Open-access Violência entre torcidas nos estádios de futebol: uma questão de Saúde Pública

Violence among supporters in football stadiums: a Public Health question

Resumos

Este artigo tem o objetivo de trazer a debate a temática da violência entre torcedores nos estádios de futebol sob o foco da perspectiva da Saúde Pública. Foi desenvolvido a partir de uma revisão de literatura, consubstanciada por uma consulta à Secretaria de Saúde Pública e à Polícia Militar do Estado de Pernambuco. A partir disso, ficaram constatadas a escassez de dados relacionados ao assunto, a subutilização dos dados existentes e a falta de intercâmbio entre as instituições para utilizá-los na criação de mecanismos de reflexão e ação conjunta em busca de soluções para o problema. Na coleta de material, foram consultadas obras de referência, dentre elas: livros, periódicos, anais de congressos, priorizando-se textos da literatura das últimas duas décadas nos idiomas português e inglês. Foram consultados também base de dados da literatura científica on-line como Lilacs, Medline, Scielo, Bireme, entre outros, utilizando-se os seguintes descritores: violência, torcedores, torcidas organizadas, futebol, saúde pública. Este artigo propõe uma reflexão sobre a possibilidade de propostas e procura apontar caminhos para uma mudança de comportamento a partir de um melhor entendimento desse fenômeno tão atual quanto complexo no cenário da sociedade brasileira.

Violência; Torcidas organizadas; Futebol; Saúde pública


This article aims to discuss the theme of violence among football fans in stadiums in the Public Health perspective. It was developed through a literature review and a consultation with the Public Health Department and the Military Police of the State of Pernambuco. The consultation revealed the scarcity of data related to the subject, the sub-utilization of the existing data and the lack of interchange among institutions to use them in search of the creation of joint reflection and action mechanisms in order to find solutions for the problem. In the materials collection, reference works were consulted, such as books, journals, and congress proceedings. Texts published in the last two decades in Portuguese and English were prioritized. Online databases of scientific literature were also consulted, like LILACS, MEDLINE, SCIELO, BIREME, among others, and the following describers were used: violence, football fans, organized supporters, football, public health. The article reflects on the possibility of proposals and tries to point ways with respect to a behavior change based on a better understanding of this current and complex phenomenon in the Brazilian society scenario.

Violence; Organized Supporters; Football; Public Health


ARTIGOS

Violência entre torcidas nos estádios de futebol: uma questão de Saúde Pública

Violence among supporters in football stadiums: a Public Health question

Ricardo Alexandre Guerra VieiraI; Gisela Rocha de SiqueiraII

IMestrando em Hebiatria pela Universidade de Pernambuco. Especialista em Pedagogia dos Esportes. Rua Pessoa de Melo nº 65 aptoº 701, Madalena, CEP 50610220, Recife, PE, Brasil. E-mail: rhandguerra@hotmail.com

IIFisioterapeuta, Especialista em Traumato-ortopedia. Mestre em Saúde Coletiva. Docente da Faculdade Integrada do Recife (FIR). Rua Pessoa de Melo nº 65 aptº 701, Madalena, CEP 50610220, Recife, PE, Brasil. E-mail: giselasiqueira@uol.com.br

RESUMO

Este artigo tem o objetivo de trazer a debate a temática da violência entre torcedores nos estádios de futebol sob o foco da perspectiva da Saúde Pública. Foi desenvolvido a partir de uma revisão de literatura, consubstanciada por uma consulta à Secretaria de Saúde Pública e à Polícia Militar do Estado de Pernambuco. A partir disso, ficaram constatadas a escassez de dados relacionados ao assunto, a subutilização dos dados existentes e a falta de intercâmbio entre as instituições para utilizá-los na criação de mecanismos de reflexão e ação conjunta em busca de soluções para o problema. Na coleta de material, foram consultadas obras de referência, dentre elas: livros, periódicos, anais de congressos, priorizando-se textos da literatura das últimas duas décadas nos idiomas português e inglês. Foram consultados também base de dados da literatura científica on-line como Lilacs, Medline, Scielo, Bireme, entre outros, utilizando-se os seguintes descritores: violência, torcedores, torcidas organizadas, futebol, saúde pública. Este artigo propõe uma reflexão sobre a possibilidade de propostas e procura apontar caminhos para uma mudança de comportamento a partir de um melhor entendimento desse fenômeno tão atual quanto complexo no cenário da sociedade brasileira.

