecendo assim a lei e a autoridade encarregada de executal-a” . Afirmou Bulhões:
O systema consagrado no regulamento vigente permittio que algumas companhias extrangeiras voltassem a funcionar no paiz e continuar suas operações. Esse facto, ao contrário dos que pensam os adeptos de uma nativismo prejudicial aos paizes novos e aos próprios interesses commerciais, vem corroborar a confiança nos poderes públicos (Brasil. Relatório do Ministério da Fazenda, 1903, p. 111).
E a respeito da importância da concorrência entre as companhias:
Só a concorrência pode alentar o commercio de seguros e a confiança que taes contatos exigem, não a obtem as associações pela circumstancia da nacionalidade a que pertençam, mas por um systema de garantias que faça realçar a probidade de suas administrações, a realidade do capital e a segurança de suas transacções.
Em 1904, constatou-se insuficiência de pessoal para o trabalho na Inspetoria de seguros. Criou-se então subinspetorias, de modo que as tarefas pudessem ser divididas entre a União e os governos estaduais . Com o passar dos anos, é possível visualizar o resultado da queda do Regulamento Murtinho e da implementação da nova legislação que regulasse o setor; a partir de 1903, aos poucos as companhias de seguros estrangeiras voltaram a operar no Brasil. O número, no entanto, até a Primeira Guerra Mundial, nunca mais voltou a ser como antes da legislação de Murtinho. Conforme desenvolvia-se a estrutura financeira nacional, ampliavam-se as possiblidades de inserção das companhias de seguros, cujas apólices vendidas refletiam os investimentos levados adiante no Brasil. Como dito acima, a legislação desse setor respondia de maneira bastante direta às mudanças econômicas sofridas pelo país, e até o ano de 1914 não ocorreram novas mudanças no corpo de leis regulador do setor. Podemos considerar que os avanços, disputas e conflitos em torno da formulação de um corpo de leis capaz de coordenar o funcionamento do mercado de seguros no Brasil diziam respeito à construção dos laços capitalistas locais.
As companhias de seguros: da dinâmica mercantil aos negócios financeiros
Como dito acima, ao longo da segunda metade do século XIX as companhias de seguros que vieram para o Brasil ampliaram as categorias das apólices concedidas: passaram da concessão majoritária de seguros marítimos para outras modalidades como fogo, vida, escravos, operários, bens móveis e imóveis. A diversificação das atividades dessas empresas, no entanto, foi mais ampla e passou a incluir uma significativa participação na esfera financeira, que incluía concessão de crédito, compra de títulos da dívida pública, emissão de debêntures e até mesmo formação de poupança para previdência particular. Essa atuação financeira pode ser considerada característica notável bastante encontrada nas fontes primárias analisadas, a serem agora apresentadas.
Em 04 de novembro de 1882, promulgou-se a lei de número 3.150, que passou a exigir a publicidade das mudanças e reformas de estatutos de quaisquer companhias, nacionais ou estrangeiras . A partir de então os aumentos e reduções de capitais, as alterações nas regras dos Conselhos e Assembleias e as mudanças no valor dos dividendos seriam informações conhecidas e acessíveis via imprensa. Desde os estertores do Império, quando já era notável o movimento de entrada de capital estrangeiro no Brasil, notava-se por parte do governo a preocupação em adequar leis e atos do poder executivo ao melhor rendimento das companhias, flexibilizando as medidas que pudessem afastar investidores do território nacional. O conteúdo da coleção de leis e dos decretos federais a partir de 1889 nos parece bastante claro nesse sentido, como nos momentos em que se permitiu a elevação de capital de sociedades forâneas. A Companhia de Seguros Terrestres União dos Varegistas obteve, em janeiro de 1889, a permissão para elevar seu capital em até Rs 1.000:000$000, dividindo-o em 5.000 ações de Rs 200$000 cada uma . O limite ao aumento do capital de fundo das companhias era na maior parte das vezes determinado pelos próprios estatutos internos, como no caso da alemã Mannheimer Versicherunggesselschaft, que permitia aumento das emissões, porém apenas após a realização de ao menos 25% do capital nominal .
