Open-access A captura ideológica dos mecanismos de participação social da OMS na negociação do acordo internacional sobre pandemias

Resumo

Este artigo aborda a participação social nas negociações do acordo internacional sobre pandemias, conduzidas no âmbito da Organização Mundial da Saúde (OMS) por um Órgão Intergovernamental de Negociação (OIN). Apresenta resultados de pesquisa realizada por meio de revisão de literatura, pesquisa documental que abarcou mais de cem documentos do OIN, e pesquisa empírica que realizou a análise qualitativa dos conteúdos de 383 vídeos enviados pelo público durante a segunda fase de audiências públicas do OIN. A pesquisa confirma a hipótese de que houve captura ideológica das audiências públicas, entendida como a atuação concertada de indivíduos e organizações que, aproveitando-se de modalidades de participação abertas ao público, por meio de uma atuação massiva em prol de argumentos sem base científica ou inverificáveis, busca distorcer a finalidade das audiências públicas, transformando a consulta sobre o que deveria estar contido no acordo sobre pandemias em um espaço de difusão de sua agenda política. Apresenta, ainda, indícios de atuação concertada da extrema-direita contra o acordo. As conclusões defendem a necessidade de mudanças nesse mecanismo de participação, em prol de uma regulação da saúde global que leve em conta a opinião e os interesses dos seus principais destinatários.

Palavras-chave: OMS; Participação Social; Pandemia; Saúde Global

Abstract

This article addresses social participation in the negotiations of the international agreement on pandemics, conducted within the World Health Organization (WHO) by an Intergovernmental Negotiating Body (INB). It presents the results of research conducted with a literature review, document research that covered over 100 documents of the INB, and empirical research that carried out a qualitative analysis of the contents of 383 videos sent by the general public during the second phase of public hearings of the INB. The research confirms the hypothesis that there has been an ideological capture of the public hearings, understood as the concerted action of individuals and organizations that, by taking advantage of participation modalities open to the general public, with a massive action in favor of unscientific or unverifiable arguments, have sought to distort the purpose of social participation, turning the public consultation on what should be included in the agreement on pandemics into a space for the dissemination of their political agenda. It also presents evidence of concerted action by far-right groups against the agreement. The conclusions point to the need for changes in this participation mechanism, in favor of a regulation of global health that considers the opinion and interests of its main recipients.

Keywords: WHO; Social Participation; Pandemic; Global Health

Introdução

A ascensão ou ressurgimento da extrema-direita no mundo pós-2010 trouxe consigo a renovação de formas de extremismo, neofascismo e autoritarismo, aliadas à dura racionalidade neoliberal e à precariedade socioeconômica, manifestando-se por meio de novas tecnologias que acentuam - e convertem em mainstream - o populismo no século XXI (Pinheiro-Machado; Vargas-Maia, 2023). “Extrema-direita” é uma expressão polissêmica, geralmente empregada sem a devida elaboração conceitual por pesquisadores, políticos e jornalistas. Na literatura acadêmica, não é possível identificar uma natureza ou essência da extrema direita que forneça uma definição clara e consensual (Taguieff, 2016). Neste artigo, nos referimos a movimentos de extrema direita simplesmente como “agrupamentos políticos portadores de um nacionalismo exacerbado e de práticas políticas intransigentes” (Barbosa, 2015, p. 21).

A pandemia de covid-19 aprofundou a percepção de que existe um “crescente abismo” entre governantes e governados, e de que a resposta às emergências foi feita “de cima para baixo”, sem a ouvida dos seus principais destinatários (Clark; Koonin; Barron., 2021, p. 846). Criou-se um perfeito terreno fértil para a extrema-direita, graças à desinformação sobre temas sensíveis de saúde pública, ao lado de teorias conspirativas antielitistas que apresentam acadêmicos e cientistas como membros de uma “classe tecnocrática”, a ser tão combatida quanto a classe política (Sánchez-Castillo; López-Olano; Peris-Blanes, 2023, p. 211). Polêmicas em torno de vacinas, uso de máscaras, medidas de restrição da circulação de pessoas e tratamentos precoces, entre outros, contribuíram para promover um movimento de pseudociência de amplo alcance, colocando as massas - ou “o povo” - contra médicos, cientistas tradicionais e autoridades de saúde pública - ou “o establishment” (Casarões; Magalhães, 2021, p. 207).

