Resumo
Este artigo examina alguns aspectos dos processos de medicalização do crime e, em particular, da periculosidade criminal nas sociedades contemporâneas. Parte-se da identificação de elementos que organizaram a trajetória histórica da conversão do crime em objeto do saber médico e, fundamentalmente, da criminalidade caracterizada pelo uso da violência física, geralmente de caráter homicida, praticada por indivíduos parcial ou totalmente inimputáveis do ponto de vista da justiça criminal. O foco da análise é constituído pela avaliação psiquiátrica da periculosidade criminal e sua inscrição em estratégias biopolíticas de administração de riscos e incertezas nas sociedades modernas. Nesse sentido, atribui-se um papel relevante às transformações experimentadas pelo saber médico no que concerne à recente introdução de novos instrumentos de avaliação da periculosidade criminal, caracterizados pela formalização e padronização dos parâmetros que definem o crime, o criminoso e sua periculosidade. Essas novas tecnologias são analisadas em suas conexões com algumas tendências contemporâneas do governo da criminalidade no que se refere aos modos de vigilância e de gestão de riscos, cada vez mais atuariais e medicalizadores. Por fim, discute-se em que sentido e até que ponto essas novas tecnologias promovem a despolitização do crime, levando em consideração que as novas modalidades de avaliação da periculosidade criminal possibilitam a emergência de um discurso médico que se fundamenta na crescente responsabilização do indivíduo e na relativa desresponsabilização da sociedade pela produção de riscos e ameaças nessa área.
Palavras-chave: Medicalização; Psiquiatria; Crime; Periculosidade Criminal
Abstract
This article examines some aspects of the processes of crime medicalization, especially the medicalization of criminal dangerousness in contemporary societies. It starts with the identification of elements that organized the historical trajectory of the conversion of crimes into objects of medical knowledge - particularly, crimes characterized by the use of physical violence, usually involving homicides, done by individuals who were partially or totally irresponsible from the point of view of criminal justice. The focus of the analysis is on psychiatric evaluation of criminal dangerousness as a part of biopolitical strategies of management of risks and uncertainties in modern societies. In this sense, we attributed an important role to the changes experienced by medical knowledge regarding the introduction of new assessment instruments of criminal dangerousness, characterized by the formalization and standardization of parameters for defining crime, criminals, and their dangerousness. These new technologies are analyzed in their connections with the contemporary trends of crime control, regarding ways of surveillance and risk management that are becoming increasingly more actuarial and medicalized. Finally, we discuss in what way and to what extent these new technologies lead to the depoliticization of crime, considering that new forms of evaluating criminal dangerousness promote the emergence of a medical discourse grounded on increasing accountability of the individual and on the relative unaccountability of society in producing risks and threats in this area.
Keywords: Medicalization; Psychiatry; Crime; Criminal Dangerousness
Introdução
Este trabalho responde ao propósito de analisar a medicalização do crime e da periculosidade criminal como parte de processos mais amplos de medicalização da vida social, cujo início a literatura geralmente localiza a partir da segunda metade do século XVIII (Castel, 1978; Darmon, 1991; Harris, 1993). Em termos gerais, entende-se por medicalização o conjunto de processos caracterizados pela expansão do campo de objetos de conhecimento e de intervenção da medicina científico-técnica, processos por meio dos quais praticamente todas as esferas da vida social teriam sido incorporadas a esse domínio (Menéndez, 1984; Foucault, 1999, 2001; Barros, 2002; Ferreira et al., 2012; Mitjavila, 2015).
A conversão do crime em objeto do saber e da prática médica pode ser compreendida como parte dos processos mais amplos de medicalização da vida social que organizaram a experiência da modernidade por meio de diversas estratégias biopolíticas. A noção de biopolítica é aqui utilizada para “designar o que faz com que a vida e seus mecanismos possam entrar no domínio de cálculos explícitos e o que transforma o saber-poder num agente de transformação da vida humana” (Foucault, 1978, p. 170).