A Imperial Fire Insurance Company, formada em 1803 na Inglaterra com o capital de um milhão e duzentas mil libras, ampliou seus negócios para o Brasil em setembro de 1863. A companhia incialmente concedia seguros para navios e embarcações em construção ancorados nos portos e docas, mas os seguros podiam se estender para navios em atividade, mercadorias por eles transportadas, edifícios e fazendas danificadas por fogo. Mesmo antes de sua expansão em direção à periferia do capitalismo, a sociedade já se propunha a realizar tais atividades em qualquer lugar do mundo .
De acordo com uma mudança de estatuto verificada em 1892, após a vinda da Imperial Fire para o Brasil, a companhia ampliou suas atividades e passou a realizar operações de seguro de acidentes de todos os ramos, e de fato se engajou em participações financeiras. As atividades previstas incluíam fusão com outras companhias, além da compra e absorção de operações com seguro de vida de outras sociedades e concessão de resseguros e contrasseguros. No que diz respeito às suas atividades no mercado de capitais, a atuação foi diversificada; empréstimo, depósito e adiantamento de dinheiro, títulos e bens, além de emissão, saque e aceite de letras de câmbio, notas promissórias e debêntures. Para além da convencional emissão, compra e venda de títulos, a companhia aprofundou sua dimensão financeira ao prestar serviços a outras sociedades auxiliando-as a vender, possuir ou remeter seus próprios títulos e ações. A Imperial Fire assumia a possibilidade de dirigir e fiscalizar os negócios de companhias em crise, em uma denominada “concessão recíproca” que abarcasse os interesses de ambas as partes. O auxílio prestado era definido como a realização de uma “sociedade ou ajuste para participar dos lucros, função de interesses, empresa ou cooperação com qualquer pessoa ou companhia (...) capazes de serem dirigidas de maneira direta ou indireta, beneficiar esta companhia e possuir (...) ações, ou capital, ou títulos, e subsidiar, garantir as apólices e contratos, e por outra forma auxiliar essa dita companhia e vender, possuir e remeter (...) e negociar com essa ações” .
Se a participação das firmas estrangeiras em atividades subsidiárias à sua atuação original foi expressiva, deve-se levar em consideração o engajamento das elites locais nesses empreendimentos, situação característica das economias latino americanas do final do século XIX e início do XX. As empresas de serviços, crédito, a construção imobiliária e a especulação com a terra destacam-se como áreas onde os setores nacionais estiveram presentes, submetidos às sociedades estrangeiras. A Imperial Fire teve participação ativa no mercado imobiliário, e prevê em seu estatuto “adquirir, arrendar, trocar, alugar, ou de qualquer forma adquirir quaesquer bens moveis ou imóveis em qualquer parte do mundo e quaesquer diretos ou privilegios que a companhia possa julgar necessario ou conveniente (...)” .
A companhia comprometia-se a reter as 400 mil libras que excedessem o capital realizado, de modo a formar um fundo de reserva para fazer face às possíveis reclamações contra as transações dos negócios . A busca por financiamento deveria ser realizada preferencialmente via debêntures. Os títulos estavam sujeitos a serem emitidos com um desconto, prêmios ou mesmo “privilégios especiais” .
A referida participação financeira das companhias de seguro incluiu a compra dos títulos da dívida pública nacional, que cresceu cerca de 53% na primeira década republicana (Villela; Suzigan, 1973). É o caso da Companhia de Seguro Mútuo contrafogo Americana, formada em novembro de 1891 com sede no Rio de Janeiro, que segurava propriedades móveis e imóveis, urbanas ou rurais. De acordo com seu estatuto, estavam previstos os seguros de “theatros, engenhos de café, canna de assucar e de serra, a vapor ou a mão, fabricas, officinas, salas e casas de espectaculos públicos e particulares, depósitos ou laboratórios (...) assim como mercadorias embarcadas, por mar ou por terra, em vias férreas, para qualquer ponto do paiz ou do estrangeiro, as quaes serão garantidas dos riscos de incendio, naufrágio, ou desastre casual” .
