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“Na verdade eu nunca participei e nem ouvi falar sobre”: a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra na perspectiva de gestores e profissionais da saúde

Resumo

Este artigo analisa como a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) tem sido implementada na atenção à saúde em três municípios do Estado da Bahia, Brasil. Trata-se de um estudo qualitativo que faz parte da primeira etapa de uma pesquisa-ação, na qual foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 27 profissionais de unidades de Saúde da Família, Atenção Básica e Sede do Distrito Sanitário. Após análise de conteúdo, emergiram quatro categorias: Atenção Primária à Saúde (APS); Saúde da População Negra; Atenção à saúde na diversidade; e PNSIPN. Como resultado, os profissionais apresentaram entendimento superficial sobre a APS, apesar de a reconhecerem como porta de entrada. A relevância de uma atenção à saúde específica para a população negra foi desconsiderada, sob o argumento de que todos são iguais. A diversidade racial não foi reconhecida dentro do cotidiano, sendo o termo atrelado à diversidade LGBTQIA+ e aos ciclos de vida. O dado comum nos municípios foi o desconhecimento da PNSIPN e dos meios práticos para inseri-la no cotidiano do trabalho. A ausência da política para essa população no processo de planejamento e trabalho dos serviços revela a urgência da educação permanente em saúde para a apropriação do princípio de equidade pelas gestoras e profissionais.

Palavras-Chave:
Atenção à Saúde; Equidade em Saúde; População Negra; Política Pública

Abstract

This study analyzes how the National Policy on Comprehensive Health of the Black Population (PNSIPN) has been implemented in three municipalities in the state of Bahia, Brazil. This qualitative study is part of an ongoing action research, in which semi-structured interviews were performed with 27 professionals from family health, primary health care, and health district headquarters. Content analysis presented four categories: primary health care (PHC); Black health; health care in diversity; and PNSIPN. Health professionals showed a superficial understanding of PHC, despite recognizing it as a gateway. A specific health care for the Black population was considered irrelevant, on the grounds that everyone is equal. Diversity was linked to the LGBTQIA+ population and life cycles, but not to ethnicity or skin color. All municipalities lacked knowledge about the PNSIPN and the practical means to implement it in their daily work. Its absence in the services’ planning and work processes shows an urgent need for permanent education in health so that managers and professional can appropriate the principle of equity.

Keywords:
Health Care; Health Equity; Black Population; Public Policy

Introdução

Ao longo da construção da sociedade brasileira, o estabelecimento e a reprodução de hierarquias raciais subjugam a população negra a desvantagens no que tange ao acesso a serviços, a direitos e a oportunidades. As desigualdades raciais são sistematicamente atualizadas como consequência do racismo, que de acordo com Almeida (2019ALMEIDA, S. L. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019., p. 32), “é uma forma sistêmica de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam”.

As desigualdades raciais perpetradas no âmbito das organizações configuram-se como racismo institucional, o qual não se resume a preconceitos ou ofensas raciais interpessoais, visto que “atua de forma difusa no funcionamento cotidiano de instituições e organizações, que operam de forma diferenciada na distribuição de serviços, benefícios e vantagens aos diferentes segmentos da população do ponto de vista racial” (López, 2012LÓPEZ, L. C. O conceito de racismo institucional: aplicações no campo da saúde. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 16, n. 40, p. 121-134, 2012. DOI: 10.1590/S1414-32832012005000004
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, p. 127).

Dados atuais referentes à saúde das pessoas negras reafirmam as disparidades raciais e evidenciam a dificuldade das instituições de saúde em oferecer um serviço equânime. À exceção de condições genéticas, como a doença falciforme e a deficiência da glicose-6-fosfato desidrogenase, outras doenças consideradas mais prevalentes na população negra têm estreita relação com fatores socioeconômicos, hábitos de vida e condições ambientais, como a hipertensão arterial sistêmica e o diabetes mellitus tipo 2, explicitando o racismo como um determinante social de saúde (Varga; Cardoso, 2016VARGA, I. D.; CARDOSO, R. L. S. Controle da hipertensão arterial sistêmica na população negra no Maranhão: problemas e desafios. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 3, p. 664-671, 2016. DOI: 10.1590/S0104-129020162616
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). Além disso, entre 2011 e 2019, 63% das mortes maternas ocorreram entre mulheres negras e 31% entre mulheres brancas, ademais a taxa de mortalidade infantil também é maior entre crianças negras (Brasil, 2021BRASIL. Ministério da Saúde. Banco de dados do Sistema Único de Saúde - DATASUS. Mortalidade - desde 1996 pela CID-10, 2021. Disponível em: <Disponível em: https://datasus.saude.gov.br/mortalidade-desde-1996-pela-cid-10 >. Acesso em: 17 nov. 2021.
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). No que concerne à saúde mental, entre 2012 e 2016, o índice de suicídio entre a população negra foi 55,4% superior quando comparado aos demais grupos étnico-raciais (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Saúde. Óbitos por suicídio entre adolescentes e jovens negros 2012 a 2016. Brasília, DF, 2018.).

A equidade, um dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), tem o objetivo de guiar as ações de saúde em direção à justiça social considerando as diferenças e necessidades dos distintos grupos sociais, tratando-os desigualmente conforme a atenção requerida com o objetivo de enfrentar as iniquidades na saúde (Barros; Sousa, 2016BARROS, F. P. C.; SOUSA, M. F. Equidade: seus conceitos, significações e implicações para o SUS. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 9-18, 2016. DOI: 10.1590/S0104-12902016146195
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).

