Resumos
Os profissionais da Estratégia Saúde da Família (ESF) atuam em comunidades onde a complexidade de problemáticas médico-sociais pode levá-los a sofrer psicologicamente, com prejuízos ao atendimento aos usuários e à consolidação da ESF como modelo de reorganização da atenção básica no Brasil. Esse estudo investigou as dificuldades e as formas de enfrentamento referidas por profissionais de equipes da ESF frente às demandas médico-sociais apresentadas pelos usuários em seu cotidiano de trabalho. Grupos focais e entrevistas semiestruturadas foram realizados com 68 profissionais de três Unidades de Saúde da Família da cidade de São Paulo. Tráfico e uso de drogas ilícitas, alcoolismo, depressão e violência doméstica são as demandas mais significativas para o grupo estudado. Frente a elas, os profissionais referem formação profissional e capacitação técnica insuficientes, sobrecarga e condições desfavoráveis de trabalho, com sentimentos de impotência e frustração. No enfrentamento das dificuldades, destacam-se as estratégias coletivas, especialmente as reuniões de equipe e apoio matricial, nas quais há troca de experiências, conhecimentos e apoio compartilhado. Os resultados indicam que as dificuldades referidas podem deixar os profissionais da ESF em situação de vulnerabilidade, tal como os usuários por eles atendidos. O investimento no desenvolvimento de competências, o fortalecimento de estratégias de enfrentamento coletivas, assim como maior articulação com as redes de serviços e as lideranças locais, mostram-se necessários para que os profissionais de saúde atuem com menor estresse frente às complexas demandas médico-sociais presentes em seu cotidiano de trabalho, e assim contribuam na consolidação da ESF.
Pessoal de Saúde; Conhecimentos, Atitudes e Prática em Saúde; Saúde da Família; Pesquisa Qualitativa
Professionals of Family Health Strategy (FHS) work in communities where there are complex medical social problems. These contexts may lead them to psychological suffering, jeopardizing their care for the users, and creating yet another obstacle to the consolidation of FHS as the primary health care model in Brazil. The study investigated the difficulties and coping strategies reported by health professionals of the FHS teams when they face medical social needs of the communities where they work. Focus groups and semi-structured interviews were carried out with 68 professionals of three primary care units in the city of São Paulo (Southeastern Brazil). Drug dealing and abuse, alcoholism, depression and domestic violence are the most relevant problems mentioned by the study group. Professionals reported lack of adequate training, work overload, poor working conditions with feelings of professional impotence and frustration. To overcome these difficulties, professionals reported collective strategies, particularly experience sharing during team meetings and matrix support groups. The results indicate that the difficulties may put the professionals in a vulnerable state, similar to the patients they care for. The promotion of specialized and long term support should be reinforced, as well as the interaction with the local network of services and communities leaders. That may help professionals to deal with occupational stress related to medical and social needs present in their routine work; in the end, it may as well contribute to the strengthening of FHS.
Health Personnel; Health Knowledge, Attitudes and Practice; Family Health; Qualitative Research
PARTE I - ARTIGOS
Profissionais da Estratégia Saúde da Família diante de demandas médico-sociais: dificuldades e estratégias de enfrentamento1
Family Health Strategy professionals facing medical social needs: difficulties and coping strategies
Natália de Paula KannoI; Patrícia Lacerda BellodiII; Beatriz Helena TessIII
IMédica de Família da Unidade Básica de Saúde Canhema da Prefeitura de Diadema, SP. Endereço:Rua Oliveira Catrambi, 171, Jardim Vila Formosa, CEP 03461-010, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: nat.kanno@gmail.com
IIDoutora em Psicologia. Pesquisadora do Centro de Desenvolvimento em Educação Médica (CEDEM) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Orientadora do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Medicina Preventiva (FMUSP). Endereço:Rua Luisa Júlia, 12, apto 62, Itaim Bibi, CEP 04542-020, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: ptbellodi@uol.com.br
IIIDoutora em Epidemiologia. Professora doutora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Endereço:Avenida Dr. Arnaldo, 455, 2º andar, Cerqueira César, 01246-903, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: beatriz.tess@usp.br
RESUMO
Os profissionais da Estratégia Saúde da Família (ESF) atuam em comunidades onde a complexidade de problemáticas médico-sociais pode levá-los a sofrer psicologicamente, com prejuízos ao atendimento aos usuários e à consolidação da ESF como modelo de reorganização da atenção básica no Brasil. Esse estudo investigou as dificuldades e as formas de enfrentamento referidas por profissionais de equipes da ESF frente às demandas médico-sociais apresentadas pelos usuários em seu cotidiano de trabalho. Grupos focais e entrevistas semiestruturadas foram realizados com 68 profissionais de três Unidades de Saúde da Família da cidade de São Paulo. Tráfico e uso de drogas ilícitas, alcoolismo, depressão e violência doméstica são as demandas mais significativas para o grupo estudado. Frente a elas, os profissionais referem formação profissional e capacitação técnica insuficientes, sobrecarga e condições desfavoráveis de trabalho, com sentimentos de impotência e frustração. No enfrentamento das dificuldades, destacam-se as estratégias coletivas, especialmente as reuniões de equipe e apoio matricial, nas quais há troca de experiências, conhecimentos e apoio compartilhado. Os resultados indicam que as dificuldades referidas podem deixar os profissionais da ESF em situação de vulnerabilidade, tal como os usuários por eles atendidos. O investimento no desenvolvimento de competências, o fortalecimento de estratégias de enfrentamento coletivas, assim como maior articulação com as redes de serviços e as lideranças locais, mostram-se necessários para que os profissionais de saúde atuem com menor estresse frente às complexas demandas médico-sociais presentes em seu cotidiano de trabalho, e assim contribuam na consolidação da ESF.
