Open-access A indústria da perfeição: circuitos transnacionais nos mercados e consumos do aprimoramento cosmético e hormonal

The culture of perfection: transnational circuits in marketing and consumption of cosmetic and hormonal enhancement products

Este dossiê tem como ponto de partida a constatação de como o mercado das biotecnologias de aprimoramento estético e hormonal tem se tornado um dos mais ativos e rentáveis no mundo. Nesse cenário, ganharam relevo formas de subjetivação centradas no investimento pessoal, via transformações corporais em que o consumo de artefatos biomédicos destinados a melhorar a aparência e o desempenho torna-se central. Como discutiremos a seguir, este fenômeno aponta para importantes questões emergentes na interface entre saúde e sociedade, que indicam novas formas de articulação entre dimensões individuais e coletivas. Estamos nos referindo, por exemplo, ao privilégio crescente da noção de aprimoramento individual por meio de recursos biomédicos, muitas vezes desconsiderando as dimensões sociais envolvidas na produção de normas relativas a padrões de beleza, desempenho, funcionalidade, juventude e mesmo qualidade de vida e bem-estar, condicionados por marcadores de gênero, classe social, raça/etnia, geração etc. Além disso, também estão em cena constrangimentos associados a fatores de outras ordens, como dinâmicas transnacionais de mercados globais e circulação transcontinental de saberes e produtos, diferentes contextos associados a processos coloniais e migratórios.

O conjunto de trabalhos aqui reunidos recupera as discussões apresentadas durante um painel, com o mesmo título deste dossiê, realizado no VII Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia (APA), em Lisboa, entre 4 e 7 de junho de 2019. O painel traduziu a articulação inicial entre os projetos de pesquisa “EXCEL: the pursuit of excellence. Biotechnologies, enhancement and body capital in Portugal” (PTDC/SOC-ANT/30572/2017), coordenado por Chiara Pussetti (Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa), e “Processos de subjetivação, transformações corporais e produções de gênero via promoção e consumo de recursos biomédicos” (CNPq PQ 305915/2015-0), coordenado por Fabíola Rohden (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). O evento contou ainda com a participação de trabalho oriundo do projeto “Direitos sexuais e reprodutivos em debate: desvendando sentidos e usos sociais de dispositivos biomédicos para contracepção e esterilização em mulheres” (CNPq PQ 312316/2019-4), coordenado por Elaine Reis Brandão (Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro).

O debate em torno do aprimoramento e sua relação com a saúde e tecnologias biomédicas tem se fundamentado em uma argumentação bastante sólida, enraizada nos estudos sobre (bio)medicalização da sociedade. Nesta direção, partimos do trabalho de Conrad (1992, 2007), que define a medicalização como processo através do qual problemas anteriormente definidos como não médicos passam a ser concebidos e tratados como médicos e caracterizados como doenças ou transtornos. Nesse percurso, comportamentos tidos como desviantes, bem como processos vitais ou condições de vida como nascimento, envelhecimento, morte, sexualidade etc., passam a ser medicalizados, embora nem sempre os(as) médicos(as) sejam os agentes centrais ou dotados de mais poder nesse jogo de interesses. O autor ressalta como os(as) próprios(as) pacientes, inclusive, participam ativamente na busca pela medicalização institucionalizada de uma determinada condição, indicando a complexidade de fatores e atores envolvidos nesse processo. Além disso, os estudos de Conrad (2007, p. 137, tradução nossa) chamam a atenção para o crescente papel das indústrias de fármacos e biotecnologia no que diz respeito à demanda por aprimoramento biomédico “para nossas crianças, nossos corpos ou nossas habilidades mentais e sociais”. E, problematizando o tema do consumo, o autor salienta que, cada vez mais, os indivíduos têm se convertido em consumidores, e não mais em pacientes, tornando-se peças fundamentais na demanda por serviços de saúde e tratamentos médicos.