Palavras-chave: Violência; Torcidas organizadas; Futebol; Saúde pública.

ABSTRACT

This article aims to discuss the theme of violence among football fans in stadiums in the Public Health perspective. It was developed through a literature review and a consultation with the Public Health Department and the Military Police of the State of Pernambuco. The consultation revealed the scarcity of data related to the subject, the sub-utilization of the existing data and the lack of interchange among institutions to use them in search of the creation of joint reflection and action mechanisms in order to find solutions for the problem. In the materials collection, reference works were consulted, such as books, journals, and congress proceedings. Texts published in the last two decades in Portuguese and English were prioritized. Online databases of scientific literature were also consulted, like LILACS, MEDLINE, SCIELO, BIREME, among others, and the following describers were used: violence, football fans, organized supporters, football, public health. The article reflects on the possibility of proposals and tries to point ways with respect to a behavior change based on a better understanding of this current and complex phenomenon in the Brazilian society scenario.

Keywords: Violence; Organized Supporters; Football; Public Health.

Introdução

Apesar de ser uma das principais causas de mortalidade, principalmente entre os jovens, a violência, enquanto problema social e da prática política e relacional da humanidade, tradicionalmente vem sendo tratada pelas instâncias governamentais e seus respectivos órgãos representativos como uma questão de segurança pública. No Brasil, só no final da década de 1980 é que se começou a perceber uma preocupação com sua inclusão na agenda da saúde pública (Minayo, 1994; Chesnais, 1999; Mello Jorge, 2001).

Sua inclusão como problema de saúde pública justifica-se, principalmente, pelo fato de mortes e traumas ocorridos por causas violentas virem aumentando de forma alarmante e pela influência que isso tem nos potenciais anos de vida perdidos, denominado por Minayo (1994) de mortalidade prematura, o que demanda uma necessidade de resposta imediata e urgente do sistema.

Na década de 1990, a preocupação com o tema ganhou prioridade e, nas agendas das organizações internacionais do setor, a violência, pelo número de vítimas e a magnitude de sequelas que produz, tanto num nível orgânico quanto no emocional, passou a adquirir um caráter endêmico e passou a ser relacionada como um problema de saúde pública em vários países (Minayo, 1994; Souza e Minayo, 1994; Simões, 2002; Souza, 2005).

Se por um lado as vítimas precisam de atendimento nos serviços de urgência e de uma atenção especializada no que se refere à reabilitação física, psicológica e assistência social, entre outras coisas, por outro, a área da saúde não deve continuar, como tradicionalmente tem feito, concentrando seus esforços em atender apenas os efeitos da violência, isto é, reparando os traumas e lesões físicas nos serviços de emergência e prestando atenção especializada nos processos de reabilitação, nos aspectos médico-legais e nos registros de informações. A violência, enquanto complexo fenômeno social, precisa ser analisada em toda sua complexidade e, para entendê-la, há que se pensar tanto na sua especificidade histórica quanto para além dela (Deslandes, 1993).

Desta forma, se há uma preocupação dos setores envolvidos com a Saúde Pública de adequarem equipamentos e recursos humanos à demanda crescente dos serviços de atendimentos, é necessário que haja também uma grande preocupação de se voltar a atenção para o campo da prevenção (Gawryszewski e col., 2004).

Cruzando-se, na sua configuração, problemas da política, da economia, da moral, do direito, da psicologia, das relações humanas e institucionais e do plano individual, é possível perceber que na sua relação dialética de interioridade/exterioridade, a violência integra não só a racionalidade da história, mas a origem da própria consciência e, portanto, não deve ser tratada de uma forma fatalista, pois, na sua maioria, os eventos violentos não são acidentais tampouco fatalidades ou uma questão de presença ou ausência de sorte: eles podem ser enfrentados e prevenidos e precisam de uma intervenção lógica e racional para que sejam efetivamente evitados (Domenach, 1981).

Para Minayo (1994), não há dúvidas de que a violência afeta a saúde enquanto sistema público. Difícil é entender, precisar e quantificar suas proporções, já que se trata de um controverso e dinâmico fenômeno biopsicossocial que tem seu espaço de criação e desenvolvimento na vida em sociedade.

