RESUMO
Objetivo: refletir sobre a possibilidade de interpretação do cuidado nas pesquisas em enfermagem a partir do círculo hermenêutico heideggeriano.
Método: trata-se de uma reflexão com base no círculo hermenêutico heideggeriano, de modo a contribuir com o entendimento do método, salientando-se os aspectos históricos e as concepções conceituais, estruturais e operativas para a enfermagem.
Resultados: o estudo evidenciou que as etapas do círculo hermenêutico e sua aplicabilidade nas investigações em enfermagem permitem elucidar a relação entre elas, interpretação do cuidado nas mais diversas situações vivenciais.
Conclusão: a interpretação do cuidado por meio do círculo hermenêutico destaca a pesquisa em enfermagem no sentido da possibilidade da compressão e interpretação do cuidado nas mais diversas dimensões da existência do ser.
DESCRITORES: Pesquisa qualitativa; Filosofia em enfermagem; Hermenêutica; Pesquisa em enfermagem; Cuidados de enfermagem
RESUMEN
Objetivo: reflexionar sobre la posibilidad de interpretación del cuidado en las investigaciones en enfermería a partir del círculo hermenéutico heideggeriano.
Método: se trata de una reflexión basada en el círculo hermenéutico heideggeriano, de modo a contribuir con el entendimiento del método, resaltando los aspectos históricos y las concepciones conceptuales, estructurales y operativas para la enfermería.
Resultados: el estudio evidenció que las etapas del círculo hermenéutico y su aplicabilidad en las investigaciones en enfermería permiten elucidar la relación entre ellas, interpretación del cuidado en las más diversas situaciones vivenciales.
Conclusión: la interpretación del cuidado por medio del círculo hermenéutico destaca la investigación en enfermería en el sentido de la posibilidad de la compresión e interpretación del cuidado en las más diversas dimensiones de la existencia del ser.
DESCRIPTORES: Investigación cualitativa; Filosofía en enfermería; Hermenéutica; Investigación en enfermería; Cuidados de enfermería
ABSTRACT
Objective: to reflect on the possibility of interpreting care in Nursing research based on Heidegger’s hermeneutic circle.
Method: this is a reflection based on Heidegger’s hermeneutic circle in order to contribute to understanding the method, highlighting historical aspects and conceptual, structural and operative conceptions for Nursing.
Results: this study highlights that the stages of the hermeneutical circle and its applicability in Nursing investigations, thus allowing to elucidate their relationship, interpreting care in the most diverse experiential situations.
Conclusion: according to the hermeneutic circle, care interpretation emphasizes nursing research in the sense of the possibility of compressing and interpreting care in the most diverse dimensions of the existence of being.
DESCRIPTORS: Qualitative research; Philosophy in nursing; Hermeneutics; Nursing research; Nursing care
INTRODUÇÃO
A hermenêutica possui uma ampla e contínua tarefa para tentar compreender e interpretar um pensamento descrito, em alguma forma de linguagem, por alguém que vive ou viveu um determinado fenômeno, e descreve tal situação com fidedignidade de significado, ou, como enfatiza Heidegger, a “hermenêutica do ser-aí se torna também uma ‘hermenêutica’ no sentido de elaboração de condições de possibilidade de toda investigação ontológica”.1:77
A enfermagem busca compreender o outro de forma singular, dando ênfase à incessante tentativa de compreender e solucionar problemas ou situações cotidianas inerentes à práxis da profissão. Nessa perspectiva, em distintos momentos e espaços de cuidado em saúde, a prática da enfermagem trata de questões qualitativas ao exercer o cuidado.