Para Conrad (2007), nesse processo, o corpo tem se tornado um projeto, a partir de diferentes formas e graus de intervenção, e a medicina um veículo para o melhoramento. Mas isso não tem acontecido sempre da mesma forma e pelos mesmos mecanismos. Para salientar certas peculiaridades, o autor distingue diferentes faces do aprimoramento biomédico. A primeira seria a normalização, caracterizada pelo uso de aperfeiçoamentos biomédicos para levar o corpo a padrões considerados normais ou socialmente adequados segundo médicos e pacientes. Cirurgias estéticas para aumentar ou reduzir o tamanho dos seios, conforme as convenções do que seria considerado normal, são um dos exemplos citados. Outro exemplo seria a reparação, em que intervenções médicas buscam “restaurar” ou “rejuvenescer” o corpo de acordo com uma condição prévia. Cirurgias estéticas ou o uso do Viagra, por exemplo, ilustram esta busca por restaurar um nível prévio de performance. Por fim, um terceiro exemplo é o aumento ou melhoria de performance visando competitividade. Recursos como treinamentos rigorosos, dietas e “drogas de escolha”, usadas como forma de incrementar a performance, seriam exemplos típicos dessa linha.

O estudo realizado por Clarke et al. (2003, 2010) sinaliza na mesma direção. Ao propor o conceito de biomedicalização para descrever o processo complexo, multissituado e multidirecional que redefine a medicalização em função das inovações da biomedicina tecnocientífica, os autores indicam como, nas últimas décadas, muitas intervenções médicas se aproximam do aprimoramento. Avanços na engenharia biogenética, tecnologias computacionais, novas drogas e procedimentos de visualização têm gerado grandes impactos políticos e econômicos, como atesta o crescimento vertiginoso do setor saúde nos Estados Unidos. A vida em si converte-se em matéria a ser controlada e transformada, fazendo com que a biologia se torne central na política e na economia contemporânea, que passam a ser traduzidas em termos de biopolítica e bioeconomia. A consequência, para os indivíduos, é a conformação de uma nova cultura, ou “regime de verdade”, centrada na responsabilização individual. A preocupação com a saúde passa a ser um atributo moral do indivíduo, que precisa estar informado a respeito dos novos conhecimentos, das práticas de cuidado de si, prevenção e tratamento das doenças, e ser capaz de consumir os recursos agora disponíveis. O aprimoramento torna-se um problema central, mostrando o alargamento das possibilidades de intervenção para além da manutenção da saúde ou reparação do corpo, por meio de procedimentos cosméticos, próteses, aprimoramento genético ou medicina regenerativa.

Nesse processo, o corpo deixa de ser visto como relativamente estático ou imutável, para se converter, enquanto foco de controle, em algo flexível e suscetível de ser transformado e reconfigurado. Passa-se de um processo de normalização para um processo de customização, ou personalização, associado à instituição de práticas tecnocientíficas como nichos de mercado que sustentam uma “medicina de boutique” (Clarke et al., 2010). E os(as) pacientes, por meio de cirurgias estéticas, tecnologias conceptivas ou promessas de terapia genética individualizada e farmacogenômica, tornam-se consumidores(as) que, com estes recursos de personalização, procuram dar conta de seus projetos individuais. Por fim, uma característica importante desse processo é o fato de que nem todos(as) têm acesso aos mesmos recursos. A biomedicalização, portanto, recria ou reforça as estruturas de distinção existentes, aprofundando estratificações de classe, gênero e raça.

Esta discussão é aprofundada por Rose (2007) ao propor a relação entre o surgimento de uma “ética somática” e sua articulação com o “espírito do biocapital”. Problematizando o papel das ciências da vida na produção de verdades e subjetividades contemporâneas, o autor foca sua argumentação nos conceitos de molecularização, otimização, subjetivação, expertise e bioeconomia.

Por molecularização, Rose (2007) entende a passagem de uma concepção de biomedicina que se centrava no corpo para outra que agora se especializa no nível molecular. A otimização corresponde ao uso das tecnologias médicas contemporâneas não mais apenas para curar patologias, mas para controlar os processos vitais do corpo e da mente. Essas tecnologias de otimização estão associadas à ideia de aprimoramento como algo direcionado ao futuro e ao aparecimento de indivíduos consumidores de novos desejos e possibilidades de controle da vida. O conceito de subjetivação serve para descrever o processo pelo qual o sujeito é levado a acreditar que a promoção da saúde é uma questão pessoal, de autogerenciamento e responsabilidade. Isso se associaria à própria conversão da saúde em valor ético importante na sociedade ocidental a partir da segunda metade de século XX e, mais contemporaneamente, à conformação de uma nova ética, chamada de “ethopolítica”. Esse processo caracteriza nossa constituição atual enquanto “indivíduos somáticos”, cujas experiências, articulações, julgamentos e ações sobre nós mesmos ocorrem por meio da linguagem biomédica. A valorização de categorias como “bem-estar” e “qualidade de vida”, que praticamente justificam qualquer forma de intervenção, seriam indícios desse fenômeno.