Em consonância com o princípio da equidade, em 2006 o Conselho Nacional de Saúde (CNS) aprovou a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), que foi instituída pela portaria 992/2009. Sua marca é o “reconhecimento do racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo institucional como determinantes sociais das condições de saúde, com vistas à promoção da equidade em saúde” (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 992, de 13 de maio de 2009. Institui a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Brasília, DF, 2009. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt0992_13_05_2009.html >. Acesso em: 2 set. 2022.
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).

A PNSIPN tem o propósito de garantir a efetivação do direito à saúde, em seus aspectos de promoção da saúde, prevenção, atenção, tratamento e recuperação de doenças e agravos transmissíveis e não transmissíveis, incluindo aquelas de maior prevalência neste segmento populacional (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 992, de 13 de maio de 2009. Institui a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Brasília, DF, 2009. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt0992_13_05_2009.html >. Acesso em: 2 set. 2022.
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). Essa política é fruto da participação social representada, sobretudo, pelos Movimentos Negros no contexto de luta pela democratização da saúde.

Apesar dos esforços, a implementação da PNSIPN enfrenta alguns desafios, como a dificuldade de institucionalização do campo da saúde da população negra no meio acadêmico e político; posicionamentos contrários a esse campo pela discordância quanto ao uso do conceito de raça e a falta de reconhecimento do racismo e sua influência na saúde em defesa da centralidade da determinação econômica; a dificuldade de transversalizar a política nas ações de saúde; e o problema em definir indicadores para avaliação e monitoramento das suas ações (Faustino, 2017FAUSTINO, D. M. A universalização dos direitos e a promoção da equidade: o caso da saúde da população negra. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 12, p. 3831-3840, 2017. DOI: 10.1590/1413-812320172212.25292017
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; Gomes, I. et al, 2017GOMES, I. C. et al. Implementação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População Negra na Bahia. Revista Baiana de Enfermagem, Salvador, v. 31, n. 2, e21500, 2017. DOI: 10.18471/rbe.v31i2.21500
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).

No estado da Bahia, em 2007, a Secretaria Estadual de Saúde criou o Comitê Técnico Estadual de Saúde da População Negra, formando uma das principais ferramentas para a operacionalização da PNSIPN no estado. Na Bahia, 80% da população se autodeclara preta ou parda e há um número importante de comunidades negras tradicionais, remanescentes de quilombos e de religião de matriz africana (Gomes, I. et al, 2017GOMES, I. C. et al. Implementação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População Negra na Bahia. Revista Baiana de Enfermagem, Salvador, v. 31, n. 2, e21500, 2017. DOI: 10.18471/rbe.v31i2.21500
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). Entretanto, há pouca informação sobre o processo de implementação em seus municípios, os quais são lócus privilegiados da ação política.

Este artigo buscou analisar como a PNSIPN tem sido implementada nos serviços de atenção à saúde do SUS, sob a perspectiva das gestoras e profissionais de saúde de três municípios baianos.

Metodologia

Este artigo é um recorte da pesquisa-ação “Atenção à saúde na perspectiva da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra - PNSIPN” e aqui serão apresentados os resultados da primeira etapa do estudo. Essa pesquisa, de abordagem qualitativa e caráter exploratório, foi realizada pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Raça e Saúde (Negras) e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb), por meio do Programa de Pesquisa para o SUS (PPSUS). Os dados foram coletados no ano de 2019 em três municípios do Estado da Bahia: na capital, Salvador, e em Santo Antônio de Jesus e Cruz das Almas, no Recôncavo Baiano. A escolha desses municípios se deu pela presença significativa da população negra e por terem recebido apoio estadual, a partir de 2007, para a operacionalização da PNSIPN na Bahia (Gomes, I. et al, 2017GOMES, I. C. et al. Implementação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População Negra na Bahia. Revista Baiana de Enfermagem, Salvador, v. 31, n. 2, e21500, 2017. DOI: 10.18471/rbe.v31i2.21500
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).

Inicialmente foi realizado contato com as Secretarias Municipais de Saúde de cada município. A partir de então, por conveniência, foram escolhidos dois Distritos Sanitários (menor unidade territorial de gestão em saúde dentro do município), de cada cidade. Buscou-se contemplar regiões com características socioeconômicas distintas.

Dentro de cada distrito foram sorteadas aleatoriamente 5 Unidades de Saúde da Família (Salvador: 2; Cruz das Almas: 2; Santo Antônio de Jesus: 1) e 2 Unidades de Atenção Básica (Salvador: 1; Santo Antônio de Jesus: 1). Na capital, Salvador, uma sede do distrito também foi ponto de pesquisa para entrevista com gestores. Escolhemos trabalhar dessa forma, pois as Unidades de Saúde da Família prestam um cuidado contínuo realizado por uma equipe multiprofissional e interdisciplinar, enquanto as Unidades Básicas de Saúde (UBS) realizam ações e serviços de atenção básica (Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html >. Acesso em: 2 set. 2022.
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).

