Open-access Regulação do cuidado em redes de atenção: importância de novos arranjos tecnológicos1

Resumo

Um dos maiores desafios para os sistemas de saúde é a garantia de acesso integral. Os processos regulatórios em saúde no Brasil priorizam a organização de listas de espera e fluxos assistenciais com caráter normativo, mas se distanciam das necessidades dos usuários no sentido de uma produção de cuidado integral. No presente estudo, de caráter qualitativo, analisou-se as implicações da regulação em saúde na produção do cuidado no município de São Bernardo do Campo, utilizando-se as técnicas observação participante, grupo focal e usuário-guia, construídas a partir de um processo cartográfico. Foram identificados arranjos tecnológicos em três cenários: Complexo Regulador, Observatório de Redes e Apoio de Redes, que puderam ser apreendidos em conjunto com gestores, trabalhadores e usuários. Os arranjos tecnológicos relacionados ao matriciamento da pneumologia e à linha de cuidado da dor osteomuscular permitiram a análise da relação entre as ações de regulação e a produção do cuidado em redes. O estudo concluiu que as ações de regulação foram capazes de produzir cuidado centrado no usuário, que o Complexo Regulador atuou de forma coadjuvante na garantia do acesso e que os mecanismos regulatórios nos serviços de saúde potencializaram uma regulação produtora do cuidado em redes de atenção.

Palavras-chave: Integralidade em Saúde; Sistemas de Saúde; Regulação em Saúde; Redes de Atenção

Abstract

One of the biggest challenges for health systems is ensuring full access. Regulatory processes in Brazilian healthcare prioritize the organization of waiting lists and care dynamics with a normative character, but distance themselves from the needs of users in the sense of a production of comprehensive care. In this qualitative study, the implications of health regulation in the production of care in the municipality of São Bernardo do Campo were analyzed, using the techniques of participant observation, focus groups and guide users, constructed from a cartographic process. Technological arrangements were identified in three scenarios: Regulatory Complex, Network Observatory and Network Support, which could be seized jointly by administrators, workers and users. The technological arrangements related to the matrixing of pulmonology and the line of care of musculoskeletal pain allowed the analysis of the relationship between the actions of regulation and care in such networks. The study concluded that regulatory actions were able to produce user-centered care, which the Regulatory Complex acted in an adjunct manner in ensuring access and that regulatory mechanisms in health services enhanced a regulation that produces care in care networks.

Keywords: Integrality in Health; Health System; Health Regulation; Healthcare Networks

Introdução

O Sistema Único de Saúde (SUS) tem como princípios fundamentais integralidade, universalidade e equidade nas redes de atenção à saúde. Cecílio (2001) considera a integralidade como forma de organizar a atenção à saúde para escutar e atender completamente às necessidades das pessoas. A perspectiva de uma integralidade ampliada impõe ao sistema a capacidade de reconhecer as iniquidades e contribuir na produção da equidade. Um sistema de saúde que garanta acesso de qualidade, ou seja, atenção necessária em tempo adequado, também avança na construção da universalidade como um de seus princípios fundamentais. As redes de atenção à saúde foram organizadas considerando universalidade e equidade, visando à garantia da integralidade, acesso e continuidade do cuidado (Magalhães Junior, 2014).

Embora a saúde esteja dentre os direitos de cidadania que surgem a partir da instituição do Estado moderno em sua definição liberal, os modos e os graus de garantia e efetivação desse direito por meio de políticas públicas variam de acordo com jogos de interesse e de força no interior de cada sociedade, influenciados também pelas relações de força com outros Estados e organismos internacionais (Mattos; Baptista, 2015). São essas relações que produzem valores em tensão: saúde como direito versus saúde como bem de consumo, universalidade versus focalização, necessidades sociais versus interesses de mercado. Na tensão entre as necessidades sociais e os interesses de mercado, emerge a necessidade de ações regulatórias para os Estados. Quanto maior a garantia de direitos sociais, disponibilizados de forma ampla e universal, em permanente tensão com o mercado, maior é a necessidade do Estado de exercer ações regulatórias (Bahia, 2005).

