Resumo
Apresentamos a contribuição da psicologia social da saúde por meio da abordagem sociorrepresentacional para refletir acerca da educação terapêutica do(a) adolescente com diabetes mellitus tipo 1. O adoecimento crônico na adolescência coloca desafios específicos para o cuidado, o olhar psicossocial permite compreender a prática de avaliação e o fortalecimento das habilidades do paciente contextualizando a educação terapêutica enquanto conjunto de relações sociossimbólicas entre os atores da situação. Essa abordagem pode servir como uma ferramenta teórico-metodológica e prática para alcançar um diagnóstico psicossocial e um planejamento de intervenção. Um programa de três pesquisas realizadas na França com adolescentes diabéticos, suas famílias e profissionais ilustra questões e desafios contemporâneos no campo da educação terapêutica, centrando sua análise nos significados que os atores mobilizam para, assim, determinar estratégias de intervenção adaptadas às tensões psicossociais que possam surgir no cuidado. Ressaltamos a importância das dinâmicas socioidentitária e ideológica advindas do contexto social e cultural de referência dos atores engajados na educação terapêutica.
Palavras-chave: Psicologia; Educação Terapêutica; Representações Sociais; Diabetes; Adolescentes
Abstract
We introduce the contribution of social psychology of health to the reflection on the therapeutic education of adolescents with type 1 diabetes mellitus via a socio-representational approach. Chronic illnesses during adolescence pose specific challenges for health care, and the psychosocial perspective allows one to understand the practice of evaluating and consolidating patient’s abilities, contextualizing therapeutic education as a set of socio-symbolic relations between the social actors involved in such scenario. This approach can be used both as a theoreticalmethodological and practical instrument to achieve a psychosocial diagnosis and intervention planning. A program of three studies conducted in France with diabetic adolescents, their families and professionals, illustrates contemporary issues and challenges in the field of therapeutic education. This study is focused on the meanings mobilized by the social actors to determine intervention strategies adapted to the psychosocial tensions that may arise in health care. We emphasize the importance of the socio-identity and ideological dynamics arising from the social and cultural context of the social actors engaged in therapeutic education.
Keywords: Psychology; Social Representations; Therapeutic Education; Diabetes; Adolescents
Introdução
A educação terapêutica do paciente é uma prática essencial no gerenciamento de doenças crônicas. Esse campo de intervenção visa auxiliar os pacientes e suas famílias a adquirir as habilidades necessárias para administrar sua vida com a doença e para manter ou melhorar seu bem-estar. Para a Organização Mundial da Saúde (WHO, 1998), as habilidades psicossociais desempenham um papel importante na promoção da saúde e do bem-estar, especialmente quando os problemas de saúde estão relacionados à capacidade das pessoas de adotar comportamentos para responder efetivamente ao estresse e às pressões da vida cotidiana.
Aplicadas à prática da educação terapêutica, as habilidades psicossociais devem permitir que os pacientes se adaptem aos desafios da doença crônica. Esse enfoque nas habilidades do paciente, e não no profissional de saúde, levou a uma reorganização dos aspectos sociais e simbólicos da relação terapêutica. A educação terapêutica marca a transição de um modelo paternalista, no qual o paciente deve aceitar as decisões tomadas pelo profissional de saúde, para um modelo deliberativo baseado na construção de confiança e em uma aliança terapêutica, em que as expectativas de cada um dos atores são levadas em conta (Perdriger; Michinov, 2015). Esse novo modelo promove a troca de informações e a participação na tomada de decisões para melhor adequar o tratamento às necessidades e ao estilo de vida dos pacientes (Lee; Lin, 2011). Em outras palavras, o paciente deixa de ser o objeto passivo de cuidado que os profissionais lhe proporcionam, para tornar-se parceiro destes ao ser reconhecido como um ator competente para decidir sobre seu cuidado e sua existência.