Ao mesmo tempo em que se percebe o quanto esse tema é complexo, principalmente em função do entendimento dos fatores de risco e das formas estratégicas para a sua prevenção, não se pode menosprezar a colaboração dos estudos em busca de apontar a magnitude do fenômeno, suas características e tendências e, quem sabe, assim, compor um quadro diagnóstico voltado para uma ação prática. É neste sentido que se pode resumir o direcionamento e as perspectivas deste trabalho.

A origem da violência humana tem diversas e controvertidas explicações. Passa por fatores orgânicos, psíquicos e de história de vida, os chamados determinantes sociais que estão intimamente ligados à realidade socioeconômica e integram uma categoria classificatória que Minayo (1994) definiu como Violência Estrutural.

Ainda de acordo com Minayo, existem fatores situacionais que podem servir como elemento potencializador, como o uso de drogas, álcool, porte de arma, a participação em subgrupos sociais, facções criminosas e torcidas de clubes de futebol, entre outros, que participam da composição do quadro da chamada Violência da Delinquência, revelada em ações fora da lei socialmente reconhecida e cuja análise necessita passar, também, pela compreensão da violência estrutural.

Outros autores, como Denisov (1986), ao analisarem a questão da violência, discutem a capacidade dos indivíduos de superarem as condições de adversidade como forma de resposta à violência estrutural e seu enfrentamento, na tentativa de restabelecer e defender a justiça, e que no contexto da classificação apresentada por Minayo (1994) é denominada de Violência de Resistência.

Ao enfocarmos a questão da violência, é necessário lembrar da crise de valores que se faz presente nas relações estabelecidas na sociedade atualmente. Segundo Costa (1984), "a violência, ao contrário da agressividade animal, traz a marca de um desejo; é o emprego desejado da agressividade, com fins destrutivos".

Analisar dados sobre violência é por si só problemático e isso se intensifica com a identificação de que os sistemas de informações sobre a morbidade por violência, no nosso país, são muito precários ou quase inexistentes, e, mesmo no caso do perfil da mortalidade por causas externas, que já vem recebendo uma maior e específica atenção do setor, ainda pode ser considerado muito limitado (Minayo, 1994).

A categoria causas externas é percebida pela mesma autora como rigorosa porque compreende uma amplitude excessiva de eventos e processos, estando nela incluídos todos os tipos de acidentes, suicídios, homicídios e lesões intencionalmente infligidas, intervenções legais, lesões resultantes de operações de guerra e lesões que se ignora serem acidental ou intencionalmente infligidas. Além disso, o conjunto desses estudos padece de subnotificação, o que, entre outras coisas, interfere nas informações policiais e médicas, permitindo que grande parte dos dados seja perdida e/ou desprezada ou considerada inconsistente.

Destacar a importância da identificação da violência a partir do seu quadro gerador, mesmo sabendo que um caso de violência quase nunca pode ser enquadrado apenas sob uma ótica geradora, é, portanto, a proposta deste estudo, que pretende trazer a debate a questão da violência entre torcedores nos estádios de futebol, como algo justificável para a nossa sociedade, já que a violência, verbal e física traduz-se em um dos principais códigos e símbolos sociais de agrupamento, principalmente de jovens das chamadas torcidas organizadas, como destaca Pimenta (1997).

A atualidade do tema e as proporções que ele vem tomando nos últimos anos, por si só, justificariam um esforço em abordá-lo sob a luz da reflexão científica, mas é a escassez de estudos sobre essa peculiar forma de expressão de violência social o principal componente motivador deste estudo (Silva, 1996).

Método

O método utilizado para a realização deste trabalho foi baseado em dados colhidos através de uma Revisão de Literatura. Na coleta de material, foram consultadas obras de referência, dentre elas livros, periódicos, anais de congressos, priorizando textos da literatura das últimas duas décadas nos idiomas português e inglês, sendo consultados também, base de dados da literatura científica on-line (Lilacs, Medline, Scielo Bireme, entre outros), utilizando os seguintes descritores: violência, futebol, torcidas organizadas.

Após o levantamento bibliográfico, foram realizados leitura, fichamento, análise e seleção de dados de acordo com o tema escolhido, para, então, chegar à redação final do artigo.

