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Gostaríamos de parabenizar Silveira e Rocha (2020) pelo artigo “Verdades em (des)construção: uma análise sobre as práticas integrativas e complementares em saúde”, publicado no volume 29, número 1, da revista Saúde e Sociedade. É importante a aproximação que desenvolveram entre as práticas integrativas e complementares (PIC) e a promoção da saúde, com o fim de construir uma genealogia e regimes de verdade das PIC no Sistema Único de Saúde (SUS).

As autoras são precisas ao apontar o risco do uso das PIC para eximir o Estado da responsabilidade do sistema de saúde público e universal de qualidade, e também ao apontar a relação entre as PIC e a produção de identidades capturadas pelo discurso do gerenciamento da própria saúde. Além disso, foram perspicazes ao identificar o uso das PIC como práticas adaptativas que viabilizam o governo das condutas e a capitalização utilitária dos desejos no projeto neoliberal de sociedade. Acertam ainda ao identificar que as bases fundamentais da promoção da saúde e das PIC foram transformadas pelos interesses dos agentes hegemônicos do campo da saúde.

Porém, o artigo apresenta mais informações e reflexões sobre as produções de verdade da promoção da saúde que das PIC, e as autoras apressaram-se ao construir uma genealogia das PIC apoiada apenas na representação cultural (Hall, 2016) do regime de verdade neoliberal. Erram as autoras ao desenvolver uma genealogia breve e unidirecionada. Enganam-se também ao discutir superficialmente a relação do regime de verdade do paradigma de promoção da saúde com o restabelecimento da gestão e “cuidado preventivo” dos corpos e da vida dos humanos e não humanos.

Por certo, uma genealogia das PIC deve explorar o fato, por exemplo, de que, no início dos anos 1990, as representações culturais sobre as práticas não biomédicas eram acercadas de um conjunto de identidades diferentes das que são exploradas pelas autoras, pois elas, com certeza, seguem constitutivas do regime de verdade de um extrato das PIC no SUS.

No fim do século XX ainda soavam os ecos dos “rituais de resistência” de jovens de classe média orientados pelas práticas de contracultura, os quais eram representados, pelos agentes da cultura hegemônica, como aqueles que não tinham aprendido a “boa” medicina, ou aqueles que queriam apenas fazer mais dinheiro com práticas embusteiras. As tentativas dos agentes da ordem hegemônica de fixar identidades “alternativas” como negativas não foram suficientes, no entanto, para impedir o interesse crescente de profissionais e usuários por práticas diversas da medicina ocidental contemporânea. Mais ainda, a construção de representações culturais negativas não foi suficiente para dissipar certa “crise de autoridade, precisamente uma crise de hegemonia ou uma crise geral do Estado” (Hall; Jefferson, 2014, p. 127). Não foi suficiente também para evitar a criação do movimento social, de grande envergadura e irredutível à gestão dos corpos, dos agentes das práticas populares de saúde com os das PIC.

Na primeira década do século XXI, o movimento das PIC no campo da saúde projetou novas identidades profissionais, que intensificaram o debate em torno do Estado mínimo e do Estado de direito. Houve agentes identificados com a perspectiva neoliberal que cunharam o sentido e a cultura das práticas complementares e mesmo integrativas no setor privado, orientadas para o consumo em saúde. Todavia, houve defensores da atenção à saúde como direito dos cidadãos e dever dos Estados, que desenvolveram o sentido e o ideário das práticas complementares e integrativas como ampliação da oferta e apontamentos de um novo paradigma de cuidado no campo da saúde.

A construção da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (PNPIC-SUS), de acordo com o histórico apresentado no próprio corpo da Política, foi uma solução de continuidade do ideário do Movimento de Reforma Sanitária no Brasil. A PNPIC-SUS se apoiou no constructo epistêmico das Racionalidades Médicas, desenvolvido por Luz e grupo de pesquisa, para ampliar as formas de cuidado e diferenciar sistemas médicos de práticas terapêuticas (Luz; Barros, 2012).

Da mesma forma, a PNPIC-SUS ampliou a possibilidade da criação de novas culturas de cuidado no SUS, com um regime de representações culturais apoiadas em sentidos positivos das práticas não biomédicas e com a construção de novas subjetividades de um conjunto de agentes e suas agências de cuidado não biomédicas. Por exemplo, a PNPIC-SUS trouxe a possibilidade de uma mulher, parda, com baixa escolaridade, agente comunitária de saúde e instrutora de Lian Gong na atenção básica desenvolver a seguinte prática e reflexão:

A gente vem numa cultura nossa… é uma cultura de alguém cuidar de você; é uma cultura medicamentosa, você só pensa que sara se usa remédio. Se você for ao médico e ele receitar Lian Gong e não der remédio, o médico não presta. Então, eu vim dessa cultura. A gente não tem a cultura do autocuidado, então mudou. Porque hoje eu sei que o que sara não é medicamento; uma boa conversa sara, e você não precisa tomar remédio. Dor de cabeça é só fazer uma massagem e respirar fundo, e ela vai passar, se não for um quadro infeccioso, vai passar. (Barros, 2017)

Conclusivamente, embora as autoras acertem em apontar possíveis aproximações das PIC com a sociedade neoliberal, elas erram ao forçar uma relação direta e unidimensional dessas práticas com a regulação dos corpos, subjetividades e modos de viver para a manutenção dos poderes hegemônicos. Além disso, não conseguem desenvolver a discussão das PIC como um essencialismo estratégico e equivocam-se ao construir uma genealogia epocalista.

Referências

  • BARROS, N. F. As racionalidades médicas e práticas integrativas e complementares nos serviços de atenção primária em saúde na região metropolitana de Campinas/SP. Campinas, 2017. (Relatório de pesquisa, Edital MCTI/CNPq/MS nº 07/2013). Não paginado.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS: PNPIC-SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2006.
  • HALL, S. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio: Apicuri, 2016.
  • HALL, S.; JEFFERSON, T. Rituales de resistencia: subculturas juveniles en la Gran Bretaña de postguerra. Espanha: Gráficas Lizarra, 2014.
  • LUZ, M. T.; BARROS, N. F. (Org.). Racionalidades médicas e práticas integrativas em saúde. Rio de Janeiro: Uerj, 2012.
  • SILVEIRA, R. P.; ROCHA, C. M. F. Verdades em (des)construção: uma análise sobre as práticas integrativas e complementares em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 29, n. 1, e180906, 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2020
  • Aceito
    29 Jun 2020
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