A preocupação em apreender o modo de vida do homem, suas demandas, as diversidades sociais e culturais são levadas em consideração no plano de cuidado do ser humano, cujas questões, costumeiramente, se transformam em motivo de estudos dada a complexidade de sua apreensão.2
O referencial fenomenológico, utilizado para compreensão de determinados fenômenos estudados por enfermeiros-pesquisadores, dá voz e visibilidade aos fenômenos vivenciados pelo ser humano, o que permite o planejamento do cuidado em consonância com as necessidades e/ou singularidades do ser.3
Neste aspecto, o círculo hermenêutico heideggeriano projeta para as pesquisas em enfermagem de cunho fenomenológico a possibilidade da interpretação dos fenômenos do cuidado de enfermagem, sendo que o posicionamento do pesquisado pode ser reavaliado pelo pesquisador a qualquer tempo do processo de pesquisa.4
Neste contexto, o presente estudo tem por objetivo refletir a partir do círculo hermenêutico heideggeriano a possibilidade de interpretação do cuidado nas pesquisas em enfermagem.
FENOMENOLOGIA: ASPECTOS HISTÓRICOS ENVOLVIDOS
Fenomenologia “é a descrição daquilo que aparece ou ciência que tem como objetivo ou projeto essa descrição”.5:511 E por ser uma filosofia da consciência, tem o princípio da intencionalidade.6 Ela surgiu na segunda metade do século XIX, em contraposição ao pensamento positivista, através dos estudos do filósofo Edmund Husserl (1859-1938).7 Como método de investigação filosófica, a fenomenologia estabelece os principais conceitos do método, com o objetivo de apreender o fenômeno, ou seja, o surgimento das coisas à consciência, interrogando-o, descrevendo-o e procurando captar sua essência e revelando o significado em si mesmo. Neste sentido, a fenomenologia é uma investigação que está na realidade e na possibilidade do campo de atuação dos profissionais da saúde, e em especial o profissional enfermeiro.7 O método busca a abordagem do fenômeno como forma de revelação da essência e do seu significado crítico.5
Sendo o cuidado a essência da enfermagem, e envolto em dimensões objetiva e subjetiva, a pesquisa fenomenológica pode ser uma busca da compreensão da subjetividade do fenômeno pesquisado, ou seja, do cuidado. O pesquisador procura, na análise das descrições, o conteúdo característico do fenômeno, bem como os diferentes significados, e neste contexto a análise se faz pela comparação das respostas do sujeito, do grupo ou entre os grupos, em que o estudioso busca a convergência das unidades de significado por meio de interpretações que elaborou e, dessa forma, constrói o seu discurso.6
Logo, na atitude natural, o objeto é natural, portanto existe, ao passo que, na atitude fenomenológica, o objeto é intuído, percebido e por isso se entrelaça à consciência. Por conseguinte, a consciência é intencional e a intuição é a visão intelectual do objeto de conhecimento.6
É fundamental compreender que há várias vertentes do pensamento fenomenológico a partir de Edmund Husserl. Martin Heidegger, nascido em 1889, na Alemanha, tornou-se um dos discípulos de Husserl em 1915 e estudioso da fenomenologia. No entanto, há vários estudiosos que continuaram a obra do mestre Husserl, a saber: Merleau-Ponty, Martin Heidegger, Karl Jarpesr, Max Scheler, Merleau-Ponty; Emmanuel Levinas, Edith Stein, Jean-Paul Sarte, Gabriel Marcel, Hans-Georg Gadamer, Paul Ricoeur, Martin Buber, Ernesto Grassi, Nicolai Hartmann, Hans Jonas, cada qual, e a seu modo, aprofundaram temas/fenômenos específicos.6
O referencial filosófico que apoiou e conduziu às reflexões filosóficas da fenomenologia hermenêutica de Martin Heidegger, especificamente o círculo hermenêutico e os conceitos nele contidos, teve como principal norte a obra “Ser e Tempo”, que se ocupa de apresentar o sentido da existencialidade do ser.1
CÍRCULO HERMENÊUTICO HEIDEGGERIANO: CONCEITUAÇÕES E IMPLICAÇÕES PARA A ENFERMAGEM
A pesquisa fenomenológica busca a essência do fenômeno, pois está pautada no seu estudo descritivo, que relata a experiência do ser estudado.8 Nesse referencial, o pesquisador dirige-se para o ser e procura olhar o fenômeno como ele se mostra na própria experiência, buscando compreender o fenômeno que se apresenta à consciência. Nesse processo, ajuda a perceber como o fenômeno aparece e se faz presente nas suas várias formas e aparência.