Visualização do Problema

Se tomar decisões para o enfrentamento da realidade de indignação popular contra o crescimento dos crimes violentos contra a vida e contra a propriedade que vêm ocorrendo nas principais cidades brasileiras nas últimas décadas é, portanto, algo imprescindível e inevitável. Como afirma Skaba1, é preciso saber quanto e como esse fenômeno vem sobrecarregando os setores responsáveis pelos serviços de saúde publica, para que possamos envidar esforços no sentido da elaboração de planos, programas, projetos e atividades em conformidade com as diretrizes e responsabilidades estabelecidas pelas políticas governamentais da área, assim como atuar na prevenção de doenças e dos agravos por ela originados, promovendo a adoção de comportamentos e de ambientes mais seguros e saudáveis, bem como a melhor adequação das ações relativas a assistência, recuperação e reabilitação.

O promotor Fernando Capez, da procuradoria da justiça do estado de São Paulo, citado por Lerner (1996), chama atenção para o fato de que toda semana algum incidente deixa claro que determinadas zonas de nossas principais cidades são mais perigosas para o transeunte pacífico em dias de jogos de futebol do que as sombrias regiões, outrora clássicos refúgios de criminosos, e que esse tipo de violência está relacionado principalmente às chamadas torcidas organizadas e pode ser caracterizado por atos de vandalismo, brigas e distúrbios tanto nos estádios de futebol quanto no trajeto de deslocamento de ida e volta.

Não se pode pensar, porém, em compreender o problema da violência no futebol sem perceber a constatação essencial de que ela está vinculada aos problemas da violência da sociedade como um todo e que os esforços para combatê-la têm de ser encaminhados, também, no sentido da busca por justiça social e o pleno exercício da democracia. Ao mesmo tempo em que se procura atuar sobre as causas da violência, deve-se se procurar atuar sobre as causas da pobreza e miséria do país (Reis, 2003).

Assim, qualquer ação implementada no sentido de superar a violência passa por uma articulação interdisciplinar e profissional que envolva organizações da sociedade civil e comunidades que militam por direitos e cidadania, ou seja, atuar com uma visão ampla do fenômeno, mas em perspectivas e níveis locais e específicos, visando uma sensibilização que pode determinar o desenvolvimento de uma filosofia e de métodos, técnicas e habilidades de atendimentos direcionados especificamente à questão (Sherer-Warren, 1993; Souza, 2005).

As relações da violência com o desporto são complexas e o problema assume maior dificuldade na sua análise quando percebemos que a agressividade, entendida como a força para vencer e para lutar pela vitória, isto é, como uma forma de afirmação pessoal, faz parte da sua intrínseca estrutura (Carvalho, 1985).

Se afirmação pessoal pode ser compreendida como uma forma de agressividade, ela pode ou não provocar o aparecimento de alguma forma de violência, isto é, a brutalização dos atos e desrespeito às regras de convivência, como o uso da intimidação e a rudeza nas ações. Domenach (1981), ao falar sobre a violência, adverte que suas formas mais atrozes e mais condenáveis geralmente ocultam outras situações menos escandalosas, por se encontrarem prolongadas no tempo e protegidas por ideologias ou instituições de aparência respeitável.

É neste contexto que se pode perceber o aparecimento de grupos de jovens com pouca ou nenhuma perspectiva social, irrequietos e provocadores, criminosos com fichamento na polícia e grupos de extrema direita como os skinheads, entre outros, constituindo-se as torcidas organizadas uma fonte de recrutamento dessas pessoas (Costa, 1999; Toledo, 1994).

A tradição da rixa, a venda de álcool, a atuação inadequada da polícia, a atenção da imprensa e as manipulações políticas que se produzem entre os jovens foram completando os temperos dessa caldeira que, a cada dia mais, ferve (Freitas, 2000).

Antes da Segunda Guerra Mundial, os jovens iam tradicionalmente aos jogos acompanhados pelos pais, tios ou irmãos mais velhos, ou por vários grupos etários de sua vizinhança e, assim, o seu comportamento era prioritariamente sujeito a um controle. Depois de 1960, os jovens começaram a assistir a jogos com rapazes da mesma idade, perdendo-se este mecanismo autorregulador (Reis, 2003).