Embora haja, hoje, concordância sobre a importância de reforçar as habilidades psicossociais dos pacientes, estas permanecem pouco claras e mal avaliadas em programas da educação terapêutica (Fonte; Apostolidis; Lagouanelle-Simeoni, 2014; Zazula et al., 2011). Essa dificuldade decorre do fato de que a avaliação do programa é frequentemente desenvolvida por meio de uma abordagem biomédica, mais de acordo com o campo disciplinar e as práticas dos profissionais de saúde, colocando maior ênfase nos resultados fisiológicos e nas instruções de autocuidado do que nas variáveis psicossociais. Essas avaliações deixam em segundo plano, por exemplo, o desenvolvimento de habilidades psicossociais, como a aceitação da doença e a confiança em si mesmo, para tornar o paciente um ator de sua saúde. Recomenda-se, portanto, uma prática interdisciplinar no desenho, na implementação e na avaliação dessas intervenções, envolvendo profissionais das ciências humanas e sociais em equipes de ensino.
Nesse contexto, parece legítimo e necessário questionar o lugar do psicólogo em tal dispositivo. O papel do psicólogo não se reduz ao de um técnico ou auxiliar no serviço de um programa de educação terapêutica pré-construído pelos profissionais de saúde. Além do envolvimento ativo com os pacientes nas diferentes etapas do processo educativo, o psicólogo também trabalha com profissionais. Embora esteja estabelecido que o psicólogo é um ator fundamental no trabalho em habilidades psicossociais no contexto de equipes multidisciplinares engajadas em educação terapêutica, não encontramos nenhum artigo especificamente relacionado à questão no contexto brasileiro. Esta reflexão visa ilustrar a contribuição conceitual e pragmática do psicólogo para a educação terapêutica, utilizando o olhar psicossocial (Moscovici, 1984) e, mais particularmente, a teoria das representações sociais (Moscovici, 1976).
Saúde e a doença: o olhar psicossocial
Para a psicologia social, cognições, afetos e comportamentos de saúde constituem “objetos quentes”, sensíveis e socialmente marcados, interações dinâmicas do psicológico e do social. A saúde e a doença devem ser consideradas como objetos antropologicamente fundamentais na interface do indivíduo e do coletivo, devido a sua natureza intrínseca e “paradoxal” de ser “o mais individual e o mais social das coisas” (Augé, 2000). A experiência de saúde e doença em nível individual e coletivo se refere, para a psicologia social, a fenômenos ipso facto complexos e multideterminados pela dinâmica de fatores biológicos, psicológicos, relacionais e sociais. O olhar psicossocial é um caminho analítico relevante para testar esses objetos complexos. Ele constitui uma abordagem abrangente para situar indivíduos em um mundo de objetos que são pensados e apropriados em relação aos outros (dinâmicas de relacionamento e intergrupais), no centro dos processos de inscrição e de participação sociais. Essa perspectiva exige a integração de teorizações socioantropológicas e históricas para compreender a gênese e a construção da experiência da saúde e da doença, e direciona o olhar do pesquisador e suas escolhas metodológicas de acordo com a textura psicossocial do fenômeno-objeto, posicionado do ponto de vista da inscrição e participação social.
A análise dessa construção nos convida a considerar a natureza simbólica do conhecimento humano para construir e dar sentido à experiência da doença, objeto do conhecimento compartilhado (Barsaglini; Soares, 2018; Canesqui, 2018; Radley, 1994). O social é visto primeiramente como um sistema de interpretação de doenças e riscos, como um sistema de relações entre pessoas em um espaço de negociação, trocas e caminhos de cuidado (Morin; Apostolidis, 2002). O olhar psicossocial permite trazer à luz todo um conjunto de significados, atores, características, experiências, conflitos e tensões, relações e lugares que constroem a doença como realidade representada, como um experimento simultaneamente subjetivo e social (Apostolidis, 2017).
Representa, assim, um modo holístico de olhar o indivíduo em relação à doença numa perspectiva relacional e sociossimbólica, em e po meio de suas relações com os outros e com grupos sociais (pares, familiares, profissionais de saúde, colegas de trabalho, autoridade). A construção social dos estados de saúde e doença reflete e expressa uma configuração normativa específica para determinado contexto cultural e funcionamento social (Apostolidis; Dany, 2012).