Para Heidegger, “a expressão ‘fenomenologia’ significa, antes de tudo, um conceito de método”.1:66 “Uma das contribuições da fenomenologia para a filosofia está no modo de tratamento de juízos e significados. Martín Heidegger não separa a razão da emoção, nem o sujeito do objeto”.1:114
Dessa maneira, para embasar as pesquisas em enfermagem, mediante o emprego do círculo hermenêutico heideggeriano, faz-se necessária a construção conceitual de alguns termos que desvelam a existencialidade do ser para o cuidado.
A questão da existência do ser volta-se para a preocupação com o modo de vivência humana. Existir é relacionar-se com os outros no mundo, e o homem é responsável por sua própria existência, pelo seu modo de “Ser” e pelo modo de “Ser” com os outros.1 O “Ser” representa a presença, o manifesto, o que é percebido, compreendido e conhecido. O homem (Dansien) está lançado no mundo e o “Ente” são as coisas em sentidos diversos, ou seja, é tudo o que falamos, entendemos, como nos comportamos, o que somos.1 No que diz respeito ao cuidado, a enfermagem relaciona-se com o outro na possibilidade de ser-com-o-outro nas mais diversas situações vividas.
O modo como somos se caracteriza por sermos ser-para o cuidado, sendo a enfermagem a abertura para a presença. De acordo com o modo de ser, ela tem a tendência de compreender seu próprio ser, a partir daquele ente com quem se relaciona e se comporta de modo essencial, primeira e constantemente a partir do “mundo”. É na presença que o homem constrói o seu mundo, seu modo de ser, mostra-se na existência e na sua própria história de vida. O cuidado da Enfermagem mostra-se presente, já que ele é presença e proximidade. Nessa perspectiva, o cuidado abrangente é aquele no qual o cuidador e o ser cuidado estão próximos; e, a partir de um ato de empatia, entendem que, ao identificar as necessidades das pessoas, podem auxiliá-las no momento em que necessitam de cuidado.9
Na perspectiva de profissão, a enfermagem tem sua essência na dedicação do cuidado integral ao ser humano, entretanto, o cuidado atinge sua plenitude quando o ser que cuida também é cuidado.10
Portanto, a presença é a possibilidade de ser. Isto é, “toda presença é o que ela pode ser e o modo que é a sua possibilidade. A possibilidade fundamental da presença concerne aos modos caracterizados de ocupação com o “mundo”, de preocupação com os outros e, nisso tudo, a possibilidade de ser para si mesma, em virtude de si mesma”.1:203
O cuidado trazido por Heidegger indica as possibilidades do ser humano, ou ser-aí no mundo. O ser-com constitui existencialmente o ser-no-mundo, e deve ser interpretado pelo fenômeno da cura, uma vez que este determina o ser da presença em geral. O ser-no-mundo é cura, é cuidado, na ocupação e na preocupação, mesmo que seja de modo primitivo.1
Com a possibilidade da presença uma manifestação do cuidado, ele pode ser interpretado como modo de ser da ocupação. A presença se dá no exercício das relações dos dois modos de ser da existência: relações com o modo de ser dos entes simplesmente dados e relações com os entes dotados de movimento. Nesses dois modos de ser, exprime-se a cura, que pode ser ocupação e preocupação.1 Para a enfermagem, esse processo pode ser evidenciado quando há um planejamento das ações de cuidado para o outro, tornando-se ainda mais palpáveis na implementação.
