Resumos
O presente artigo apresenta definições, conceitos e princípios do campo de conhecimentos e práticas conhecido como “Saúde Global”, baseando-se em seu desenvolvimento histórico e em seu contexto contemporâneo, marcado pelo fenômeno da globalização. Mostra a evolução do conceito de saúde internacional para o de Saúde Global. A globalização econômica, que está aliada à globalização política, cultural, informacional e comunicativa, traz novas oportunidades e desafios, cujos benefícios e impactos adversos, que envolvem todas as dimensões das relações humanas, ainda carecem de análises compreensivas. Processos de interdependência planetária trazem benefícios e riscos para a saúde humana, de forma diferenciada ao redor do globo. Discute o que são problemas de Saúde Global no século XXI, caracterizado por problemas de saúde acumulados, problemas novos e problemas decorrentes de mudanças de paradigmas. Propõe uma agenda de pesquisa em Saúde Global para o presente e futuro próximo, exemplificando temas em três linhas principais: a distribuição desigual das doenças e agravos da saúde ao redor do mundo; os impactos das mudanças ambientais globais na saúde humana e formas de mitigação e adaptação; e políticas, instituições e sistemas de Saúde Global.
Saúde Global; Saúde internacional; Globalização; Equidade em saúde
This article presents definitions, concepts and principles of Global Health, based on its historical development and on the contemporary context, marked by globalization process. It shows the evolution of the concept of international health to Global Health. Economic globalization, together with political, cultural, informational and of communication globalization, presents new opportunities and challenges, but its benefits and risks to human health have been scarcely studied. The article discusses what are Global Health problems in the 21st Century, characterized by accumulated health problems, new health problems and problems related to new paradigms. It proposes a research agenda in Global Health for the present and near future, with examples of research themes in three main lines: unequal distribution of diseases around the world; impacts of global environmental changes on human health, mitigation and adaptation; Global Health policies, institutions and systems.
Global Health; International Health; Globalization; Health Equity
Tempos de globalização
O presente artigo se propõe a apresentar definições, conceitos e princípios da Saúde Global, baseando-se em seu desenvolvimento histórico e em seu contexto contemporâneo. Em seguida, propõe uma agenda de pesquisa em Saúde Global para o presente e um futuro próximo.
O histórico do processo de globalização é marcado pela abertura das fronteiras ao comércio; aos fluxos do capital econômico; à crescente incorporação tecnológica; à ampliação dos meios de comunicação; à introdução de novas tecnologias digitais, da internet e da presença das redes sociais; às mudanças climáticas e transformações ambientais; e à crescente migração das populações em busca de melhores condições de vida e de trabalho, ou fugindo de perseguições políticas ou de desastres naturais e/ou tecnológicos.
Apesar da globalização atingir, direta ou indiretamente, qualquer espaço e pessoa do planeta, isso não significa que seus reflexos e consequências atinjam a todos de igual maneira, e que tenham a mesma repercussão em todas regiões. Nas últimas décadas, a saúde passou a ser considerada como um fator importante para o crescimento econômico e o desenvolvimento social, com reflexos na política externa, na soberania nacional, no comércio, na segurança nacional, no turismo, nos direitos humanos e nos programas de meio ambiente. Entretanto, os impactos sociais, culturais e econômicos resultantes da globalização podem redundar em riscos à saúde (McMichael e Beaglehole, 2003), devido:
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à perpetuidade e exacerbação das diferenças econômicas inter e intra países, com manutenção da pobreza;
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à fragmentação e enfraquecimento dos mercados de trabalho, resultando na maior aceitação pelos trabalhadores de atuarem sob condições sanitárias e de segurança indesejáveis e insalubres;
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às transformações ambientais, com degradação do meio ambiente, diminuição da biodiversidade e dispersão de poluentes;
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ao aumento do consumo do tabaco;
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ao aumento da obesidade;
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ao aumento do consumo de alimentos, cuja produção ou processamento favorecem dietas não saudáveis;
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à prevalência de depressão e transtornos mentais em populações envelhecidas em ambientes urbanos fragmentados; e
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ao aumento da disseminação de doenças infecciosas devido ao crescimento de viagens internacionais.