Aplicado a situações de prevenção e cuidado, esse olhar se traduz numa leitura relacional e dinâmica das relações entre os atores da situação (público/paciente e profissional) e seus interconfrontos. Convida-nos a considerar que nosso objeto é um conjunto de fenômenos relacionais, complexos, polimórficos, dinâmicos e multideterminados por fatores macro e microcontextuais. No contexto da educação terapêutica (Figura 1), esse olhar busca situar os atores e suas respectivas representações de si, dos outros e da situação (por exemplo, a doença, o doente e o médico). O olhar psicossocial permite compreender a prática de avaliação e o fortalecimento das habilidades do paciente, contextualizando a educação terapêutica em um conjunto de relações sociossimbólicas que moldam a relação entre os atores da situação. Nessa perspectiva, as práticas profissionais no contexto da educação terapêutica são: (1) reguladas pelos processos psicossociais envolvidos no contexto da relação “profissional/paciente” (status social, identidade, motivações e objetivos dos atores, clima de relacionamento); (2) inscritas em um sistema de ação socialmente determinado por questões concretas e simbolismo social (por exemplo, valores, normas culturais, imaginário social sobre saúde e doença).
Nessa abordagem, o objetivo não é avaliar a relevância do conhecimento do senso comum à luz do conhecimento científico e médico (por exemplo, considerar que os pacientes estão equivocados quando suas crenças são inadequadas ao conhecimento médico), mas, sim, compreender as funções sociais que portam esse conhecimento do senso comum. Marca uma ruptura com a concepção epistêmica de um sujeito exercendo sua racionalidade em um vazio social, cuja otimização de seu capital de saúde, conforme as recomendações médicas, constituiria sua principal motivação (Fischer, 2002). Trata-se de uma postura que ajuda a colocar o paciente no centro do processo educacional, considerando o conhecimento comum e experiencial em seu valor, isto é, como habilidades preexistentes, sobre as quais as equipes educacionais devem poder contar. Essa questão é ainda mais importante, uma vez que a consideração da subjetividade do paciente é um aspecto central da educação terapêutica para fortalecer a parceria com a equipe educacional. O reconhecimento do ponto de vista do paciente como tão legítimo e perito como o dos profissionais ajuda a reconhecer sua capacidade de se tornar um ator real de sua saúde. Permite também reduzir o desequilíbrio estatutário entre os atores e a transformar as relações sociais e simbólicas no relacionamento educacional.
A teoria das representações sociais
A teoria das representações sociais (TRS) é uma ferramenta potencial de aplicação do olhar psicossocial. As representações sociais podem ser definidas como formas de conhecimento socialmente elaboradas e compartilhadas que têm um propósito prático e contribuem para a construção de uma realidade comum a um grupo de indivíduos (Jodelet, 1989) como programas de percepção e ação, sintomáticas da esfera sociocultural e reguladas pelas posições sociais e pelos princípios que governam o funcionamento social. Elas constituem sistemas de conhecimento e significados que dão sentido à experiência individual e social de saúde, doença e riscos, tanto de objetos privados quanto públicos, e problemáticas decorrentes do conhecimento social e compartilhado (modos de representação que se baseiam nas epistemologias do senso comum).
As representações sociais permitem adotar uma abordagem abrangente, fenomenológica e sociocognitiva que estuda a construção do pensamento social e das práticas sociais. A abordagem sociorrepresentacional é traduzida por: (1) uma análise do pensamento social que se concentra nos mecanismos psicológicos e sociais de sua produção, nos efeitos de suas operações e suas funções; (2) uma epistemologia do indivíduo como sujeito-ator, socialmente e culturalmente localizado, com uma lógica de controle das situações; (3) uma articulação circular entre sistemas de pensamento e sistemas de comportamento (Abric, 1994) (orientação, legitimação), na e por meio da correspondência dinâmica entre “situações sociais” e “modos de conhecimento e ação”; (4) uma conceituação que reúne os fatos e sua apropriação pelos sujeitos, concentrando-se na codeterminação dinâmica entre a existência individual e o funcionamento social.