Por conseguinte, o cuidado revela-se nas relações da existência do ser-aí, nas relações existenciais da enfermagem, onde estão envolvidos consideração e respeito no modo de ser, de proceder. A preocupação e a ocupação fazem parte do cuidado, visto serem estas as que movem o ser-com-o-outro. O cuidado pode ser entendido como ato, que ocupa um sentido ôntico, ou como possibilidades, um sentido que vai além do ato, além do que se pode perceber, ocupando um sentido ontológico.1
Logo, a preocupação assume duas possibilidades extremas sobre o cuidado. De um lado, a enfermagem pode assumir o cuidado pleno, retirando do outro a possibilidade de escolha, de autonomia para seu autocuidado, ou seja, assumindo as ocupações do outro. A preocupação assume a ocupação que o outro ser deve realizar, assim, ele é deslocado de sua posição, retraindo-se, para em seguida assumir a ocupação de alguma coisa disponível e já pronta, ou dispensá-la. Todavia, nessa preocupação, o outro pode adotar a posição de dependência e de dominado. A outra possibilidade é da preocupação substitutiva, que retira do outro o “cuidado”, determina a convivência recíproca e, na maior parte das vezes, referindo-se apenas à ocupação manual.1
Na convivência humana estamos sempre nos aproximando ou nos afastando dos que estão conosco em momentos de cuidado. No modo habitual de ser-com-os-outros, envolvemo-nos com aqueles dos quais cuidamos. Tal movimento de constante aproximação e distanciamento é que nos projetamos para as ações de cuidado. Quando nos aproximamos para reconhecer o objeto de pesquisa imbricado com as experiências vividas, pode-se vislumbrar a compreensão do processo de viver do outro e, a partir deste, interpretar as ações de cuidado que podemos ter, bem como as ações de cuidado que o outro pode assumir para si mesmo, ocupando-se de seu ser para o cuidado.
POSSIBILIDADES DE USO DO MÉTODO PARA AS PESQUISAS EM ENFERMAGEM
A pesquisa fenomenológica busca a essência do fenômeno, pois está pautada no seu estudo descritivo, o qual relata a experiência do sujeito estudado.11 O método fenomenológico traduz a compreensão sobre o viver e não apenas definições e conceitos, portanto, é uma compreensão voltada para os significados do perceber.12
Na formulação de natureza fenomenológica, o objetivo deve estar na percepção dos sujeitos e, especialmente, no significado que os fenômenos têm para as pessoas.13
Por este motivo, os fenomenologistas se esforçam em descrever o mesmo mundo, aquele mundo que é familiar a todos, suprimindo julgamentos em relação a todo e qualquer fenômeno, sendo a constituição de partes de um sistema maior, assim isolando qualquer objeto do contexto no qual está, de fato, inserido e que o contempla em sua própria essência purificada.14
No campo de investigação da enfermagem, é necessário captar-se a essência do todo, o que tem início com uma inquietação, uma pergunta. Essa interrogação corresponde a uma insatisfação do pesquisador quanto àquilo que ele acredita saber sobre algo. Em seguida, a investigação prossegue mediante uma metodologia própria para efetuar a investigação almejada. Nesse processo, o conhecimento é desvelado a partir dos conhecimentos e significações por meio da consciência de forma objetiva e subjetiva, tendo como referência o ser/fenômeno investigado.6
O conhecimento do que já existe sobre a temática a ser estudada, do que já foi produzido pela ciência, consiste no momento pré-reflexivo, considerado como a etapa metodológica de revisão de literatura.
Dessa forma, na pesquisa fenomenológica, o pesquisador tem inquietações acerca de algo e essas o levam a interrogar, percorrendo uma trajetória em direção ao fenômeno através da pessoa que vivencia uma determinada circunstância. Neste sentido, o fenômeno surge a partir da pessoa que sabe, mediante sua vivência e seu modo de ver o mundo, mostrando-se ao pesquisador que busca captar a essência de tal fenômeno.15
A pesquisa ou o encontro existencial converge para momentos de empatia e intersubjetividade, em que se lança a pergunta de pesquisa, questionando-se o Ser, buscando-se o sentido do Ser, os modos do Ser.
Para proceder na investigação, o pesquisador deve seguir as etapas do método representadas pelas fases de: a) descrição: em que apreende o fenômeno como ele aparece à consciência; b) epoché: o pesquisador deve ser desprovido de juízos temporários, juízos de valor e ideias pré-concebidas para ter a consciência aberta a fim de perceber o fenômeno sem preconceitos; c) hermenêutica (interpretação): momento no qual os dados descritos são compreendidos e interpretados, logo, os fenômenos são explicados e as significações são conhecidas. No decorrer dessas fases, novas realidades são desveladas.