Alguns elementos contribuíram para esse processo: a expansão do mercado de tempos livres especificamente voltado a jovens, a vontade destes em se deslocarem regularmente aos jogos fora de casa, o colapso do mercado de trabalho para jovens, as mudanças operadas na estrutura do futebol nos últimos trinta anos em consequência da intervenção cada vez mais acentuada do dinheiro, as tentativas de cooptação dos membros das torcidas pelos dirigentes dos clubes, o tipo de comportamento e a sensibilidade dos adeptos dos clubes em relação à própria violência e o significado que ela possui para eles, bem como o advento da televisão e o aparecimento de uma imprensa que evidencia o valor da notícia orientado por critérios comerciais (Reis, 2003; Pimenta,1999).

A partir daí, pela tradição violenta que foi se consolidando, as torcidas organizadas foram atraindo um grupo de jovens que não mais eram seduzidos pelo futebol, ou só por ele, mas pelos acontecimentos que ele lhes proporcionava. Hoje em dia esse indivíduo não é torcedor do clube, mas sim membro da torcida e, em seu nome, são promovidas verdadeiras guerras em praça pública. Uma volta à barbárie em plenos tempos modernos (Murphy e col., 1994).

É preciso agir em busca de propostas de ação mais adequadas, começando pela notificação dos dados de forma mais precisa e específica, pois, apesar de um caso de morbidade quase nunca estar contido em apenas uma rubrica, essas informações são essenciais para a implementação de políticas e estratégias de prevenção. Com a elaboração de métodos capazes de criar dados mais fidedignos haverá uma melhor compreensão dos fatores de risco e a possibilidade de avaliação mais precisa da efetividade das ações implementadas (Souza e Assis, 1989; Souza, 2005).

Minayo (1994), descrevendo as peculiaridades do quadro brasileiro, como a dificuldade de decidir o caráter de acidentalidade, direcionalidade ou intencionalidade dos atos de violência e o fato de nem todos os lesados recorrerem ao serviço público, chama atenção para o especial aspecto de que apenas alguns temas, como a violência contra a criança e contra a mulher, ainda que de forma inicial, vêm despertando o interesse de estudos e pesquisas nos últimos anos, apesar de nas Regiões Metropolitanas estarem concentradas as maiores proporções da mortalidade por violência em todas as causas específicas (homicídios, acidentes e suicídios).

Mesmo sabendo-se que desde tempos imemoriais, a violência, assim como as doenças infecciosas, são as causas principais de mortalidade prematura, não há indício significativo de ação oficial para a organização de estudos e pesquisas fundamentados em notificações dos sistemas de saúde e policial relacionado ao tema (Mello Jorge, 2001).

A Realidade de Dados e Informações

Pautado pelo seu caráter público e por seus princípios de justiça social, garantidos pela Constituição, o Sistema Único de Saúde (SUS) vem desenvolvendo pouco a pouco, em um processo de aprofundamento do debate em torno da saúde, sua tentativa de contribuição para o desenvolvimento da cidadania da nação brasileira, no caso específico da violência, desde a implantação do Sistema de Informação sobre Mortalidade, em 1976, pelo Ministério da Saúde até a implementação da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências, instituída pela Portaria GM/MS nº 737, de 16 de maio de 2001 (Brasil, 2001).

Recorrer ao monitoramento das ocorrências na vigilância epidemiológica das causas externas como uma de suas prioridades parece ser atualmente a melhor forma de se obter a real expressão da violência e possibilitar a formulação de políticas públicas de atenção, prevenção e controle, no que se refere às diversas formas específicas de violência social, inclusive a originada nos conflitos entre torcedores nos estádios de futebol.

Em busca de informações específicas sobre a violência entre torcidas e torcedores nos estádios de futebol no estado de Pernambuco, foi solicitado à Secretaria de Saúde e a Polícia Militar estaduais, em 2005, a disponibilização de dados sobre o tema, na perspectiva de que o mapeamento dessas questões pudesse ajudar a revelar a amplitude da agenda que esse tipo de violência reflete para a Saúde Pública e os efeitos diretos e indiretos que têm sobre a população pernambucana, quanto congestiona os serviços de saúde e em quanto aumentam os seus custos globais e afetam a qualidade de cobertura do sistema. Chama atenção o fato de essas informações serem muito escassas e a falta de articulação entre os setores envolvidos no assunto, que utilizam os dados existentes em busca da atuação preventiva.