No cenário brasileiro, a Regulação em Saúde foi descrita como política nacional por meio da Portaria nº 1.559, de 1º de agosto de 2008 (Brasil, 2008), mas já era efetivada, na prática, muito antes disso. Antes da instituição do SUS, período em que já se registrava importante participação do setor privado dentro da saúde pública brasileira, as ações regulatórias se davam na esfera comercial, administrativa, financeira e assistencial. Nesse período, denominado como inampiano (Carvalho, 2001), o sistema estava organizado a partir de uma lógica de mercado, remunerando a rede privada prestadora de serviços por procedimentos, sendo que a regulação assistencial ficou relegada a segundo plano. O foco estava no controle dos gastos e se servia de arsenal normativo, priorizando ações de controle, com baixa efetividade. A garantia do acesso e a produção do cuidado e da vida não eram priorizadas nessa lógica regulatória.

O Pacto pela Saúde proposto por meio das Portarias MS/GM nº 399/2006 e MS/GM nº 699/2006 (Brasil, 2006) permitiu nova oportunidade de discussão política das relações interfederativas na construção do SUS, com ênfase em regionalização, financiamento, descentralização e regulação. A necessidade de reafirmar pactos existentes e construir novas pactuações difundiu no território nacional a importância da regulação para a construção e consolidação desses pactos.

A partir de 2008, a Política Nacional de Regulação concentrou esforços na tentativa de ampliar o conceito de regulação e colaborar na organização das ações em estruturas denominadas “complexos reguladores”. A partir de então, existem três dimensões: regulação de sistemas de saúde, regulação da atenção à saúde e regulação do acesso à assistência (Brasil, 2008). O conceito utilizado espelhava-se no proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 2000), que reduzia a regulação a encontrar alternativa assistencial adequada em tempo oportuno. A ênfase atribuída ao Complexo Regulador reforçou o papel da regulação do acesso, que apesar de fundamental, não é capaz de fazê-lo isoladamente, com integralidade e equidade. Além disso, a necessidade de integrar a Política de Regulação com outras políticas de saúde, como de atenção básica, hospitalar, urgências e emergência e das redes de atenção à saúde é fundamental.

Desde a assinatura do Pacto pela Saúde em 2006, o processo de construção da regulação da atenção à saúde no SUS organizou-se, considerando sua fragilidade em enfrentar as fortes tensões entre a garantia do direito universal à saúde e os interesses de mercado. Além disso, compõem o cenário as constantes investidas da iniciativa privada para a manutenção e ampliação de sua participação dentro do setor público (Ibanhes et al., 2007). O desafio que permanece atual é o de ultrapassar a relação de regulação apenas como estabelecimento de regras (Carvalho, 2013) e considerar o princípio da integralidade como orientador das ações de regulação.

Analisando pari passu o processo histórico de construção do SUS e da política de regulação em saúde no Brasil, é possível perceber os motivos que fazem com que esta apoie-se fortemente em protocolos e normativas e seja executada mediante processos burocráticos, mas isso não pode significar a perda da singularidade na produção do cuidado em saúde para cada cidadão e o avanço na integralidade do sistema de saúde.

As múltiplas definições que o conceito de regulação em saúde recebeu ao longo da construção do SUS dialogam com a forma como a própria regulação foi sendo estruturada e sofrendo mudanças, atravessada pelo jogo de forças e interesses que marcou a produção das políticas de saúde e os valores por elas defendidos. Santos e Merhy (2006), a partir de revisão da literatura sobre o assunto, destacam algumas ideias relacionadas ao emprego dos conceitos de regulação: controle, equilíbrio, adaptação e direção. Estas seriam chamadas ideias fundamentais, que desdobrariam por sua vez em “ideias relacionadas”, de forma que controle aparece ligado às ideias de ajustamento e regramento; equilíbrio associado à correção e conservação; adaptação à interação e transformação; e, por fim, direção, à negociação e comando (Oliveira; Elias, 2012). Controle e equilíbrio aparecem relacionadas a fatores mais operativos do processo de regulação, e dão a ideia das ações de regulação assistencial ou regulação do acesso, que se aproximam do cotidiano de funções e processos mais enrijecidos e normativos. Os conceitos de adaptação e direção, em especial este último, evidenciam a natureza política da regulação e o envolvimento da gestão nos processos, em especial a tomada de decisão e o exercício do poder (Oliveira; Elias, 2012).