Para chegar ao quantitativo final de entrevistas utilizou-se o método da saturação. No total, foram realizadas 27 entrevistas com gestoras e profissionais de saúde de nível superior e médio. A coleta de dados se deu por meio de um questionário semiestruturado composto por questões de caracterização (idade, gênero e raça/cor) e perguntas norteadoras a respeito da saúde da população negra, da diversidade da população e da inserção da PNSIPN na atuação profissional e no planejamento dos serviços de saúde. As entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas na íntegra para a análise. A condução da coleta foi realizada por integrantes do Negras.

As respostas foram analisadas segundo a técnica de análise de conteúdo (Caregnato; Mutti, 2006CAREGNATO, R .C. A.; MUTTI, R. Pesquisa qualitativa: análise de discurso versus análise de conteúdo. Texto & Contexto - Enfermagem, Florianópolis, v. 15, n. 4, p. 679-684, 2006. DOI: 10.1590/S0104-07072006000400017
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). Após examinar as entrevistas, o material foi agrupado em quatro categorias que se relacionam ao reconhecimento, entendimento e efetivação da PNSIPN: Atenção Primária à Saúde; Saúde da População Negra; Atenção à Saúde na Diversidade; e Política Nacional de Saúde Integral da População Negra.

A pesquisa foi aprovada pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia (UFBA), instituição proponente, e da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), coparticipante, sob os números 2.768.574 e 2.768.574, respectivamente. O termo de anuência das secretarias de saúde foi solicitado antes dos contatos com as unidades de saúde selecionadas para a investigação. Os(as) profissionais de saúde que aceitaram participar da pesquisa foram informados sobre o objetivo do estudo. A entrevista foi realizada após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Para preservar a identidade dos(as) profissionais, neste artigo, utilizamos nomes de países africanos na codificação das falas.

Resultados e discussão

Em relação à raça/cor, das 27 participantes da pesquisa, 53,3% se autodeclararam pardas, 40% pretas, 3,3% se declararam amarelas e 3,3% brancas. Das(os) entrevistadas(os), 90% eram mulheres cis e 10% homens cis.

Entre as(os) 9 gestoras(es), apenas 1 era homem. Optou-se pela escrita no gênero feminino. A idade desse grupo variou de 29 a 51 anos. A formação profissional das gestoras foi diversificada: administração, ciências contábeis, fisioterapia, odontologia e enfermagem. Já entre os 18 profissionais, apenas 2 eram homens e a faixa etária desse grupo concentrou-se entre 26 e 62 anos. Entre os profissionais de nível superior participaram Enfermeiras, Médicas, Fisioterapeutas e Dentistas. Entre os profissionais de nível médio participaram Técnicos em Enfermagem, Técnicos de Segurança do Trabalho, Agentes Comunitários de Saúde e Auxiliares Administrativos.

Atenção Primária à Saúde (APS)

O trabalho no campo da atenção primária requer conhecimentos fundamentais para o exercício da prática de saúde. De acordo com a Política Nacional de Atenção Básica (Pnab) (Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html >. Acesso em: 2 set. 2022.
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), esta engloba um conjunto de ações de saúde no âmbito individual, familiar e coletivo que envolvem desde a promoção da saúde aos cuidados paliativos, desenvolvidos por meio de práticas de cuidado integrado. Todas essas ações são fundamentais para a efetivação da PNSIPN, visto que a Pnab prevê que sejam adotadas estratégias na atenção primária que auxiliem na redução das iniquidades e desigualdades de raça/cor, gênero, orientação sexual, entre outras.

No entanto, por meio das entrevistas foi demonstrado um entendimento superficial sobre a APS. Os participantes não apresentaram informações mais aprofundadas sobre suas principais características e possibilidades de atuação, apesar de a compreenderem como uma forma de cuidado básico e porta de entrada dos serviços da Rede de Atenção à Saúde (RAS). Gestoras e profissionais de nível superior associaram a APS principalmente à prevenção de agravos e redução de danos, sem diferenciar a promoção da saúde - que tem uma amplitude de atuação.

Atenção primária é a porta de entrada né, a gente precisa tentar trabalhar mais com prevenção para desafogar os hospitais. A gente tenta aqui trabalhar com prevenção, conscientizar a população, evitar danos mais sérios…enfim, essa parte da prevenção e promoção da saúde mesmo. (Quênia - Gestora-enfermeira; Raça/cor: Parda)

A maior parte dos profissionais de nível médio relacionaram esse nível de atenção aos serviços de baixa complexidade e de caráter preventivo, associando a qualidade da atenção à saúde à disponibilidade de vagas para o atendimento.

Tá muito precária… principalmente pra pessoa de classe mais pobre… pra conseguir uma vaga… é muito complicado mesmo… vejo no dia a dia… a questão dessas marcações mesmo… às vezes a pessoa vem e não consegue a vaga… volta outro dia e não consegue a vaga. (Angola - Auxiliar Administrativo; Raça/cor: Preta)

Outros profissionais de nível médio consideraram que a APS também representa um espaço privilegiado para o acolhimento e construção do vínculo entre usuário, serviço e profissionais. Assim, uma boa comunicação e o exercício da escuta são potentes dispositivos de cuidado em saúde.