A referida sociedade mostrou predisposição para o envolvimento no mercado imobiliário e financeiro; fazia empréstimos sobre hipotecas de prédios urbanos, comprava e vendia apólices de outras sociedades, e alimentava a especulação imobiliária, em ascensão no Brasil pós Encilhamento, através da construção de prédios em terrenos de terceiros, para venda imediata ou obtenção de aluguéis. Estavam previstas ainda as compras de ações, títulos e debêntures de bancos e companhias, bem como sua venda em momento apropriado. Comprava, vendia e descontava títulos da dívida do Governo Federal, e emprestava dinheiro sobre penhores de ouro e prata. O envolvimento com as obras de grande porte e com empresas de serviços públicos ocorria via liderança da Companhia de Seguro contrafogo Americana em contratar “empreitadas” para construção de vias férreas, engenhos centrais, vilas, empreendimentos agrícolas, arrasamento de morros e abertura de ruas e calçamentos. Para finalizar suas amplas possibilidades de financiamento e investimento, estavam os empréstimos a “industriaes para a execução e desenvolvimento de qualquer invento proveitoso” .
Os prêmios obtidos pela Companhia eram depositados a juros em conta corrente em bancos considerados “de confiança por parte da diretoria” . Os eventuais pagamentos de sinistros eram normalmente abatidos do fundo de reserva ordinário, cuja obrigação de abastecimento vinha antes dos pagamentos de dividendos. Porém, para além desse fundo, fazia-se necessário formar um fundo de reserva extraordinário, para o caso dos recursos dos prêmios e do fundo de reserva ordinário não serem suficientes para o pagamento de danos. O empréstimo seria pedido pela diretoria e poderia ser de até Rs 1.200:000$000 com prazo de cinco anos e com juros de 8% ao ano.
A Companhia de Seguros Mútuos Colombo, criada em julho de 1892, no Rio de Janeiro, é outro exemplo: trabalhou para além dos seguros para incêndio, tendo também se envolvido em empréstimos a particulares sob garantia de hipotecas de edifícios, além de ter financiado o Estado via compra de títulos da dívida federal e estadual .
Em fevereiro de 1892, o Ministério dos Negócios da Agricultura, Commercio e Obras Publicas abriu um crédito no valor de Rs 299:237$537 destinado à liquidação de suas dívidas; além de pessoas físicas, são citados como credores algumas empresas do setor: por exemplo, a Companhia de Seguros Fidelidade é credora do Ministério desde 1890, numa dívida cujo total de Rs 8:517$935 fora destinado a prêmios de seguros marítimos e materiais importados utilizados pelo governo .
Os juros recebidos pelos títulos da dívida pública eram, na comparação com outras fontes de ativos dos balanços das companhias, bastante expressivos. Raramente, no entanto, ultrapassam os ganhos obtidos com os prêmios. Citamos como exemplo alguns casos: a Companhia Geral de Seguros, sociedade brasileira formada no Rio de Janeiro em 1878, recebeu Rs 241:792$230 referentes a prêmios de seguros terrestres e Rs 183:849$070 em seguros marítimos, totalizando Rs 425:641$300. Os ganhos com juros totalizaram Rs 12:500$000, referentes a 250 apólices da dívida pública no valor de Rs 1:000$000 cada . A Companhia de Seguros Marítimos e Terrestres Indemnizadora, em balanço referente ao ano de 1893, recebeu Rs 67:304$230 em prêmios de seguros marítimos e Rs 45:121$460 em terrestres, num total de Rs 112:425$690. O recebimento de juros, por outro lado, fez-se em cima de 94 letras hipotecárias do Banco de Crédito Real de São Paulo, equivalentes a Rs 282$000, 120 apólices da dívida pública com juros de 5%, equivalentes a Rs 3:000$000 e 30 apólices com juros de 4% em ouro, equivalentes a Rs 1:383$100. O ativo vindo dos juros da dívida pública para o ano de 1893 totalizava Rs 7:523$900, menor, portanto, que os recursos recebidos via cobrança de prêmios .