Santos e Merhy (2006) contribuem com outros dois termos, amplamente empregados para definir os processos de regulação e para diferenciá-los: microrregulação e macrorregulação. O primeiro está ligado ao acesso cotidiano das pessoas aos serviços e consumo dos serviços de saúde. Já o segundo diz respeito à definição das políticas mais gerais das instituições, relacionadas aos mecanismos estratégicos da gestão.

Recentemente Cecílio, Carapinheiro e Andreazza (2014) conceituaram quatro regimes de regulação: o governamental, o profissional, o clientelístico e o leigo, que emergiram de pesquisa de campo e apresentaram regularidades que permitiram essa caracterização. Para isso, os autores se apoiaram no conceito de Weber de “tipo ideal” para propor tipologias para cada um dos regimes, mas também enfrentaram o tensionamento que esse percurso produziu, uma vez que as regularidades estavam frequentemente atravessadas por uma “extrema diversidade de arranjos, soluções, composições e recomposições” (Cecílio; Carapinheiro; Andreazza, 2014, p. 92) que colocavam em xeque toda a tipologia construída. A definição de uma regulação leiga apostou na ausência de conhecimentos técnicos para assim denominá-la, diferente de outros regimes de regulação que agem, muitas vezes, a partir de conhecimentos técnicos. No entanto considerou o “saber assessor” do usuário, capaz de promover deslocamentos no pensamento hegemônico, abrindo espaço para a experiência de adoecimento, de medo e de fragilidade.

O usuário fabrica seus próprios caminhos pela rede, e por mais que gestores e trabalhadores tenham dificuldade em reconhecer isso, é uma possibilidade de produção de vida mais conectada com aquilo que os usuários desejam para si; e também uma tentativa de atravessar normas e regras tão rígidas que, em vez de produzirem acesso, produzem barreiras (Bertussi et al., 2016).

A ampliação dos conceitos de regulação, ultrapassando os aspectos normativos e formais, está relacionada a uma tentativa de dar a ela outros sentidos, enfraquecendo o papel burocrático e controlador e possibilitando a aproximação à produção do cuidado, sem prejuízo da função regulatória, mas possivelmente a integrando melhor com o acesso, a integralidade e a equidade como organizadores do trabalho em saúde.

No presente estudo pretende-se analisar como processos regulatórios da gestão de redes, sob o prisma da integralidade, vem produzindo uma regulação produtora de cuidado; para além de uma regulação formal e burocrática, apenas gestora de filas de espera e sistemas informatizados.

Metodologia

A pesquisa foi realizada em São Bernardo do Campo, um município de grande porte da Região Metropolitana de São Paulo, entre 2015 e 2016. Trata-se de um estudo cartográfico, com o objetivo principal de analisar a capacidade da regulação de redes de atenção em produzir cuidado vivo em ato. Para tanto, foram analisados cenários da gestão municipal cuja escolha se deu em conjunto com gestores, trabalhadores e pesquisadores, que optaram por privilegiar aqueles em que a temática da regulação de redes era mais evidente.

Ao longo da pesquisa cartográfica, que permitiu a observação de múltiplas ações de saúde realizadas pelo município, foram identificados três cenários com relação existente entre a regulação de redes e a produção do cuidado: o Complexo Regulador Municipal, o Observatório de Redes e o Apoio em Rede.

O Complexo Regulador Municipal foi o primeiro cenário analisado. Realizou-se grupo focal com trabalhadores e gestores com questões disparadoras que se aproximaram do objetivo geral da pesquisa. A partir da análise do material coletado, outros cenários possíveis foram identificados, como o Observatório de Rede, o segundo escolhido, que possibilitou cartografar o matriciamento da pneumologia e a identificação do usuário-guia. O terceiro cenário, que surgiu a partir do segundo, foi o apoio de rede e a estruturação da fisioterapia territorial na linha do cuidado da dor osteomuscular crônica. Nesse cenário foram realizadas atividades de observação participante, com gestores, trabalhadores e usuários.

