Resumos
Dentre os trabalhadores, a categoria mais numerosa que faz uso profissional da voz é a dos professores. Este artigo teve por objetivo discutir, sob a óptica do professor, o uso da voz na prática docente e a prevenção de problemas vocais. Trata-se de um estudo de caso qualitativo-descritivo com 25 professores. Com base num roteiro semiestruturado foram realizadas entrevistas a fim de conhecer a relação dos sujeitos com suas vozes, a relação dos sujeitos com o trabalho docente e obter sugestões de ações preventivas. Os resultados indicaram que a alteração vocal era percebida, mas geralmente atribuída maior importância ao fato de fazer-se compreender e de exercer controle sobre os alunos em sala de aula. Os professores que ainda não tinham problemas vocais conheciam colegas que tinham, reconheciam o risco ao qual estavam expostos e, aparentemente, consideravam-no uma consequência natural e esperada da prática docente. Acreditavam que as intervenções com os alunos, o apoio da entidade empregadora, a presença de especialistas na escola e o trabalho com as necessidades específicas que enfrentam em sala de aula, poderiam ajudar a preservar suas vozes.
Docentes; Saúde do Trabalhador; Condições de Trabalho; Prevenção de Doenças; Distúrbios da Voz
Among workers, the largest category that makes professional use of the voice is that of teachers. This article aims to discuss, from the teacher's perspective, the use of the voice in the teaching practice and the prevention of vocal problems. It is a qualitative-descriptive case study carried out with 25 teachers. Based on a semi-structured script, interviews were conducted to ascertain the subjects' relationship with their voice and with the teaching work, and also to receive suggestions for preventive actions. Results indicated that the voice alteration was perceived, but the teachers usually gave more importance to making sure they were being understood and to exerting control over the students. The teachers who had not had vocal problems yet knew colleagues who had; they knew the risk to which they were exposed and, apparently, they regarded it as a natural and expected consequence of the teaching practice. They believed that interventions with the students, the employer's support, the presence of specialists in the school and the work with the specific needs they face in the classroom could help them preserve their voices.
School Teachers; Occupational Health; Voice Disorders; Disease Prevention; Speech Therapy
PARTE 1 - ARTIGOS
Problemas vocais no trabalho: prevenção na prática docente sob a óptica do professor1 1 Artigo baseado na dissertação de mestrado de Karen Fontes Luchesi, "Desenvolvimento de um programa de aprimoramento vocal numa escola de ensino fundamental do município de Campinas: estudo de caso", apresentada à Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas em 2008. Pesquisa não financiada.
Vocal problems at work: prevention in the teaching practice according to the teacher's view
Karen Fontes LuchesiI; Lucia Figueiredo MourãoII; Satoshi KitamuraIII; Helenice Yemi NakamuraIV
IFonoaudióloga. Mestre em Saúde Coletiva pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas. Endereço: (CEPRE/FCM/Unicamp), Av. Tessália Vieira de Camargo, nº 126, Cidade Universitária, CEP 13083-887, Campinas, SP, Brasil. E-mail: karenluchesi@yahoo.com.br
IIFonoaudióloga. Doutora em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo. Professora do Curso de Fonoaudiologia da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Endereço: (CEPRE/FCM/Unicamp), Av. Tessália Vieira de Camargo, nº 126, Cidade Universitária, CEP 13083-887, Campinas, SP, Brasil. E-mail: lumourao@fcm.unicamp.br
IIIMédico do Trabalho. Doutor em Ciências Médicas pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas. Professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social (Área de Saúde do Trabalhador), Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Endereço: Caixa Postal 6046, Unicamp, CEP 13083-970, Campinas, SP, Brasil. E-mail: satoshi@fcm.unicamp.br
IVFonoaudióloga. Doutora em Ciências Médicas pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas. Professora do Curso de Fonoaudiologia da Faculdade Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Endereço: (CEPRE/FCM/Unicamp), Av. Tessália Vieira de Camargo, nº 126, Cidade Universitária, CEP 13083-887, Campinas, SP, Brasil. E-mail: hnakamura@fcm.unicamp.br
RESUMO