O fenômeno da globalização traz novas dimensões espaciais, temporais e cognitivas. Modifica nossa percepção das distâncias e barreiras das fronteiras aos contatos globais; modifica nossa percepção de tempo, conectando a vida cotidiana com acontecimentos que ocorrem em outras partes do planeta, modificando nossa percepção cognitiva de como nos vemos e entendemos nós mesmos e o mundo que nos cerca, permitindo o engajamento com o “outro” no mundo (Bozorgmehr, 2010; Alarcos, 2005).
A globalização econômica, que está aliada à globalização política, cultural, informacional e comunicativa, traz novas oportunidades e desafios, cujos benefícios e impactos adversos, que envolvem todas as dimensões das relações humanas, ainda carecem de análises compreensivas.
Há processos de interdependência planetária que resultam na diminuição da importância e do poder de governos e na transformação do papel desempenhado pelos Estados. Caracteriza-se, assim, o divórcio entre poder e política, pois se tem, conforme nos ensina Bauman (2013, p. 33), atualmente, “[...] poder livre da política e política destituída de poder”. O poder é global, enquanto a política se dá em nível local. Os Estados diminuem sua função protetora dos riscos sociais, e a proteção da vulnerabilidade humana vem sendo repassada para a esfera da responsabilidade individual.
Com a globalização, “[...] não está mais no poder de qualquer Estado ativo, sozinho, ainda que dotado de recursos, fortemente armado, resoluto e inflexível, defender certos valores no plano doméstico e virar de costas aos sonhos e anseios dos que estão fora de suas fronteiras” (Bauman, 2013, p. 34). Essa interdependência tem repercussões significativas na saúde dos indivíduos e das populações. Por exemplo, a adoção por parte de países em desenvolvimento de padrões alimentares não saudáveis importados de países ricos. Também pode-se considerar a maior facilidade de transmissão e propagação de doenças infecciosas em virtude da maior rapidez dos meios de transporte, como aconteceu recentemente com a pandemia do vírus influenza H1N1.
Vem ocorrendo, também, a desregulamentação econômico-financeira dos mercados, o aumento dos processos de privatização, a restrição dos direitos sociais, o aumento da concorrência internacional e do consumo dos povos, o aumento das taxas de desemprego e a diminuição da inclusão social, juntamente com o aumento de impostos e taxas, cortes de benefícios e subsídios sociais e desemprego estrutural em muitos países, que até pouco tempo atrás serviam como exemplo de democracias inclusivas.
Além disso, desde as últimas décadas do século XX, vem ocorrendo a renovação do papel das organizações públicas internacionais, como a Organização Mundial do Comércio e o Banco Mundial, e o aparecimento de novos atores sociais públicos, como os blocos político-econômicos de integração regional — NAFTA, ALCA, Mercosul, Unasul, União Européia —, e atores sociais privados, como organizações não governamentais, empresas transnacionais e diversos grupos de ativistas de direitos sociais. Conformam-se, assim, novas relações de poder, em um sistema pluralista de governança global, no qual não se dá a hegemonia totalizante de um único país ou de um único grupo social.
Todavia, pode-se considerar o processo de globalização com conotação positiva ou negativa, dependendo do sentimento de pertencimento comum entre as várias regiões do globo e seus povos, que podem fortalecer ações favoráveis à solidariedade internacional e à promoção da equidade entre pessoas e povos, ou, ao contrário, favorecer a ampliação das desigualdades sociais e econômicas (Manciaux e Fliedner, 2005).
A Saúde Global
Hoje, a saúde é considerada majoritariamente como um bem público global: que não seja excludente, isso é, que ninguém ou nenhuma coletividade seja excluída de sua posse ou de seu consumo; e de que seus benefícios sejam disponíveis a todos. Há, também, o aparente consenso de que a saúde não seja concorrencial, e que não haja rivalidade, isso é, a saúde de uma pessoa não pode se dar a expensas da exclusão de outras pessoas (Kickbush, 2013).