Essa mesma companhia, no referido ano de 1893, queixa-se das escassas operações com seguros marítimos de exportação ou importação decorrentes da instabilidade política em torno da Revolta da Armanda, cujos efeitos seriam “apathia do comércio”. A situação instável teria levado a Sociedade a não distribuir dividendos no segundo semestre daquele ano; segundo Relatório apresentado à Assembleia Ordinária em abril de 1894, são justamente os seguros marítimos os que melhor remuneravam as companhias de seguros, e os que produzem melhores prêmios. Os seguros terrestres, sobretudo os dos prédios, dariam resultado pouco expressivo, incapazes de compensar as responsabilidades assumidas pela Companhia ao longo do referido ano .
A Companhia de Seguros Marítimos e Terrestres Prosperidade, sociedade brasileira formada no Rio de Janeiro em 1887, publicou no seu balanço de 1895 ganhos de Rs 242:730$405 com prêmios; apesar de não haver a descrição dos juros obtidos com os títulos da dívida pública, as apólices desta última totalizaram Rs 50:875$380 . Dez anos após a abertura de sua matriz no Rio de Janeiro, a companhia possuía filiais em Curitiba, Santos e São Paulo. A agência de Curitiba era comandada pelo chefe de um grande estabelecimento de erva mate local, cujo amplo comércio com as Repúblicas do Prata permitiu à Companhia de Seguros Marítimos e Terrestres Prosperidade substituir as sociedades estrangeiras na concessão de seguros ao mate exportado do Paraná .
A concessão de seguros às propriedades urbanas, fossem particulares ou do governo, era frequente desde o final do Império. A Companhia de Seguros Mútuos contrafogo Esperança, cujo funcionamento remete a 1889, tinha como fim a venda de seguros mútuos para proprietários que quisessem garantir de maneira recíproca as perdas advindas de incêndios, além de segurar os aluguéis dos prédios da Corte (ainda no Império), bem como aqueles de propriedade do novo governo republicano. Novamente, nos deparamos com a utilização dos fundos de reserva para compra de apólices da dívida pública ou letras hipotecárias de sociedades de crédito real . Os prêmios obtidos através dos diferentes seguros eram recolhidos por meio de bancos, definidos pelo diretor, de acordo com o conselho fiscal, e lá depositados a juros de conta corrente .
O fundo de reserva não deveria ultrapassar os Rs 200:000$000. Se passasse desse valor, o montante poderia ser utilizado para pagamento de dividendos. Notamos, novamente, a importância do Fundo de Reserva como instituição financeira cuja manutenção vinha à frente até mesmo da distribuição dos dividendos.
No caso de liquidação da companhia ou findo seu prazo de funcionamento, no caso específico, isto é, 50 anos de funcionamento, o fundo poderia ser dividido entre acionistas. Como no caso de muitas outras companhias, o fundo de reserva estava sujeito a ser liquidado no caso dos pagamentos de sinistros superarem os rendimentos com prêmios .
O interesse de companhias de navegação pela concessão de seguros também se fez presente. Citamos o caso da Companhia Comércio e Cabotagem, formada no Rio de Janeiro em abril de 1891, cujo fim principal era estabelecer o serviço de cabotagem na costa brasileira, com navios à vela ou vapor, além de “fomentar e dar o mais amplo desenvolvimento ao serviço marítimo intermediário, na bahia do Rio de Janeiro e em outros portos (...) e comerciar, por conta própria, em generos alimentícios” . Além dos objetivos acima descritos, outras atividades como construção e aquisição de estaleiros para construção de navios, fretes de embarcações e amplo envolvimento em operações de seguros e resseguros das mercadorias embarcadas nos navios da companhia, bem como de outras sociedades, também eram realizadas. Como de fato se passou com outras companhias de navegação, a Cabotagem engajou-se em atividades financeiras em operações sobre títulos, descontos, redescontos e penhor mercantil .
O processo de construção do setor de seguros, bastante almejado, era desde o início da constituição da Companhia algo previsto de ser realizado. Um fundo especial de seguros seria formado, e quando atingisse a soma de Rs 3:000$000, as cotas destinadas semestralmente aos seguros de navios seriam distribuídas aos acionistas como dividendo especial . Enquanto o fundo especial de seguros não estivesse formado, a companhia seguraria seu capital flutuante e bens imóveis via sociedades nacionais ou estrangeiras .