A atenção primária que eu vejo assim é o primeiro local que a pessoa vai, é o primeiro lugar, o primeiro pronto socorro que a gente tem pra ir. O primeiro lugar que a gente vai é o posto de saúde […]. (Benin - Agente comunitário de saúde administrativo; Raça/cor: Preta)

Para Camara, Belo e Peres (2020CAMARA, E. A. R.; BELO, M. S. S. P.; PERES, F. Desafios e oportunidades para a formação em Saúde do Trabalhador na Atenção Básica à Saúde: subsídios para estratégias de intervenção. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 45, e10, 2020. DOI: 10.1590/2317-6369000009418
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), apesar dos avanços alcançados na consolidação da complexa arquitetura organizativa do SUS, inúmeros são os desafios para o seu adequado funcionamento. Dentre eles está a formação em saúde, ainda tradicionalmente reducionista, na qual prevalece a preocupação com diagnóstico e tratamento de doenças, em detrimento das estratégias de promoção da saúde que privilegiam a intersetorialidade e a participação social.

Sendo a APS um núcleo da comunicação do sistema de saúde, tal formação não propicia a coordenação do cuidado, uma vez que não encoraja a atuação em rede, afetando a compreensão do cuidado integral (Ribeiro; Cavalcanti, 2020RIBEIRO, S. P.; CAVALCANTI, M. L. T. Atenção Primária e Coordenação do Cuidado: dispositivo para ampliação do acesso e a melhoria da qualidade. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 5, p. 1799-1808, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020255.34122019
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). Além disso, a APS é, dentre os diferentes espaços de organização do SUS, a que possui as maiores complexidades formativas, em virtude da centralidade da organização do cuidado e da promoção da saúde (Camara; Belo; Peres, 2020CAMARA, E. A. R.; BELO, M. S. S. P.; PERES, F. Desafios e oportunidades para a formação em Saúde do Trabalhador na Atenção Básica à Saúde: subsídios para estratégias de intervenção. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 45, e10, 2020. DOI: 10.1590/2317-6369000009418
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).

Um estudo realizado por Amaral e colaboradores (2021AMARAL, V. S. et al. Os nós críticos do processo de trabalho na Atenção Primária à Saúde: uma pesquisa-ação. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, e310106, 2021. DOI: 10.1590/S0103-73312021310106
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) apontou como desafios centrais do processo de trabalho na APS, a Educação Permanente em Saúde (EPS), a problematização e compreensão sobre as atribuições individuais e coletivas e o propósito das ações desenvolvidas. Vale ressaltar que a EPS pode colaborar para uma melhor eficiência da APS e consequentemente viabilizar de modo enfático e pragmático as ações inerentes à PNSIPN ao incorporar os temas racismo e saúde da população negra na formação de trabalhadores de saúde.

Saúde da população negra

Consolidar o campo temático da saúde da população negra dentro das ciências da saúde constitui-se como uma potente estratégia de superação das barreiras enfrentadas por essa população, tanto no acesso à saúde quanto na garantia de outros direitos. Entretanto, a realidade do cotidiano do serviço de atenção básica demonstra que a consolidação deste campo ainda apresenta lacunas.

Quando questionadas acerca do seu entendimento sobre a saúde da população negra, as respostas das gestoras e profissionais de nível superior foram semelhantes nos três municípios e demonstraram conhecimento superficial e pouca compreensão da sua relevância.

Para te falar a verdade, eu não conheço. Eu digo que eu conheço quase nada […] vi esse tema de vocês achei superinteressante e queria até conhecer mais. (Togo - Gestora- Dentista; Raça/cor: Amarela).

Além disso, mesmo ao admitirem a existência de discriminação na sociedade, disseram não a enxergar no cotidiano do serviço.

[…] a discriminação existe, infelizmente né? Isso aí já é um caso que é estudado, já é falado, comunicado a todos em relação ao atendimento ser igualitário, ser igual. Aqui como te falei não vi, desde quando eu estou aqui, vou fazer um ano ainda, e não vi diferença realmente em relação a ter discriminação. (Camarões - Gestora-Fisioterapeuta; Raça/cor: Parda)

Alguns trabalhos já revelaram a discriminação sentida por usuários negros nos serviços de saúde, como a desvalorização ou desconfiança da queixa, agressão verbal e desrespeito durante o atendimento do médico ou de recepcionistas (Kalckmann et al, 2007KALCKMANN, S. et al. Racismo Institucional: um desafio para a equidade no SUS? Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 16, n. 2, p. 146-155, 2007. DOI: 10.1590/S0104-12902007000200014
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). Cordeiro (2009CORDEIRO, R. C; FERRREIRA, S. L. Discriminação racial e de gênero em discursos de mulheres negras com anemia falciforme. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 352-358, 2009. DOI: 10.1590/S1414-81452009000200016
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) evidenciou formas que mulheres negras com anemia falciforme já foram discriminadas, como o uso de frases preconceituosas ‘‘cuidado, é anemia falciforme, bota luva’’, o reforço de estereótipos quando profissionais verbalizavam que eram viciadas em medicamentos e a negligência ao não receberem orientações sobre a doença. Apesar das mulheres exigirem melhor atendimento, em alguns momentos, a situação de dor, o fato de estarem sozinhas ou medo de sofrerem retaliações após a queixa foram colocados como empecilhos para procura da direção do serviço, o que revela o processo de naturalização da opressão vivenciada.