O processo da globalização é o motor da evolução do termo “Saúde Global”, que carrega desafios e oportunidades no campo da saúde. Saúde Global pode ser compreendida ao mesmo tempo como uma condição, uma atividade, uma profissão, uma filosofia, uma disciplina ou um movimento. Todavia, deve-se considerar que não há consenso sobre o que seja Saúde Global, nem uma única definição, e seu campo de ação tem limites imprecisos.
Enquanto disciplina emergente, a Saúde Global tem como principais precedentes a saúde pública e a saúde internacional. Com a primeira compartilha o foco na saúde da coletividade, a interdisciplinaridade e ações de promoção, prevenção e recuperação da saúde humana. Com a saúde internacional compartilha uma abordagem para além das fronteiras nacionais.
A saúde internacional, para não se retroceder a épocas mais remotas, tem suas origens fincadas no século XIX, marcado pelas primeiras tentativas de cooperação internacional para controle e prevenção de moléstias infectocontagiosas, notadamente aquelas disseminadas por via marítima, protegendo os interesses sanitários e comerciais. O termo Saúde Internacional foi cunhado em 1913, pela Fundação Rockefeller, nos Estados Unidos (EUA), e as ações desenvolvidas nesse âmbito foram prioritariamente em prevenção e controle de doenças infectocontagiosas, no combate à desnutrição, à mortalidade materna e infantil e em atividades de assistência técnica, principalmente nos países denominados menos desenvolvidos (Koplan e col., 2009). É, portanto, um conceito do século XX.
Nesse sentido, considera-se que saúde internacional “[...] representava os esforços de nações fortes e industrializadas em ajudar nações mais pobres” (Merson e col., 2006, p. xiii; Fried e col., 2010). Segundo Franco-Giraldo e Álvarez-Dardet (2009), a saúde internacional clássica fundamentava-se em bases médicas e biológicas e em relações assistencialistas, provenientes de países desenvolvidos, destinadas aos países menos desenvolvidos.
Tais concepções foram gradualmente substituídas nas décadas finais do século XX, com a “consolidação” da Saúde Global. Diversos fenômenos sociais contribuíram para a transição da saúde internacional para a Saúde Global, entre eles: o papel cada vez maior da percepção da importância da saúde nas agendas do desenvolvimento econômico, na segurança global, na paz e na democracia; a crescente transferência internacional de riscos e oportunidades para a saúde ocasionada pela globalização; o pluralismo de atores sociais públicos e privados, atuando em parcerias; a perda do predomínio da Organização Mundial da Saúde (OMS) em decisões sobre a saúde da coletividade e o predomínio do Banco Mundial na área de investimentos em saúde; os avanços rápidos das tecnologias médicas; o ativismo por condições de acesso à saúde e aos direitos; e luta de setores da comunidade por maior participação nos processos decisórios (Frenk e Gomez-Dantés, 2007).
Também se deve ao movimento ambientalista importante papel na divulgação do termo Saúde Global, a respeito dos efeitos das mudanças ambientais globais sobre a saúde humana (Brown e col., 2006).
Todavia, podem ser distinguidas duas vertentes dominantes da Saúde Global: uma que compreende a saúde como valor em si, levando a orientações de natureza solidária e altruísta, fundando-se em princípios éticos de justiça social, equidade e solidariedade. Nessa vertente, Koplan e colaboradores (2009) defendem que a Saúde Global prioriza a melhora da saúde e a busca da equidade para todos os povos do mundo. Também sob este enfoque, Kickbusch (2013) afirma que o principal objetivo da Saúde Global é o acesso equitativo à saúde em todas as regiões do mundo.
Nessa primeira vertente, igualmente, se colocam Buss e Ferreira (2010, p. 93): “O processo de globalização vigente também tem criado grandes disparidades internacionais e produzido enormes problemas sociais e de saúde, particularmente nos países mais excluídos dos circuitos centrais da economia global.”
A outra vertente, de caráter mais instrumental, utiliza a saúde como ferramenta para viabilizar interesses próprios de países mais preocupados com a sua própria segurança sanitária, em aspectos fronteiriços, militares, econômicos e comerciais.