Nesse sentido, é possível observar que a ingerência da medicina legal e da psiquiatria na construção das noções de crime e de criminoso, bem como de periculosidade criminal, não estaria dissociada do conjunto de processos que envolveram a intervenção médico-sanitária na gestão do espaço urbano, na civilização dos costumes, na organização familiar e na prevenção de comportamentos desviantes ou transgressores. Um exemplo de articulação biopolítica da colonização médica de espaços aparentemente tão diversos em nome da prevenção do crime e dos perigos dele decorrentes pode ser encontrado no ideário e nas práticas promovidas pela Liga Brasileira de Higiene Mental no início do século XX2. Na perspectiva dos médicos que participaram desse movimento, a prevenção do crime e da periculosidade criminal deveria compreender um conjunto de medidas higienizadoras do espaço urbano, do âmbito escolar e da vida familiar. Esses seriam espaços estratégicos nos quais localizar fatores criminogênicos cuja neutralização ou eliminação certamente conduziriam, por meio de intervenções eugênicas, à melhoria da qualidade da população brasileira e à diminuição de certos tipos de criminalidade caracterizados pelo uso da violência física (Delgado, 1992). Assim, medicalizar o crime envolvia intervenções médicas sobre condições tais como o alcoolismo, a raça, a sífilis, a ausência de hábitos de trabalho, o comportamento dos “menores incorrigíveis”, as sexualidades consideradas anormais ou perversas, entre outros fatores etiológicos. (Portocarrero, 1990; Costa, 1999; Venâncio, 2003).
Dessa forma, o higienismo de inícios do século XX deu continuidade a estratégias biopolíticas que tiveram origem em períodos anteriores e que se apoiaram na expansão de processos medicalizadores de largo alcance institucional:
A medicina investe sobre a cidade, disputando um lugar entre as instâncias de controle da vida social. […] a presença do médico como uma autoridade que intervém na vida social, decidindo, planejando e executando medidas ao mesmo tempo médicas e políticas […] A figura da medicina como instrumento técnico-científico a serviço, direta ou indiretamente, do Estado (Machado, 1978, p. 68).
A problematização social do comportamento e da periculosidade criminais encontra nas estratégias médico-sanitárias desse período um recurso política e tecnicamente eficiente para o controle social e a defesa da sociedade perante diversos tipos de ameaças. Trata-se de um processo de expansão das fronteiras do saber médico que suscitou, como apontara Foucault (2001), a emergência de uma medicina do não patológico, abraçando todo tipo de desvio, tanto em termos estatísticos como normativos ou morais (Canguilhem, 2009). Dessa maneira, a medicina foi assumindo progressivamente uma função de retaguarda moral do comportamento humano, o que contribuiu para a institucionalização do papel dos médicos como árbitros da vida social (Mitjavila, 2010). Essa transformação do papel do saber médico não foi o resultado de um processo linear, e sim de lutas, conflitos e negociações, envolvendo, além dos próprios profissionais, o Estado, o judiciário e diferentes segmentos da sociedade civil (Castel, 1978; Harris, 1993). Nesse sentido, os médicos passaram a ser reconhecidos como conselheiros, peritos, responsáveis por ensinar regras de higiene, as quais seriam imprescindíveis para a saúde individual e coletiva, e por isso deveriam ser respeitadas (Rebelo, 2004), tornando a medicina uma poderosa e legítima fonte de produção e de validação de normas sociais.
A medicalização do crime e da loucura
Os processos de medicalização do crime começam a ser solidamente instituídos, tanto no continente europeu como no Brasil, a partir do século XIX. Uma nítida manifestação do ingresso do crime na jurisdição do saber médico pode ser observada na generalizada percepção que já existia nesse período acerca dos presídios como espaços que deviam categorizar seus detentos, não de acordo com os delitos, mas segundo a condição de degeneração, diagnosticada com critérios médicos. A partir dessa lógica, começa a ganhar legitimidade o objetivo da medicina de ocupar um espaço relevante nas instituições judiciárias e prisionais, dando início a um processo de medicalização do crime (Rebelo; Caponi, 2007).