Dentre os trabalhadores, a categoria mais numerosa que faz uso profissional da voz é a dos professores. Este artigo teve por objetivo discutir, sob a óptica do professor, o uso da voz na prática docente e a prevenção de problemas vocais. Trata-se de um estudo de caso qualitativo-descritivo com 25 professores. Com base num roteiro semiestruturado foram realizadas entrevistas a fim de conhecer a relação dos sujeitos com suas vozes, a relação dos sujeitos com o trabalho docente e obter sugestões de ações preventivas. Os resultados indicaram que a alteração vocal era percebida, mas geralmente atribuída maior importância ao fato de fazer-se compreender e de exercer controle sobre os alunos em sala de aula. Os professores que ainda não tinham problemas vocais conheciam colegas que tinham, reconheciam o risco ao qual estavam expostos e, aparentemente, consideravam-no uma consequência natural e esperada da prática docente. Acreditavam que as intervenções com os alunos, o apoio da entidade empregadora, a presença de especialistas na escola e o trabalho com as necessidades específicas que enfrentam em sala de aula, poderiam ajudar a preservar suas vozes.
Palavras-chave: Docentes; Saúde do Trabalhador; Condições de Trabalho; Prevenção de Doenças; Distúrbios da Voz.
ABSTRACT
Among workers, the largest category that makes professional use of the voice is that of teachers. This article aims to discuss, from the teacher's perspective, the use of the voice in the teaching practice and the prevention of vocal problems. It is a qualitative-descriptive case study carried out with 25 teachers. Based on a semi-structured script, interviews were conducted to ascertain the subjects' relationship with their voice and with the teaching work, and also to receive suggestions for preventive actions. Results indicated that the voice alteration was perceived, but the teachers usually gave more importance to making sure they were being understood and to exerting control over the students. The teachers who had not had vocal problems yet knew colleagues who had; they knew the risk to which they were exposed and, apparently, they regarded it as a natural and expected consequence of the teaching practice. They believed that interventions with the students, the employer's support, the presence of specialists in the school and the work with the specific needs they face in the classroom could help them preserve their voices.
Keywords: School Teachers; Occupational Health; Voice Disorders; Disease Prevention; Speech Therapy.
Introdução
É amplamente conhecido que dentre os trabalhadores, a categoria mais numerosa que faz uso profissional da voz é a dos professores. No período de 1995 a 2005, aproximadamente, 307 trabalhos sobre a voz desses profissionais foram publicados no âmbito nacional (Dragone e Behlau, 2006). Alguns estudos apontam uma porcentagem de 54% a 79,6% de problemas relacionados à voz (Ferreira e col., 2003; Simões e Latorre, 2006; Tavares e Martins, 2007). Todos chegaram à conclusão de que os riscos de esses profissionais desenvolverem alterações vocais de origem ocupacional é significativamente alto (Smith e col., 1997; Delcor e col., 2004; Roy e col., 2004; Araújo e col., 2008).
O impacto ocupacional na voz do professor também está presente em países como os Estados Unidos. Um estudo realizado em 2004 encontrou prevalência de problemas vocais, significantemente, maior em professores (11%) do que em não professores (6,2%) (Roy e col., 2004).
Embora o professor utilize a voz de forma prolongada e excessiva, sua alteração vocal não pode e não deve ser atribuída apenas a esse fato (Gonçalves e col., 2005). Existem outros aspectos inerentes ao desenvolvimento do seu trabalho que permeiam o processo saúde-doença.
A alteração vocal do professor precisa ser compreendida e não apenas eliminada. É necessário considerar, além do sofrimento físico e fisiológico, o desgaste decorrente da vivência das condições ambientais e do contexto de seu trabalho (Gianinni e Passos, 2006). Essa classe profissional está exposta a fatores de risco de difícil solução, que trazem situações complexas e interdependentes do trabalho (Dragone e Behlau, 2006). Acredita-se que a prática docente compreenda as relações sociais com alunos e gestores, o processo ensino-aprendizagem, o sistema de leis e normas educacionais vigentes, os aspectos ambientais, entre outras condições objetivas e subjetivas do trabalho.