A Companhia Comércio e Cabotagem pode ser citada como exemplo de sociedade que se financiava, já no início da primeira década republicana, via emissão de debêntures. Estas últimas eram títulos relativamente recentes na economia brasileira, e cabe aqui tratarmos a respeito das possibilidades de financiamento do capital privado de então. Desde 1882, ano em que foi revogada a Lei dos Entraves de 1862, tornou-se possível às sociedades anônimas brasileiras ou instaladas no Brasil organizarem-se sem a autorização legislativa do governo; para o caso das companhias de seguro ou quaisquer outras instituições cujos interesses financeiros fossem muito expressivos, a autorização prévia continuava a ser necessária. É possível interpretar a revogação da Lei dos Entraves como o entendimento, por parte do governo na década de 1880, da impossibilidade de empresas em formação disporem de capacidade própria de financiamento. É nesse contexto em que foram autorizadas novas opões de captação de recursos, como a emissão de debêntures (Levy, 1994, p. 115).
Os títulos emitidos pelas empresas, no entanto, sofriam forte concorrência com a ampla disponibilidade de apólices da dívida pública estatal, cuja emissão cresceu de forma significativa a partir da década de 1870. O expressivo crescimento da compra de títulos públicos tornava-se um padrão de investimento, sobretudo em uma época de crise do capital cafeeiro do Vale do Paraíba fluminense; a produção agrícola não mais era uma opção rentável para os proprietários fundiários do Rio de Janeiro, que se sentiam seguros mantendo suas reservas sob a dívida nacional. Como consequência, tem-se que a imobilização de recursos em títulos públicos, no contexto de uma economia muito pouco monetizada como a brasileira de então, redundou em escassez de numerário e crise de liquidez, característica que acompanha os anos entre 1870-1890 (Tannuri, 1981, p. 30).
É sob a referida crise de liquidez que serão implantadas as reformas de Rui Barbosa, que dentre outras medidas propôs que se lastreasse a moeda emitida em títulos da dívida pública, e não mais em ouro; as reservas metálicas deveriam ser utilizadas para monetizar o grande território nacional, remunerar a mão de obra livre e constituir o capital fixo e circulante do país. A manutenção do padrão ouro, segundo o primeiro Ministro da Fazenda republicano, serviria apenas para manter entesourados os metais necessários à modernização monetária. Os títulos passam então a ter sua oferta no mercado restrita, situação que contribui para que a elite brasileira, acostumada apenas com os títulos estatais, se veja obrigada a procurar outros ativos como debêntures e ações (Levy, 1994, p. 128).
A colocação de títulos privados no mercado brasileiro era, à época, uma novidade com relativa dificuldade de aceitação. Os bancos de crédito real, cujo principal objetivo era o de servir à lavoura, não foram bem-sucedidos e acabaram por deixar de funcionar; o Banco de Crédito Popular, criado sob o ministério de Rui Barbosa em 1890 e transformado em Banco Hipotecário em 1893, não teve grande sucesso. Segundo o Relatório do Ministério da Fazenda de 1912, não era possível aos bancos hipotecários exercerem suas funções por ser o Brasil um país pobre, sem economias e sem possibilidades de absorver uma ampla emissão de letras hipotecárias. Estas últimas não eram capazes de competir com os títulos da dívida do governo, oferecidos ao público com praticamente as mesmas vantagens das letras hipotecárias e com maiores garantias. O pequeno capital disponível, fruto da pequena poupança nacional, optava pelos títulos mais garantidos e conservadores; é nesse contexto que a instituição da hipoteca não pôde salvar a lavoura decadente de café do Vale do Paraíba .
Conclusão
O presente artigo teve como principal objetivo chamar atenção ao impacto das companhias de seguros, nacionais e estrangeiras, no processo de formação do capitalismo brasileiro do final do século XIX e início do XX. A trajetória de muitas das sociedades estudadas revela uma transição da dinâmica majoritariamente mercantil ao aprofundamento financeiro, num processo bastante emblemático e explicativo do período em questão. A maior participação financeira das seguradoras, a princípio engajadas apenas no comércio marítimo e terrestre, pode nos revelar o amadurecimento da produção capitalista da última década do século XIX: as inovações tecnológicas, bem como a expansão geográfica dos negócios e o aumento do mercado consumidor, fizeram da ampliação dos circuitos de crédito uma nova condição. O aumento das transações financeiras e novas possibilidades de financiamento, público e privado, estão dentre as consequências mais notáveis desse processo.