A análise deve ser o fio condutor que estrutura o conceito de Ser. Baseia-se no encontro existencial (pergunta), em que se investiga o Ente que foi interrogado e o Ser que foi questionado. Com base na comparação das respostas dos sujeitos, utilizando-se para isso a compreensão interpretativista ou hermenêutica, o pesquisador procede às análises buscando a convergência das unidades de significados, que permite elaborar seu próprio discurso. Tais unidades de significado configuram as categorias abertas, as quais permanecem abertas a novas investigações.
A interpretação é a última etapa da pesquisa. É uma interpretação provisória, uma vez que não há conclusões, já que o fenômeno é sempre uma perspectiva. Trata-se, pois, da interpretação do discurso que revela a dimensão da reflexão sobre o cuidado do fenômeno interpretado.6 Durante todo esse processo, o pesquisador reflete sobre sua própria reflexão, o que remete à sua transcendência.
As pesquisas em enfermagem podem pautar-se na fenomenologia, com a intenção de revelar o modo-ser no cuidado da Enfermagem, utilizando para este processo o círculo hermenêutico heideggeriano, o qual pontua três passos para a interpretação do fenômeno estudo, quais sejam: a pré-compreensão; a compreensão e a interpretação.
A pré-compreensão é a estrutura ontológica da compreensão. Esta não pode reportar-se ao existente sem pressupostos, ou, em outras palavras, o intérprete lança mão de posições pré-determinadas, ou pré-conceitos, ou ainda posição prévia da interpretação cotidiana da circunvisão. Heidegger salienta que “a apropriação do compreendido, embora ainda velado, sempre cumpre o desvelamento guiado por uma visão que fixa o parâmetro na perspectiva atual, o compreendido já de ser interpretado”.1:211
Para a enfermagem, a pré-compreensão comtempla o vivido do ser-aí, na dimensão pessoal, de suas experiências de vida associadas à construção do saber científico da enfermagem e sua percepção de mundo.
Heidegger une o fenômeno da compreensão a esfera emotiva, contudo acrescenta a análise desse fenômeno, ligando-se à noção de possibilidade.7 A compreensão é essencial à existência humana, ao Dasein (ser-aí), pois ela significa que a existência é essencialmente a possibilidade de ser. O ser-aí, existindo, é o ser-no-mundo que se abre para a compreensão do outro e de si mesmo, caracterizando a ocupação com o mundo, de preocupação com os outros e, nesse contexto, a possibilidade de ser para si mesmo, em virtude de si mesmo.1
O movimento de compreensão, na enfermagem, abre as possibilidades de ser com o outro na própria percepção, assim como na percepção do outro, no modo de cuidar sem que haja inferências ou julgamentos, visto que ambos estão no mesmo mundo, existindo, podendo projetar-se no movimento do cuidar, em que a ocupação pode ser vista como preparo para o cuidado, tornando-se possível na totalidade da relação.16
Compreender não é só um compreender o abstrato de si mesmo, mas é um compreender acerca de suas possibilidades da existência, quando somos e queremos ser projetando-se para o futuro, na medida em que compreendemos a nós mesmos e ao outro.16
A interpretação é o projetar-se da presença, inerente ao compreender, e possui a possibilidade própria de se elaborar em formas diversas. “Interpretar é expor, é um desdobrar das próprias possibilidades, por isso o ser humano é um ser de possibilidades”.16:63
A interpretação está baseada existencialmente no compreender. Interpretar é criar novas possibilidades projetadas na compreensão, é o poder ser, ser vivendo no mundo, que vivencia a facticidade de uma nova condição, na qual seu ser demanda a necessidade de cuidado para si e para o outro.
Na pesquisa em enfermagem, a interpretação é o próprio processo de cuidar em sua plenitude, em que o sentido do fenômeno passa a ser revelado para o pesquisador, que indica possibilidades de respostas para o fenômeno estudado.