Esse intrigante cenário de negação do racismo não é um fenômeno individual, mas sim social, sendo descrito na literatura como “racismo sem racistas”, uma vez que “quase todos concordam com a existência das desigualdades raciais, mas é quase impossível constatar o racismo existente em nossa sociedade” (Figueiredo; Grosfoguel, 2009FIGUEIREDO, A.; GROSFOGUEL, R. Racismo à brasileira ou racismo sem racistas: colonialidade do poder e a negação do racismo no espaço universitário. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 12, n. 2, p. 223-234, 2009. DOI: 10.5216/sec.v12i2.9096
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, p. 229). Nessa lógica, ele está sempre em outro lugar, sempre em outras pessoas. Esse pensamento tem suas bases alicerçadas no mito da democracia racial, difundida no país no século XIX, fazendo a população brasileira operar subjetivamente em três dimensões principais: na negação do racismo e da discriminação, na isenção do branco e na culpabilização dos negros (Hasenbalg, 1979HASENBALG, C. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979.).

Entretanto, a fala de uma gestora se destaca por estar em consonância, tanto com o princípio de equidade do SUS quanto com pressupostos de superação das desigualdades raciais.

Na verdade, a saúde da população negra veio com o objetivo de manter uma equidade no atendimento da rede pública, para trazer os benefícios que toda a população tivesse e com isso diminuísse o racismo e igualar, eu entendo que seja isso […] uma visão de melhor atendimento no âmbito de saúde da população negra. (Egito - Gestora-Enfermeira; Raça/cor: Branca)

Já a percepção das profissionais de nível médio variou bastante e demonstrou um entendimento muito mais crítico e sensível sobre as questões relativas à saúde da população negra. Desse modo, ao passo que alguns profissionais de nível médio associaram essa população imediatamente a patologias - como hipertensão, diabetes e doença falciforme -, outros reconheceram a amplitude do debate quando se fala em população negra, considerando que as violências sofridas por este grupo vão além do âmbito da saúde e envolve a situação político-econômica-social vivenciada pela população negra brasileira que, em muitos casos, precisa escolher quais necessidades básicas priorizará para sobreviver.

A população negra… eu acho que tem demandas muito específicas. Quando se trata de saúde, qualquer outro aspecto… de demanda muito específica… e tem que ser olhada a partir desse viés. […] em Salvador, que é a maior população negra fora da África […] por ser pobre, por tá em comunidade ou por tá em espaços que têm uma quantidade menor ou quase nenhuma de saneamento, a alimentação acaba sendo devido a renda. Porque você, pra investir, pra você se alimentar bem, você precisa ter dinheiro… e a maioria da população que recebe salário baixo é a população negra. Então você acaba… ou você paga água, luz… ou você come bem […] essa é a realidade… Então acaba desenvolvendo problemas que são muito relacionados a má alimentação e a falta de infraestrutura nos bairros…. (Etiópia - Técnica de Segurança do Trabalho; Raça/cor: Preta)

A ausência do reconhecimento das implicações do racismo sobre a saúde da população negra e da importância de pautar o seu enfrentamento no dia a dia do trabalho pode ser compreendida como mais um entre os sucessivos apagamentos históricos, atravessando as dimensões tanto da formação dessas profissionais quanto da EPS e dificultando o enfrentamento do racismo nas práticas de cuidado em saúde.

De acordo com Werneck (2016WERNECK, J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 25, n. 3, p. 535-549, 2016. DOI: 10.1590/S0104-129020162610
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), o racismo é um fenômeno ideológico que contribui para a violação de direitos, favorecendo as iniquidades sociais, particularmente no campo da saúde. Ademais, tem relação com todo o ciclo de vida da pessoa negra, desde o seu nascimento, a sua trajetória familiar e individual, até as condições de vida, moradia, trabalho, emprego, renda e de acesso à informação e aos bens e serviços. Ele se manifesta na qualidade do cuidado e na assistência prestada, nos perfis e na estimativa de mortalidade adulta e infantil, nos sofrimentos evitáveis ou nas mortes precoces. As condições desfavoráveis que esse grupo enfrenta implicam em barreiras para o acesso pleno e equitativo aos serviços de saúde.

Nesse contexto, se justifica ter como diretriz geral da PNSIPN a inclusão dos temas racismo e saúde da população negra na formação dos trabalhadores da saúde. O desconhecimento sobre a saúde da população negra em sua amplitude, para além das doenças conhecidas, tem consequências nos encaminhamentos que precisam ser dados para realizar ações diferenciadas de acordo com suas condições e necessidades, sendo necessário que gestoras e profissionais incorporem esses aspectos na prática de planejamento e atuação nos serviços para que os objetivos da política sejam atingidos.

Atenção à saúde na diversidade

A diversidade, muitas vezes entendida somente como a diferença entre os sujeitos a partir da expressão de suas singularidades, carrega também uma conotação política, pois as diferenças podem desencadear as desigualdades e a manifestação ou não de poder (Sacristán, 2002SACRISTÁN, J. G. A construção do discurso sobre a diversidade e suas práticas. In: ALCUDIA, R. et al. (Org). Atenção à diversidade. Porto Alegre: Artmed, 2002. p. 13-37.). Assim, quando se fala de diversidade em saúde, estamos, também, falando em acesso: a quem tem seu direito garantido, mas que mesmo assim lhe é negado - como é o caso da população negra, que historicamente vem sendo vulnerabilizada.