A identificação do usuário-guia se deu em conjunto com os integrantes do observatório de rede, considerado ideal para servir de fio condutor da pesquisa por ser portador de doença crônica, ser usuário frequente de vários pontos de atenção da rede e estar inserido em ações de saúde identificadas como “arranjos tecnológicos”, como o matriciamento da pneumologia. A partir do usuário-guia foi possível acompanhar os movimentos de gestão do cuidado em rede. A prática em campo, conduzida por ele em seus caminhos e movimentos, contou com registros em diário de campo, apresentados e processados por pesquisadores da Rede Nacional de Avaliação Compartilhada (RAC), desenvolvida pelo Observatório de Políticas Públicas em Saúde e em Educação em Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (Jorge; Moebus; Silva, 2016). A RAC analisou, em vários municípios brasileiros, o acesso e a integralidade do cuidado na articulação entre atenção básica e atenção especializada, buscando incluir quem faz, quem pede e quem usa os serviços de saúde. As pesquisas convergiam, em especial no aspecto cartográfico da metodologia e na centralidade do usuário como analisador dos efeitos produzidos pelos arranjos organizativos da atenção. A abordagem cartográfica possibilita acompanhar processos em profundidade, dando visibilidade às variações e desvios produzidos no cotidiano do trabalho em saúde (Passos; Kastrup; Escossia, 2012).

Segundo Tallemberg (2015), a cartografia se ocupa prioritariamente de mapear efeitos, da mesma forma que se experimenta a paisagem, permitindo que o cartógrafo componha seus mapas, por isso foi escolhida para esta pesquisa, pois o estudo das organizações e do trabalho em saúde é complexo e apresenta grandes desafios metodológicos para os processos investigativos. Dentre os múltiplos planos de produção, a do cuidado é particularmente complexa, visto que se dá em ato, a partir do encontro, do qual muitas vezes é possível captar apenas vestígios (Feuerwerker; Merhy, 2011).

Durante a cartografia, o objetivo principal é captar a delicadeza dos processos micropolíticos e a singularidade dos atores e das cenas vividas pelos usuários. A caminhada pelo campo de pesquisa proporcionou vivências captadas com “olho retina” e também pelo olho vibrátil de Rolnik (2006), capaz de perceber a dimensão subjetiva, os afetos e os fluxos de intensidades.

O projeto foi submetido e aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa da UFRJ, com parecer: 560.597, de 23 de março de 2014.

Resultados e discussão

O percurso cartográfico acompanhou três cenários de organização do trabalho envolvendo ações de regulação, com o objetivo de promover acesso e cuidado integral e compartilhado. O estudo partiu do Núcleo de Regulação, no Complexo Regulador Municipal, onde se observou que o processo de trabalho ficava reduzido à gestão da fila de espera, agenda e sistema informatizado, entre outros. Após o grupo focal com gestores e trabalhadores do Complexo Regulador, observaram-se processos de trabalho marcados por uma perspectiva burocrática, distanciados daquela do usuário e da dimensão produtora de cuidado vivo em ato. A busca por processos com ênfase na gestão do cuidado em rede alavancou a pesquisa para outros cenários de produção do cuidado vivo em ato, após compreendermos a organização do trabalho a partir do Complexo Regulador e sua atuação utilizando predominantemente tecnologias duras.

O segundo cenário incluído no estudo, o Observatório de Redes, é classificado como um arranjo tecnológico do cuidado, que se desenvolvia por meio de encontro mensal com gestores de todos os pontos de atenção do município, utilizando e analisando situações e casos emblemáticos que possibilitassem pensar a rede de atenção como um todo, com ênfase em suas articulações e no processo cuidador desenvolvido com foco no usuário.

Durante a cartografia do Observatório de Rede, estavam sendo analisados casos de pacientes denominados como grandes utilizadores da rede, usuários que, em virtude de suas necessidades de saúde e demais condições associadas, colocavam em xeque a integralidade do cuidado em rede estabelecida no município. A partir daí foi identificado um caso específico, que foi escolhido pelos pesquisadores e gestores como usuário-guia, visto que, por ser portador de doença crônica e grande utilizador da rede, poderia apresentar a articulação da rede de cuidados a partir de sua própria experiência como usuário.