A saúde dos professores está sujeita às instalações precárias, à falta de reconhecimento e valorização do trabalho, à falta de equipamentos e recursos materiais, às relações conturbadas com alunos e gestores, às jornadas extensas de trabalho, às exigências criadas pelos projetos governamentais e à precariedade na atenção à saúde (Brito e Athayde, 2003; Jardim e col., 2007; Araújo e col., 2008).
Devido ao frequente aparecimento de alterações vocais nos trabalhadores dessa classe, profissionais da saúde e da educação têm considerado de grande importância os trabalhos de caráter preventivo (CEREST, 2006).
Na fonoaudiologia brasileira, a área de prevenção e promoção da saúde é uma das mais recentes e encontra-se em processo de conquista de suas especificidades e caracterização de sua práxis (Penteado e Servilha, 2004). Apenas 2,3% dos trabalhos desenvolvidos, entre 1995 e 2005, são voltados para intervenções com professores, no âmbito da voz (Dragone e Behlau, 2006). Raras são as ações baseadas na óptica do professor sobre seu problema de voz, a maioria baseia-se em pressupostos teóricos sobre o que seria mais adequado para esses trabalhadores, com um olhar muitas vezes organicista e comportamental.
Acredita-se que para discutir a prevenção é preciso dar voz aos professores, oferecer espaço para a colocação de seus anseios e conhecer a visão com a qual contemplam as questões presentes no desenvolvimento de seu trabalho. Compreendidas as suas reais necessidades, ampliam-se as chances de se construir ações preventivas eficazes.
O objetivo deste artigo é discutir, sob a óptica do professor, o uso da voz na prática docente e a prevenção de problemas vocais.
Métodos
Com o objetivo de conhecer e compreender melhor o uso da voz e suas implicações, desenvolveu-se um estudo de caso qualitativo. O desenho do estudo visou explorar e focalizar a realidade dos professores de forma contextualizada.
O estudo foi desenvolvido numa escola estadual, situada no Distrito de Saúde Leste do município de Campinas, estado de São Paulo, Brasil. Trata-se de uma escola de ensino fundamental, inserida no projeto do Governo do Estado de São Paulo intitulado "Escola de Tempo Integral". Em 2007, ano em que o estudo foi realizado, havia 26 professores presentes na escola (24 do gênero feminino e dois do gênero masculino).
Com o intuito de estudar a prevenção na temática "voz do professor", um programa de aprimoramento vocal foi desenvolvido nessa escola. O programa era composto de avaliação laringológica, intervenção preventivo-terapêutica em grupo, avaliação fonoaudiológica pré/pós-participação no grupo e entrevistas. Este artigo dedica-se à divulgação, análise e discussão dos dados das entrevistas.
As entrevistas foram realizadas na própria escola durante os intervalos das aulas da manhã e da tarde. Foram gravadas em arquivos de áudio e posteriormente transcritas. Seguiram um roteiro semiestruturado (AnexoAnexo), elaborado pelos autores e previamente submetido a um pré-teste, construído sob três eixos de investigação: relação dos sujeitos com suas vozes, relação dos sujeitos com o trabalho e sugestões de ações preventivas. Apenas um, dos 26 professores, não participou por estar de licença maternidade.
Após várias leituras do material transcrito, os temas de maior ocorrência no discurso dos entrevistados foram agrupados em categorias. Baseadas nos três eixos de investigação do roteiro das entrevistas as respostas dos professores foram categorizadas em: prática docente, saúde/doença e ações preventivas. Tanto a relação dos sujeitos com as suas vozes, quanto a sua relação com o trabalho puderam ser agrupadas nas categorias "prática docente" e "saúde-doença". As sugestões de ações compuseram apenas a categoria "ações preventivas".