No SUS, a diversidade está diretamente ligada ao princípio da igualdade e da equidade, tendo em vista que para se viver numa sociedade igualitária é preciso o reconhecimento das diversidades (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 992, de 13 de maio de 2009. Institui a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Brasília, DF, 2009. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt0992_13_05_2009.html >. Acesso em: 2 set. 2022.
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). A própria atuação na APS implica em construir vínculos com as diversidades presentes nas comunidades. Entretanto, a pesquisa demonstra que esses conceitos não estão bem fixos entre os profissionais. As gestoras, por exemplo, não demonstraram de maneira prática e assertiva como considerar a diversidade no planejamento e organização do serviço de saúde. Ao perguntar aos profissionais de nível superior sobre diversidade de raça, gênero e orientação sexual, as respostas foram vagas. A diversidade foi associada às diferenças de ciclos e estágios da vida, assim como à condição de gestante.

Acaba vindo muita família, o pessoal acaba vindo muito em família, vem a mãe, aí depois o filho, às vezes estudante da faculdade federal. (Senegal - Dentista; Raça/cor: Parda)

Já os profissionais de nível médio apresentaram uma visão discrepante acerca do tema. Parte dos entrevistados apresentaram uma percepção mais ampliada, referenciando a raça, o gênero e a religião como aspectos importantes a serem considerados. Entretanto, outra parte não explicitou um conhecimento aprofundado sobre as discussões, o que pode ser observado tanto pela dificuldade em nomear a diversidade sexual, ao usarem termos pejorativos como “coisa”, quanto pela noção limitada sobre a realidade da população LGBTQIA+.

Mesmo na Zona Rural, eu acho assim, tem pouca, mas cada dia que passa vai crescendo, você sabe que antigamente a gente não via esse tipo de coisa […] Eu acho que a discriminação [aos LGBTQIA+] é mais aqui na Zona Urbana. (Namíbia - Agente comunitária de saúde; Raça/cor: Parda)

A fala acima está relacionada ao fato de que uma maior quantidade de pessoas tem assumido sua orientação sexual, estando assim mais expostas à discriminação, principalmente na área urbana. A discussão sobre gênero e sexualidade, apesar do atual crescimento, no contexto rural é muitas vezes escassa. Isso está relacionado à repressão que o sujeito do campo vivencia de sua identidade e à reprodução dessa repressão sobre outros sujeitos desse meio, expressando, assim, críticas e julgamentos à homossexualidade (Ferreira, 2006FERREIRA, P. R. Os afectos mal-ditos: o indizível das sociedades camponesas. 2006. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2006.). J. Gomes et al. (2017GOMES, J. C. S. et al. Colorindo o campo: a diversidade sexual no espaço rural. In: V SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES, 5., 2017, Salvador. Anais[…]. Salvador, 2017.) argumentam que no ambiente rural existe “um controle social que como consequência reprime e exclui qualquer pessoa que viva fora dos padrões conservadores do local”, enfatizando, também, que os crimes de LGBTfobia no campo normalmente não são expostos na mídia, o que dificulta ainda mais a visibilização do problema.

Alguns profissionais de nível médio salientaram a realização de palestras sobre a temática diversidade na unidade de saúde.

Sempre a gente está atenta a isso, sempre a gente tem palestras sobre esses assuntos, a gente faz palestra na sala de espera, tem uma palestra itinerante que a gente faz nos bairros, a gente fala sobre isso. (Benin - Agente Comunitária de saúde; Raça/cor: Preta)

Entretanto, demonstrando uma postura contraditória, outros não consideram a diversidade nos atendimentos e não identificam a necessidade de diferenciação entre os indivíduos para um cuidado em saúde singular.

Não, aqui na unidade não, todo mundo é tratado igualmente […] Pra mim é igual, certas pessoas que têm aquela coisa, mas pra mim não tem nada não, atendo ali numa boa, me perguntar uma coisa respondo, informando uma coisa da saúde ali […] (Benin - Agente Comunitária de saúde; Raça/cor: Preta)

No que tange à atenção à saúde na diversidade, o desconhecimento do seu conceito e a dificuldade de incorporar esse olhar na prática em saúde revelam um cenário de reprodução de violências. Racismo, machismo e LGBTfobia atravessam as identidades de sujeitos nos mais diversos âmbitos da vida, inclusive no momento de buscar e receber atendimento de saúde. Santana et al. (2021SANTANA, et al. Diversidade no acesso aos serviços de saúde por lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros. Revista de Enfermagem UFPE On line, Pernambuco, v. 14, n. 2, e243211, 2021. DOI: 10.5205/1981-8963.2020.243211
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) apontam que diversos fatores dificultam adesão e procura da comunidade LGBTQIA+ aos serviços de saúde, entre eles: discriminação, estigma social e desrespeito por parte dos profissionais de saúde. Esses elementos foram perceptíveis na fala de alguns entrevistados.

Apesar de alguns profissionais relatarem a realização de cursos sobre diversidade, ficou evidente que essas discussões não são aprofundadas ou aplicadas na prática cotidiana, gerando um desconhecimento generalizado, em que o conceito de igualdade é idealizado em função da deturpação da noção de diversidade. Esse diagnóstico revela o despreparo profissional para incluir as demandas desses grupos nos planos e ações de saúde, e reafirma a necessidade de incluir o tema de combate às discriminações de gênero e orientação sexual em interseção com a saúde da população negra, conforme o objetivo da PNSIPN, nas atividades de EPS dos profissionais.