Outro aspecto relevante da escolha do usuário-guia foi o fato de estar inscrito no matriciamento da pneumologia, arranjo tecnológico utilizado pelo município como forma de regulação da fila de espera para pneumologia.

O apoio matricial, descrito por Cunha e Campos (2011) como um arranjo para minimizar a fragmentação da atenção, fortalecer a atuação multidisciplinar, a responsabilização clínica e a regulação das rede de atenção, vem sendo utilizado no Brasil e em outros países (Oliveira; Campos, 2015, p. 232) como estratégia de aproximação entre a atenção básica e a atenção especializada. A proposta de matriciamento da pneumologia surgiu da necessidade de responder a um grande número de usuários em espera para acessar essa especialidade.

Considerada a oferta insuficiente de consultas especializadas e a demanda reprimida, deu-se início ao trabalho compartilhado entre especialistas e atenção básica, tendo como ponto de partida a revisão de todos os encaminhamentos para a pneumologia, na tentativa de identificar motivos mais frequentes de derivação, fornecendo pistas sobre as doenças respiratórias mais prevalentes e sobre as limitações da rede básica no manejo destes agravos. Posteriormente, os profissionais responsáveis pela condução do matriciamento atualizaram os profissionais da rede em relação aos agravos mais frequentes identificados - doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) e asma. Após essa etapa, foram estabelecidos protocolos e fluxos para o encaminhamento de novos pacientes ao pneumologista. Somente casos graves e/ou de difícil manejo deveriam ser encaminhados a partir dos protocolos, enquanto os demais poderiam ser acompanhados na própria rede básica, que passou a contar com atividades de consulta compartilhada, em que o especialista, com agenda previamente definida, atendia os pacientes em conjunto com o generalista, esclarecendo dúvidas e compartilhando experiências. Além disso, o especialista passou a ter contato direto com as equipes de saúde da rede básica, facilitando a comunicação e oferecendo suporte para o acompanhamento dos usuários. O usuário-guia era portador de DPOC e estava inscrito no matriciamento da pneumologia e sendo cuidado de forma compartilhada entre a atenção básica e a especializada. Ele orientou os pesquisadores sobre as facilidades e dificuldades de acesso e as possibilidades de cuidado integral que eram produzidas, bem como suas interfaces com o serviço e com a regulação, tensionando continuamente as conexões e repostas da rede.

O Observatório de Rede, ainda que produzisse desconforto e deslocamento nos presentes, apontava para a importância da interação entre os pontos de rede de forma efetiva, como descrito por Bertussi et al. (2016, p. 263):

a rede aprendeu que é preciso conversar de verdade, entre si e com os usuários. Com o radar funcionando, várias situações que exigem rede o tempo todo passaram a ser identificada, sabendo que o desafio era conseguir sustentar rede simultaneamente para tantos usuários, quando novas situações com diferentes complexidades são identificadas todo tempo. Rede é uma produção. Cuidado compartilhado é uma produção. Regulação faz sentido se for trabalhada para produzir conexão e colada à produção do cuidado.

De maneira geral, foi possível observar a capilaridade do matriciamento na atenção básica e em outros pontos da rede de atenção e nos espaços de gestão. No entanto, o distanciamento dos serviços de urgência/emergência e atenção hospitalar na articulação de rede foram determinantes, abrindo passagem para as rupturas na continuidade do cuidado. Ficou clara a importância da participação direta da gestão central na mobilização de todos os serviços, pois a fragmentação habitual de serviços e arranjos de cuidado favorece as disputas e não a cooperação (Baduy et al., 2011).

Nesse sentido, cabe destacar que o usuário-guia, apesar de várias necessidades não atendidas do ponto de vista do cuidado integral, teve acesso a uma cirurgia de catarata, agendada pelo Complexo Regulador, o que indica que a lógica procedimental pode produzir fragmentação.