Como apresentado ao longo do texto, a atuação financeira das companhias de seguros baseou-se sobretudo na sistemática compra de títulos da dívida pública do Estado. Essa foi a principal atividade por meio da qual buscaram manter ativas suas poupanças e fundos de reservas, impedindo a permanência de saldos ociosos. Mas também pudemos observar a compra de títulos particulares, a emissão de debêntures, a formação de fundos de pensão e poupança e até mesmo organização de sorteios e loterias. Em menor escala, comprovamos a compra de letras hipotecárias, aquisição de propriedades urbanas ou rurais e concessão de crédito para o sistema produtivo.
Consideramos, por fim, que a entrada de seguradoras estrangeiras, cuja proporção dentre os diferentes setores do capital aqui aportado, como dito acima, representou cerca de 30% entre as décadas de 1886 e 1896, alterou de maneira estrutural o andamento da economia brasileira em um momento bastante emblemático, quando seus laços capitalistas estreitavam-se via abolição da escravidão, formação de um mercado de trabalho, construção de uma poupança nacional e de um mercado de capitais, bem como de estruturas jurídicas e instituições políticas que auxiliassem a acumulação.
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(2)
É representativo o fato dos seguros terem sido tratados como um capítulo das legislações marítimas originárias do renascimento comercial, tais como o Consulat de la Mer, as Ordenanças de Barcelona (1435), de Philippe de Borgonha (1458), de Veneza (1468), entre outros. Cf. Instituto de Resseguros do Brasil (1944) e Alvim (1980).
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(3)
Para o tema da história dos seguros, conferir: Alvim (1980); Magalhães (1997) e Alberti (2001).
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(4)
Os dados para o período foram retirados de Saes e Gambi (2009). O levantamento das Companhias de Seguros naquele trabalho baseou-se nos decretos selecionados a partir da Relação de sociedades mercantis autorizadas a funcionar no Brasil, livro elaborado pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, e pelo Almanack Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, o Almanack Laemmert. (Brasil, 1947); Almanack Laemmert (1844-65).
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(5)
Brasil (1850). Cf. Costa (2001, p. 24-25). Vale destacar que no caso do Código Comercial estava em jogo a construção de balizas para o funcionamento do setor, mas não de um sistema de intervenção no mercado de seguros, que seria pensado somente a partir de 1852, com uma legislação do estado do Massachusetts, disseminada posteriormente para outros países. Cf. Alvim (1980, p. 46).
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(6)
Para o crescimento econômico brasileiro do período, conferir Furtado (1959). Para a importância do Código Comercial para os negócios no período, conferir Levy (1994).
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(7)
Brasil (1947).
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(8)
Brasil. Lei n. 3.150, 4 nov. 1882, p. 1.
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(9)
Almanak Laemmert, 1889, Parte IV, p. 1640-1659.
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(10)
Para o debate da Grande Depressão do século XIX, conferir Dobb (2013). Para a análise contemporânea das transformações do capitalismo, cf.: Hobson (1983); Lênin (2010).
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(11)
O Encilhamento, como ficou conhecida a política econômica do período, provocou um processo exacerbado de abertura de empresas. Conforme Abreu e Fernandes (2010, p. 7), o setor de seguros não foi muito afetado pela euforia, tendo apenas 16 empresas abertas entre 1890 e 1897.
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(12)
Brasil. Lei n. 294, 5 set. 1895. Actos do Poder Legislativo, Rio de Janeiro, 1895, p. 17.
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(13)
Brasil. Decreto n. 2153, 1 nov. 1895. Actos do Poder Legislativo, Rio de Janeiro, 1895, p. 2.
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(14)
Para o processo político da primeira década republicana cf. Cardoso (2006). Para uma reflexão a respeito do pacto sob o governo de Campos Salles: Backes (2006). Para uma análise do Funding Loan, Franco (2014).
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(15)
Brasil. Decreto n. 4270, 10 dez. 1901. Actos do Poder Legislativo, Rio de Janeiro, 1901.