Política Nacional de Saúde Integral da População Negra

Segundo Faustino (2017FAUSTINO, D. M. A universalização dos direitos e a promoção da equidade: o caso da saúde da população negra. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 12, p. 3831-3840, 2017. DOI: 10.1590/1413-812320172212.25292017
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), a efetivação da PNSIPN para o combate ao racismo institucional tem sofrido resistência das instituições. Entre os impasses, o autor cita o desconhecimento da política por parte dos gestores e profissionais nos três níveis de gestão do SUS.

Neste estudo, a maioria das gestoras entrevistadas desconheciam a existência da PNSIPN, algumas afirmaram ter ouvido falar, mas sem uma compreensão aprofundada. Dentre as profissionais de saúde, em todos os municípios, o dado comum foi o desconhecimento ou conhecimento superficial da política. No estudo de Matos e Tourinho (2018MATOS, C. C. S. A; TOURINHO, F. S. V. Saúde da População Negra: percepção de residentes e preceptores de Saúde da Família e Medicina de Família e Comunidade. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Rio de Janeiro, v. 13, n. 40, p. 1-12, 2018. DOI: 10.5712/rbmfc13(40)1712
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) 75,65% dos profissionais de saúde entrevistados relataram saber que a política existe, mas apenas 16,52% afirmaram tê-la lido. O desconhecimento sobre ela implica diretamente na sua efetiva implementação e desenvolvimento.

Já ouvi falar, mas assim bem por cima, não me aprofundei ainda. Achei até interessante quando vocês chegaram aqui, para eu até me apropriar mais disso, porque assim, é uma política um pouco… não é desconhecida, é conhecida, porém a gente não se aprofunda muito, como dentre outras né, não só por ser da população negra, mas é interessante […] (Ruanda - Gestora-Enfermeira; Raça/cor: Parda)

No melhor cenário, é necessário que tanto gestoras quanto profissionais tenham conhecimento das políticas de saúde existentes. Todavia, a gestão em saúde do SUS vem enfrentando desafios e fragilidades, como a alta demanda de trabalho (Paiva et al., 2018PAIVA, R. A. et al. O papel do gestor de serviços de saúde: revisão de literatura. Revista Médica de Minas Gerais, Minas Gerais. v. 28, [Supl. 5], p. 181-184, 2018. DOI: 10.5935/2238-3182.20180135
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) e a falta de investimento que a saúde pública enfrenta, especialmente após a Emenda Constitucional 95/2016 que congela por 20 anos investimentos na saúde (Menezes; Moretti; Reis, 2020MENEZES, A. P. R.; MORETTI, B.; REIS, A. A. C. O futuro do SUS: impactos das reformas neoliberais na saúde pública austeridade versus universalidade. Saúde em Debate, São Paulo, v. 43, n. 5, p. 58-70, 2019. DOI: 10.1590/0103-11042019S505
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).

O desconhecimento da PNSIPN está inserido em um contexto no qual o debate em torno da universalização, da focalização, do reconhecimento e da distribuição de direitos permanece tensionado, tendendo a não considerar particularidades. Isso implica na resistência em reconhecer o papel do racismo na determinação da saúde, em nome de uma universalização, que, para Faustino (2017FAUSTINO, D. M. A universalização dos direitos e a promoção da equidade: o caso da saúde da população negra. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 12, p. 3831-3840, 2017. DOI: 10.1590/1413-812320172212.25292017
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), se configura como abstrata, diante de expressivas desigualdades raciais em saúde. Tal fenômeno pode ser observado no estudo de Rinehart (2013RINEHART, D. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: Discursos da Gestão Municipal do SUS. 2013. Dissertação (Mestrado em Ciências da Saúde) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2013.) realizado com gestores municipais do país, em que alguns negaram a pertinência da PNSIPN afirmando que esta contraria o princípio de igualdade do SUS.

As gestoras, além de não conhecerem e incorporarem os objetivos da PNSIPN no planejamento das ações nos serviços, reproduzem o pensamento de que todos os usuários são iguais. Isso revela a indiferença quanto à diversidade racial dos(as) usuários(as), desconsiderando a equidade nos serviços, impossibilitando-os de ter acesso a um cuidado amplo e integrado e dificultando a redução dos impactos do racismo em suas vidas.

Na verdade não tem uma política específica para isso, entendeu? […] Até porque a gente não diversifica por raça, cor, sexo e evidentemente os pacientes são atendidos independentemente de qualquer coisa […]. (Togo - Gestora-Dentista; Raça/cor: Amarela)

Esse discurso foi reproduzido por várias entrevistadas, que relataram não haver necessidade de priorizar o aspecto da raça/cor, visto que não enxergam diferenças entre a população necessitada do serviço. Essa perspectiva desconsidera que o racismo através das discriminações e violências intensifica as experiências de vulnerabilidade e pobreza da população negra (Almeida, 2019ALMEIDA, S. L. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.).