A categoria "prática docente" compreendeu os temas: relação com alunos, relação com gestores e outros professores; reconhecimento e valorização da profissão; recursos econômicos e financeiros; intensificação do trabalho; aspectos ambientais; afeição e dedicação à profissão.
Visto que a relação "saúde-doença" vai muito além de fatores biológicos e que o "processo saúde-doença" compreende dimensões sócio-histórico-culturais (Minayo, 1997), nesta categoria foram incluídos os seguintes temas: concepção de voz adequada à profissão e referência a problemas vocais.
A categoria "ações preventivas" abrangeu os temas: trabalho com os alunos, presença de especialistas na escola, apoio do empregador e programas específicos para a sala de aula.
Considerando os temas, as reflexões e as formulações dos sujeitos, a análise dos dados se deu de forma qualitativa, exploratória e reflexiva. Para não haver identificação dos participantes, eles foram nomeados com iniciais fictícias
O estudo foi conduzido dentro dos padrões exigidos pela declaração de Helsinque e aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas em julho de 2007 (CEP Nº484/2007).
Resultados e Discussão
Com o intuito de facilitar a compreensão do leitor, os dados são apresentados e simultaneamente discutidos com base na literatura atual. Os exemplos que ilustram cada uma das categorias, anteriormente citadas, foram extraídos das falas dos sujeitos
"Prática docente"
Observou-se que os sujeitos encontraram no decorrer dos anos, inúmeros fatores que dificultaram o seu trabalho. O amor às crianças e à "educação" parece motivá-los a continuar, mesmo em condições de trabalho bastante desfavoráveis.
Na literatura, há referência ao enfrentamento por parte dos professores, de problemas como: cansaço e transtorno mental, sintomas vocais, relacionamento ruim com alunos, indisciplina, desrespeito, salas inadequadas, ambiente estressante, ritmo de trabalho acelerado, desempenho de atividades sem materiais adequados ou disponíveis e/ou com equipamentos inadequados, falta de reconhecimento e valorização, problemas políticos e governamentais, relações autoritárias, falta de autonomia, número excessivo de alunos, entre outros (Delcor e col., 2004; Brito e Athayde, 2003; Giannini e Passos, 2006; Jardim e col., 2007; Penteado e Pereira, 2007; Araújo e col., 2008).
Os problemas citados podem afetar a saúde vocal desses profissionais, uma vez que a voz carrega elementos não apenas orgânicos, mas também psicológicos, ambientais e socioeconômico-culturais (Behlau e col., 2004).
Nas entrevistas, houve inúmeras referências à indisciplina dos alunos. A falta de disciplina, muitas vezes presente na sala de aula, faz crescer a probabilidade de o professor desenvolver problemas vocais, pois o conduz ao aumento da intensidade vocal e, consequentemente, ao esforço fonatório (I). Assim como Tuleski e colaboradores (2005), acredita-se na importância de auxiliar o professor, de modo que sua prática pedagógica possa também refletir na redução da indisciplina dos alunos em sala de aula.
(I) O que atrapalha muito são as questões relacionadas à atitude, limites, respeito a regras, porque ainda tem criança que não respeita. (Z.)
Às vezes, por mais que eu fale alto, a bagunça deles está pior. (H.)
Merece atenção fatores como a desvalorização da profissão (II), as condições de trabalho inadequadas, os fatores pessoais e interpessoais (III), pois têm levado um número crescente de professores a abandonar a profissão (Lapo e Bueno, 2002).
(II) Há descaso e desinteresse do governo [...] há desvalorização da nossa classe, não há compromisso nas famílias das crianças. (R.)
(III) Em alguns lugares ser professor é entrar na sala de aula, fechar a porta e dar a aula, você não tem apoio. (H.).
Falta organização e trabalho coletivo [...] as pessoas não estão dispostas a trabalhar juntas. (A.)