Assim, identificou-se que não basta produzir uma mudança nos processos de trabalho da regulação, a desconstrução passa também pela atenção especializada, pela identificação de profissionais dispostos a agir sob outra lógica, em lugares diferentes e, acima de tudo, a participar da construção coletiva da produção do cuidado em rede compartilhada. Esse foi o caminho para a construção do matriciamento em algumas especialidades em que as dificuldades das equipes da atenção básica eram circunscritas (Bertussi; Feuerwerker; Louvison, 2016).

O terceiro cenário cartografado foi o Apoio em Rede, que se constitui no município como um arranjo apoiador que movimenta trabalhadores em diferentes pontos, colocando-os em conexão para o cuidado em diferentes situações. Os apoiadores de rede nos apresentaram a organização da linha de cuidado da dor osteomuscular crônica, cuja estruturação se deu a partir da constatação dos próprios integrantes da rede de que a demanda reprimida para consultas de ortopedia e de fisioterapia não seria vencida se não houvesse outra lógica para pensar a oferta. Partindo da identificação desse problema, a equipe de gestão municipal tomou a decisão de discutir e analisar, em conjunto com trabalhadores dos cinco territórios com maior demanda reprimida - gerentes de Unidades Básicas de Saúde (UBS) e apoiadores de rede, Centro Especializado de Reabilitação (CER IV) e equipe de gestão da Secretaria Municipal de Saúde -, toda a demanda reprimida de ortopedia e fisioterapia.

A partir dos dados levantados, foi possível identificar dificuldades importantes: um grande número de encaminhamentos para consultas de ortopedia, reumatologia e fisioterapia e uma oferta insuficiente de especialidades e da tríade de medicamentos para dor crônica: anti-inflamatórios, corticoides e analgésicos. Havia ainda um pequeno número de grupos de dor crônica distribuído em poucas UBS; práticas integrativas ofertadas de forma desarticulada da linha de cuidado da dor osteomuscular crônica; o serviço de fisioterapia pouco dialogava com os territórios; e a maior parte dos encaminhamentos para fisioterapia estavam relacionados à dor lombar crônica. Em resumo: não se faziam ofertas capazes de responder às necessidades dos usuários, que eram deixados em espera por longo tempo e recebiam, ao final, cuidados por tempo insuficiente, fragmentado e pouco singularizados.

Os apoiadores de rede, em conjunto com os trabalhadores, refletiram sobre as necessidades dos usuários e que tipos de respostas poderiam produzir de modo descentralizado. Os trabalhadores dos territórios trouxeram para a cena diferentes ofertas que poderiam ser articuladas para a composição da rede: Lian Gong (prática corporal chinesa, que busca restaurar o movimento natural do corpo e amenizar dores), acupuntura, auriculoterapia e grupos de atividades físicas (realizados em parceria com a Secretaria de Esportes para orientar a prática adequada de atividade física).

A principal novidade proposta foi a presença do fisioterapeuta no território, com a finalidade de ampliar e descentralizar o cuidado em casos de moderada complexidade, visando acesso mais próximo e continuidade do cuidado às DOC. Buscava-se então a atuação desse profissional integrada à equipe da atenção básica, diversificando atores e respostas para demanda reprimida, qualificando as filas de espera e desenvolvendo noções de autocuidado que pudessem ser incorporadas ao cotidiano dos usuários, evitando que eles retornassem à espera de novo atendimento após o término do conjunto de sessões de fisioterapia.

A organização da linha de cuidado se deu a partir do território, tendo sido endereçadas três modalidades de dor (membros superiores, membros inferiores e coluna) e definidos critérios de inclusão e exclusão aplicados após a avaliação individual do paciente pelo profissional. Após as avaliações, os grupos se formaram nas unidades de saúde do território e cada paciente participaria das atividades desenvolvidas em dez sessões. Após essa intervenção, havia nova avaliação para verificar a necessidade de continuidade ou a possibilidade de seguimento em casa ou encaminhamento para outras atividades no território.

Ainda que a estratégia da fisioterapia territorial tenha se constituído como um importante movimento para lidar com a demanda reprimida, era fundamental reorganizar o processo de trabalho em rede compartilhada para manejar a dor osteomuscular crônica. Para tanto foi imprescindível a rede de conversação entre regulação ambulatorial especializada, equipes da atenção básica e equipes da policlínica central e centro especializado em reabilitação para evitar a formação de nova demanda reprimida.