Palavras-chave: Pessoal de Saúde; Conhecimentos, Atitudes e Prática em Saúde; Saúde da Família; Pesquisa Qualitativa.
ABSTRACT
Professionals of Family Health Strategy (FHS) work in communities where there are complex medical social problems. These contexts may lead them to psychological suffering, jeopardizing their care for the users, and creating yet another obstacle to the consolidation of FHS as the primary health care model in Brazil. The study investigated the difficulties and coping strategies reported by health professionals of the FHS teams when they face medical social needs of the communities where they work. Focus groups and semi-structured interviews were carried out with 68 professionals of three primary care units in the city of São Paulo (Southeastern Brazil). Drug dealing and abuse, alcoholism, depression and domestic violence are the most relevant problems mentioned by the study group. Professionals reported lack of adequate training, work overload, poor working conditions with feelings of professional impotence and frustration. To overcome these difficulties, professionals reported collective strategies, particularly experience sharing during team meetings and matrix support groups. The results indicate that the difficulties may put the professionals in a vulnerable state, similar to the patients they care for. The promotion of specialized and long term support should be reinforced, as well as the interaction with the local network of services and communities leaders. That may help professionals to deal with occupational stress related to medical and social needs present in their routine work; in the end, it may as well contribute to the strengthening of FHS.
Keywords: Health Personnel; Health Knowledge, Attitudes and Practice; Family Health; Qualitative Research.
Introdução
A Estratégia Saúde da Família (ESF) foi implantada originariamente como Programa de Saúde da Família (PSF) em 1994. Desde então, tem sido parte da política de reorientação das redes integradas de atenção à saúde no Brasil como eixo estrutural da reorganização e qualificação da atenção básica (Conill, 2008; Sousa e Hamann, 2009a). A ESF prevê ações de alcance individual ou coletivo dirigidas para a promoção da saúde, prevenção de agravos, tratamento e reabilitação, tendo como fundamento o conceito ampliado de saúde, que inclui determinantes biológicos, psicológicos e socioambientais na compreensão do processo saúde-doença. Sua proposta de cuidado integral à saúde dos indivíduos e famílias envolve o estar geograficamente próximo às comunidades, a criação de vínculo contínuo entre os usuários, as equipes e as unidades de saúde, o planejamento baseado nas realidades locais e a participação em ações de caráter intersetorial (Brasil, 1997; Sousa e Hamann, 2009a). Nesse sentido, a ESF propõe práticas em saúde que incluem além dos conteúdos tecnocientíficos, os relacionais/comunicacionais e formativos, ainda pouco discutidos na literatura no contexto da atenção básica.
Como política de ampliação do acesso da população aos serviços da atenção básica, os gestores de saúde tendem a priorizar a implantação de Unidades de Saúde da Família (USF) em comunidades carentes, econômica e socialmente (Bousquat e col., 2006). Nesse contexto, crianças, jovens, adultos e idosos competem pela atenção das equipes multiprofissionais da ESF que atuam em cenários onde coexistem questões médico-sociais, tais como o uso abusivo de álcool e drogas (Moraes, 2008), o sofrimento mental (Fortes e col., 2008; Lucchese e col., 2009), a violência contra a mulher (Fonseca e col., 2009; Kiss e Schraiber, 2011), a desvalorização social da velhice (Silvestre e Costa Neto, 2003; Motta e col., 2011), entre outras.