Segundo Gasparini e colaboradores (2005), condições objetivas, como falta de material (IV) e ambiente físico inadequado (VI), e subjetivas, como relações interpessoais com alunos (I) e/ou com gestores (III), são as principais causas de estresse nessa população. A intensificação do trabalho, muito comum entre professores é, também, um possível causador de estresse e/ou outros problemas emocionais (V). De acordo com os autores, os transtornos psiquiátricos têm sido um dos maiores responsáveis pelo afastamento de professores nos últimos anos.
(IV) A gente esbarra na falta de acesso a fotocópias, por exemplo. Se você quer desenvolver outra atividade, tem que usar o mimeógrafo, aí a escrita não fica clara para as crianças. (U.)
(V) Vai chegando uma hora, principalmente nos finais de bimestre, de semestre e de ano que é uma correria danada. (R.)
Quanto aos aspectos ambientais, os professores referem excesso de ruído (VI), que também é um fator de risco para a disfonia, levando-os à competição sonora e aumentando o esforço vocal realizado durante a aula. A Norma Brasileira NBR 10.152 da ABNT (ABNT, 1987), preconiza que o nível de ruído em uma escola seja de até 45 dBA. Num estudo realizado na cidade de Piracicaba, estado de São Paulo, foi encontrado ruído entre 55dBA e 102dBA nas salas de aula da escola estudada (Libardi e col., 2006). Segundo os autores, o nível de ruído encontrado pode acarretar sintomas como tontura, insônia, problemas digestivos e circulatórios, desatenção, irritabilidade, diminuição da inteligibilidade de fala e disfonia. A título de elucidação, vale lembrar que 55 dBA representa mais que 8 vezes a energia sonora correspondente a 45 dBA.
(VI) Acho que se o nível de ruído fosse menor minha voz estaria num tom melhor. (G.)
Existem barulhos internos e externos, me sinto pressionada e acabo querendo competir com todos os sons. (B.)
Todos os professores referiram afeto à profissão e alguns relataram tê-la escolhido desde a infância (VII). Explicitaram o amor ao trabalho, às crianças e à educação. Essa convicção também pôde ser percebida em um estudo realizado no Hospital do Servidor Público em São Paulo (Gianinni e Passos, 2006). Ao estudarem o depoimento de professoras que apresentavam alterações vocais, os autores observaram uma ruptura entre a idealização de ser professora e o enfrentamento das condições reais de trabalho. No discurso dos sujeitos, o prazer e a dor de trabalhar como professoras eram concomitantes.
(VII) Tenho paixão por ensinar, não sei o que seria de mim sem ensinar. (O.)
Acho que já está no sangue, adoro minha profissão. (M.)
Foi a profissão que eu realmente escolhi, desde pequena eu brincava de professora [...] amo muito o que faço, eu gosto, dou aula por amor. (J.)
É um sonho que estou realizando. (M.)
Gosto muito de trabalhar como professora de criança, pelo contato, pela possibilidade de interferir, de provocar, de estimular, de ajudar, de trabalhar na criação, na formação do ser humano. (N.)
É muito gratificante trabalhar com criança, eu gosto muito pela afetividade, tem um afeto mútuo. (R.)
Você está educando o ser humano para o exercício da cidadania, trazendo conhecimentos novos, onde o aluno pode interagir com o mundo. (L.)
"Saúde-doença"
Para os 25 professores entrevistados, a voz adequada à profissão apresenta pitch grave e loudness aumentada2 2 Os termos pitch e loudness referem-se, respectivamente, à sensação psicofísica de freqüência e da intensidade da voz. (VIII). A rouquidão, o cansaço vocal e as falhas na voz são percebidos, mas geralmente é atribuída maior importância ao fato de fazer-se compreender e de exercer o controle sobre os alunos em sala de aula (IX).
(VIII) Acho que nós precisamos ter um tom de voz grave, e a minha voz eu considero grave, as crianças conseguem ouvir legal. (L.)
Acho [minha voz] muito fina. Às vezes fico meio rouca, aí começo a gostar, acho bonito. (O.)