Em resposta à nossa solicitação, o BPChoque da Polícia Militar de Pernambuco, através do Capitão Ronaldo, responsável por essas operações da corporação em estádios de futebol, informou que, em 2003, o efetivo deteve 828 pessoas, sendo 178 encaminhadas às delegacias, tanto as dos estádios de futebol, chamadas de Delegacias Itinerantes, quanto às de plantão (localizadas nos bairros). Em 2004, foram informadas 750 detenções e 113 prisões em face da gravidade das ocorrências. Todas essas prisões foram ocorridas por ocasião das partidas de futebol, válidas pelo Campeonato Pernambucano de Futebol e Brasileiro da Série "B" nos quais os três grandes times de futebol de Pernambuco participaram. Os dados referentes a 2005 ainda não estavam disponíveis naquele momento.

Na Secretaria de Saúde, a realidade de informações que especificamente são relacionadas ao tema foi nula. Apesar de encontrarmos interessantes estudos sobre a violência familiar, violência contra as mulheres, violência contra as crianças e a caracterização da violência por sexo e por idade, dentre outros tipos de dados, alguns ainda de forma incipiente e outros já em fase bem mais avançada de consolidação, nenhum dos estudos ou dados disponibilizados pela secretaria tratava da abordagem ou do registro de forma particularmente direcionada à violência originada a partir de conflitos em jogos nos estádios de futebol, muito menos do envolvimento de torcidas ou de torcedores.

De forma geral, isso parece ser a realidade brasileira, já que na literatura relacionada ao tema é sempre mais fácil encontrar registros das corporações militares e a falta quase total de informações orientadas sob a ótica da saúde.

Tanto a falta de registro nos atendimentos nas unidades de Saúde Pública, com um detalhamento de informações que possam ajudar não só a desvendar os detalhes mais específicos da violência, mas a compor um quadro de articulação intersetorial, interdisciplinar e multiprofissional, quanto os números apresentados pela Polícia Militar do estado de Pernambuco, que não podem ser desprezados quando pensarmos no atendimento imediato às vítimas e todo o esforço de reabilitação e readaptação que representam hoje em países como o Brasil e na sobrecarga dos serviços de emergência dos hospitais gerais, dos centros especializados e dos institutos médico-legais, remetem para a necessidade de adequação de recursos humanos e de equipamentos, o crescimento da demanda e os custos que isso representa.

Agir aqui pode significar não apenas um imenso ganho social expresso em valores, pelas cifras que poderão ser economizadas pelo estado, mas principalmente pela possibilidade de bem-estar que se pode promover aos indivíduos e à sociedade como um todo, em função da promoção de um ambiente mais seguro e saudável para o convívio social também nos estádios em dias de jogos de futebol.

Prevenção: um caminho a ser adotado

Se o desporto, no contexto das relações sociais, está longe de ser compreendido em toda a sua complexa estrutura, o que dizer então da violência? Enquanto questão pendente na existência humana há tanto tempo, a violência tem sido representada por diferentes visões (Carvalho, 1985).

Pode-se dizer que é um tipo de atividade que implica em comportamento agressivo e alguma forma de competição, e que, em qualquer marco cultural, podem-se supor dimensões de conflito social (Freitas, 2000).

Da violência, podem-se constatar paralelismos que Carvalho (1985) classificou como grotescos entre a nossa sociedade e a dos animais irracionais. O uso de critérios limitados que só a vincula às questões sociais e econômicas e com elas querem tudo explicar ou a relacionar a situações criadas a partir de um contexto de frustrações.

Para Carvalho (1985), a violência, além de não ser inata, não advém só de situações de frustração e não é provocada e condicionada pelo ambiente. Não é a visão pautada sobre o econômico que explica tudo, da mesma forma que é inadmissível aceitar que os impulsos agressivos são o problema da violência, neste caso, a violência concentrada no cenário do desporto, do futebol, mais particularmente das torcidas, sejam elas espontâneas ou estruturalmente organizadas.

Formamos um imenso território, com grandes diversidades regionais e subjetividades multiculturais, que singularizam os riscos de convivermos com desigualdades sociais históricas inter e intrarregionais que determinam a carga das doenças. Esse é o cenário que compõe a complexidade de nossa realidade e de nossos desafios (Da Matta, 1982).

Temos que pensar em como prevenir, por exemplo, os homicídios, que é a causa específica de mortalidade em maior crescimento hoje no Brasil, Identificar a população jovem, de baixa renda, de baixa qualificação profissional e sem perspectivas no mercado de trabalho formal, que vivem em Regiões Metropolitanas, como o principal grupo de risco é um passo. Identificar fenomenicamente os efeitos da violência social através do mapeamento da morbidade é outro (Minayo, 1994; Simões, 2002).