De todos os modos, nas duas vertentes aceita-se a existência de uma interdependência global de problemas, de determinantes e de soluções para a saúde, pois, no mundo de hoje, a capacidade de influenciar os determinantes da saúde e as soluções para muitos problemas nessa área não pode ser assumida exclusivamente por ações nacionais (Dodgson e col., 2002). Nesse sentido, a Saúde Global é reconhecida como um campo de conhecimentos e práticas que demanda ampliação do diálogo entre o setor saúde e as relações internacionais (Nigro e Perez, 2013).
Ademais, o campo da Saúde Global tem um caráter multiprofissional e interdisciplinar, utilizando-se dos saberes das ciências biológicas, humanas e sociais. Há mudança da ênfase dada à doença na saúde internacional para ênfase nas pessoas, considerando-se a diversidade humana, cultural e social. Há maior compreensão de que a ênfase no modelo biológico não é, necessariamente, o adequado caminho para a resolução de muitos problemas globais, podendo até ter efeitos indesejados nos serviços de saúde (Bozorgmehr, 2010).
Em nosso entendimento, a Saúde Global envolve o conhecimento, o ensino, a prática e a pesquisa de questões e problemas de saúde supraterritoriais que extrapolam as fronteiras geográficas nacionais; seus determinantes sociais e ambientais podem ter origem em quaisquer lugares, assim como as suas possíveis soluções necessitam de intervenções e acordos entre diversos atores sociais, incluindo países, governos e instituições internacionais públicas e privadas.
No entanto, a noção de supraterritorialidade não é domínio separado dos níveis nacionais, regionais e locais. Ela pode ser entendida como sendo as conexões sociais entre pessoas em qualquer lugar do mundo, ou as conexões entre determinantes sociais da saúde em quaisquer lugares do mundo, mas não necessariamente em todas as partes (Bozorgmehr, 2010). A Saúde Global refere-se a problemas “[...] que transcendem as fronteiras e os governos nacionais e demandam ações das forças globais que determinam a saúde dos povos” (Kickbusch, 2006, p. 561). Por exemplo, a globalização do comércio de alimentos processados, com origem nos países industrializados, que vem resultando em modificações expressivas nos padrões dietéticos tradicionais de países em desenvolvimento, com aumento dos níveis de açúcar, sal e gorduras trans (Thomas e Gostin, 2013).
Uma das principais características da Saúde Global, e que a diferencia das formas tradicionais da saúde internacional, é o reconhecimento dos contextos regionais e locais, das diferenças políticas, econômicas, sociais e culturais entre os países e as internas, em cada país, assim como as consequências e respostas diferenciadas a eventos globais. Por exemplo, as condições de pobreza se diferenciam internamente e entre os diversos países. Ou seja, a Saúde Global pode tratar de problemas que transcendem as fronteiras nacionais, mesmo que os efeitos na saúde sejam sentidos somente dentro de alguns países ou de regiões de países (Beaglehole e Bonita, 2010).
A Saúde Global, incluindo os aspectos e visões médica e biológica, é focada na saúde e nas forças culturais, sociais, econômicas e políticas que a modelam pelo mundo.
Compreende o esforço sistemático para identificar as necessidades de saúde da comunidade global e a organização de respostas entre os membros desta comunidade para enfrentar tais necessidades, incluindo a formulação de políticas, a mobilização de recursos e a implementação de estratégias (Frenk e Gomez-Dantés 2007, p. 163).
A noção de Saúde Global também pode ser utilizada de forma pragmática como ferramenta estratégica, conforme aponta documento do Institute of Medicine (IOM, 2009), dos EUA, que, reconhecendo o alto valor da saúde e considerando-a um investimento concreto, com o poder de salvar vidas, atuar e cooperar em saúde, afirma que a Saúde Global tem potencial para aumentar a credibilidade dos Estados Unidos no mundo atual.
Interessante compreender que muitas das orientações da Saúde Global, diferentemente da saúde internacional clássica, objetivam a justiça social, a equidade e a solidariedade e estão na contramão da tendência da sociedade de consumo, movida pela competição entre as pessoas (Franco-Giraldo e Álvarez-Dardet, 2009). Na sociedade de consumo, a posse, a variedade e o uso de bens e serviços constituem a principal aspiração cultural e provêm sucesso e status pessoal. Essas características tendem a fazer com que os indivíduos não sejam solidários, careçam de coesão e, ao contrário, se tornem individualistas (Cortina, 2003).