Professor não pode falar muito baixinho [...] tem que se impor e ter um tom acima da conversa dos alunos. Não pode ser aquela coisinha baixa, se você chama atenção em uma intensidade muito baixa eles nem ligam. (J.)
[Minha voz] é meio forte, acho que para minha profissão essa voz é legal, meio grave [...] eu preciso dessa voz para a galerinha me ouvir. (R.)
Para eles, a voz tem como principal objetivo envolver os alunos no ensino e na aprendizagem. O estudo da psicodinâmica vocal consegue descrever as impressões que os diferentes tipos de voz causam no ouvinte (Behlau e col., 2004). Para o professor, a impressão transmitida aos alunos é de extrema importância, pois dela pode depender sua aceitação ou rejeição. Ao citarem que o professor precisa de uma voz "forte" e "grossa", na verdade, o que desejam é fazer a classe sentir que se trata de um professor com autoridade e energia para controlá-la, impondo respeito e conseguindo que os alunos sigam as suas orientações. Enquanto o detentor de uma voz "fraca" e "fina" pode rejeitá-la por acreditar que transmita fragilidade e imaturidade, e que não consiga passar aos alunos a impressão de que gostaria.
O problema é que ao tentarem modificar suas vozes, para chegarem ao padrão desejado, produzem ajustes musculares inadequados que perduram durante todo o dia de trabalho e ao final, encontram-se fadigados e com a qualidade vocal alterada. De acordo com um estudo realizado na Finlândia, a voz do professor se modifica durante o dia de trabalho, apresentando mudanças, por exemplo, no tempo e na frequência de vibração das pregas vocais (Rantala e col., 2002).
As alterações vocais ficam em segundo plano, devido à dedicação desses profissionais ao ensino (IX). Alguns autores comentam a falta de percepção ou o excesso de tolerância à disfonia (Gianinni e Passos, 2006; Penteado e Pereira, 2007). Os resultados deste estudo evidenciaram a preocupação com os alunos, muitas vezes não importando a dor no final do dia, contanto que tenham conseguido transmitir o conteúdo previsto e mantido o controle da classe. Os discursos revelam certo desconhecimento de seus limites físicos e psicoemocionais. Centralizam a Educação e muitas vezes deixam de atentar para a sua saúde. Em sua formação, carece de preparo para a utilização de esse importante instrumento de trabalho que é a voz.
(IX) Quando a gente quer um pouco mais de disciplina na sala de aula, temos que elevar a voz para que eles nos ouçam [...] quando tem que exceder a voz às vezes ela acaba falhando. (T.)
Às vezes dá um probleminha na voz, mas gosto dela. É um tom bom, um timbre bom e no meu serviço dá para trabalhar legal. A única coisa é que às vezes eu fico um pouquinho rouca. (M.)
Na sala com as crianças é difícil não recorrer à alteração da voz, falar mais alto e tal, porque elas são bem mais que a gente e dão trabalho (N.)
O professor precisa estar ciente de que vozes disfônicas também prejudicam o aprendizado do aluno. De acordo com uma pesquisa realizada na Inglaterra, a voz do professor interfere no desempenho dos alunos, principalmente nas habilidades de compreensão, análise e síntese auditiva (Rogerson e Dodd, 2005).
Torna-se evidente que os professores que ainda não tiveram problemas vocais conhecem colegas que já tiveram, reconhecem o risco ao qual estão expostos e, aparentemente, consideram-no uma consequência natural da prática docente (X).
Os relatos a seguir reforçam os achados de inúmeros estudos sobre a prevalência de alterações vocais nessa categoria profissional (Smith e col., 1997; Rantala e col., 2002; Ferreira e col., 2003; Roy e col., 2004; Simões e Latorre, 2006; Tavares e Martins, 2007; Araújo e col., 2008).
(X) Eu perdi uma parte do agudo da minha voz dando aula [...] o mês de junho é mês de festa junina, tem ensaio todos os dias [...] fico mais cansada para falar, minha garganta às vezes dói e eu fico até um pouco rouca. (U.)
Este ano já fiquei sem voz, fico rouca direto, minha voz não está normal. (O.) Quando tenho que falar um pouquinho mais alto com eles eu fico rouca [...] tenho atestado do meu problema de voz. (M.)
A maioria dos professores tem problema com a voz, problema nas cordas vocais devido a falar muito alto. (C.)
Eu já vi vários professores afastados por dificuldades com a voz. (Q.)
Eu percebo que muitos professores têm problemas de voz, eu ainda não [...] mas é a tendência. (R.)
"Ações Preventivas"
Os professores citaram aspectos que poderiam auxiliá-los no uso da voz em sala de aula. Alguns veem no trabalho com os alunos o caminho para a saúde da voz (XI). Para eles, um programa que melhore o comportamento dos alunos seria fundamental para ter um uso da voz mais saudável em sala de aula. Entretanto, ainda são praticamente inexistentes os estudos com esse foco de atuação.
(XI) Deveria ser realizado um trabalho com as crianças, elas vêm gritando muito e isso é uma questão de educação que traz consequências para a voz do professor. (N.)
Acho que teria que ser desde a pré-escola, trabalhando regras e limites com as crianças. (Z.)
A presença permanente de profissionais, como o fonoaudiólogo e o psicólogo (XII), nas escolas seria um apoio para as questões da rotina escolar que afetam a saúde vocal e mental. No entanto, a atuação dos profissionais da equipe de saúde na escola não deve ter caráter assistencialista, mas de prevenção e promoção à saúde.
(XII) Acho que a escola deveria ter profissionais como fonoaudiólogo [...] e psicólogo para auxiliar na parte de tensão emocional, porque acredito que a voz está relacionada com isso também. (B.)
A presença de uma fono trabalhando essa parte de relaxamento [...] uma psicóloga ajudando a entender melhor a situação na qual nos encontramos. (S.)
Se o trabalho preventivo é fundamental e, de forma geral, a saúde do professor é básica, deve-se recorrer a diversas instâncias, seja de cunho político seja de ordem profissional (por exemplo, entidades sindicais ou associações de classe) para que mais esse item seja incluído como obrigação do empregador. A saúde do professor se enquadra perfeitamente dentro da filosofia e das políticas de saúde e educação e, portanto, deve ser considerada responsabilidade da entidade empregadora, seja privada ou pública (XIII).
(XIII) Poderiam não somente trazer cursos de matemática, língua portuguesa, história e geografia, acho que estes cursos [de voz] também são importantes, porque não adianta nada passarem o que temos que trabalhar e o nosso tom de voz não ser trabalhado. (H.) Seria importante tentar parceria com o Estado, como eles dão aula de capacitação [...] é uma forma de prevenir afastamentos por causa de problemas vocais. (A.)
Na literatura, há menção a programas de aprimoramento vocal que enfocam os cuidados com a voz e as técnicas vocais (Grillo, 2004; Zenari, 2006; Bovo e col., 2007; Niebudek-Bogusz e col., 2008). Há autores que observam um distanciamento entre as necessidades dos professores e o que as ações preventivas atuais costumam oferecer (Penteado, 2007). Segundo Grillo (2004), os sujeitos não incorporam à rotina todo o conteúdo trabalhado nos cursos e, de acordo com Zenari (2006), a ocorrência de comportamentos de risco não muda durante o período em que os cursos são desenvolvidos. Questiona-se a necessidade de as intervenções terem como principal objetivo os cuidados com a voz. Há necessidade de reestruturarem-se as ações preventivas, a fim de que elas levem em consideração as condições ambientais relacionadas ao desenvolvimento do trabalho docente (Penteado, 2007).