Diante da complexidade e das dificuldades dessa realidade, os profissionais da ESF podem sofrer psicologicamente, com prejuízos tanto ao seu bem-estar emocional quanto ao atendimento às comunidades (Cezar-Vaz e col., 2009). O estresse ou esgotamento ocupacional (Camelo e Angerami, 2007; Silva e Menezes, 2008), ao gerar exaustão emocional, prejuízo nas relações pessoais e diminuição da realização profissional, tem contribuído para a alta rotatividade dos profissionais da ESF, dificultando a consolidação dessa estratégia como modelo preferencial de organização de serviços no âmbito da atenção básica no Brasil (Campos e Malik, 2008; Sousa e Hemann, 2009b).
Embora estudos dedicados ao tema identifiquem problemas na formação e capacitação profissional, restrição de tempo, falta de conforto com os temas, receio de envolvimento excessivo com os usuários e sensação de impotência como algumas das dificuldades vivenciadas pelos profissionais da ESF (Tavares e col., 2009; Reis e col., 2010; Alves e Silva e col., 2010), o modo como esses profissionais enfrentam tais desafios no seu cotidiano de trabalho foi ainda pouco pesquisado. Compreender as percepções e atitudes dos profissionais diante da sua prática pode colaborar no aprofundamento do conhecimento dos limites e das potencialidades da ESF. O presente estudo investigou as dificuldades percebidas e as estratégias de enfrentamento referidas por 68 profissionais da ESF frente às demandas médico-sociais apresentadas pelos usuários às equipes no seu dia a dia de trabalho.
Metodologia
Este estudo foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e da Secretaria de Saúde do município de São Paulo. Entre outubro de 2008 e janeiro de 2009, foi realizada a coleta de dados por meio de duas técnicas de abordagem qualitativa de pesquisa: grupos focais (Kind, 2004) e entrevistas individuais semiestruturadas (Minayo, 2007).
Durante as reuniões periódicas de trabalho, todos os 119 profissionais de saúde das 17 equipes da ESF de três USF da Coordenadoria de Saúde da Subprefeitura do Butantã do município de São Paulo foram convidados a participar do estudo. Oitenta e três profissionais aceitaram o convite, porém 15 deles apresentaram agendas incompatíveis com a da pesquisa; 68 participaram, então, do estudo. O critério de inclusão dos voluntários na composição dos grupos focais ou dos entrevistados foi a disponibilidade de tempo. A diversidade de equipes, de categorias profissionais e dos indicadores sociais das regiões atendidas foi observada nos grupos focais e nas entrevistas.
Em cada uma das três USF foi realizado um grupo focal. A composição dos grupos variou entre nove e 13 pessoas (total de 31 participantes nas três unidades), com a participação de médicos, enfermeiras, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde (ACS) incluindo membros de diferentes equipes. Em uma das USF, o grupo focal foi realizado apenas com ACS devido à indisponibilidade dos outros profissionais.
Um moderador iniciou as sessões informando sobre os objetivos gerais do estudo e a dinâmica dos trabalhos de coleta de dados. Os profissionais foram esclarecidos sobre a liberdade de participação nos grupos e sobre a garantia do anonimato e da confidencialidade dos dados. As discussões foram iniciadas com a questão: "Do seu ponto de vista, quais são os problemas sociais das comunidades que você atende e como você lida com eles?". A definição do termo "problemas sociais" não foi apresentada aos grupos. Com duração média de duas horas, as sessões foram gravadas após o consentimento dos participantes.
As demandas médico-sociais identificadas nos grupos focais como sendo as mais frequentes nas comunidades atendidas foram questões relacionadas ao tráfico e uso de drogas ilícitas, à violência doméstica, ao alcoolismo e à depressão. Outras temáticas, também apontadas, mas com menor expressividade para os grupos focais, disseram respeito a problemas com moradia, desemprego e falta de opções de lazer.
Com base nesses conteúdos, foi elaborado um roteiro semiestruturado de entrevista, posteriormente aplicado a outros 37 profissionais, buscando aprofundar as dificuldades e o modo pelo qual eles lidavam, em sua prática cotidiana, com as problemáticas médico-sociais apontadas nos grupos focais. Os profissionais foram entrevistados individualmente e com privacidade. As entrevistas duraram em média 60 minutos, foram gravadas e codificadas com a sigla da categoria profissional do entrevistado (Enf = enfermeiro, Md = médico, Rd = residente, AE = auxiliar de enfermagem, ACS = agente comunitário de saúde) seguida pela numeração contínua de 1 a 37.