Sobre o que estamos falando quando falamos de saúde e doença? A doença representa um evento perturbador que desafia tanto no nível individual (por que eu?) quanto coletivamente (por que a doença? Por que você está doente?) e, por essa razão, precisa ser explicado (Herzlich, 2018; Moscovici, 1993). A experiência da doença nas sociedades humanas é uma “forma básica do evento”, isto é, um “evento biológico individual, que é simultaneamente social porque sua interpretação é imposta pelo modelo cultural” (Augé, 2000, p. 39). Nesse sentido, a saúde e a doença como objetos de representação e, portanto, de construção sociocognitiva muitas vezes são elaboradas de forma polêmica e tensional em um espaço de relações complexas entre atores que são socialmente situados e têm participações múltiplas e, às vezes, contraditórias. Como Stoetzel (1960) apontou, saúde e doença são valores e, como qualquer valor, são de natureza social, o que implica que só podem ser estudadas dentro de um contexto cultural específico. O conhecimento produzido sobre saúde ou doença não é simplesmente a relação que os indivíduos, doentes ou não, têm com eles, mas também a inclusão desses objetos em um contexto normativo e sócio-histórico. No nível ontológico, a saúde e a doença podem estar tão intimamente ligadas às teorias sociais do momento e às concepções gerais que governam a vida em sociedade, a ponto de se tornarem indistinguíveis delas.
Pesquisas empíricas sobre as representações sociais da doença mostram que os indivíduos fazem uma analogia entre “desordem biológica” e “desordem social” para pensar a doença. A doença é definida como um estado biológico e um estado social (Herzlich, 2018). De fato, “nossas representações não nos dizem apenas sobre o relacionamento que temos com os fenômenos corporais e nosso próprio estado de saúde, mas sobre as relações que através deles mantemos com os outros, com o mundo e a ordem social” (Herzlich, 2001 p. 198). Integradas à abordagem educativa, as representações sociais de adoecimento e tratamento permitem compreender a construção social de significados que dão sentido à vivência dos pacientes levando em conta as situações particulares e os contextos sociais em que se inserem e no qual eles agem (Jodelet, 2013).
A TRS é uma teoria paradigmática na encruzilhada das ciências psicológicas e das ciências sociais que propõe uma visão global da natureza humana (Moscovici, 1984). Do ponto de vista dessa teoria, o sujeito é concebido como competente par a vida social a partir da aplicação de uma lógica multirreferenciada refletindo “múltiplas racionalidades” (Apostolidis; Dany, 2012). A multirracionalidade dos indivíduos é um estado de conhecimento especializado, a coexistência de modos de conhecimento apoiados no conhecimento médico (por exemplo, as habilidades de autocuidado necessário para a segurança e sobrevivência do paciente) e modos seculares de conhecimento embutidos em conhecimentos e experiências socialmente compartilhados (por exemplo, crenças do senso comum sobre a doença). Esses modos de conhecimento não são justapostos, alternados mecanicamente ou opostos, e sua coexistência se baseia na dinâmica da conexão social e no controle das situações. Em outras palavras, o recurso a um ou outro desses modos de conhecimento depende da relação que o indivíduo tem com sua doença e da situação social em que se encontra. Convida-nos a considerar o paciente como um sujeito social que tem suas próprias representações de objetos relacionados à situação terapêutica e de sua condição de cronicidade.
O exemplo de adolescentes diabéticos
Para ilustrar o interesse da abordagem sociorrepresentacional, apresentamos um programa de pesquisa, realizado na França, no contexto da educação terapêutica do adolescente diabético tipo 1 (Fonte, 2017).
Os objetivos desse programa foram avaliar e intervir sobre os determinantes psicossociais dos comportamentos de autocuidado. Ele se baseia em três pesquisas realizadas em diversas instituições de saúde especializadas no atendimento de adolescentes com diabetes. Para ilustrar a relevância do olhar das representações sociais para avaliar e analisar as lógicas sociais associadas aos comportamentos de autocuidado do diabetes, apresentamos brevemente os principais resultados desse programa. As pesquisas foram articuladas de forma complementar a fim de explorar diferentes facetas do fenômeno estudado. Cada pesquisa possibilitou aprofundar os questionamentos resultantes do estudo anterior (Tabela 1).