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(16)
Essa nova legislação abriu espaço para a existência dos resseguros e instituiu mudanças na quantidade de reservas que deveriam permanecer no Brasil - 20% no caso de seguros marítimos e 100% no caso de seguros de vida (Brasil. Decreto n. 5072, 12 dez. 1903. Actos do Poder Legislativo, Rio de Janeiro, 1906. Essa nova legislação abriu espaço para a existência dos resseguros e instituiu mudanças na quantidade de reservas que deveriam permanecer no Brasil - 20% no caso de seguros marítimos e 100% no caso de seguros de vida.
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(17)
Brasil. Decreto n. 4270, 10 dez. 1901. Actos do Poder Legislativo, Rio de Janeiro, 1901.
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(18)
Brasil. Relatório do Ministério da Fazenda (1901, p. 279).
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(19)
Brasil. Relatório do Ministério da Fazenda (1901, p. 279).
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(20)
Brasil. Relatório do Ministério da Fazenda (1901, p. 279).
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(21)
Brasil. Relatório do Ministério da Fazenda (1902, p.99-103).
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(22)
Brasil. Relatório do Ministério da Fazenda (1904, p. 597).
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(23)
Brasil. Relatório do Ministério da Fazenda (1906, p. 51-54).
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(24)
Brasil. Relatório do Ministério da Fazenda (1909, p. 318).
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(25)
Brasil. Relatório do Ministério da Fazenda (1903, p. 111).
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(26)
Brasil. Relatório do Ministério da Fazenda (1901, p. 284).
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(27)
Brasil. Relatório do Ministério da Fazenda (1903, p. 107).
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(28)
Ibidem (p. 109).
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(29)
Brasil. Relatório do Ministério da Fazenda (1904, p. 596).
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(30)
Brasil. Decreto 3150. Actos do Poder Executivo, Rio de Janeiro, 1889, p. 593.
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(31)
Decreto 10.171. Brasil. Actos do Poder Executivo (1889, p. 133).
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(32)
Brasil. Actos do Poder Executivo (1889, p. 594).
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(33)
Brasil. Actos do Poder Executivo (1892, p. 822).
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(34)
Brasil. Actos do Poder Executivo (1892, p. 828).
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(35)
Brasil. Actos do Poder Executivo (1892, p. 828).
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(36)
Brasil. Actos do Poder Executivo (1892, p. 826).
-
(37)
Brasil. Actos do Poder Executivo (1892, p. 843).
-
(38)
Brasil. Actos do Poder Executivo (1892, p. 720).
-
(39)
Brasil. Actos do Poder Executivo (1892, p. 721).
-
(40)
Brasil. Actos do Poder Executivo (1892, p. 794).
-
(41)
Brasil. Actos do Poder Executivo (1892, p. 344).
-
(42)
Brasil. Actos do Poder Executivo (1892, p. 42).
-
(43)
Brasil. Diário Oficial da União, 26 fev. 1897, p. 959, 960.
-
(44)
Brasil. Diário Oficial da União, 4 abr. 1894, p. 1023, 1024.
-
(45)
Brasil. Diário Oficial da União, 4 abr. 1894, p. 1022.
-
(46)
Brasil. Diário Oficial da União, 23 abr. 1896, p. 1912.
-
(47)
Ibidem (p. 1912).
-
(48)
Brasil. Actos do Poder Executivo (1889, p. 555).
-
(49)
Ibidem (p. 556).
-
(50)
Brasil. Actos do Poder Executivo (1889, p. 557).
-
(51)
Brasil. Actos do Poder Executivo (1891, p. 298).
-
(52)
Brasil. Actos do Poder Executivo (1891, p. 298).
-
(53)
Brasil. Actos do Poder Executivo (1891, p. 304).
-
(54)
Brasil. Actos do Poder Executivo (1891, p. 304).
-
(55)
Brasil. Actos do Poder Executivo (1891, p. 302).
-
(56)
Brasil. Relatório do Ministério da Fazenda (1913 (I), p. IX).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
18 Set 2020 -
Data do Fascículo
May-Aug 2020
Histórico
-
Recebido
01 Fev 2018 -
Aceito
13 Nov 2018