Outro espaço de interseção entre os universos jurídico e médico que impulsionou significativamente a medicalização do crime foi o estatuto ambíguo e problemático do ponto de vista do direito penal que caracterizava os “crimes da razão”, ou seja, crimes violentos que culminavam em práticas homicidas, praticados por indivíduos que, do ponto de vista psiquiátrico, não poderiam ser considerados doentes ou loucos. Trata-se de casos que não admitiam ser explicados como consequência da loucura enquanto perda da razão, mas tampouco como resultado de uma ação de caráter racional movida pela ganância ou pelo desejo de obtenção de outro tipo de vantagem pessoal. Foi esse tipo de crime que propiciou o ingresso dos médicos nos tribunais (Castel, 1978; Harris, 1993; Carrara, 1998), dando origem à psiquiatria forense como especialidade médica.
As respostas do saber médico para explicar esse tipo de crime foram surgindo ao longo de uma trajetória sinuosa, entre cujas expressões mais conhecidas se encontram a noção de “mania sem delírio” de Pinel, a ideia de “criminoso nato” formulada por Cesare Lombroso (Darmon, 1991) e as diferentes versões do conceito de “personalidade psicopática” de origem kraepeliniana, mais recentemente transformado na categoria nosológica “transtorno de personalidade antissocial” (APA, 2002).
Esses processos medicalizadores inauguraram um campo de objetos do saber médico sob uma modalidade que, para Crawford (1980), se caracteriza pela substituição ou pela complementação de competências que, até certo momento, pertenciam a outras instituições ou esferas da vida social - nesse caso, ao judiciário. Essas competências seriam basicamente duas: (i) a determinação da responsabilidade penal em termos de (in)imputabilidade do réu; e (ii) a avaliação do risco de recidiva e/ou da periculosidade dos autores dos crimes.
A relevância sociológica dessa transferência de competências reside, entre outras coisas, no deslocamento de certos aspectos do crime do tradicional âmbito da lei para o espaço da norma, de acordo com a percepção pioneira de Michel Foucault (2006).
Contemporaneamente, esse tipo de crime ainda suscita altos níveis de incerteza e perplexidade sociais na medida em que não responde a parâmetros conhecidos da razão nem da loucura, tornando-se, portanto, além de ininteligíveis, altamente imprevisíveis - características que constituem aspectos relevantes do que passa a ser chamado de periculosidade nos campos criminológico e psiquiátrico (Kemshall, 2006; Doron, 2014).
A psiquiatria no labirinto da periculosidade criminal
Nas sociedades modernas, o processo de determinação da periculosidade criminal de um indivíduo tem envolvido, pelo menos a partir da segunda metade do século XIX, um espaço caracterizado pela articulação de dois tipos de racionalidades para julgá-la: a racionalidade jurídica e a racionalidade médica, dois tipos de saberes responsáveis por, além da definição, pela utilização de instrumentos para detectá-la e administrá-la. Para tanto, uma rigorosa distribuição de papéis entre os representantes desses saberes indicará quem poderá legitimamente categorizar um indivíduo como perigoso, além de quando e como poderá fazê-lo.
Não existe um único tipo de periculosidade criminal. Do ponto de vista deste trabalho, interessa delimitar a análise da medicalização da periculosidade aos casos de indivíduos que, por serem considerados parcial ou totalmente inimputáveis de acordo com a lei, cumprem medidas de segurança em unidades conhecidas como manicômios judiciários ou hospitais de custódia. A duração dessas medidas de segurança é condicionada à avaliação psiquiátrica da cessação, ou não, da periculosidade criminal. A medida de segurança não se dirige ao delito, e sim à periculosidade que ele representa. Da mesma forma, a periculosidade criminal nesses casos reside ou é fundada não na natureza do ato cometido, e sim na virtualidade de reincidência ou recidiva do comportamento criminal violento (Doron, 2014).
O que seria, então, nesse contexto, um indivíduo perigoso? Certamente a periculosidade aqui não é sinônimo de ilegalidade nem de comportamento violento real, embora esses atributos possam estar a ela associados (Foucault, 2001). Na verdade, a imputação de periculosidade fundamenta-se, do ponto de vista dos agentes dos universos médico e jurídico, no conjunto de desvios ou anomalias que permite antecipar ou predizer a ocorrência futura de comportamento criminal violento.