Na primeira pesquisa, foram entrevistados 28 adolescentes diabéticos que se preparavam para participar de um programa de educação terapêutica, a fim de compreender suas representações e experiência de bem-estar (Fonte et al., 2017). Os resultados mostraram que o bem-estar é um objeto polissêmico e conflitivo investido por significados contraditórios em função de horizontes próprios a cada um dos atores da situação terapêutica. Embora alguns adolescentes diabéticos procurem entender o autocuidado a partir de um horizonte médico, representando-o como um facilitador do seu bem-estar físico, outros adolescentes se referem a um horizonte socioemocional evocando as consequências negativas do autocuidado em seus relacionamentos com os outros. Especificamente, o sentido que os adolescentes diabéticos investem no bem-estar sugere que o autocuidado pode ser percebido por alguns dentre eles como incompatível com a atitude hedonista de despreocupação e do prazer imediato que caracterizaria o sistema axiológico da adolescência e o modo de socialização entre os pares. Estes são propensos a rejeitar as responsabilidades de autocuidado e delegá-las para o entorno, porque elas podem ser vividas como um obstáculo para o seu bem-estar psicológico e social.
Uma segunda pesquisa foi realizada para compreender o impacto dessas representações no sentimento de autoeficácia pessoal sentida no autocuidado (Colson et al., 2016). Consistia em acompanhar a evolução do perfil sociocognitivo de 24 adolescentes diabéticos que haviam seguido um programa de educação terapêutica que se concentrava principalmente nos aspectos biomédicos do diabetes. Os resultados mostraram que os adolescentes, cujos sentimentos de eficácia pessoal melhoravam após a intervenção educacional, são também aqueles que expressam, antes do início da intervenção, uma representação do autocuidado como facilitador do bem-estar físico. Ao contrário, os adolescentes que expressaram uma representação de autocuidado como obstáculo ao bem-estar psicológico e social antes da intervenção também foram aqueles que tiveram diminuição do sentimento de autoeficácia. A intervenção realizada com esses adolescentes diabéticos parecia produzir efeitos potencialmente contraprodutivos sobre o desenvolvimento das suas capacidades para autonomia em função das representações anteriores de autocuidado.
As duas pesquisas anteriores concluíram sobre a necessidade de melhor levar em conta os aspectos psicossociais do autocuidado nos programas de educação terapêutica. Para responder a esse desafio, uma terceira pesquisa foi realizada com o objetivo de explorar as expectativas e necessidades de cada um dos atores na situação terapêutica (Fonte; Lagouanelle-Simeoni; Apostolidis, 2018). Essa exploração foi realizada utilizando dez grupos focais constituídos por adolescentes com diabetes, seus pais e profissionais de saúde. Os resultados mostraram que alguns adultos expressaram ambivalência em sentimentos que podem estar enfrentando em seu relacionamento com adolescentes diabéticos: por um lado, um sentimento de confiança inspirado na necessidade de capacitar o adolescente para enfrentar a patologia, por outro, um sentimento de desconfiança inspirado pelo conhecimento do senso comum que define a adolescência como um período de imprudência e irresponsabilidade. Os adolescentes diabéticos pareciam relativamente clarividentes sobre como são percebidos pelos adultos e os culpam por não tentarem entender suas dificuldades.
Essas observações permitiram conceituar confiança em educação terapêutica como o encontro entre imaginários compartilhados a partir do qual os atores constroem as expectativas e aspirações dos desafios do autocuidado. Pais e profissionais tendem a querer antecipar e gerir as situações de interação com jovens diabéticos utilizando a “psicologia do senso comum”, que essencializa a adolescência como um período de vida naturalmente voltado para condutas de risco. O clima relacional pareceria, assim, marcado por muitas tensões e incompreensões entre os atores, especialmente porque seria alimentado por estereótipos da adolescência que poderiam constituir uma barreira sociocultural para o reconhecimento da capacidade dos jovens diabéticos para desempenhar um papel ativo na educação terapêutica.
O uso de abordagens para cruzar os horizontes do paciente com os dos profissionais pode atualizar as áreas de tensão (Kalampalikis; Apostolidis, 2016) entre as expectativas e necessidades de cada ator. Essa proposta de trabalho ofereceu a possibilidade de identificar as representações que nem sempre são verbalizadas na relação médico-paciente e que são, no entanto, susceptíveis de influenciar o cuidado (Dany et al., 2014) - por exemplo, lacunas na definição de objetivos terapêuticos e expectativas associadas; lacunas entre oferta e demanda.