O foco do trabalho havia sido diversificar e descentralizar ofertas que evitariam o encaminhamento, pois respondiam à necessidade dos usuários nos serviços próximos à sua casa. A continuidade do processo, envolvendo a atenção especializada, apontou para a necessidade de discutir o protocolo de ortopedia, reumatologia e fisioterapia do município, de forma a articular e integrar a atuação dos profissionais.

A atuação articulada e integrada entre os diferentes âmbitos da atenção em saúde, apesar de ser uma estratégia cada vez mais presente no cotidiano dos serviços de saúde, não está imune a disputas e, a depender do cenário, depara com grau variado de dificuldade, que inclui a disposição variada de colaboração entre os trabalhadores dos diferentes serviços.

O terceiro cenário, em resumo, apresentou um potente arranjo tecnológico, que partiu da necessidade de atuar nas filas de espera do Complexo Regulador e produziu outros arranjos capazes tanto de minimizar as filas de espera, como também de promover a melhora da dor, desenvolver a autonomia dos usuários em relação ao cuidado com si mesmos e servir como modelo positivo de articulação de rede.

Importante apontar os limites dessa construção ampliada, pois não se consegue necessariamente que todo o sistema funcione com os casos de maior complexidade que demandam rede no “radar” de todos os serviços da rede de atenção. Ainda que os arranjos tecnológicos de regulação analisados tenham cumprido o papel de garantir acesso à especialidade, a articulação insuficiente dos serviços não permitiu a visibilidade adequada do caso em questão, nem tampouco oferta suficiente para todas as necessidades. O usuário guia deste estudo, portador de pneumopatia grave, veio a óbito ao final da pesquisa, depois de vários dias de internação em uma Unidade de Pronto Atendido diferente daquela localizada em frente à sua casa, à qual ele se referia como o seu “boteco”.

Considerações finais

A pesquisa permitiu captar os movimentos de regulação existentes para além do Complexo Regulador Municipal. A despeito do papel previsto, sobretudo na Política Nacional de Regulação, que coloca a Central como protagonista das ações de regulação, ao longo do estudo o Complexo Regulador apresentou-se como coadjuvante, responsável por criar condições para que ações de regulação mais finas e inovadoras fossem possíveis de forma disseminada na rede de atenção. Ele colaborou com informações valiosas, por exemplo: conhecer o tamanho e a característica das demandas reprimidas, fornecer dados sobre a oferta de serviços e construir protocolos e implantar fluxos para determinados atendimentos. As ferramentas ofertadas pelo complexo regulador, atuando através de linhas invisíveis, apoiaram processos territoriais, com centralidade no usuário e na produção do cuidado.

Os arranjos tecnológicos do cuidado são ferramentas que colaboram na produção do cuidado em saúde e permitem enxergar a regulação do acesso para além do complexo regulador. Organizar sistemas de saúde complexos, como o SUS, olhando para integralidade, equidade e universalidade, requer a construção permanente de estratégias inovadoras voltadas às necessidades de saúde da população. Do ponto de vista da pesquisa, a diversidade de arranjos criados em diferentes pontos da rede de atenção, com a participação de atores distintos, foi compreendida como movimento capaz de produzir cuidado eficiente e de qualidade.