Diversos autores e correntes enfatizam as noções de equidade, justiça, solidariedade, direitos, compaixão e respeito mútuo como princípios da Saúde Global. Destacando a justiça, Cortina (2007) a considera como base de uma ética dos mínimos, necessária em cada sociedade moralmente pluralista para que as pessoas convivam e possam atingir seu projeto individual, autônomo, de felicidade, trazendo como pressuposto a obrigação de respeito mútuo entre as pessoas.
O tema justiça social tratado na Saúde Global é de grande relevância, em razão do aporte, da alocação e da distribuição de recursos humanos, técnicos e econômicos entre países e regiões e se encontra no campo da justiça distributiva, que relaciona os indivíduos com o coletivo e as autoridades políticas. Como argumenta Sen (2011), não é somente importante considerar as instituições como justas, mas também atuantes na promoção da justiça. Nesse sentido, Koplan e colaboradores (2009) defendem a Saúde Global enquanto um campo de estudo, pesquisa e prática que prioriza a melhora da saúde e a busca da equidade para todos os povos do mundo. Beaglehole e Bonita (2010, p. 1) defendem que a “[...] Saúde Global é pesquisa e ação colaborativa transnacional para promover a saúde de todos.”
O que é um problema de Saúde Global?
Concordamos com Manciaux e Fliedner (2005) que postulam que um problema pode ser considerado no âmbito da Saúde Global quando afeta pessoas em muitas regiões, não necessariamente em todo o mundo; quando afeta pessoas em poucas regiões, mas tem potencialidade e probabilidade de afetar pessoas em muitas regiões; quando não pode ser solucionado por somente uma região; ou quando é limitado a certas regiões, mas o conhecimento e a pesquisa demonstram que pode ser útil para outras regiões, pedindo resposta internacional, multiprofissional e interdisciplinar.
A Saúde Global tem atuado em relação aos impactos transnacionais da globalização sobre determinantes sociais e problemas de saúde que estão além do controle individual dos Estados e que afetam diferentes dimensões da vida humana. Podem ser problemas persistentes, emergentes ou reemergentes, tais como: o acesso à atenção à saúde e a vacinas; medicamentos essenciais e a questão das patentes; novas moléstias pandêmicas, como a influenza pandêmica e a HIV/aids; enfermidades infecciosas negligenciadas, como a dengue e a febre amarela; persistência endêmica da tuberculose e da malária; segurança alimentar e obesidade; e melhoria das condições ambientais e dos sistemas sanitários, dentre outros (Fortes e col., 2012). Segundo Castillo-Salgado (2010), o contexto em que ela se desenvolve, no século XXI, é caracterizado por problemas de saúde acumulados, problemas novos e problemas decorrentes de mudanças de paradigmas. Houve mudanças de paradigmas na forma de se diagnosticar e enfrentar doenças, sobretudo as crônicas. Além disso, os paradigmas mais reducionistas da saúde internacional evoluíram para paradigmas mais integrativos, que incluem múltiplas disciplinas da saúde pública, medicina tropical, medicina geográfica, doenças infecciosas, nutrição, saúde materno-infantil, envelhecimento e outras áreas afins (Velji e Bryant, 2011).
Assim, trata também das formas de comércio e de investimento internacional; dos problemas relacionados à migração de pessoas e de profissionais de saúde; das consequências da violência; do turismo médico internacional; do marketing de produtos perigosos à saúde; das novas tecnologias empregadas no setor saúde; de questões nutricionais, como a obesidade e o consumo de alimentos não saudáveis; de consumo de álcool e tabaco e suas relações com as doenças crônico-degenerativas, tais como o câncer, o diabetes, a hipertensão arterial, as doenças cardíacas e circulatórias, assim como as enfermidades respiratórias crônicas (Franco-Giraldo e Alvarez-Dardet, 2009; Kawachi e Wamala, 2007; Frenk e Gomez-Dantes, 2007).