Essas áreas de tensão são, ao mesmo tempo, “marcadores” da situação terapêutica, que podem iluminar a dinâmica da relação paciente-cuidador, e estratégias de enfrentamento adotadas diante da doença crônica. Elas poderiam desempenhar um papel decisivo na percepção de alguns pacientes que não se sentem compreendidos e ouvidos pela equipe educacional - por exemplo, o autocuidado representado por profissionais como um facilitador do bem-estar.
Quais questões práticas?
A abordagem sociorrepresentacional permite desenvolver uma prática de pesquisa reflexiva e crítica em saúde pública. É também uma interessante “caixa de ferramentas” para pesquisadores e profissionais que trabalham nesse campo. A mobilização dessa abordagem é muito relevante para realizar diagnósticos e intervenções sociais e de saúde. Essa abordagem pode servir como uma ferramenta teórico-metodológica e prática para alcançar: (1) diagnóstico psicossocial - diagnóstico sociorrepresentacional contextualizado sobre a saúde percebida e vivida; avaliação de uma ação educativa usando de metodologia sociorrepresentacional; (2) intervenções - desenvolvimento de programas de treinamento para profissionais com base em um processo de trabalho reflexivo sobre suas representações, configurando dispositivos de suporte de aconselhamento para pacientes e suas famílias.
O levantamento sociorrepresentacional como ferramenta para o diagnóstico psicossocial
O levantamento sociorrepresentacional qualitativo é um método de avaliação relevante para relatar aspectos psicossociais relacionados ao comportamento e a estados emocionais dos pacientes. Permite ir além da realidade objetiva das experiências para apreender uma realidade representada pelo paciente, ou seja, “reconstruída em seu sistema cognitivo, integrada em seu sistema de valores em função de sua história e do contexto social e ideológico que o rodeia” (Abric, 1994, p. 12). O desafio do processo avaliativo, aqui, é compreender não as condições formais ou objetivas das habilidades psicossociais mobilizadas pelos pacientes, mas os pré-construtos psicossociais que lhes dão sentido e forma. Em outras palavras, é entender as “grades de leitura” que os pacientes mobilizam para controlar as situações problemáticas da vida cotidiana relacionadas à doença ou aos outros.
Esse tipo de levantamento pode ser realizado por meio de entrevistas de pesquisa semiestruturada (Blanchet et al., 1985), que é caracterizada por duas fases. A primeira, descrita como não diretiva, convida o entrevistador-paciente a explicar o que a doença representa para ele. A segunda fase é chamada de semidiretiva, porque o entrevistador utiliza um roteiro que permite relançar o paciente sobre tópicos importantes não mencionados durante a fase não diretiva da entrevista. Além disso, esse guia possibilita a produção de dados mais ricos, oferece maior flexibilidade na exploração de representações e garante a comparabilidade dos resultados entre os entrevistados (Smith, 1995).
Dessa forma, os resultados obtidos a partir do diagnóstico psicossocial possibilita construir e avaliar programas. Ele fornece subsídios para a construção de programas de educação terapêutica mais consistentes com a realidade sociossimbólica dos atores envolvidos e, ao mesmo tempo, a problematização sociorrepresentacional possibilita a reformulação das questões de saúde, sugerindo novas pistas de ação.
A abordagem sociorrepresentacional como ferramenta de treinamento para profissionais
A abordagem sociorrepresentacional oferece, particularmente, vias relevantes de emprego como ferramenta para formação no domínio das práticas profissionais em contextos de situações de cuidados e apoio. Ela permite criar modalidades de formação cujo objetivo é conduzir um trabalho reflexivo sobre as representações que os profissionais têm de seu público, da situação de apoio, do seu papel e das suas missões. A base representacional é usada para explorar o clima empático propício à espontaneidade.
Esses dispositivos são concebidos para ajudar os profissionais a analisar de forma crítica seu engajamento na ação. Essa análise é feita a partir de um esclarecimento da prática e da lógica subjacente à implementação da educação terapêutica, focalizando a experiência subjetiva das situações e a influência dos conhecimentos sociossimbólicos implícitos que podem estar envolvidos nas práticas profissionais. Assim, pode-se questionar: (1) quais são as representações dos profissionais sobre as populações-alvo, sua saúde e suas necessidades?; (2) quais são as representações dos profissionais em relação a seu papel e suas missões com esses públicos?; (3) quais são as representações das populações-alvo em relação à saúde, à prevenção e a situações de cuidados e profissionais?