O indivíduo perigoso que cumpre medida de segurança é submetido a um regime contínuo de monitoramento e avaliação. Diferentemente dos indivíduos condenados à pena de prisão, ele permanecerá confinado enquanto durar sua periculosidade. Trata-se de um confinamento que pode tornar-se perpétuo, na medida em que carece de um prazo preestabelecido e que depende de avaliações médico-legais periódicas dirigidas a determinar se há cessação ou não da periculosidade criminal.
Essas avaliações respondem a um tipo de ritual secular que começa pelo requerimento judicial de perícia psiquiátrica voltada para a avaliação da permanência ou da cessação da periculosidade criminal. Trata-se de um tipo de avaliação psiquiátrica que, apesar das transformações que vem experimentando em períodos recentes, ainda conserva na técnica do interrogatório sua principal fonte de monitoramento e avaliação. O principal propósito do interrogatório psiquiátrico seria dotar de realidade a insanidade mental (ou sua ausência) e a periculosidade (ou sua ausência), em função da observação clínica das falas, dos gestos, das atitudes, das lembranças, das confissões, dos silêncios, das negações, enfim, das reações mentais e corporais do individuo submetido ao interrogatório. Como afirma Foucault (2006, p. 348), por meio do interrogatório, “transcrever a demanda como doença, fazer existir os motivos da demanda como sintomas da doença é a primeira função da prova psiquiátrica”.
Por serem evidências que não possuem um substrato material, isto é, são pobres em manifestações somáticas - além de se caracterizarem por um profundo conteúdo moral -, a competência e a idoneidade desses registros decorrem de um processo de tradução, pelo saber médico, desse poder disciplinar que se exerce no interrogatório: aqui, o próprio exercício do poder disciplinar tem a função de instituir para a medicina psiquiátrica a autoridade e o monopólio da produção de verdade sobre a loucura e a periculosidade.
A medicalização do crime e o governo da periculosidade
A partir das últimas duas décadas do século XX começaram a ser observadas algumas transformações nas estratégias de governo da periculosidade criminal que se manifestaram, entre outras coisas, na padronização dos instrumentos de avaliação por meio de testes que supostamente permitissem introduzir critérios mais objetivos que aqueles que até então predominaram na avaliação clínica da periculosidade.
A criação e utilização desses novos instrumentos fazem parte de um processo mais amplo de renovação das estratégias biopolíticas de gestão de riscos nas sociedades contemporâneas. Por essa razão, as novas modalidades de avaliação começam a substituir o termo “periculosidade” pela palavra “risco”. Essa mudança semântica corresponderia à emergência de um novo tipo de racionalidade, baseada não apenas na linguagem do risco como também na priorização de uma economia da punição, que aponta para a eficiência econômica e política dos mecanismos de gestão e para a padronização dos instrumentos de classificação da população em função de critérios de risco de comportamento criminal.
Com efeito, as transformações experimentadas pelo saber psiquiátrico nessa área responderiam às novas formas de gestão neoliberal da periculosidade, baseadas na individualização dos riscos e no gerenciamento biopolítico da punição, que se inscreve no contexto da “nova penologia”. No bojo dessas transformações emergem mecanismos inéditos de vigilância, classificação e monitoramento dos indivíduos em função de sua exposição a fatores de risco de recidiva e periculosidade criminais.
Como apontara Castel (1978), as tecnologias de mapeamento de riscos produzem uma dissolução das singularidades individuais que passam a operar como o substrato a partir do qual o mapeamento populacional dos riscos se torna possível. Porém, o mapeamento populacional de riscos se converte em um laboratório de criação de instrumentos que, por seu caráter padronizado, resultam funcionais para a racionalização da gestão de recursos escassos na área da justiça penal (Kemshall, 2006).
Alguns dos principais efeitos das novas tecnologias de gestão da criminalidade podem ser observados nos novos instrumentos de avaliação psiquiátrica da periculosidade criminal, que se tornam cada vez menos clínicos e cada vez mais atuariais, por meio de uma crescente formalização das maneiras de categorizar os indivíduos. Apesar de não existir consenso no campo da psiquiatria acerca da pertinência da emissão de juízos sobre periculosidade, a psiquiatria forense brasileira, de fato, continua a responder positivamente a esse mandato social, permitindo que e a linguagem do risco comece a ser introduzida nos manuais de psiquiatria a partir do final da década de 1990, assim como em outras publicações dessa área (Mitjavila, 2009).
Por outro lado, a introdução de formas padronizadas de avaliação de periculosidade responderia às necessidades experimentadas pela psiquiatria forense de legitimar seu discurso, por meio da formalização dos seus instrumentos à luz de um modelo científico que pretensamente se afasta dos princípios inferenciais oriundos da teoria psicanalítica, “os quais devem ser evitados com rigor no contexto judiciário pela impossibilidade de serem sustentados de forma concreta” (Taborda, 2012, p. 80).
Essa cientifização responderia à estendida percepção entre os psiquiatras forenses de que
o diagnóstico psiquiátrico deve ser um processo fundamentalmente objetivo, lógico, com base em sinais e sintomas claramente perceptíveis, passível de ser entendido e criticado pelo leigo, em vez de dotado de características fantasiosas, mágicas, pelas quais apenas poderia ser formulado por pessoas que entendessem os mistérios da mente e os fenômenos inconscientes (Taborda, 2012, p. 81).
Esse novo objetivismo médico pode ser observado em dois dos mais utilizados instrumentos padronizados de avaliação de risco de violência. Ambos consistem em formas de medição de níveis de risco - baixo, médio, alto - como resultado da pontuação distribuída em 20 itens e processada como índice somatório simples. Trata-se do HCR-20 (Historical, Clinical, Risk Management)3 e do PCL-R (Psychopathy Checklist Revised)4.
Os itens que compõem a escala HCR-20 são os seguintes:
Itens históricos: H1: violência prévia; H2: primeiro incidente violento em idade jovem; H3: instabilidade nos relacionamentos; H4: problemas empregatícios; H5: problemas com uso de drogas; H6: doença mental maior; H7: psicopatia; H8: desajustamento precoce; H9: transtorno de personalidade; H10: antecedente de insucesso (comportamental) quando sob supervisão.
Itens clínicos: C1: falta de insight; C2: atitudes negativas; C3: sintomas ativos de doença mental maior; C4: impulsividade; C5: falta de resposta ao tratamento.
Itens de gerenciamento de risco: R1: planos inexeqüíveis; R2: exposição a fatores desestabilizadores; R3: falta de apoio pessoal; R4: não-aderência a tentativas de correção; R5: estresse (Abdalla-Filho, 2004, p. 282, grifos no original).
Os itens que compõem a escala PCL-R são:
1) loquacidade/charme superficial; 2) auto-estima inflada; 3) necessidade de estimulação/tendência ao tédio; 4) mentira patológica; 5) controle/manipulação; 6) falta de remorso ou culpa; 7) afeto superficial; 8) insensibilidade/falta de empatia; 9) estilo de vida parasitário; 10) frágil controle comportamental; 11) comportamento sexual promíscuo; 12) problemas comportamentais precoces; 13) falta de metas realísticas em longo prazo; 14) impulsividade; 15) irresponsabilidade; 16) falha em assumir responsabilidade; 17) muitos relacionamentos conjugais de curta duração; 18) delinqüência juvenil; 19) revogação de liberdade condicional; e 20) versatilidade criminal (Morana; Stone; Abdalla-Filho, 2006, p. s76).
Essas escalas refletem algumas das principais características dos olhares da psiquiatria contemporânea acerca da periculosidade criminal. Uma primeira observação a respeito das escalas refere-se à medida em que a quantidade e conteúdo dos itens avaliados reflete a expansão do universo de atributos humanos que são definidos e tratados como problemas médicos envolvendo, entre outros, aspectos relativos a questões como interação social, comportamento sexual, valores, e estilos de vida.
Um segundo aspecto que merece ser registrado diz respeito à personalidade do indivíduo como locus da periculosidade criminal. Trata-se de um olhar individualizador dos fatores etiológicos da criminalidade na medida em que os itens das escalas e, especialmente, os que compõem a escala HCR-20, revelam uma estratégia diagnóstica fortemente ancorada à trajetória biográfica do indivíduo, incluindo itens que se referem ao passado, ao presente e ao futuro dessa trajetória. Ao individualizar a etiologia da periculosidade criminal, criam-se condições para a reatualização de modelos etiológicos que pressupõem a existência de uma constituição criminosa desvinculada de fatores criminogênicos localizados no âmbito da sociedade.
Por outro lado, uma proporção significativa dos itens de avaliação da periculosidade presentes nessas escalas refere-se a comportamentos considerados socialmente indesejáveis, por se afastarem de um padrão de normalidade em aspectos como violência, emprego, consumo de drogas, preguiça, vida amorosa, autocontrole, sexualidade, criatividade comportamental, entre outros.
Em contrapartida, observa-se ausência de itens que permitam avaliar o sofrimento, o mal-estar e outras características usualmente privilegiadas no diagnóstico de doenças (Canguilhem, 2009). Evidencia-se, desse modo, o caráter normalizador de um tipo de “tecnologia científica” predominantemente voltado para a categorização e patologização de desvios normativos:
É, portanto, sobre “indivíduos” - sujeitos separados, marcados, serializados e identificados - que se aplicam procedimentos de normalização, em diferentes movimentos: normatizando, definindo a priori critérios “técnicos”, índices, médias, curvas e todo um conjunto de medidas comparativas; depois, aplicando instrumentos de avaliação buscando levantar o perfil particular de cada indivíduo; na sequência, remetendo cada um à norma definida para o seu grupo, comparando e classificando indivíduos entre si, ainda marcando os desvios de cada um em relação à média; depois, isolando, marcando, diagnosticando e nomeando cada tipo de desvio como forma patológica; e, finalmente, aplicando aos desvios todo um conjunto de procedimentos terapêuticos, ortopédicos e corretivos, buscando reconduzir o desviante à faixa da normalidade. (Prado Filho, 2010, p. 188)
Como já observado, a utilização de instrumentos padronizados - tais como as escalas aqui apresentadas - responderiam às exigências das novas modalidades de governo da periculosidade que encontram na ideia de risco um dos seus principais fundamentos. Com efeito, predizer a ocorrência de comportamento criminal é uma tarefa, se não impossível, extremamente arriscada. Nesse sentido, os instrumentos baseados na lógica do risco desempenhariam um papel imunizador: na medida em que as predições de periculosidade sejam formuladas, não em termos de atributos tangíveis e diretamente observáveis, e sim da probabilidade (ainda que não estatisticamente fundamentada) de ocorrência de uma conduta criminosa num futuro determinado, a predição se torna imbatível, isto é, imune a qualquer resultado, tanto positivo quanto negativo em relação a um prognóstico que não dá garantias absolutas das suas predições se realizarem.
Considerações finais
Desde suas origens, a psiquiatria tem sido convocada para explicar e intervir na administração de um amplo repertório de comportamentos individuais caracterizados por representar alguma forma de ameaça à ordem social. Esse papel do saber médico decorre, entre outras coisas, da confiança institucional que as sociedades modernas depositam na ciência e na técnica como fontes de administração do medo, das incertezas e das ameaças. O crime expõe a fragilidade do tecido social para gerir comportamentos que representam um desvio normativo e, ao mesmo tempo, escapam aos esquemas institucionais de controle social (Mitjavila; Mathes, 2012; Mitjavila, 2015). No caso específico da periculosidade criminal, o medo e a incerteza parecem conduzir as instituições para a medicina psiquiátrica como principal fonte de segurança.
Ao mesmo tempo, a introdução da linguagem do risco na avaliação da periculosidade criminal se apresenta como um recurso institucionalmente eficiente para a administração do medo e da incerteza social que o crime suscita. Nas sociedades contemporâneas, o risco tem se convertido em um dispositivo biopolítico com propriedades forenses para a arbitragem de diversos tipos de problemas sociais (Mitjavila, 2002), sendo a periculosidade criminal um deles. Determinar o caráter perigoso, ou não, de um individuo em função da presença de fatores de risco constituiria uma forma de administrar a incerteza, mas, também, como anteriormente analisado, de imunização perante o fracasso porque, devido a seu caráter probabilístico, a predição de comportamento perigoso contempla tanto a ocorrência como a não ocorrência futura dessa ameaça. Assim, exclusivamente em nome da eventualidade de ocorrência de comportamento criminal futuro, e não do comportamento real atual ou passado, medidas punitivas podem ser justificadas e aplicadas por períodos tão longos, que podem ter como consequência o confinamento perpétuo dos indivíduos submetidos à avaliação.
Entre as principais características desse novo perfil dos discursos médicos sobre a periculosidade criminal se encontram a ampliação do campo de comportamentos e atributos individuais que são codificados como sinais de periculosidade social e o predomínio de modelos etiológico-terapêuticos que localizam os fatores de risco na constituição biológica e psíquica do próprio indivíduo. Poderíamos inferir que no caso dos crimes, dos desvios de conduta, das infrações éticas, dos descumprimentos de normas sociais, o indivíduo desajustado socialmente sempre poderá vir a ser um anormal e, portanto, um objeto da medicina psiquiátrica. Dessa maneira, passará a ser considerado um sintoma todo atributo individual que possa causar “prejuízo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo” (APA, 2014, p. 684), pois demonstra “um padrão persistente de experiência interna e comportamento que se desvia acentuadamente das expectativas da cultura do indivíduo” (APA, 2014, p. 646).
A responsabilização do indivíduo e a desresponsabilização da sociedade na produção do crime e da periculosidade criminal constituiriam dois elementos invariavelmente presentes nos discursos do saber psiquiátrico contemporâneo. A biografização, enquanto estratégia diagnóstica que procura a inteligibilidade do comportamento e da periculosidade criminais exclusivamente na trajetória de vida do individuo (Mitjavila, 2010), aparece sistematicamente nos instrumentos psiquiátricos de avaliação de periculosidade criminal que se encontram entre os mais citados na literatura da área (Mitjavila; Mathes, 2013).
De certa forma, pode-se pensar que esse tipo de modelo etiológico, ao localizar as causas do crime no próprio indivíduo, daria continuidade histórica à clássica noção de constituição criminosa que emergira no século XIX com a definição lombrosiana de “criminoso nato”. Embora não faça parte dos objetivos deste trabalho, seria pertinente examinar os atuais rumos dos modelos etiológicos que organizam a psiquiatria biológica do ponto de vista da produção de discursos sobre a constituição criminosa contemporânea. Assim, por exemplo, a crescente realização de pesquisas voltadas para a identificação das bases genéticas de diversos tipos de desvios comportamentais (Shostak; Conrad; Horwitz, 2008), entre os quais se inclui o crime, delineia um campo de investigação para as ciências humanas e sociais que se mostra promissor do ponto de vista dos processos de individualização do social (Basso, 2014).
Por fim, cabe perguntar qual seria o atual estatuto biopolítico dos indivíduos considerados loucos por serem perigosos - com a medicalização do crime - e considerados mais perigosos por serem loucos - criminalização da loucura - no contexto de uma reforma psiquiátrica que, no caso do Brasil, parece tê-los excluído da sua agenda em matéria de direitos. Nesta, da mesma forma que em outras áreas de gestão biopolítica do social, pareceria que há vidas que não merecem ser vividas porque estariam condenadas à segregação social perpétua em nome da defesa da sociedade.
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3
Instrumento elaborado por Webster et al. (1995) e publicado pela Universidade Simon Fraser, no Canadá.
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4
Escala criada por Robert Hare (1991).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2016
Histórico
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Recebido
13 Jun 2016 -
Aceito
08 Jul 2016