Enfim, uma característica marcante de muitos problemas de Saúde Global é carregar a necessidade do estabelecimento de acordos e de regulamentação internacional para sua solução. No entanto, o enfoque da Saúde Global pode ser usado também para estudos comparativos que permitam uma visão mais ampla e universal de problemas de saúde e de determinantes de saúde e doença, mesmo quando o enfrentamento se dá em níveis locais ou nacionais. A Organização Mundial de Saúde tem despendido esforços significativos para a publicação de um panorama global de diferentes patologias na forma de mapas, atualizados periodicamente, em seu sítio eletrônico (WHO, 2008). Esses permitem a visualização da distribuição desigual das formas de adoecimento ou morte ao redor do mundo, assim como a formulação de hipóteses etiológicas e a definição de prioridades de enfrentamento em alguns locais onde o problema é mais agudo.
Uma agenda de pesquisa para a Saúde Global
Ao pensarmos em uma agenda de pesquisas para a Saúde Global, nos defrontamos com aspectos metodológicos para desenvolvê-las. Geralmente os estudos têm de se escorar em dados baseados em medidas feitas em diferentes locais do mundo e em escalas espaciais e temporais diversas. Por outro lado, os dados de diferentes países e regiões nem sempre são confiáveis ou levantados e registrados com as mesmas metodologias, ou o mesmo rigor estatístico. Castillo-Salgado (2010) discute como a área de vigilância em Saúde Global ainda precisa se desenvolver muito, pois em muitos países ainda não há mesmo diretrizes de como deveriam ser conduzidos os diferentes tipos de vigilância. Segundo o autor, o desenvolvimento de capacidade para novos sistemas de vigilância e resposta em países em desenvolvimento é afetado por falta ou restrição de recursos, treinamento limitado de técnicos e fraca rede de laboratórios.
Às vezes, os dados necessários à pesquisa são indisponíveis para alguns locais do planeta. Além disso, os dados disponíveis, apesar de úteis para o entendimento dos efeitos totais dos processos globais, retratam também variedades locais e mecanismos biológicos diversos. Isso tudo pode tornar menos precisos os estudos em escala global, de modo a tirar inferências deles para se definir políticas.
Por outro lado, a pesquisa em Saúde Global depende de parcerias internacionais, baseadas em entendimento mútuo, em procedimentos e protocolos de pesquisa padronizados e em dedicação a novas questões científicas. Assim, alguns dos benefícios adicionais das questões globais podem ser: maior intercambio e cooperação entre cientistas e instituições de pesquisa; maior chance de desvendar questões de saúde humana, uma vez que o número de pessoas (n) a ser estudado é muito grande e permite subdivisão de amostras para se entender melhor certos fatores causais e determinantes; e maior possibilidade de enfrentar as iniquidades em saúde ao redor do mundo.
As pesquisas em Saúde Global também são necessariamente interdisciplinares, uma vez que os objetos e temas de estudo são complexos.
Nesse sentido, ao desenvolver um programa de Saúde Global, frequentemente, é necessário levar novas metodologias e infraestrutura de pesquisa para regiões e países mais pobres em recursos, a fim de poder estudar os problemas globais também nestes contextos. Igualmente é preciso desenvolver estratégias de treinamento de jovens pesquisadores em outros países e regiões, de modo que possam participar de parcerias internacionais em pesquisa (Ribeiro, 2013).
A seguir, listamos alguns temas que julgamos importantes para uma agenda de pesquisas em Saúde Global, no presente e futuro próximo:
1. Conhecer adistribuição desigual das doenças e dos agravos à saúde ao redor do mundo, sobretudo aqueles com alto impacto na morbidade e mortalidade, utilizando-se de muitas bases de dados estatísticos de domínio público. A Organização Mundial de Saúde já faz um trabalho de mapeamento da incidência ou prevalência das principais doenças ao redor do globo. Entretanto, faltam ainda análises mais aprofundadas para entender os fatores etiológicos e os determinantes de muitas dessas patologias. Como subtemas deste, estão:
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Caracterizar os padrões globais de saúde e doença.
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Entender como os fatores culturais, sociais, políticos, econômicos, biológicos e ambientais moldam a saúde pública local e globalmente.
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Estudar os impactos da globalização econômica, cultural e social na saúde.