A violência que toma conta das cidades e, por consequência, dos estádios de futebol, está mais relacionada à miséria econômica e espiritual do que à existência de torcidas organizadas e, via de regra, ela é o elemento aglutinador e constitutivo dos agrupamentos de torcedores. Nota-se que, no entendimento dessa modalidade de violência, aos olhos tanto dos torcedores quanto das autoridades esportivas, os argumentos explicativos permanecem no eixo do econômico e da classe social como seus determinantes (Pimenta, 1997).

De acordo com dados do promotor Fernando Capez, da procuradoria da justiça de São Paulo, citado por Lerner (1996), constatou a existência de sequestradores, ladrões e traficantes e todo tipo de criminoso no meio das torcidas organizadas. Verificou-se, também, que 15% dos integrantes das torcidas organizadas tinham antecedentes criminais, e, só na Mancha Verde, torcida organizada do Palmeiras, com 21 mil associados, havia cerca de 3.150 marginais fichados na polícia.

São os membros das camadas sociais em total exclusão, que representam a maioria dos torcedores componentes das torcidas organizadas, os responsáveis pela maioria dos distúrbios e conflitos de violência, dentro e fora dos estádios de futebol. Mas será que eles teriam se exposto à delinquência se tivessem outras opções mais atraentes para suas vidas? As causas estão associadas às extremas desigualdades sociais que se aprofundaram ainda mais a partir da década de 1980 (Silva, 1996). Essa situação estrutural é agravada, conjunturalmente, pela organização do crime em torno do narcotráfico e do uso de drogas nos grandes centros urbanos, fenômeno que, além de atrair grandes contingentes de jovens, envolve autoridades públicas e empresários, penetrando em todas as camadas sociais (Reis, 2003).

Segundo Reis, essas condições demandam a compreensão de que os fatores de risco e, em consequência, as estratégias de prevenção estão ligados a causalidades específicas e, ao mesmo tempo, a fatores gerais dinâmicos e potencializadores de difícil dimensionamento. A prevenção, portanto, passa por uma mudança mais profunda do estado e da sociedade, sobretudo por um processo de democratização política, social, econômica e cultural, em que o setor saúde entra como comparsa de um projeto de nação capaz de avançar na cidadania e na equidade. A prevenção tem que atuar, em primeiro lugar, na sensibilização e no avanço da consciência social. A atuação mais eficaz concentra-se hoje na realização de estudos-diagnósticos sobre situações específicas e no estabelecimento da vigilância e do monitoramento de mudanças de processos e ambientes, em que o setor saúde concorre para a estruturação de um projeto de nação capaz de avançar para o que costumamos chamar de cidadania, que passa necessariamente pela questão da equidade (Pimenta, 1997, 1999; Reis, 2000, 2003; Toledo, 1996).

Considerações Finais

As relações de violência com o desporto são complexas e não se pode pensar em compreendê-la sem perceber a constatação essencial de que ela está vinculada aos problemas da violência da sociedade como um todo.

A introdução da temática da violência entre torcedores nos estádios de futebol enquanto questão de Saúde Pública visa à sensibilização voltada para o desenvolvimento de uma filosofia que se articule a métodos, técnicas e habilidades específicas de atendimento e integre esforços e pontos de vista de várias disciplinas, setores, organizações e comunidades.

As pesquisas científicas são componentes fundamentais neste contexto, fornecendo informações essenciais para a implementação de políticas, estratégias de prevenção e métodos capazes de criar dados mais fidedignos, inclusive para a avaliação da efetividade das ações e a notificação destaca-se, nesse caso, como um importante instrumento de controle epidemiológico da violência, não só em função da ação pontual exercida contra ela, mas também por sua ação política global e, principalmente, pela possibilidade de entendimento que nos pode oferecer sobre o fenômeno, auxiliando tanto na prevenção quanto na estruturação de outros estudos.

Recebido em: 17/07/2007

Aprovado em: 22/04/2008

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Set 2008
    • Data do Fascículo
      Set 2008

    Histórico

    • Aceito
      22 Abr 2008
    • Recebido
      17 Jul 2007
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