A noção de expertise remete ao surgimento de novas formas de autoridade associadas aos “experts da própria vida”, que se destacam não mais pela cura de doenças, mas pela capacidade de aprimorar as artes de autogoverno. Não apenas os(as) médicos(as), mas outros(as) profissionais de saúde também conformariam esse campo dos(as) “experts somáticos(as)”, capazes de orientar os indivíduos na busca pelo aprimoramento ou otimização de suas potencialidades. Todos estes aspectos estão também relacionados ao que Rose (2007) chama de “bioeconomia”, ou “economia da própria vida”. Trata-se de um conjunto de processos e relações que envolvem aspectos conceituais, comerciais, éticos e espaciais, associados a economias da vitalidade, e que se concretizam na manipulação da vida por meio de sua decomposição em uma série de objetos distintos, que podem ser estabilizados, congelados, armazenados, acumulados, trocados, negociados.

Essas referências, já clássicas, ajudam a construir um quadro analítico fundamental para pensar os processos descritos nos artigos que compõem este dossiê. Trabalhos mais recentes, focados em realidades mais próximas dos contextos aqui tratados, têm evidenciado a necessidade de problematizar as fronteiras entre saúde e aprimoramento.

Edmonds e Sanabria (2016), ao estudar o campo das cirurgias plásticas e das terapias com hormônios sexuais no Brasil, especialmente entre mulheres, chamam a atenção para como práticas de saúde e aprimoramento podem se confundir. Estas formas de intervenção, muitas vezes experimentais, estão cada vez mais presentes tanto no sistema de saúde privado quanto público, articuladas ao que os autores chamam de uso experimental social”. Trata-se de práticas adotadas por mulheres para gerenciar seus corpos de acordo com pressões sociais e expectativas de desempenho associadas a possibilidades de melhorias, tanto na vida profissional quanto pessoal, a partir do que se espera em termos de uma feminilidade adequada à modernidade. Um aspecto muito evidente ressaltado no trabalho é a incorporação dessas técnicas experimentais no rol de cuidados e tratamentos de saúde cotidianos, de modo a torná-las “moralmente autorizadas”: “As metas estéticas são moralmente autorizadas como metas de saúde, enquanto o emprego de novas ferramentas experimentais é considerado necessário, rotineiro e até mesmo voltado para um cuidar-se prazeroso” (Edmonds; Sanabria, 2016, p. 196).

Outras facetas dessa interação complexa entre saúde e aprimoramento são trazidas à tona por Rohden (2017). Considerando a expansão dos mercados e a ênfase dos apelos promocionais nos campos da medicina sexual e da cirurgia estética, o trabalho discute como a referência à saúde vai se tornando cada vez mais retórica, traduzida em noções vagas de qualidade de vida e bem-estar. Da mesma forma, os riscos potenciais implicados nestas práticas são cada vez mais apagados. A prioridade passa a ser a busca pelo aprimoramento individual e a expectativa de satisfação que decorreria do sucesso das intervenções. As demandas enunciadas pelos(as) consumidores(as) e as transformações promovidas pelos(as) profissionais e outros(as) agentes, como clínicas e laboratórios, parecem cada vez mais se desvincular de justificativas médicas ou em prol da saúde. Nesse sentido, é possível questionar o quanto a busca por uma “vida aprimorada”, em certas situações, concretiza-se em oposição à “vida saudável”, especialmente na medida em que os riscos são estrategicamente afastados. Este fenômeno se articula com a combinação de distintas moralidades em exercício na vida contemporânea. De um lado, na procura por uma vida saudável, há, obviamente, a obrigação moral de ser saudável. Já nos marcos do aprimoramento, deve-se seguir a norma de tornar-se sempre melhor. Se, na primeira, o descumprimento das regras pode levar à condenação por descuido e falta de responsabilidade, no segundo, podem entrar em cena acusações de desleixo e falta de cuidado de si. Articulados a esta moralidade, estariam novos modos de subjetivação que se caracterizam exatamente por “formas de concepção e intervenção sobre si, viáveis por meio da associação com discursos e tecnologias biomédicos, tendo em vista a finalidade de autoaprimoramento” (Rohden, 2017, p. 53).

Este conjunto de questões acionadas na bibliografia do campo permite contextualizar os casos e as discussões trazidas à tona neste dossiê. São apenas linhas gerais, mas que podem ajudar a perceber o significado e amplitude nas conexões dos diferentes processos pesquisados empiricamente. Como se verá a seguir, os artigos que integram esta publicação se caracterizam por uma pluralidade de contextos estudados, de orientações teóricas e procedimentos metodológicos, embora com referência central nas ciências sociais, em especial na antropologia.

O artigo “A indústria do branqueamento em Lisboa: uma etnografia das práticas e produtos para o branqueamento da pele e seus riscos para a saúde dermatológica”, de Isabel Pires e Chiara Pussetti, nos lança para um outro contexto de complexidades, envolvendo o consumo de cosméticos. Por meio de uma etnografia de rua, realizada em um espaço caraterizado pela presença do comércio dito “étnico”, ligado a imigrantes e portugueses originários dos continentes asiático e africano, as autoras desenham um mapa dos produtos para “branqueamento” de pele disponíveis no mercado e revelam as opiniões de algumas de suas consumidoras, que apontam para a hegemonia global de um modelo de beleza “eurocentrado”. Além de chamar a atenção para os riscos do uso de substâncias como mercúrio, hidroquinona, cortisona, vitamina A e dermocorticoides, as autoras ressaltam que o uso destes produtos tem crescido em contextos migratórios de acolhimento, principalmente entre mulheres e crianças. Segundo Pires e Pussetti, tanto a existência destas práticas e produtos no contexto português quanto as suas repercussões têm sido ignoradas pela saúde pública e pelos sistemas de farmacovigilância.

Já o artigo “Essure no Brasil: desvendando sentidos e usos sociais de um dispositivo biomédico que prometia esterilizar mulheres”, de Elaine Reis Brandão e Ana Cristina de Lima Pimentel, analisa as inúmeras controvérsias que encobrem a ampla difusão pela Bayer, nas últimas décadas, de um dispositivo permanente para controle reprodutivo, o Essure. As autoras traçam um mapa da circulação internacional e da introdução deste artefato biomédico no Brasil, em hospitais públicos de capitais como Rio de Janeiro e São Paulo, no Sistema Único de Saúde, sinalizando os interstícios das normativas de regulamentação, do marketing farmacêutico e das alianças entre médicos e empresas que permitiram a existência do procedimento no país. Brandão e Pimentel ressaltam que a oferta do dispositivo Essure atualiza o debate sobre o tema do controle reprodutivo, encenando um drama social que envolve corpos femininos, esterilização, capital e pesquisas clínicas. Em especial, o texto nos faz refletir acerca dos limites da autonomia das mulheres diante da promoção de um dispositivo apresentado como seguro, inócuo e de fácil manejo clínico, com a promessa de impedir a gravidez sem necessidade de recorrer a métodos cirúrgicos.

O trabalho de Bruno de Castro, “Aprimoramento cognitivo e a produção de modos de subjetividade: um estudo sobre o uso de substâncias ‘nootrópicas’ a partir de um blog brasileiro”, analisa o consumo de substâncias que têm o propósito de aprimorar a performance de processos mentais/neurocognitivos, como memória, concentração e estado de alerta, com o fim de proporcionar melhor desempenho em tarefas acadêmicas e profissionais. Segundo o autor, no Brasil, as chamadas smart drugs, ou “fármacos nootrópicos”, têm se expandido especialmente entre jovens, via internet, o que expressa uma nova forma de propagação de saberes biomédicos (neste caso, conhecimentos sobre psicofarmacologia e neurociências) para o público leigo. Além disso, revela novas formas de subjetividade calcadas em uma compreensão neuromolecular do cérebro e na agência das próprias substâncias. Nessas situações, nas quais os saberes sobre as drogas se constituem por meio de interações entre o editor do blog e usuários(as), as instâncias de controle normativo dos cuidados em saúde são deslocadas da cena.

Os dois últimos artigos deste dossiê tratam de um mesmo objeto: as propostas da chamada “medicina antienvelhecimento”, ou anti-aging, em Portugal e no Brasil, trazendo pistas comparativas bem interessantes nestes diferentes contextos. O trabalho “Envelhecimento ativo e a indústria da perfeição”, de Manuel António, destaca como o paradigma do chamado “envelhecimento ativo” cada vez mais tem promovido a responsabilização individual, e não coletiva, acerca da saúde. Nesta direção, preconiza-se a adoção de um estilo de vida saudável em contraste com comportamentos tidos como característicos da negligência no cuidado de si. Por meio do estudo de sites de clínicas médicas portuguesas, o autor discute como novos recursos biomédicos são colocados a serviço da busca por uma eterna juventude.

É essa mesma direção que segue o artigo de Fernanda Rougemont, intitulado “Hormônios e o ‘aprimoramento natural’ do corpo: a personalização do processo de envelhecimento na medicina anti-aging”. De forma mais específica, a autora explora o papel das terapias hormonais na construção de uma narrativa da saúde para a longevidade que caracteriza a medicina anti-aging. A partir de trabalho de campo realizado no Brasil, com pacientes e médicos adeptos ou críticos dessas práticas e membros do Conselho Federal de Medicina, Rougemont apresenta uma rede internacional de profissionais e instituições que viabiliza a expansão das práticas anti-aging, frequentemente em meio a muitas polêmicas. Um alvo fundamental dessas práticas tem sido o uso de hormônios, em especial os chamados “bioidênticos”, visando o aprimoramento das condições de saúde ao longo da vida.

Na última parte desta apresentação, gostaríamos de trazer como contribuição alguns comentários motivados pelos artigos e que podem servir de convite a leitores e leitoras para a apreciação deste dossiê. Trata-se sobretudo de elencar um conjunto de tensões atuais muito bem expressas nos contextos etnográficos investigados. Como já é possível perceber na descrição sucinta que fizemos, os cinco trabalhos, em seu conjunto, apresentam um panorama muito vivo de questões e desafios contemporâneos relativos ao uso de diferentes recursos biomédicos, num cenário em que a busca pelo aprimoramento individual pode até mesmo trazer danos à saúde. Além disso, revela-se, agora com novos contornos, uma nova faceta da tensão entre privilegiar a dimensão individual e considerar fatores sociais condicionantes das práticas associadas à saúde e ao adoecimento. Nessa linha, observa-se com nitidez as pressões operadas por diferentes mercados (farmacêutico, cosmético, publicitário, destinados a variadas formas de intervenção medicamentosa, cirúrgica, estética etc.), mas também por associações profissionais e clínicas envolvidas em muitas disputas.

O que as análises mostram é que somos obrigadas(os) a considerar outras dinâmicas, como os contextos transacionais e migratórios e a contínua e forte presença das antigas hierarquias coloniais e racistas, que se expressam exemplarmente nas práticas cosméticas de “branqueamento” da pele. Na mesma direção, não podemos desconsiderar como as dimensões de classe social, gênero e geração condicionam a produção dos ideais a serem alcançados, os recursos acessados e os riscos enfrentados por diferentes segmentos sociais. De forma particular, as mulheres aparecem, mais uma vez, como especialmente afetadas pela necessidade de adequação a determinados padrões corporais e comportamentais, enfrentando consequências nefastas associadas a intervenções em seus corpos. Dessa forma, aqui, por meio de análises etnográficas, nos somamos à crescente perspectiva crítica que vem sendo produzida em diferentes movimentos sociais e tão bem traduzida em manifestações artísticas como a música “Miss beleza universal”, de Doralyce, que expressa a opressão e violência da ditatura do modelo de beleza “universal” traduzido em corpos magros, altos e claros (Miss…, 2018).

É importante salientar que as práticas descritas, como o uso de recursos contraceptivos e o consumo de medicamentos nootrópicos, cosméticos e hormônios “bioidênticos”, formalmente seriam enquadradas nos marcos regulatórios e de vigilância sanitária de países como Portugal e Brasil. Entretanto, o que os dados identificam são usos realizados bem à margem dessas fronteiras de controle, indicando como saberes sobre substâncias e práticas circulam por vias alternativas aos registros e orientações oficiais. Mais uma vez, salienta-se a necessidade de discutir este fenômeno considerando os riscos à saúde implicados e as vulnerabilidades fomentadas e perpetuadas.

Para compreender de modo mais abrangente este processo, no que se refere ao envolvimento dos próprios sujeitos, é necessário refletir, por exemplo, sobre as interfaces entre este ocultamento ou subestimação dos riscos e certas expectativas individuais, como sugere Martin (2007). Situações como o desejo de controle da natalidade, a busca por aprimoramento cognitivo ou por envelhecimento ativo e a luta por alcançar um determinado padrão de beleza são alardeadas como escolhas exercidas pelo indivíduo, e para as quais o mercado oferece as soluções e os recursos necessários. Ideias como escolha, opção, preferência, customização e personalização são centrais nessa produção de uma imagem de “empoderamento” individual, que se daria por meio do consumo de determinadas intervenções, sempre apresentadas como modernas e eficazes. É evidente, no entanto, que esta projeção está muito distante de processos de tomada de decisão em que a pessoa é capaz de fazer escolhas mais bem informadas, que poderiam caracterizar o exercício de certa autonomia. Em que pesem os constrangimentos que qualificam as escolhas individuais, sugerimos que esta escolha via padrões de consumo e normas de aprimoramento, que traduziriam opções personalizadas (o que em si indica um certo tipo de padrão e de produto), merece ser entendida e estudada a partir de suas especificidades e consequências.