O material gravado foi transcrito na íntegra e submetido à análise de conteúdo temática, com a realização de leituras repetidas dos depoimentos para identificação de pontos convergentes e divergentes, representativos ou significativos para o objetivo analítico proposto (Minayo, 2007). Os resultados foram agrupados em dois grandes temas, "dificuldades percebidas" e "formas de enfrentamento referidas", cada um com os respectivos subtemas. A interpretação e a discussão dos dados foram realizadas a partir de articulações com estudos prévios nas temáticas de "Saúde da Família", "Pessoal de Saúde" e "Conhecimentos, Atitudes e Prática em Saúde".
Resultados e Discussão
Oito médicos, seis residentes, cinco enfermeiras, dois auxiliares de enfermagem e 16 ACS componentes de 16 das 17 equipes de Saúde da Família foram os 37 profissionais entrevistados. A idade variou entre 21 e 52 anos, sendo 32 mulheres. Em relação ao tempo de trabalho, três entrevistados estavam a menos de 1 ano na equipe, 24 entre 1 e 5 anos e 10 há mais de 5 anos.
As dificuldades percebidas
Várias dificuldades, de ordem formativa, profissional, pessoal e social, são percebidas pelos profissionais quando da necessidade de abordagem das problemáticas médico-sociais das comunidades atendidas.
Na dimensão formativa, as entrevistas indicaram que, entre os diferentes profissionais, e independentemente das formações específicas, a capacitação é insuficiente para lidar com a complexidade das demandas médico-sociais.
Os ACS, tal como evidenciado em outros estudos (Bachilli e col., 2008; Gomes e col., 2009), mostraram-se insatisfeitos com o momento em que receberam cursos preparatórios para atuar junto à comunidade: Olha, esse é o ponto principal. Eu entrei [...] e o preparo que eu tive foi com os agentes mais antigos. Só agora apareceu o curso técnico... (ACS 1); e Senti falta sim [de preparo], principalmente agora que estou fazendo o curso técnico, percebo que os problemas sociais interferem na saúde da pessoa. [...] Esse curso está ajudando a ver novas formas de ver o outro (ACS 2).
Para os médicos, a falta de capacitação esteve bastante relacionada à dificuldade em diagnosticar os transtornos mentais e tratar deles, principalmente a depressão. Tal como destacado em outros estudos (Gonçalves e Kapczinski, 2008; Lucchese e col., 2009), apesar da alta prevalência de transtornos mentais entre os indivíduos que buscam atendimento nos serviços da atenção básica, os profissionais mostram, frequentemente, dificuldades em reconhecê-los e acompanhá-los adequadamente. Além disso, como mostrou o estudo de McPherson e Armstrong (2009), grande parte dos médicos de família, ao reconhecer a influência de fatores sociais em saúde mental, prefere não rotular facilmente o usuário como "depressivo" nem seguir estritamente as diretrizes referentes ao tratamento de depressão, o que aparece nessas falas: Diagnóstico muito difícil, antes fazia muito diagnóstico de depressão, mas acho que exagerava, dava muita fluoxetina e não adiantava. Tem outros fatores envolvendo [...], a questão econômica, problemas familiares, tem que pensar em outras estratégias (Md 34) e também: Você está falando com alguém que não gosta de classificar como psiquiátrico [...] como em muitos [casos] é por questão social, não dá pra tratar desta forma, medicalizando, senão até acaba o estoque [risos] (Md 19). Se, por um lado, a preocupação com a "não rotulação" psiquiátrica mostra uma compreensão mais ampla desses problemas, por outro lado os indivíduos portadores de transtornos mentais não diagnosticados adequadamente contribuem para o aumento da demanda de atendimentos nas unidades de saúde (Gonçalves e Kapczinski, 2008).
A dificuldade em diagnosticar apareceu também referente ao problema da violência doméstica, como mostra a fala desse agente comunitário: Não sei [sobre a violência doméstica], acho que não tem (ACS 35). Assim como apontado em outros estudos (Fonseca e col., 2009; Kiss e Schraiber, 2011), os profissionais mostram posições e concepções ainda muito apoiadas no senso comum, desconhecendo ser a violência doméstica um problema médico-social, que abrange não apenas atos de violência física e sexual, mas também psíquica e de desrespeito aos direitos humanos. Tal concepção pode ser ilustrada com a fala desta enfermeira: Até agora só um caso de violência doméstica verbalizada, pelo menos não vejo paciente com sinais de violência no corpo (Enf 29).
Os residentes, por sua vez, referiram especialmente a falta de informação durante a residência médica sobre a rede de serviços de suporte social e o trabalho intersetorial durante sua formação, dizendo: Eu não sei dizer agora se existe algum conhecimento, preparo que eu poderia ter pra trabalhar, mas certamente organização do trabalho é uma delas (Rd 31) e ainda: A gente foi conhecer antes os serviços de saúde, mas não a rede. Conheci essa rede pelo posto, mas não houve algo específico em discussão na residência (Rd 18).
No âmbito das condições de trabalho, a sobrecarga de trabalho, dificultando a abordagem adequada das problemáticas médico-sociais, foi referida especialmente pelos médicos residentes. Como no estudo de Alves e Silva e colaboradores (2010), a produtividade exigida, o grande número de famílias a serem atendidas e o tempo escasso podem impedir a escuta atenta e o acolhimento a outras demandas dos usuários, tal como expresso nessas falas: Eu acho que a gente discute na teoria como identificar esses problemas, mas a gente conseguiu trabalhar pouco [...] por ser sugado por questões de atendimento, número de consultas, coisas do gênero (Rd 31) e também: Como você faz se você tem 15 minutos para atender? Você vai atender um paciente que tem um baita problema de violência, o que não é incomum. Só o tempo de falar 'bom dia', já deu (Rd 31).
A ausência de algumas categorias profissionais que, a partir de suas formações específicas, colaborariam no cuidado integral aos usuários, contribui também, segundo eles, para a sobrecarga: ...não temos uma assistente social [...], é questão de estabelecer funções. Eu não tenho capacidade para trabalhar com isso sozinha (Rd 27) e ...acho que toda equipe deveria ter psicóloga. Eu acho que todo problema da saúde mental não tem como lidar de maneira isolada (Rd 27) .
A não valorização dos profissionais que se envolvem com as demandas sociais também foi apontada como dificuldade, desmotivando os profissionais a buscá-las ativamente. Segundo os entrevistados, atendimentos relevantes, mas que demandam um tempo maior, como, por exemplo, usuários com depressão ou casos de violência doméstica, não são computados na produtividade cobrada pelos gestores, ficando assim invisíveis. Nesse sentido, assumir o cuidado de indivíduos e famílias com essas problemáticas é um acréscimo, uma sobrecarga, no cotidiano dos profissionais, somando-se às suas já grandes responsabilidades (Lucchese e col., 2009). Como expressaram esses residentes: ...muitos são medicados sem necessidade. Às vezes, numa conversa, tentar entender o que fez desencadear aquela situação ajudaria mais, mas, na correria, muitos só medicam (Rd 27) e O que poderia ser melhorado seria se [os problemas médico-sociais] saíssem da invisibilidade, não há espaço [...] se você quiser registrar que a mulher foi espancada. É um problema que gera muita demanda e conta na agenda, mas não na produtividade (Rd 26).
Em relação às comunidades atendidas, assim como reportado no estudo de Andrade e colaboradores (2011), diferentes profissionais relataram falta de segurança e medo de sofrer ameaças na abordagem de algumas problemáticas sociais, como o uso de drogas e a violência doméstica, destacando-se especialmente os ACS que, por fazerem parte da comunidade, temem ser considerados suspeitos em casos de denúncia:
Teve um caso [de violência doméstica] que a ACS soube, mas não pôde ir atrás, ainda mais porque a vítima era esposa de traficante (Enf 33).
O uso de drogas [abordo] sim, mas em relação ao tráfico, não. Na verdade, abordo de forma indireta... mas sem detalhes que podem comprometer o paciente e eu mesma (Md 19).
A gente orienta quando a paciente pede ajuda, orienta sobre os recursos jurídicos, psicológicos que pode buscar, mas pode sofrer ameaça do marido depois (Rd 18).
Tem uma ACS que teve que mudar de prédio porque acharam que foi ela que chamou a polícia, porque acham que a gente sabe demais. É um trabalho perigoso (ACS 1).
No campo da rede de serviços, a ineficiência da rede de apoio foi destacada pelos agentes comunitários, relatando dificuldades em obter resultados junto às entidades governamentais, com sentimentos de frustração, desânimo e desgaste. Tais sentimentos são congruentes com estudos (Silva e Menezes, 2008; Tavares e col., 2009) que mostraram uma associação entre a ineficiência de setores fora da USF e o aumento do estresse dos profissionais:
Normalmente [a entidade] demora muito para responder. Há quatro anos, por exemplo, estamos tentando resolver o problema de uma família (ACS 1).
[A entidade] não funciona. Por exemplo, teve um caso de uma menina de 5 aninhos... a mãe usava droga, largava a menina sem comer, suja e com a pele cheia de ferimentos, ela usava a menina pra roubar e aí a gente denunciou. Eles disseram pra nós que eles não podiam fazer nada, porque roubar era o jeito que a mãe tinha pra sustentar a menina (ACS 25).
Dificuldades na relação com os usuários também estiveram presentes nas entrevistas realizadas. Tal como em outras investigações (Bachilli e col., 2008; Reis e col., 2010), sentimentos de impotência são experimentados quando os usuários não colaboram com as orientações ou não modificam suas atitudes. Nessas situações, os profissionais mostraram-se decepcionados e desesperançados, considerando os usuários, muitas vezes, resistentes, acomodados e pouco ativos na resolução de seus problemas:
A gente tenta desmedicalizar, mas eles resistem. Eles topam bem pra caramba tomar um antidepressivo, mas não vão à caminhada... Acho que é uma questão de comodismo mesmo, porque o remédio é só pegar, mas algo que precise de você ir com suas próprias pernas, é mais difícil... (Md 19).
Muitos têm expectativas grandes sobre o que o médico pode fazer, mas eu coloco claro o meu limite, mostro que algo não aconteceu porque a pessoa não correu atrás... Tento não julgar muito em relação ao comodismo até para não atrapalhar minha relação com o paciente (Md 6).
[Pergunto] muito pouco... acho que porque não há abertura, porque a população foca na gente mais na questão de doença, mesmo que os problemas sociais estejam relacionados (ACS 24).
Ainda quanto às relações com os usuários, vários profissionais, frente às demandas médico-sociais, mostraram excesso de envolvimento pessoal com consequente sofrimento emocional:
Já aconteceu de eu sonhar com o problema, de ficar pensando. Não temos apoio psicológico e é complicado principalmente para casos que nunca vi (Md 37).
Às vezes sim, levo o problema para casa, não tem jeito. A gente vê toda a história de vida da pessoa, tem que ser 'xereta' para descobrir as causas do problema. O excesso de envolvimento esgota muito e não é só um ou outro que precisa (Rd 18).
Eu tenho uma dificuldade pessoal em relação ao álcool, porque meu pai é alcoólatra e eu já vejo com outros olhos essa questão... (Md 19).
Para os ACS, tal envolvimento é bastante frequente, uma vez que, ao partilhar da mesma comunidade, tendem a uma maior identificação com os usuários: Tem muita gente que diz que misturo muito o profissional e o pessoal, mas eu digo que as pessoas não precisam de mim só de segunda à sexta, mas sábado e domingo também, tanto que dou meu celular, digo que podem ligar a hora que quiserem, faço isso porque eu amo e não porque ganho (ACS 11).
O envolvimento pessoal acaba, por vezes, sendo expresso por meio de envolvimento financeiro, com a doação de recursos próprios para alimentação e transporte do usuário. Para evitar que colegas da equipe, contrários a essa atitude, ou outros usuários saibam das doações, esses profissionais acabam fazendo-as sigilosamente. Tal questão encontra-se presente, especialmente, entre os ACS: Às vezes doo alimentos sozinha, mas nem falo pra equipe porque muitos acham errado fazer isso (ACS 10) e ...tem gente que eu ajudo sim, porque alguns se tornaram meus amigos e sei que não vão divulgar isso" (ACS 25).
As estratégias de enfrentamento referidas
Frente às dificuldades percebidas, os profissionais entrevistados referem utilização de diferentes recursos de enfrentamento, tanto de ordem pessoal/individual, quanto, especialmente, de caráter coletivo e institucional.
Entre as estratégias individuais, destacam-se os esforços dos profissionais em aprender por si mesmos, num fazer mais empírico do que técnico ou teórico.
Alguns referem como recurso a experimentação, por meio de tentativa e erro. Assim como no estudo de Ronzani e Silva (2008), a prática, em si mesma, passa a ser fonte de aprendizado e recurso para lidar com as dificuldades encontradas. Expressando sua insatisfação com a formação, diz esse residente: Na verdade faltam conhecimentos de como lidar e fazemos muitas coisas no achismo (Rd 27).
Outros profissionais, também como autodidatas, referiram enfrentar a falta de capacitação especialmente por meio da leitura. Um deles relatou ter estudado sobre as diversas religiões para entender melhor a espiritualidade das pessoas. Outro referiu ter decidido ler um livro, cujo tema era o tráfico de drogas, para compreender a linguagem dos usuários e facilitar a aproximação com eles: Sobre o tráfico, eu li o livro do MV Bill, aí é até o jeito como você conversa, como você usa o seu vocabulário, você dá mais abertura, aí eu até converso, troco ideia, aquela coisa... (Md 19).
As estratégias de caráter coletivo, por sua vez, foram destacadas pelos profissionais como um recurso fundamental para lidar com a complexidade e o estresse relacionados aos problemas médico-sociais, reforçando estudos que destacam a importância das relações interpessoais entre os membros da equipe da ESF (Oliveira e Spiri, 2006; Trindade e col., 2009).
As reuniões de equipe da ESF são avaliadas positivamente porque ajudam a definir estratégias gerais de trabalho com a comunidade, possibilitam grande aprendizado por meio da troca de experiências entre os profissionais, diminuem angústias pessoais dos membros da equipe e contribuem para resolver os casos com a colaboração do grupo a partir de suas diferentes visões e conhecimentos: ...é um recurso que a gente usa bastante porque são várias pessoas pensando sobre o mesmo problema [...]; cada um conhece uma rede diferente, então a gente vai trocando figurinhas [...] é um recurso importante pra gente definir estratégias (Md 19).
Ocupam também um importante papel diante do estresse apresentado por esses profissionais, pois, como discutido por Campos e colaboradores (2010), favorecem relações em que eles dão sustentação uns aos outros e assim, cuidando de si mesmos, podem cuidar melhor do outro, o que fica bem ilustrado pela fala desta médica: No começo eu achei muito difícil este serviço, porque ao entrar nas casas, eu comecei a me deparar com tanto problema... Teve uma época que cheguei a ficar até depressiva, sofri muito. Mas hoje não. A gente vai aprendendo com pessoas que já lidaram, agora consigo priorizar mais (Md 37).
Os grupos de apoio ou de promoção de saúde organizados por profissionais das equipes os ajudam também no enfrentamento das dificuldades trazidas pelos usuários. Para os entrevistados, os grupos colaboram na abordagem de problemas como a depressão e melhoram a adesão às orientações da equipe: ...teve um usuário que tinha depressão e hoje esta acabou, depois do artesanato (ACS 28). Ou ainda: Se eu percebo que tem uma senhora obesa, de 40 anos, deprimida, eu incentivo a ir ao grupo de reeducação alimentar, porque ali eles não vão ficar falando só sobre alimentos, eles também vão fazer atividades antiestresse, vão conversar... (Rd 31).
A maioria dos profissionais reconheceu o apoio matricial como uma estratégia importante para abordar a complexidade do trabalho em saúde. Esse tipo de suporte, como o oferecido para casos de violência contra a mulher, se propõe a reorganizar o contato entre as equipes e as áreas especializadas por meio de apoio técnico aos profissionais, ampliando sua capacidade de intervenção e resolutividade (Campos e Domitti, 2007): Claro que tem cursos que podem ajudar na prática, mas isso é extremamente complexo, o que mais pode ajudar isso [casos de violência doméstica] é o matriciamento que fazemos com a..., por exemplo, para discutir casos dentro da prática e não apenas algo teórico (Md 32).
No campo das estratégias institucionais, a parceria com diferentes instituições sociais é recurso bastante valorizado pelos profissionais. O papel das instituições religiosas, principalmente das católicas, evangélicas e espíritas, é muito grande nas três comunidades. O recurso mais oferecido por elas é a doação de cestas básicas, mas algumas também são parceiras das USF, oferecendo seu espaço para os profissionais realizarem atividades em grupos. Em relação às escolas, alguns profissionais mostraram um vínculo estreito com a diretoria de algumas delas, o que diminui a dependência de serviços governamentais, como o de apoio à criança e ao adolescente. Os profissionais acreditam que as organizações não governamentais (ONGs) apresentam resultados melhores que os da rede governamental, sendo acionadas por eles, especialmente, instituições que promovem ações de inclusão para jovens em situação de vulnerabilidade social, abrigo para idosos e lazer.
A parceria com lideranças da comunidade também foi apontada como um elemento importante na mobilização da comunidade para a solução de suas demandas médico-sociais. Uma médica, consciente de que a busca por um líder é difícil e deve ser um processo natural, comenta sobre isso: ...a gente tenta buscar um líder, estimular isso [...], apresentar um vídeo que mostra o processo de formação de liderança. Então se formaria um processo de discussão de liderança natural, porque não tem como a gente ficar estimulando, 'precisa de um líder', parece um cargo político lá dentro, mas seria pra ele centralizar esses problemas (Md 19).
Considerações Finais
Os resultados encontrados nesse estudo permitem considerar que, apesar do esforço e da dedicação dos profissionais para compreender e lidar com as demandas médico-sociais das comunidades atendidas, a política de formação, capacitação e educação permanente de recursos humanos para a ESF continua sendo uma questão a ser aperfeiçoada (Sousa e Hamann, 2009b).
Formação e capacitação insuficientes, sobrecarga e não valorização do trabalho, acompanhadas por sentimentos de impotência, frustração e envolvimento emocional excessivo, tal como destacado pelos entrevistados, parecem deixar o profissional da ESF em situação de vulnerabilidade, tal como, muitas vezes, se apresentam os usuários por ele atendidos. Para enfrentar essas dificuldades, os profissionais tendem a desenvolver um fazer empírico e buscar, especialmente nas atividades desenvolvidas coletivamente, troca de experiências, conhecimentos e apoio compartilhado.
Esse aprender por si mesmo, ou com os colegas, no cotidiano do trabalho, parece indicar que os espaços formais de capacitação, formação e educação permanente para a ESF precisam investir não apenas no preparo para ações de cuidado direto, mas, especialmente, no desenvolvimento de novas competências - conhecimentos, habilidades e atitudes, para um contexto de práticas onde complexidade é a palavra-chave. Os relatos evidenciam que o padrão atual de formação ainda não prepara os profissionais para atuar num quadro de referência maior nem os capacita a compreender as inter-relações entre saúde e contexto de vida das comunidades, onde relações de gênero, configurações familiares, saúde mental, violência, entre outros, estão entrelaçados.
A valorização dada pelos entrevistados ao apoio matricial, estratégia que provê suporte técnico a partir da discussão dos casos concretos do cotidiano, permite considerar também que não basta redimensionar quantitativamente a formação para a ESF, no sentido de um número maior de cursos introdutórios ou horas de capacitação, mas, sim, de redirecioná-la para um processo de ensino-aprendizagem continuado, problematizado e mediado. Nessa outra perspectiva, o investimento formativo focaria menos em treinamentos pontuais e mais em ações contínuas, onde relações colaborativas entre os diferentes profissionais pudessem ocorrer com a supervisão de um profissional experiente, com planejamento e intencionalidade educativos. Sabe-se que a criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) (Brasil, 2008) procurou ampliar a abrangência e a resolutividade das ações das equipes ao disponibilizar profissionais de saúde de diversas áreas e especialidades. Entretanto, a implantação desses núcleos ainda se mostra incipiente, e sequer apareceram no discurso dos profissionais entrevistados. O fortalecimento e a ampliação da rede desses núcleos provavelmente facilitarão a abordagem das demandas médico-sociais que hoje ainda ficam represadas na USF.
O destaque dado pelos entrevistados às reuniões de equipe não deixa dúvidas quanto a sua importância no cotidiano de trabalho dos profissionais da ESF. Tais momentos de encontro e troca mostram contribuir tanto para ampliar a compreensão e o manejo adequado das demandas médico-sociais quanto para o bem-estar emocional dos profissionais frente ao estresse despertado por elas. Entretanto, levando-se em conta a alta rotatividade dos profissionais da ESF, pode-se considerar que esse recurso de enfrentamento nem sempre estaria sendo aproveitado como tal. A frustração e a insatisfação dos profissionais, seja pela insuficiência da formação, seja pela não valorização do trabalho, provavelmente os afastam de uma relação constante e regular nas equipes e estas, ao se tornarem muito rotativas, tornam mais difícil o enfrentamento das dificuldades na prática cotidiana das equipes.
Nesse círculo vicioso, é clara a demanda dos profissionais por mudanças também no âmbito da gestão, com maior flexibilização de suas agendas e valorização, pelos gestores, do tempo dedicado às ações de promoção da saúde e ao atendimento das demandas mais complexas. Nesse sentido, mostra-se fundamental considerar, em futuras investigações, também a perspectiva dos gestores do sistema de saúde e dos gerentes das unidades quanto a essas dificuldades, assim como suas propostas para melhorar essa realidade.
É preciso considerar ainda que, embora as demandas médico-sociais apresentem particularidades importantes, estas foram, neste estudo, abordadas conjuntamente. Se tal opção permitiu uma compreensão global do tema, especificidades importantes não foram analisadas. A mesma consideração pode ser feita quanto à análise das vivências das diferentes categorias profissionais. Os ACS, em especial, mostraram ocupar um lugar particularmente difícil, apresentando-se como uma categoria profissional de risco, por sua posição de ligação entre a equipe e a comunidade. Uma investigação particularizada por categoria profissional poderia proporcionar, nesse sentido, medidas de suporte adequadas a cada uma delas. Considerar tais especificidades, seja das problemáticas médico-sociais, seja das diferentes categorias profissionais, mostra-se ser um ponto importante para futuros estudos sobre o tema.
Recebido em: 02/07/2011
Reapresentado em: 03/03/2012
Aprovado em: 12/04/2012
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
21 Jan 2013 -
Data do Fascículo
Dez 2012
Histórico
-
Recebido
02 Jul 2011 -
Aceito
12 Abr 2012 -
Revisado
03 Mar 2012