A figura 1 busca ilustrar o processo de entendimento do círculo hermenêutico heideggeriano, caracterizando suas etapas e salientando que todas são dependentes umas das outras. Visa ainda evidenciar que, ao interpretar um fenômeno, tem-se uma nova pré-compreensão e compreensão dele, demonstrando que o tempo e o espaço das relações estão sempre em um movimento de velar-se e desvelar-se. E, neste sentido, a aplicabilidade deste na interpretação do cuidado demonstra a essência da enfermagem na sua existencialidade no mundo.
A hermenêutica pauta-se na interpretação holística e circular. Holística, pois qualquer parte do texto ou mensagem a ser interpretada está na condição da dependência da interpretação do todo; e circular, porque qualquer interpretação é embasada na interpretação anterior, ou seja, no pré-julgamento, na pré-concepção, na pré-interpretação que guia e estrutura o ato interpretativo.17
O círculo hermenêutico nos remete ao próprio círculo da vida, isto é, ao percebermos algo, lançamos mão de nossos conhecimentos, experiências e posições prévias, e a partir daí começamos a compreender o novo movimento e, concomitante, interpretamos o fenômeno. Ainda, remete à importância da compreensão da totalidade do ser, o qual requer ser compreendido sem fragmentação, quer dizer, do ser-aí na sua completude, de forma que possam ser compreendidas as relações do causador e a causa, no ambiente e realidade vivenciados.
A fenomenologia, como método para a pesquisa em enfermagem, consiste em assumir, a priori, uma postura que objetive compreender o outro, no seu lugar e momento vivo (sua experiência), como sujeito de essências e presença, ativo e participativo nas suas expressões de vida. Tal movimento vivo está nos fundamentos do cuidar, em que a prática das ações de cuidado volta-se para o outro e para si mesmo, na existência e no mundo.
As investigações de enfermagem de natureza fenomenológica têm a proposição de desvelar obscuridades do cuidar para ampliar possibilidades do olhar ao ser do humano, transpondo o seu modelo cartesiano, reducionista e de fragmentação.18 Com a abordagem de procurar compreender o outro em sua facticidade, o método fenomenológico aproxima-se da tendência atual das pesquisas em saúde e enfermagem, uma vez que busca ações humanizadas na assistência ao ser humano.19 Possibilita a superação do modelo biomédico perante a valorização das relações intersubjetivas na perspectiva de uma cultura de paz.20 Ainda, contribui para um olhar sobre as experiências relacionadas ao processo de saúde-doença do ser humano em diferentes cenários assistenciais e de atenção à saúde.21
Nesta perspectiva, o círculo hermenêutico pode ser uma ferramenta para guiar teórica e metodologicamente as pesquisas. No aspecto teórico-fenomenológico, por considerar a disciplina uma forma de compreensão das experiências; e no aspecto metodológico, um guia para os passos de coleta e interpretação dos dados.
Os estudos com a abordagem da fenomenologia auxiliam a compreensão de diversos fenômenos da existência humana, contribuindo para o cuidado humanizado pautado em alicerces dos conhecimentos da enfermagem nas mais diversas experiências do homem no processo de viver. Sendo assim, a enfermagem, de uma forma peculiar e criativa, engloba aspectos da ciência e da arte, possibilitando, no contexto do cuidado de enfermagem, o fazer e o saber da profissão, expresso na práxis que se funda no reconhecimento da pessoalidade de cada paciente.22
A fenomenologia permite um saber compreensivo da investigação em enfermagem na medida em que está diretamente imbricada com fenômenos humanos, acolhendo os significados de todo aquele que diz respeito à experiência vivida com a finalidade de compreender as atitudes e valores individuais e coletivos do presente e do passado.23
CONCLUSÃO
A enfermagem determina, em seus metaparadigmas, o cuidado ao ser humano em seu processo vivencial em um determinado espaço e tempo. Assim, ao se aproximar da fenomenologia, busca compreender a experiência, percebendo-os como fenômenos da existência.
Neste universo do cuidado, o círculo hermenêutico heideggeriano constituiu-se como uma forma de compreender e interpretar o ser enfermeiro na experiência do cuidar. A pré-compreensão estruturada com base nas experiências do cuidado, aliada aos estudos dele, leva à compreensão do modo de ser-enfermeiro e, a partir disso, à interpretação.
O movimento da pré-compreensão contempla os estudos sobre o cuidado associado às nossas próprias leituras da vida, somadas às experiências que vivenciamos ao longo da trajetória profissional. A compreensão expressa a oportunidade de entender o fenômeno estudado e as pessoas que participam da pesquisa como um todo, trazendo, dessa forma, indícios para a interpretação, revelando os temas, as unidades e as categorias do vivido. E a interpretação do fenômeno apresenta-se como possibilidades de novos horizontes, gerando novas pré-compreensões e compreensões do mesmo fenômeno, e até mesmo de outros, os quais circunscrevem este estudo.
REFERÊNCIAS
- 1 Heidegger M. Ser e tempo. Rio de Janeiro (RJ): Vozes; 2011.
-
2 Santos RP, Neves ET, Carnevale F. Metodologias qualitativas em pesquisa na saúde: referencial interpretativo de Patricia Benner. Rev Bras Enferm [Internet]. 2016 Jan [cited 2017 Mar 17]; 69(1):192-6. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v69n1/0034-7167-reben-69-01-0192.pdf
» http://www.scielo.br/pdf/reben/v69n1/0034-7167-reben-69-01-0192.pdf -
3 Almeida IS, Crivaro ET, Salimena AMO, Souza IEO. O caminhar da enfermagem em fenomenologia: revisitando a produção acadêmica. Rev Eletr Enf [Internet]. 2009 [cited 2017 Mar 07]; 11(3):695-9. Available from: http://www.fen.ufg.br/revista/v11/n3/v11n3a30.htm
» http://www.fen.ufg.br/revista/v11/n3/v11n3a30.htm - 4 Stein E. Aproximações sobre hermenêutica. 2ª ed. Porto Alegre (RS): EdiPUCRS; 2010.
- 5 Abbagnano N. Dicionário de filosofia. 5 ed. São Paulo (SP): Martins Fontes; 2007.
-
6 Silva CC, Medina P, Pinto IM. A Fenomenologia e suas contribuições para a Pesquisa em Educação. InterMeio: revista do Programa de Pós-graduação em educação [Internet]. 2012 Jul [cited 2017 Mar 09] 18(36):50-63. Available from: http://www.intermeio.ufms.br/ojs/index.php/intermeio/article/view/359
» http://www.intermeio.ufms.br/ojs/index.php/intermeio/article/view/359 - 7 Giles TR. História do existencialismo e da fenomenologia. São Paulo, SP: EPU; 1989
-
8 Salimena AMO, Amorim TV, Souza IEO, Elizabete Pimenta Araújo Paz, Langendorf TF, Barqueiros JM. O método fenomenológico Heideggeriano e sua contribuição epistemológica para a Enfermagem: revisitando questões do movimento analítico. Atas CIAIQ2015 [Internet]. 2015 [cited 2017 Mar 07] 1:310-3. Available from: http://proceedings.ciaiq.org/index.php/ciaiq2015/article/view/73/70
» http://proceedings.ciaiq.org/index.php/ciaiq2015/article/view/73/70 - 9 Depraz N. Compreender Husserl. Petrópolis (RJ): Vozes; 2007.
-
10 Santos MF, Merighi MAB, Muñoz LA. La enfermera clínica y las relaciones con los estudiantes de enfermería: un estudio fenomenológico. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2010 Jan-Mar [cited 2017 Mar 07]; 19(1):112-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v19n1/v19n1a13.pdf
» http://www.scielo.br/pdf/tce/v19n1/v19n1a13.pdf -
11 Sebold LF, Kempfer SS, Girondi JBR, Prado ML. Percepção de docentes de enfermagem sobre o cuidado: uma construção heideggeriana. Rev Esc Enferm [Internet]. 2016 Jun [citado 2017 Mar 26]; 50(spe):39-46. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-623420160000300006
» http://dx.doi.org/10.1590/S0080-623420160000300006 -
12 Salimena AMO, Arantes EE, Oliveira SIE, Becker VL. Falatório e ocupação no cotidiano das profissionais de enfermagem no cuidado de si e do outro. Rev Baiana Enferm [Internet]. 2016 Jan-Mar [cited 2017 Mar 26]; 30(1):316-24. Available from: https://portalseer.ufba.br/index.php/enfermagem/article/view/14393
» https://portalseer.ufba.br/index.php/enfermagem/article/view/14393 - 13 Triviños ANS. Introdução à pesquisa em Ciências Sociais. A pesquisa qualitativa em educação. São Paulo (SP): Atlas; 1995.
- 14 Alves NC. Resenha crítica. Rev Formação. 2013; 20(1):3-6.
-
15 Lanz H. A Nova Fenomenologia. Rev Abordagem Gestalt [Internet]. 2016 Dez [cited 2017 Mar 26]; 20(2):231-6. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672014000200011&lng=pt&nrm=iso
» http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672014000200011&lng=pt&nrm=iso -
16 Silva MG, Boemer MR. Vivendo o envelhecer: uma perspectiva fenomenológica. Rev Latino-am Enfermagem [Internet]. 2009 Jun [cited 2017 Mar 30]; 17(3):380-6. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692009000300016
» http://dx.doi.org/10.1590/S0104-11692009000300016 - 17 Stein E. Aproximações sobre hermenêutica. 2ª ed. Porto Alegre (RS): EdiPUCRS; 2010.
- 18 Medina J. Linguagem: conceitos-chave em filosofia. Porto Alegre (RS): Artmed; 2007.
-
19 Paula CC, Souza IEO; Cabral IE, Padoin SMM. Movimento analítico-hermenêutico heideggeriano: possibilidade metodológica para a pesquisa em enfermagem. Acta Paul Enferm [Internet]. 2012 [cited 2017 Mar 30]; 25(6):984-9. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-21002012000600025
» http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-21002012000600025 -
20 Santos EM, Sales CA. Familiares enlutados: compreensão fenomenológica existencial de suas vivências. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2011[cited 2017 Mar 30]; 20(Esp): 214-22. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072011000500027
» http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072011000500027 -
21 Freitas RJM, Moura NA, Monteiro ARM. Violência contra crianças/adolescentes em sofrimento psíquico e cuidado de enfermagem: reflexões da fenomenologia social. Rev Gaúcha Enferm [Internet]. 2016 Mar [cited 2017 Mar 30]; 37(1):e52887. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v37n1/0102-6933-rgenf-1983-144720160152887.pdf.
» http://www.scielo.br/pdf/rgenf/v37n1/0102-6933-rgenf-1983-144720160152887.pdf. -
22 Jesus MCP, Capalbo C, Merighi MAB, Oliveira DM, Tocantins FR, Rodrigues BMRD et al. A fenomenologia social de Alfred Schütz e sua contribuição para a enfermagem. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2013 [cited 2017 Mar 27]; 47(3):736-41. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080-62342013000300736
» http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080-62342013000300736 -
23 Guimarães GL, Chianca TCM, Goveia VR, Souza KV, Mendoza IYQ, Viana LO. The social value in nursing students' discourse: a phenomenological encounter with Max Scheler. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2016 [cited 2017 Aug 02]; 25(3); e:2690015. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/0104-07072016002690015
» http://dx.doi.org/10.1590/0104-07072016002690015 - 24 Muños LA, Erdmann AL. Metodología de la investigación em enfermeira. In: Prado ML, Souza ML, Monticelli M, Cometto MC, Gómez PF. Investigación cualitativa en enfermeira. Metología y didáctica. Organización Panamericana de la Salud, Universidade Federal de Santa Catarina. Washington (DC): OPS; 2013.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
2017
Histórico
-
Recebido
31 Mar 2017 -
Aceito
22 Ago 2017