Para mim não tem nem diferença, para mim seria para a população necessitada, entendeu? Na verdade eu nunca participei e nem ouvi falar sobre. Para mim eu sei que existe, tanto que está se falando muito, mas em relação a destrinchar qual a diferença da população necessitada para a negra eu acho que seria a mesma coisa […]. (Guiné - Enfermeira; Raça/cor: Parda)

Um dos aspectos sinalizados por aqueles que reconhecem a necessidade de implementação da PNSIPN foi a dificuldade de reconhecer como inseri-la na prática profissional. “Como eu poderia lidar com isso?”, questiona Senegal. No estudo de Matos e Tourinho (2018MATOS, C. C. S. A; TOURINHO, F. S. V. Saúde da População Negra: percepção de residentes e preceptores de Saúde da Família e Medicina de Família e Comunidade. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Rio de Janeiro, v. 13, n. 40, p. 1-12, 2018. DOI: 10.5712/rbmfc13(40)1712
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), 85,22% dos profissionais de saúde relataram nunca ter utilizado, de alguma forma, a PNSIPN na sua prática profissional. Nesse mesmo estudo, 82,61% a consideravam importante para se atingir a equidade no SUS. Batista, Monteiro e Medeiros (2013BATISTA, L. E.; MONTEIRO, R. B.; MEDEIROS, R. A. Iniquidades raciais e saúde: o ciclo da política de saúde da população negra. Saúde em debate, Rio de Janeiro, v. 37, n. 99, p. 681-690, 2013.) enfatizam a necessidade de investimentos na renovação do aprendizado sobre a PNSIPN, para viabilizar o aperfeiçoamento e a sua retroalimentação. Isso já é previsto na política, devido ao seu caráter transversal que incentiva a articulação com a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. Algumas das estratégias da PNSIPN é desenvolver ações para a redução da morbimortalidade da população negra considerando as seguintes questões: a violência, o encarceramento, os transtornos mentais e as doenças como IST/HIV/aids, tuberculose, doença falciforme e hanseníase (Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 992, de 13 de maio de 2009. Institui a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Brasília, DF, 2009. Disponível em: <Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt0992_13_05_2009.html >. Acesso em: 2 set. 2022.
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).

No entanto, a formalização da política não gerou a concretização das ações previstas e nem os resultados esperados. Após 10 anos de sua criação, a adesão à PNSIPN ocorreu em 28% dos municípios brasileiros, com maior proporção no Norte e Nordeste. Na Bahia, cerca de 40% dos municípios aplicam a política, mas menos de 10% possuem comitês de monitoramento e ações voltadas à população negra (IBGE, 2019IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Informações Básicas Municipais. Perfil dos Municípios Brasileiros 2018. Rio de Janeiro, 2019.).

I. Gomes et al. (2017GOMES, I. C. et al. Implementação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População Negra na Bahia. Revista Baiana de Enfermagem, Salvador, v. 31, n. 2, e21500, 2017. DOI: 10.18471/rbe.v31i2.21500
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), ao analisarem o processo de implantação da PNSIPN no estado da Bahia, afirmam que o ciclo ainda não se consolidou, sendo de extrema relevância atualizar os indicadores de saúde, especificamente os desagregados por raça/cor, e promover a comparação desses indicadores de saúde nas diferentes regiões e municípios, visando validar de fato o impacto e os avanços alcançados na sua implementação.

As dificuldades para a implementação da PNSIPN ganharam contornos específicos no cenário da pandemia da covid-19 no Brasil. Um dos obstáculos foi a reprodução da ideia de que o vírus e a doença atingem todos(as) da mesma forma, desconsiderando a necessidade do quesito raça/cor nos sistemas de informação e as condições mais vulneráveis em termos de renda, moradia e segurança alimentar enfrentadas pela população negra (Malomalo; Vaz; Medina-Naranjo, 2020MALOMALO, B.; VAZ, F.; MEDINA-NARANJO, J. E. Anotações sobre o impacto da covid-19 na saúde da população negra. Revista Simbio-Logias, Piracicaba, v. 12, n. 16, p. 71-99, 2020.). A ideia de uma democracia racial deixa invisibilizada a urgência da PNSIPN para o enfrentamento do racismo institucional e para a garantia do direito à saúde.

Considerações finais

A partir da análise da PNSIPN na perspectiva de gestores e profissionais da saúde foi possível verificar que, embora essa política tenha sido uma conquista dos movimentos sociais negros e tido um espaço na Secretaria Estadual de Saúde da Bahia, um estado majoritariamente negro, a sua implementação é um propósito a ser alcançado nos municípios pesquisados e possivelmente em outros municípios do estado. A falta de conhecimento acerca da PNSIPN e dos meios práticos para inserir ações em saúde com base nos objetivos estabelecidos, além da dificuldade de ver a importância de considerar a diversidade racial nos atendimentos, está relacionada a uma das faces do racismo: a invisibilização das demandas de saúde da população negra.

O princípio de equidade do SUS parece ainda não ter sido incorporado no cotidiano do trabalho vivo em ato dos(as) profissionais entrevistados(as) e nem como guia para a gestão implementar as políticas estabelecidas, algo que traz preocupação diante da desigualdade social e disparidade racial, revelando um grave problema de gestão.

Para a implementação da PNSIPN não só nos municípios da Bahia, mas em todo o território nacional, é imprescindível a realização de mais pesquisas sobre a situação da política e sua incorporação dentro das ações de planejamento em saúde de forma transversal, incluindo indicadores de avaliação e monitoramento que sejam desagregados por raça/cor. Aliado a isso é necessário reforçar narrativas para o reconhecimento das diferenças e seus desdobramentos para as desigualdades raciais em saúde juntamente com a intensificação das ações de educação permanente em saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Jul 2022
  • Aceito
    09 Ago 2022
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