Conforme os artigos apresentados, dentro de cada campo específico de intervenção, pouco se tem discutido como diferentes tipos de instituições, muitas delas vinculadas à área da saúde, promovem expectativas ou promessas de um futuro sempre melhor, em que as pessoas poderiam se aprimorar cada vez mais, com altos níveis de desempenho em praticamente todas as facetas da vida. É importante dizer que estas promessas se coadunam com valores e normas que caracterizam as sociedades contemporâneas em muitos contextos. Estamos nos referindo aqui não apenas às normas de gênero, classe e raça/etnia como a uma valorização crescente da ideia de tornar-se sempre melhor, seja do ponto de vista físico, cognitivo ou da performance sexual, e uma procura renovada pela manutenção da juventude. “Desempenho” e “funcionalidade” se tornam palavras-chave no vocabulário em torno das práticas aqui descritas, às quais se agregam conceitos como “qualidade de vida” e “bem-estar”, termos frequentemente pouco definidos e que exatamente em função desse vazio de sentido servem aos mais diversos fins de promoção de novas intervenções.

Há ainda que se mencionar uma outra caraterística interessante deste processo, concernente ao lugar ocupado pela ideia de natureza e as possibilidades de intervenção. Na busca pelo aprimoramento e desempenho, uma certa valorização da natureza pode aparecer, como é possível observar no caso dos chamados hormônios “bioidênticos”, que seriam melhores exatamente porque mais próximos dos hormônios “naturais”, fabricados pelo organismo. Neste exemplo, promove-se a capacidade da biomedicina de mimetizar a natureza. Contudo, em várias outras situações, assistimos à consolidação de um modelo em que se admite e mesmo se valoriza a possibilidade de adquirir recursos externos ou “artificiais”, que propiciariam as melhorias esperadas. Neste cenário, em que o consumo é central, a capacidade de obter informações e ter acesso a produtos que possibilitam as transformações cumpre papel fundamental, qualificando a condição dos sujeitos. Ao que parece, ninguém estaria fadado a “ficar como está”, a envelhecer “naturalmente”, a ter um baixo desempenho acadêmico e profissional ou ser rejeitado no emprego em razão da aparência. A norma agora, nestes cenários, parece associada à capacidade de buscar e gerenciar os recursos que o mercado disponibiliza. A natureza, assim, aparece muito mais como matéria-prima a ser trabalhada, investida, aprimorada, desde que se tenha como pagar por isso. Esperamos, com a publicação deste dossiê, incentivar os debates sobre estes temas candentes, que, longe de representarem práticas distantes do campo da saúde, indicam a porosidade de fronteiras que precisamos discutir.

Referências

  • CLARKE, A. E. et al. Biomedicalization: technoscientific transformations of health, illness, and U.S. biomedicine. American Sociological Review, Nova York, v. 68, n. 2, p. 161-194, 2003.
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  • CONRAD, P. Medicalization and social control. Annual Review of Sociology, Palo Alto, v. 18, p. 209-232, ago. 1992.
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  • EDMONDS, A.; SANABRIA, E. Entre saúde e aprimoramento: a engenharia do corpo por meio de cirurgias plásticas e terapias hormonais no Brasil. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 23, n. 1, p. 193-210, 2016.
  • MARTIN, E. Bipolar expeditions: mania and depression in American culture. Princeton: Princeton University Press, 2007.
  • MISS Beleza Universal - Doralyce (Clipe Oficial). [S.l.: s.n.], 2018. 1 vídeo (4 min.). Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2Tt596R >. Acesso em: 5 mar. 2020.
    » https://bit.ly/2Tt596R
  • ROHDEN, F. Vida saudável versus vida aprimorada: tecnologias biomédicas, processos de subjetivação e aprimoramento. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 23, n. 47, p. 29-60, 2017.
  • Rose, N. The politics of life itself: biomedicine, power, subjectivity in the twenty-first century. Princeton: Princeton University Press, 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    09 Jan 2020
  • Aceito
    23 Jan 2020
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