Referências

  • BADUY, R. S. et al. A regulação assistencial e a produção do cuidado: um arranjo potente para qualificar a atenção. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 295-304, 2011.
  • BAHIA, L. Padrões e mudanças no financiamento e regulação do Sistema de Saúde Brasileiro: impactos sobre as relações entre o público e privado. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 9-30, 2005.
  • BERTUSSI, D. C.; FEUERWERKER, L. C. M.; LOUVISON, M. C. P. A “regulação a quente” e a “atenção especializada viva” como dispositivo de compartilhamento de cuidado em saúde. In: MERHY E. E. et al. (Org.). Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis, 2016. v. 1. p. 357-360.
  • BERTUSSI, D. C. et al. Arranjos regulatórios como dispositivos para o cuidado compartilhado em saúde. In: FEUERWERKER, L. C. M.; BERTUSSI, D. C.; MERHY, E. E. (Org.). Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis , 2016. v. 2. p. 354-365.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 399, de 22 de fevereiro de 2006. Divulga o Pacto Pela Saúde 2006 - Consolidação do SUS e aprova as Diretrizes Operacionais do referido pacto. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 fev. 2006. Seção 1, p. 43.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria GM nº 1.559, de 1º de agosto de 2008. Institui a Política Nacional de Regulação do SUS. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 4 ago. 2008. Seção 1, p. 30.
  • CARVALHO, G. Saúde no Brasil - 2001. [S.l.: s.n.], 2001. Disponível em: <Disponível em: https://bit.ly/2zVk7eD >. Acesso em: 31 jul. 2019.
    » https://bit.ly/2zVk7eD
  • CARVALHO, G. A saúde pública no Brasil. Estudos Avançados, São Paulo, v. 27, n. 78, p. 7-26, 2013.
  • CECÍLIO, L. C. O. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e eqüidade na atenção em saúde. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (Ed.). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: Uerj, 2001. p. 113-126.
  • CECÍLIO, L. C. O.; CARAPINHEIRO, G.; ANDREAZZA, R. (Org.). Os mapas do cuidado: o agir leigo na saúde. São Paulo: Hucitec, 2014.
  • CUNHA, G. T.; CAMPOS, G. W. S. Apoio matricial e atenção primária em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 4, p. 961-970, 2011.
  • FEUERWERKER, L. C. M.; MERHY, E. E. Como temos armado e efetivado nossos estudos, que fundamentalmente investigam políticas e práticas sociais de gestão e de saúde. In: MATTOS, R. A.; BAPTISTA, T. W. F. (Org.). Caminhos para análise das políticas de saúde. Rio de Janeiro: Uerj , 2011. p. 290-305.
  • IBANHES, L. C. et al. Governança e regulação na saúde: desafios para a gestão na Região Metropolitana de São Paulo, Brasil. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, p. 575-584, 2007.
  • JORGE, A. O., MOEBUS, R. L. N.; SILVA, R. A. Nas trilhas da usuária-guia Gil. In: FEUERWERKER, L. C. M.; BERTUSSI, D. C.; MERHY, E. E. (Org.). Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis , 2016. v. 2. p. 318-329.
  • MAGALHÃES JUNIOR, H. M. Redes de atenção à saúde: rumo à integralidade. Divulgação em Saúde para Debate, Rio de Janeiro , n. 52, p. 15-37, 2014.
  • MATTOS, R. A.; BAPTISTA, T. W. F. Sobre a política. In: MATTOS, R. A.; BAPTISTA, T. W. F. (Org.). Caminhos para análise de políticas. Porto Alegre: Rede Unida, 2015. p. 83-152.
  • OLIVEIRA, M. M.; CAMPOS, G. W. S. Apoios matricial e institucional: analisando suas construções. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 229-238, 2015.
  • OLIVEIRA, R. R.; ELIAS, P. E. M. Conceitos de Regulação em saúde no Brasil. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 46, n. 3, p. 571-576, 2012.
  • OMS - ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Relatório sobre a saúde no mundo 2000: melhorar o desempenho dos sistemas de saúde. Genebra, 2000.
  • PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2012.
  • ROLNIK, S. Cartografia sentimental. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006.
  • SANTOS, F. P.; MERHY, E. E. A regulação pública da saúde no Estado - uma revisão. Interface, Botucatu, v. 10, n. 19, p. 25-41, 2006.
  • TALLEMBERG, C. A. A. Passagens de uma prática clinico-política menor: tese-ensaio sobre o processo de desinstitucionalização do Hospital Psiquiátrico Estadual Teixeira Brandão. 137 f. 2015. Tese (Doutorado em Ciências da Saúde) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
  • 1
    Os autores informam que esta pesquisa teve financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    04 Ago 2019
  • Revisado
    19 Mar 2020
  • Aceito
    30 Mar 2020
location_on
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. Av. dr. Arnaldo, 715, Prédio da Biblioteca, 2º andar sala 2, 01246-904 São Paulo - SP - Brasil, Tel./Fax: +55 11 3061-7880 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro