Resumo
O Programa Mais Médicos (PMM), lançado em 2013, objetivou combater a má distribuição médica no Brasil. Para tanto, uma das estratégias adotadas foi a reordenação da oferta de cursos de medicina. Com base nisso, este estudo pretendeu investigar o impacto do PMM na abertura de novos cursos de medicina no Brasil, identificando aqueles abertos em decorrência da lei. Com a realização de uma pesquisa documental nas bases de dados do Ministério da Educação, verificou-se a abertura de 135 desses cursos entre janeiro de 2014 e fevereiro de 2022, sendo 68 abertos em decorrência do PMM, a maioria na rede privada (79%). A preferência pela abertura desses novos cursos na região Sudeste (35%) pode estar relacionada à sua maior estrutura, o que facilitaria a instalação e o estabelecimento de parcerias com organizações hospitalares para o ensino prático exigido. Também se notou uma expansão dos cursos privados nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul, e dos cursos públicos nas regiões Centro-Oeste e Norte. Entretanto, a análise regional detalhada mostrou que a política pública tem fracassado em combater a má distribuição de médicos por meio da abertura dos novos cursos, pois priorizou estados que já possuíam consideráveis indicadores de força de trabalho.
Palavras-chave: Programa Mais Médicos; Educação Médica; Faculdades de Medicina
Abstract
Launched in 2013, the Mais Médicos Program (PMM) aimed to combat poor physician allocation in Brazil by reorganizing the offer of Medicine Programs. Thus, this study investigates the impact of the PMM on the opening of new medical undergraduate programs in Brazil, identifying those offered as a result of the law. By means of documentary research in the Ministry of Education databases, the study identified a total of new 135 medical programs opened between January 2014 and February 2022, 68 of which as a result of the PMM, mostly in the private network (79%). The preference for opening new courses in the Southeast (35%) may be due to its larger structure, which would facilitate implementation and establishing partnerships with hospital organizations for the required practical teaching. The findings point to an expansion of private programs in the Northeast, Southeast and South, and of public programs in the Mid-West and North regions. However, a detailed regional analysis showed that public policy has failed in combating poor medical allocation through this strategy, as it prioritized states with considerable labor force indicators.
Keywords: Mais Médicos Program; Education, Medical; Medical Schools
Introdução
De 1808, ano da abertura das primeiras escolas de medicina brasileiras - Salvador/BA, em fevereiro, e Rio de Janeiro/RJ, em novembro -, até meados de 2020, o país atingiu a marca de 342 cursos ativos de medicina (MEC, 2020). A partir de 2010, observou-se uma grande expansão na quantidade de cursos de graduação de medicina no Brasil. Nesse contexto, o Programa Mais Médicos (PMM) foi promulgado pela Lei nº 12.871, em outubro de 2013, para combater a má distribuição médica no território nacional, sendo composto por três eixos: (1) provimento emergencial, (2) infraestrutura e (3) formação médica (Pinto et al., 2014). Com esse projeto, o governo federal teria incentivado o aumento da oferta de cursos médicos no país (Oliveira et al., 2019).
O eixo “provimento emergencial” se refere a uma resposta imediata ao problema da falta de cobertura e acesso à atenção básica: selecionou-se profissionais graduados no Brasil e fora do país, brasileiros e estrangeiros, para atuarem nas áreas com maior necessidade e vulnerabilidade para desenvolverem uma atenção à saúde de qualidade - de acordo com as diretrizes do Programa Nacional de Atenção Básica (Oliveira et al., 2015).
O eixo “infraestrutura” quase triplicou os recursos do Programa de Requalificação das Unidades Básicas de Saúde (UBS), criado em 2011 (Brasil, 2011). Seus objetivos foram melhorar a ambiência das UBS para os usuários, as condições de atuação dos profissionais, seu funcionamento, além de ampliar o escopo de práticas do serviço e prever reformas, ampliações estruturais e a construção de novas unidades (Brasil, 2015).
Por fim, o eixo “formação médica” previu medidas de curto, médio e longo prazo que visaram intervir de forma quantitativa e qualitativa na formação de médicos no Brasil. Entre elas estavam a abertura de novas vagas de graduação e residência médica, reorganizadas no território nacional, e as mudanças na formação profissional de médicos e especialistas a fim de corresponder às necessidades da população e do SUS (Brasil, 2015).
Em seu artigo 2o, a Lei dos Mais Médicos previu a adoção das seguintes ações:
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reordenação da oferta de cursos de Medicina e de vagas para residência médica, priorizando regiões de saúde com menor relação de vagas e médicos por habitante e com estrutura de serviços de saúde em condições de ofertar campo de prática suficiente e de qualidade para os alunos;
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estabelecimento de novos parâmetros para a formação médica no País;
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promoção, nas regiões prioritárias do SUS, de aperfeiçoamento de médicos na área de atenção básica em saúde, mediante integração ensino-serviço-comunidade, inclusive por meio de intercâmbio internacional. (Brasil, 2013a)
Dessa forma, o PMM planejou um aumento da formação de médicos no Brasil, de modo que a proporção saísse do patamar de 1,8 médicos por mil habitantes, vigente no ano de criação do programa, para alcançar 2,7 médicos por mil habitantes em 2026 (Brasil, 2015).
Até 2013, a autorização para novos cursos de medicina partia da iniciativa das próprias instituições de educação superior. Entretanto, a partir do PMM, a seleção das instituições passou a ser feita por meio de editais, priorizando as regiões com menor oferta de cursos, baseados em uma pré-seleção dos municípios pelo Ministério da Saúde. Após a etapa de seleção municipal, o Ministério da Saúde abriu um novo edital para chamamento público das mantenedoras de instituições privadas interessadas em apresentar propostas de novos cursos de medicina, e para o credenciamento de novas instituições nos municípios selecionados ou de campi fora de sede.
Apesar desse aumento na quantidade de cursos de medicina após a sua promulgação, é importante ressaltar que o PMM não foi responsável por todas as faculdades de medicina abertas após outubro de 2013. Muitos cursos já tinham solicitado um processo de abertura antes mesmo do lançamento do programa. Aliás, essas solicitações prévias, por muito tempo, não se tornaram públicas, mesmo sendo responsáveis pela maioria dos novos cursos de medicina abertos no país após a PMM. Considera-se, então, que tal situação pode provocar análises equivocadas sobre o impacto do PMM no ensino e expansão desses cursos. Assim, o presente estudo procurou investigar o verdadeiro impacto do PMM na abertura de cursos de medicina no Brasil, identificando aqueles que realmente decorreram da promulgação da lei.
Métodos
Para isso, foi realizada uma pesquisa documental, entre julho e fevereiro de 2022, nos atos regulatórios de todos os cursos de medicina inaugurados no Brasil entre janeiro de 2014 e fevereiro de 2022, com o objetivo de identificar o número do registro e-MEC ou qualquer outra informação que remetesse ao PMM, como a citação da Lei nº 12.871 ou alguma menção à essa política pública.
Os quatro primeiros dígitos do número do registro e-MEC se referem ao ano do início do processo de abertura do curso. Para complementar as informações dos registros, também foram verificados e analisados os editais de seleção de municípios e de mantenedores educacionais elaborados segundo a Lei do PMM, disponíveis no site do Ministério da Saúde.
Todos os cursos federais de medicina, que apresentaram número do registro e-MEC posterior a 2013, foram considerados provenientes do PMM. Os cursos não federais, abertos com número do registro e-MEC posterior a 2013, tanto privados quanto estaduais, só foram considerados provenientes do PMM se os municípios estivessem selecionados nos editais do governo. Todos os cursos que apresentaram número do registro e-MEC anterior a 2014 foram excluídos da amostra final, assim como os cursos que não tinham informações que remetessem ao PMM. As instituições municipais foram consideradas organizações privadas porque os cursos não são gratuitos.
Para a classificação do porte dos municípios, foi adaptado o parâmetro dimensional da Secretaria de Desenvolvimento Social do Governo do Estado de São Paulo. A Secretaria utiliza a seguinte classificação: Pequeno I (até 20 mil habitantes), Pequeno II (de 20.001 a 50 mil habitantes), Médio (de 50.001 a 100 mil habitantes), Grande (de 100.001 a 900 mil) e Metrópole (acima de 900 mil habitantes) (São Paulo, 2017). Pelo fato da classificação dos municípios de porte Grande ser muito abrangente, foi necessário realizar uma subdivisão para analisar de modo mais detalhado as cidades que receberam cursos de medicina após o PMM. A subdivisão apresenta a seguinte caracterização: Grande I (de 100.001 a 300 mil habitantes), Grande II (de 300.001 a 500 mil habitantes), Grande III (de 500.001 a 700 mil habitantes) e Grande IV (de 700.001 a 900 mil habitantes).
Resultados
Foram identificados 135 cursos de medicina inaugurados a partir de 2014 e outros 14 que ainda não haviam iniciado suas atividades, sendo nove cursos com indicação do ano e cinco sem indicação de ano ou informação referente ao PMM (MEC, 2022). Do total, 16 cursos não apresentavam em seus atos regulatórios números ou qualquer outra informação que pudesse ser utilizada para determinar a influência do PMM na sua concepção. Outros 11 cursos não tinham números de registros em seus atos regulatórios, mas três citavam a Lei do PMM e oito estavam localizados em municípios selecionados pelo Edital nº 2, de 7 de dezembro de 2017. Portanto, a análise identificou 119 cursos de medicina com registros que pudessem indicar o ano do processo de abertura. Em seguida, foram analisados os editais de seleção para os processos de escolha municipal e das organizações que iriam sediar e manter os cursos. Até fevereiro de 2022, ocorreu um total de 68 aberturas por ocasião do PMM.
Sobre as instituições cujas atividades não tinham sido iniciadas, verificou-se como provenientes do PMM a Faculdade de Ciências da Saúde Pitágoras de Codó, em Codó/MA, e a Faculdade Atenas de Valença, em Valença/BA.
Todos os cursos de medicina abertos em decorrência do PMM estão apresentados na Tabela 1. Nela, é possível observar o nome da instituição do curso, o tipo da faculdade segundo sua gratuidade - se privada, federal ou estadual -, a cidade, a população - pelo censo de 2010 -, o estado que sedia o curso, o ano da fundação, o ano do início do processo de abertura, o número do registro e a fonte da informação.
A análise da Tabela 1 permite identificar que 21 estados tiveram cursos de medicina abertos em decorrência do PMM. São Paulo foi o estado com a maior quantidade de cursos, com 16 (24%) novas ofertas, seguido pela Bahia, com 11 (16%), Paraná, com seis (9%), e Minas Gerais e Rio Grande do Sul, com cinco (7%) cada. Três cidades - Guanambi/BA, São José dos Campos/SP e Guarujá/SP - receberam dois cursos de medicina.
A distribuição dos cursos de medicina, segundo o porte da cidade e o tipo de curso - se público ou privado -, pode ser apreciada na Tabela 2.
Os portes dos municípios por região, a quantidade de cursos públicos e privados, e a proporções das aberturas de cursos pela razão um médico para cada mil habitantes podem ser vistas na Tabela 3.
Quantidade de cursos (privados e públicos) abertos em decorrência do Programa Mais Médicos e as proporções das aberturas de cursos pela razão um médico para cada mil habitantes, de acordo com os portes dos municípios de cada região do Brasil
A expansão promovida pelo PMM, até fevereiro de 2022, ocorreu majoritariamente na região Sudeste, com 24 das aberturas (35%). Em seguida, vem a região Nordeste, com 23 (34%) aberturas, a região Sul, com 13 (19%) cursos abertos, a região Norte, com cinco (7%), e a região Centro-Oeste, com três (4%).
A região Norte, como já visto, apresentou cinco aberturas após o PMM, e em cinco estados diferentes: Amazonas, Tocantins, Acre, Para e Rondônia. Nos dois primeiros estados, foram abertos cursos públicos federais, e nos três últimos, cursos privados. Nessa região, três dos novos cursos se concentraram em municípios de porte Médio: um no Acre, um no Amazonas e um em Rondônia, correspondendo a 60% do total. Os outros dois cursos se concentraram em cidades de porte Grande I: um no Para e um em Tocantins.
A região Nordeste, por sua vez, apresentou 23 cursos abertos - 18 cursos privados e cinco públicos federais -, em quatro estados diferentes: 11 abertos na Bahia, quatro em Pernambuco, três no Ceará, dois no Maranhão e um no Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe. Nessa região, 12 dos cursos abertos se concentraram em municípios de porte Médio, localizados nos estados da Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe, o que corresponde a 52% do total. Nove desses cursos abriram em municípios de porte Grande I, nos estados da Bahia, Ceará, Maranhão e Rio Grande do Norte. Por fim, dois deles foram abertos em municípios de porte Grande II, um na Bahia e o outro em Pernambuco.
A região Sudeste apresentou 24 cursos abertos, sendo 23 cursos privados e um público - em Teófilo Otoni/MG -, nos quatro estados da região: 16 em São Paulo, cinco em Minas Gerais, dois no Rio de Janeiro e um no Espírito Santo. A expansão dos cursos pela região concentrou-se majoritariamente em municípios de porte Grande I, com 13 cursos abertos em todos os estados, correspondendo a 54% do total. Outros quatro cursos abriram em municípios de porte Grande III, pertencentes aos estados de Minas Gerais e São Paulo. Três abriram em municípios de porte Grande II, localizados em São Paulo, e dois em metrópoles do mesmo estado. Mais dois cursos foram abertos, um no Rio de Janeiro, em cidade de porte Grande IV, e outro em São Paulo, em cidade de porte Médio.
A região Sul apresentou 13 cursos abertos, nove cursos privados e quatro públicos, nos três estados da região: seis no estado do Paraná, cinco no estado do Rio Grande do Sul e duas no estado de Santa Catarina. Oito desses cursos se concentraram em municípios de porte Grande I (62% do total), e os outros cinco, em municípios de porte Médio, distribuídos em todos os estados.
Enfim, a região Centro-Oeste apresentou três cursos abertos. Dois federais no estado de Goiás e um privado no Mato Grosso do Sul. A expansão dos cursos pela região foi concentrada em municípios de porte Médio, em Goiás, correspondendo a 66% do total, e de porte Grande I, no Mato Grosso do Sul.
Discussão
O eixo “formação médica” do PMM tinha como principal objetivo atuar na diminuição das desigualdades regionais no território brasileiro. Porém, os resultados do presente estudo mostram que esse objetivo, previsto pelo inciso I do artigo 2 o da Lei n. 12.871/2013, não foi atingido.
De acordo com os resultados do estudo, a distribuição dos novos cursos médicos no país não seguiu as necessidades de cada estado ou região. De acordo com Scheffer (2018), coordenador da Demografia Médica no Brasil 2018, realizada antes da graduação das primeiras turmas do PMM, as regiões com maior carência de médicos são o Nordeste, cujos municípios de porte Grande I têm uma razão de 1,4 médico para cada mil habitantes, e o Norte, cuja razão é de 0,48 médico para cada mil habitantes nos municípios de porte Médio. Na região Nordeste foram abertos 23 cursos, porém, só no estado da Bahia foram 18, o que mostra uma má distribuição geográfica em razão da carência de médicos também nos demais estados. Vale destacar que, até junho de 2020, a região Nordeste havia aberto apenas 14 cursos de medicina, um aumento ocorrido pela promulgação do Edital nº 2, de 7 de dezembro de 2017, que concentrou a expansão dos cursos pelas regiões Norte e Nordeste (Brasil, 2017; MEC, 2022).
Na região Norte, a mais carente de cobertura médica, houve abertura de apenas cinco escolas. No Centro Oeste, esse fato se repetiu, pois, apesar de apresentar uma relação baixa de médicos por mil habitantes (1,45), foram abertos apenas três cursos federais e nenhum privado (Scheffer, 2018).
Em contrapartida, as regiões que mais apresentam médicos por habitantes no país são as regiões Sul - 2,53/1000, em municípios de porte Grande I - e Sudeste - 2,48/1000, e, ao contrário do que preconizava o PMM, foram nelas em que se abriram o maior número de escolas - 24 no Sudeste e 13 no Sul - até junho de 2020, a maioria da rede privada. Mesmo com os problemas com a falta de força de trabalho médica na periferia dos grandes centros urbanos (Yunes; Bromberg, 2006), não pode se justificar a grande expansão ocorrida na região Sudeste, que já apresentava a maior densidade médica por habitantes - razão de 2,81, mais do que o dobro da região Norte, com 1,16 (Scheffer, 2018). Até junho de 2020, a região foi responsável por 43% de todas as aberturas do PMM; a proporção entre a região Sudeste e Nordeste só começou a ficar mais equilibrada a partir de 2021, com a abertura dos cursos selecionados em decorrência do Edital nº 2, de 7 de dezembro de 2017.
Com a publicação mais recente do estudo Demografia Médica no Brasil 2020, é possível notar um aumento da proporção de médicos por habitantes no país, porém, mantém-se ainda uma alta concentração deles nas capitais (Scheffer, 2020). Ao comparar os dados regionais gerais de 2018 com os de 2020, pode-se observar que as regiões que tiveram um maior aumento na proporção de médicos por mil habitantes foram a Centro-Oeste - aumento de 0,38 -, Sul - aumento de 0,37 - e a Sudeste - aumento de 0,34. As regiões Norte e Nordeste, as mais deficitárias do país, tiveram um crescimento nessa razão de 0,28 e 0,14, respectivamente (Scheffer, 2020).
É notável que tenha ocorrido um aumento na proporção de médicos por habitantes no país, além de um aumento da força de trabalho médica pelo nosso interior. Porém, até o presente momento, o PMM não foi capaz de acabar com a concentração médica nas áreas menos deficitárias, as que parecem continuar como polos atratores da força de trabalho médico.
A concentração de médicos em áreas mais desenvolvidas e em grandes centros urbanos, e a dificuldade de sua fixação em outras regiões é um problema histórico no Brasil (Martins et al., 2017). Somente no estado de São Paulo foram inaugurados mais cursos de medicina, durante a realização deste estudo, do que todas as outras regiões juntas. Por esse motivo, questiona-se se a expansão dos cursos de medicina, concentrados no Sudeste, vai ser uma ação realmente efetiva para resolver o problema histórico. Se o local de formação do médico é um dos fatores determinantes para a sua fixação (Povoa; Andrade, 2006), a expansão não deveria ter priorizado as regiões com menores razões de médicos por habitantes, como Norte, Nordeste e Centro-Oeste?
O que pode explicar essa concentração no Sudeste é o interesse privado, pois, nessa região, dos 24 cursos abertos pelo PMM, apenas um era público, ou seja, 79% pertenciam à iniciativa privada. Portanto, apesar dos benefícios da expansão privada (Chaves; Amaral, 2016), ela ocorre sem o controle governamental e ao interesse particular, ideológico, partidário ou coorporativo dessas empresas (Silveira; Pinheiro, 2014).
Outra justificativa plausível para essa concentração é a falta de estrutura nas demais regiões. Apesar de o Decreto nº 63.341 (Brasil, 1968) ter abolido a obrigatoriedade da existência de um hospital-escola próprio da faculdade, priorizando convênios com organizações de saúde para o ensino prático do estudante, regiões menos desenvolvidas podem apresentar dificuldade para que o grupo educacional firme cooperação com os hospitais locais.
As características socioeconômicas da região Sudeste podem justificar a sua grande concentração de cursos abertos pela iniciativa privada. Apesar da região Sudeste apresentar IDH (0,753) inferior ao da região Sul (0,756), e um rendimento mensal domiciliar per capita igualmente inferior (R$ 1.549,50) aos das regiões Sul (R$ 1.633,00) e Centro-Oeste (R$ 1.655,50), ela apresenta uma densidade demográfica de 160 habitantes/km² e mais de 2,5 milhões de alunos matriculados no ensino fundamental, os maiores dentre todas as regiões (IBGE, 2022). Portanto, um potencial muito maior para matrículas de alunos no ensino superior de medicina.
O primeiro edital para a seleção de municípios para implantação de cursos de medicina - Edital nº 3, de 22 de outubro de 2013 - foi restritivo quanto às cidades que poderiam receber os novos cursos (Brasil, 2013b). A seleção dos municípios era dividida em três etapas: (1) análise da relevância e necessidade social da oferta de curso de medicina; (2) análise da estrutura de equipamentos públicos e programas de saúde existentes no município, segundo dados do Ministério da Saúde; e (3) análise de projeto de melhoria da estrutura de equipamentos públicos e programas de saúde no município (Brasil, 2013b). Na segunda etapa da análise, o município deveria atender aos seguintes critérios:
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número de leitos disponíveis SUS por aluno maior ou igual a cinco, ou seja, para um curso com 50 vagas, o município deverá possuir, no mínimo, 250 leitos disponíveis SUS;
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número de alunos por equipe de atenção básica menor ou igual a 3 (três), considerando o mínimo de 17 equipes;
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existência de leitos de urgência e emergência ou Pronto Socorro;
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existência de, pelo menos três Programas de Residência Médica nas especialidades prioritárias: 1) Clínica Médica; 2) Cirurgia; 3) Ginecologia-Obstetrícia; 4) Pediatria e 5) Medicina de Família e Comunidade;
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adesão pelo município ao Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade na Atenção Básica do Ministério da Saúde;
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existência de Centro de Atenção Psicossocial;
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hospital de ensino ou unidade hospitalar com potencial para hospital de ensino, conforme legislação de regência;
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existência de hospital com mais de 100 leitos exclusivos para o curso. (Brasil, 2013b)
No segundo edital de seleção houve uma mudança nos critérios. O governo federal passou a pré-selecionar especificamente municípios das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, para que, após essa pré-seleção, pudessem se candidatar à autorização para a instalação de um curso de graduação em medicina (Brasil, 2017). Entre essas mudanças, destacam-se aquelas nos critérios para a pré-seleção dos municípios: redução da população mínima do município de 70 mil para 65 mil habitantes, estar distante a pelo menos 50 km de município com curso de medicina pré-existente, remoção da exigência de 250 leitos disponíveis no SUS, e redução de 100 para 80 leitos hospitalares exclusivos para o curso (Brasil, 2017).
Logo, é evidente a grande diferença no processo de seleção de um edital para o outro. Se o primeiro edital do PMM resultou em 43,7% das aberturas de novos cursos de medicina na região Sudeste, a região com a menor necessidade de novos cursos, a mudança nos critérios buscou contornar a situação com o incentivo governamental na abertura de novos cursos em regiões com a menor razão um médico por mil habitantes. Com a mudança, o Governo Federal facilitou a adesão ao programa de municípios menos estruturados e incentivou o interesse privado nas regiões mais periféricas. Dos novos municípios selecionados pelo Edital de 2017, 13 já entraram em atividade, sendo eles Arcoverde/PE, Goiana/PE, Araripina/PE, Estância/SE, Canindé/CE, Itapipoca/CE, Quixadá/CE, Santa Inês/MA, Açailândia/MA, Irecê/BA, Cruzeiro do Sul/AC, Castanhal/PA e Corumbá/MS. Os outros 16 selecionados foram Parintins/AM, Itacoatiara/AM, Manacapuru/AM, Bragança/PA, Abaetetuba/PA, Cametá/PA, Ji-Paraná/RO, Ponta Porã/MS, Sorriso/MT, Porto Seguro/BA, Valença/BA, Brumado/BA, Iguatu/CE, Codó/MA, Codó/MA e Bacabal/MA.
A análise dos resultados mostra que não foi apenas o Edital no 3 que norteou os critérios para abertura dos cursos. Em São Paulo, ocorreu a inauguração de um curso privado de medicina por outro edital, com algumas exigências estruturais bem diferentes: unidade hospitalar que contasse com no mínimo 10 especialidades de residência, inexistência de compartilhamento dos leitos para utilização acadêmica, e mais de 400 leitos exclusivos para o curso, sendo no mínimo 250 leitos SUS (Brasil, 2014a; Brasil, 2014b).
Além dos indicadores sociais, a região Sudeste também é atraente por sediar 56% das vagas disponíveis em programas de residência médica, atraindo formados de outras regiões. Assim, pode-se afirmar que a distribuição desigual de médicos nas regiões Sul e Sudeste deve-se, dentre outros fatores, ao elevado número de programas e vagas de residência médica, haja vista que a probabilidade de haver médicos é maior nos locais com mais vagas de residência (Povoa; Andrade, 2006).
O Edital nº 3 de 2013 considerou que as Instituições de Ensino Superior (IES) teriam um Plano de Implantação de Residência Médica que criasse vagas até o final da formatura da primeira turma do curso, proporcionando um número igual de vagas para graduação e para residência médica no ano. Entretanto, para que a medida apresentasse efeito positivo, as vagas de residência médica disponíveis nas cidades do PMM precisariam ser não apenas criadas, mas também preenchidas.
Segundo o mais recente estudo, registrado na Demografia Médica no Brasil 2020 (Scheffer, 2020), 17.350 médicos ingressaram como residente de 1º ano (R1) em 2019, o que mostra a discrepância entre o número de vagas de graduação e de residência. Isso tende a afunilar ainda mais a quantidade de vagas nos processos seletivos e a favorecer os cursos preparatórios para as residências, fazendo com que um grande contingente de médicos não tenha garantida essa experiência complementar da formação médica.
A Comissão de Acompanhamento e Monitoramento das Escolas Médicas (Camem) foi criada nos termos da Portaria Normativa nº 15, de 22 de julho de 2013, e principalmente da Portaria Normativa nº 306, de 26 de março de 2015, a fim de monitorar e acompanhar a implantação e a oferta satisfatória dos cursos de graduação em medicina nas Instituições Federais de Educação Superior (Ifes), juntamente com a Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior, por meio de visitas regulares. A partir de 2017, a Camem também passou a realizar os procedimentos de monitoramento com a finalidade de verificar as condições para o credenciamento e o funcionamento de instituições de educação superior privadas.
Outra situação que precisa ser destacada, além do aumento do número de escolas médicas, foi o aumento de vagas de graduação, mesmo nos cursos já em funcionamento. Em dez anos, de 2010 a 2020, mais de 20 mil novas vagas foram acrescidas. O aumento foi de 16.836 vagas de graduação, oferecidas em 2010, a 37.823, em 2020, ou seja, um crescimento de 124,7% (Scheffer, 2020).
As novas vagas de graduação de medicina liberadas pelo Ministério da Educação (MEC) podem ser classificadas de duas formas: as vagas abertas em escolas novas, autorizadas juntamente com os atos regulatórios de criação de novos cursos, e as vagas adicionadas ou reativadas nos cursos já existentes. Em alguns casos, por decisão própria ou devido a penalidades, escolas em funcionamento podem sofrer redução de vagas. Dessa forma, entre 2011 e 2020, período caracterizado pelo intenso aumento na oferta de vagas, 62% delas foram oferecidas por novos cursos de graduação, enquanto 38% das vagas adicionais foram por meio de suplementação em cursos já existentes (Scheffer, 2020).
Ao avaliar a evolução do número de vagas segundo a natureza pública/privada das instituições de ensino, nota-se que, nos últimos dez anos, 84% das novas vagas foram disponibilizadas por instituições privadas (Scheffer, 2020).
Como limitações deste estudo, podemos citar a não abordagem dos profissionais já formados pelo PMM, pois isso impediria uma avaliação mais aprofundada sobre a retenção dos profissionais nas localidades que foram beneficiadas pela política pública discutida. Essas limitações são potenciais temas para futuros estudos e desdobramentos.
Considerações finais
O estudo identificou 68 cursos de medicina abertos em decorrência do PMM entre outubro de 2013 e fevereiro de 2022. Desses, 79% em instituições privadas. A preferência pela abertura desses cursos no estado de São Paulo, com 16 novos cursos, pode estar relacionada à sua maior estrutura, o que facilitaria a instalação de cursos e o estabelecimento de parcerias com organizações hospitalares para o ensino prático exigido. A expansão de cursos privados nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul, e de cursos públicos nas regiões Centro-Oeste e Norte foi significativa. Dessa forma, os bons princípios e argumentos utilizados para a reordenação da oferta de cursos de medicina e de vagas para residência médica, priorizando regiões de saúde com menor relação de vagas e médicos por habitante, claramente não foram atingidos.
A menor proporção de vagas disponíveis nos programas de residências em relação ao número de vagas de graduação, principalmente nas cidades do PMM, pode promover a não fixação de profissionais nas localidades de formação acadêmica, pois seria necessário migrar para outras regiões por causa desse desequilíbrio. Isso afetaria negativamente uma distribuição mais equitativa de médicos por habitantes em todo o país.
Com isso, é possível concluir que os processos de regulação do Governo Federal por meio da Camem não atingiram plenamente os objetivos previstos. Apesar da abertura dos 55 novos cursos de medicina, fomentada pelo PMM, a análise regional mais detalhada mostra que a política pública tem fracassado com seu objetivo de combater a má distribuição médica no território nacional por meio da abertura dos novos cursos médicos.
Referências
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- BRASIL. Edital nº 2, de 7 de dezembro de 2017. Edital de chamamento público de municípios para implantação de curso de graduação em medicina por instituições de educação superior privada. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 8 dez. 2017. Seção 3, 235, p. 43.
- BRASIL. Edital nº 3, de 22 de outubro de 2013. Primeiro edital de pré-seleção de municípios para implantação de curso de graduação em medicina por instituição de educação superior privada. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 23 out. 2013b. Seção 3, n. 206, p. 30-32.
- BRASIL. Edital nº 5, de 27 de agosto de 2014. 1º Edital de habilitação para autorização de funcionamento de curso de graduação em medicina em unidade hospitalar. 2014a. Seção 3, n. 165, p. 57.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Dez 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
15 Fev 2022 -
Aceito
05 Maio 2022