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Pesquisar os impactos na saúde humana em conflitos internos e externos.
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Pesquisar os impactos na saúde humana de movimentos migratórios transfronteiriços.
2. Estudar osimpactos das mudanças ambientais globais na saúde humana e formas de mitigação e adaptação. Recentemente, tem havido um grande esforço de profissionais de saúde para se apropriar do tema das mudanças ambientais globais com vistas a entender, prevenir e mitigar seus impactos à saúde humana. Em décadas mais recentes a dimensão dos problemas ambientais se ampliou bastante, de modo que não se pode traçar uma linha divisória entre os problemas de saúde ambiental locais e as mudanças ecológicas e os riscos à saúde em larga escala (Yassi e col., 2001). Mas ainda há uma escassez muito grande de estudos que permitam avaliar a dimensão dos impactos à Saúde Global das mudanças ambientais que ocorrem em escala supranacional (Ribeiro, 2013). Não só doenças infecciosas têm sido influenciadas por desequilíbrios ambientais. Muitas patologias crônico-degenerativas têm determinantes ambientais, como alguns tipos de câncer relacionados à crescente quimificação dos ambientes e dos alimentos e doenças relacionadas à poluição do ar, da água e do solo. Além disso, certas doenças têm causas comuns à degradação do ambiente e seriam reduzidas com o enfrentamento de suas causas. São causadas pelo excesso de consumo e pelo sedentarismo, como obesidade, diabetes e doenças circulatórias, para citar algumas (Ribeiro, 2013). Assim, como subtemas de pesquisa, propomos:
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Entender como ambientes saudáveis e modos de vida previnem doenças.
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Estudar a vulnerabilidade de algumas populações aos desastres naturais e tecnológicos.
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Segurança/insegurança sanitária em Saúde Global.
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Impactos de poluição transfronteiriça à saúde.
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Surgimento e transmissão de doenças infecciosas emergentes e reemergentes ao redor do globo.
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Epidemiologia e prevenção de doenças crônicas.
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Promoção da saúde ao redor do mundo.
3. Estudar políticas, instituições e sistemas de Saúde Global, sobretudo as transformações e impactos sociais, políticos, econômicos e sanitários causados pelo contexto da globalização, assim como nos direitos humanos e nos valores éticos da justiça, da equidade, da solidariedade e da responsabilidade social. Como subtemas:
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Sistemas de saúde, governança, instituições e políticas de Saúde Global.
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Inovações em técnicas, métodos e programas de Saúde Global.
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Estudos comparativos de políticas e gestão em saúde.
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Instituições internacionais públicas e privadas atuando em Saúde Global
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Reformas dos sistemas de saúde e seus efeitos na equidade em saúde.
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Poder, justiça social e equidade em Saúde Global.
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Sistemas nacionais e internacionais de direitos humanos e Saúde Global
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Medições de desigualdades e iniquidades em saúde em escala global.
Considerações finais
Sem buscarmos uma suposta neutralidade, concordamos que o conceito de Saúde Global deve ultrapassar a dicotomia entre ricos e pobres, entre desenvolvidos e em desenvolvimento, assim como os limites das fronteiras nacionais. A Saúde Global fundamenta-se na noção da supraterritorialidade, mas estabelece conexões desde o nível global até o nível local. Fundamenta-se, também, nos princípios de respeito à diversidade humana, em seus aspectos sociais e culturais, de justiça social, de equidade e de ampliação da autonomia das pessoas e dos povos.
Entretanto, há de se reconhecer os diferentes interesses comerciais, de segurança, de política externa, de valores e motivações dos diversos atores sociais, públicos e privados, envolvidos no campo de estudos e de prática da Saúde Global; interesses de entes desiguais em poder, que devem ser conhecidos e considerados para que se minimizem efeitos negativos que possam ampliar as desigualdades econômicas e sociais existentes no planeta. Assim, a diversidade de visões reforça a necessidade de uma ética em Saúde Global e de uma abertura para novos temas de pesquisa focados na urgência de dividir e resolver os problemas complexos e conjuntos da humanidade.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
apr-jun 2014
Histórico
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Recebido
02 Abr 2014 -
Aceito
22 Abr 2014