O tempo do professor é escasso, a maioria trabalha em mais de uma escola e ainda tem família e filhos. Quando ganha espaço para opinar, sugere atuações que mostram que o problema não é estático, é concomitantemente à dinâmica da Educação. O enfoque nos cuidados com a voz e no aquecimento vocal é benéfico, mas as crianças também precisam conhecer seus limites, o Estado precisa direcionar um cuidado maior para a saúde do professor. Fonoaudiólogos, médicos, engenheiros, fisioterapeutas, psicólogos, entre outros, precisam conhecer o contexto da sala de aula para buscarem soluções, além das convencionais (XIV). É de amplo conhecimento que o professor apresenta grande prevalência de problemas vocais e os esforços devem ser direcionados à procura do melhor caminho preventivo.
(XIV) Penso que deveríamos ter alguma coisa para o dia a dia mesmo, para as situações de aula. A pessoa que fosse passar as informações deveria ter a experiência de sala de aula para conhecer nossas necessidades e então nos auxiliar. (U.)
Acho importante focalizar o professor nas condições de trabalho dele [...] ter uma dimensão da dificuldade que o professor enfrenta todos os dias e de como acaba sendo esta questão da voz [...] então seria possível desenvolver técnicas mais contextualizadas. (N.)
Alguns estudos apontam o professor como principal responsável pela elevada prevalência de alterações vocais em sua classe profissional, seja pelo uso da voz com tensão, pela loudness elevada para controlar os alunos ou pela falta de conhecimento dos cuidados com a voz. Sob a óptica do professor, é preciso desenvolver ações que focalizem não apenas o educador, mas também os sujeitos dessa educação; que forneçam subsídios para o enfrentamento das questões objetivas e subjetivas presentes no desenvolvimento de seu trabalho; que compreendam a dinâmica da sala de aula e o uso da voz nesse contexto.
Além disso, ao se considerar a escola como um espaço privilegiado de construção, é preciso envolver alunos, familiares, gestores e outros funcionários na promoção da saúde na escola.
Sob a óptica dos autores deste artigo, além desses aspectos, o professor precisa tomar ciência da dimensão que a voz ocupa na educação, pois só será capaz de transformar o seu trabalho se conseguir compreendê-lo. O sentido que o sujeito atribui ao trabalho e a forma como ele vê o mundo afetam sobremaneira o enfrentamento das condições de trabalho e a busca por soluções para as adversidades emergentes no seu desenvolvimento (Guérin e col., 2001).
Considerações Finais
Os resultados deste estudo mostram a importância de intervenções multidisciplinares na promoção e prevenção da saúde vocal do professor, embora esse fato não seja evidenciado na percepção de alguns professores.
Seria oportuno que fosse introduzido na formação docente, o conhecimento e o desenvolvimento de recursos didáticos verbais e não verbais, para reduzir a sobrecarga no sistema de produção da voz.
Ao se desenvolver um programa de intervenção, parece fundamental considerar-se o ponto de vista do professor. Esses programas deveriam ser disponibilizados a todos os professores, buscando amenizar os efeitos do trabalho sobre sua saúde e qualidade de vida, não se olvidando as outras providências que visem melhorar as condições de trabalho e consequentemente minorar os problemas com a voz.
Recebido em: 11/12/2008
Reapresentado em: 05/05/2009
Aprovado em: 12/05/2009
Roteiro das entrevistas
1) Você gosta da sua voz?
2) Acha que ela é adequada para o exercício da sua profissão?
3) Você sente dificuldades em relação ao uso da voz em sala de aula? Quais?
4) Cite pontos positivos e negativos relacionados à sua voz.
5) Você gosta de trabalhar como professor? Por quê?
6) Você gosta de trabalhar nesta escola? Por quê?
7) Você enfrenta dificuldades no desenvolvimento do seu trabalho? Quais?
8) Que tipo de trabalho você acha que seria importante ou interessante para lhe dar um suporte em relação ao uso da voz?
9) Como professor, utilizaria alguma argumentação para solicitar apoio para um programa como este? A quem seria feita essa solicitação? Quais seriam seus argumentos?
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Anexo
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Dez 2009 -
Data do Fascículo
Dez 2009
Histórico
-
Revisado
05 Maio 2009 -
Recebido
11 Dez 2008 -
Aceito
12 Maio 2009