É importante ainda estar atento às situações críticas em educação terapêutica com problemas psicossociais, tais como: (1) situações de incerteza - por exemplo, não há recomendações específicas; (2) situações socialmente sensíveis e de tensão socionormativa - por exemplo, habilidades de autocuidado versus bem-estar psicológico e social; (3) situações de ameaça à identidade para profissionais - por exemplo, pacientes não aderentes, pessoas que se arriscam).
A análise da formação dos julgamentos sociais entre profissionais permite mostrar a intervenção de mecanismos sociocognitivos, como a ativação de um sistema de categorização em função de informações sociais. Os julgamentos estão ancorados nos saberes sociais prévios e implícitos (como quando se diz que os adolescentes são imprudentes) reveladores das relações sociais e simbólicas de referência que exprimem uma lógica de diferenciação social que participa na institucionalização e na legitimação das assimetrias na relação profissional/paciente.
Constituem desafios para profissionais que trabalham com educação terapêutica uma postura de descentramento (“formatação” terapêutica e centrada na informação versus centrada no paciente e em seu ambiente psicossocial) e o aconselhamento como ferramenta para implementar uma abordagem relacional empática (atitude acolhedora e voltada para o clima do relacionamento, postura de não julgamento, apoio nas situações críticas e negociação).
Considerações finais
O objetivo deste artigo foi ilustrar as contribuições epistemológicas, teóricas e metodológicas da psicologia social da saúde para trabalhar na avaliação e no reforço de habilidades psicossociais na educação terapêutica. A abordagem sociorrepresentacional defende o empirismo no mundo real da experiência vivida da doença e do sistema de cuidado. Convida o pesquisador a adotar uma postura reflexiva em contraposição a um contexto sócio-histórico de reificação essencialista da saúde como disposição e re-problematizar o fato da saúde como um fato moral e ideológico em uma perspectiva da psicologia crítica da saúde (Murray; Poland, 2006).
O pesquisador, constantemente confrontado com a normatividade e o controle social, deve adotar uma abordagem reflexiva que questione, em particular, os postulados ideológicos tão bem estabelecidos no pensamento científico e sanitário dominante, tais como a perspectiva racional e a consistência lógica do sujeito, a motivação para a boa saúde, o caráter patológico do comportamento em risco. Esses postulados atuam como reais “preconceitos do mundo” (Merleau-Ponty, 1945) nas práticas científicas e profissionais, por isso permeiam os fatos sociais, o que lhes confere, muitas vezes sem o seu conhecimento, uma função de reprodução ideológica (Sampson, 1981).
Em um contexto sócio-histórico fortemente marcado pelo desenvolvimento da inovação biomédica e pela mudança de paradigma no sistema de gerenciamento de pacientes (por exemplo, adesão terapêutica versus aliança terapêutica), a pesquisa sociorrepresentacional centra sua análise nos significados que os atores mobilizam na situação terapêutica. O diagnóstico desses significados possibilita determinar estratégias de intervenção adaptadas para tratar as tensões psicossociais que possam surgir no cuidado.
Assim, o psicólogo que adota esse olhar psicossocial tem um importante papel no contexto da educação terapêutica, em particular devido a: (1) suas habilidades distintas para diagnosticar e intervir; (2) a autonomia de sua prática, permitindo a adoção de uma dupla posição - dentro/fora - com relação a equipes e seus objetivos pedagógicos; e (3) seu referencial deontológico específico, ajudando a guiar suas reflexões. Essas características profissionais o tornam um ator essencial no desenvolvimento desses dispositivos (concepção, avaliação), ator este que pode trazer novas perspectivas no campo de intervenção na tomada de decisão.
Pesquisas futuras nessa área também devem alimentar essa reflexão, transferindo essa metodologia de trabalho para outros contextos patológicos, populacionais e socioculturais. Elas permitiriam aprofundar os processos e as expectativas associadas ao desenvolvimento de dispositivos de educação terapêutica, em particular por meio da questão da dinâmica socioidentitária e dos fatos ideológicos advindos do contexto social e cultural de referência.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
03 Fev 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
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Recebido
19 Jul 2019 -
Aceito
13 Nov 2019