Como organização política cuja atuação é baseada em evidências científicas, a Organização Mundial da Saúde (OMS) corresponde plenamente ao perfil de um inimigo a ser atacado pela extrema-direita. O reconhecido fracasso da resposta internacional à covid-19 também contribuiu para fortalecer a desconfiança das populações em relação ao multilateralismo, em razão dos limites da ação emergencial da OMS e de sua incapacidade de evitar flagrantes iniquidades em matéria de acesso a insumos e vacinas. Sem dúvida, mudanças na governança global deveriam acontecer. Entre as propostas que circulavam, a OMS buscava alternativas que não ameaçassem seu protagonismo (Dentico; van de Pas; Patnaik, 2021). Em março de 2021, o Diretor Geral da OMS, Tedros Adhanom, e o Presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, além de mais de 20 chefes de Estado e de Governo, anunciaram publicamente a proposta de negociação de um acordo internacional sobre pandemias, sob a justificativa de que a comunidade internacional não dispunha de instrumentos jurídicos à altura do maior desafio que a humanidade já havia enfrentado desde os anos 1940 (Bainimarama et al., 2021).

Em dezembro de 2021, uma sessão extraordinária da Assembleia Mundial da Saúde (AMS), órgão deliberativo máximo da OMS, decidiu que seria negociada uma convenção, acordo ou outro instrumento internacional sobre prevenção, preparação e resposta às pandemias (OMS, 2021b). A expressão “tratado” foi, portanto, abandonada, deixando em aberto qual seria a natureza jurídica deste instrumento. Doravante, utilizaremos neste texto a denominação “acordo”.

Para negociar o acordo, foi criado um Órgão Intergovernamental de Negociação (OIN), que deveria contar com a participação dos Estados e a colaboração de observadores, especialistas e representantes de outras organizações internacionais, além de atores não estatais, no formato definido pelo próprio OIN (OMS, 2021b).

Entre as formas de participação social implementadas pelo OIN, encontram-se as audiências públicas. Na impossibilidade de desenvolver o debate acadêmico em torno do conceito de participação social, neste artigo ela é referida simplesmente como o “envolvimento de pessoas, comunidades e sociedade civil nos processos de tomada de decisão” (OMS, 2023a, p. 1). As audiências públicas do OIN tiveram duas etapas abertas ao público, com participação massiva, que resultaram no predomínio de uma posição contrária ao acordo sobre pandemias. Este resultado pareceu surpreendente por contrastar com a notoriamente favorável opinião sobre o acordo que prevalece entre organizações e movimentos sociais tradicionalmente atuantes no campo da saúde global. Decidimos, portanto, investigar por que tantas pessoas rejeitavam o acordo sobre pandemias. Formulamos a seguinte pergunta de pesquisa: quais são os argumentos mobilizados pelos participantes que se opuseram ao acordo pandêmico na parte aberta ao público das audiências do OIN?

Quando começamos a analisar o conteúdo das declarações das pessoas que se opõem ao acordo, surgiu uma hipótese: a possibilidade de captura ideológica das audiências públicas do OIN. Por captura ideológica, neste caso, entendemos a atuação concertada de indivíduos e organizações que, aproveitando-se de modalidades de participação abertas ao público, por meio de atuação massiva em prol de argumentos sem base científica ou respaldo na realidade, teria buscado distorcer a finalidade das audiências públicas, transformando a consulta sobre o que deveria estar contido no acordo sobre pandemias em um espaço de difusão de sua agenda política.

Uma advertência se impõe: obviamente, nem todas as opiniões contrárias à adoção do acordo sobre pandemias podem ser associadas à extrema-direita. Acadêmicos de renome, com formação sólida, expressaram sua oposição ao acordo baseados em informações verdadeiras e com posições favoráveis ao incremento da cooperação internacional em saúde. Entre elas, citamos a ideia de que um tratado internacional pode ser considerado uma forma excessivamente rígida e pouco eficaz de enfrentar problemas transnacionais tão complexos (Fidler, 2021), assim como a constatação de um descompasso entre, de um lado, as visões globalistas e cosmopolitas defendidas pelas comunidades de saúde pública, e, de outro, o primado da segurança e dos interesses nacionais que determinou a realidade da resposta à covid-19, trazendo o risco de que o novo acordo não seja ratificado ou implementado pelos Estados (Wenham; Eccleston-Turner; Voss, 2021). No entanto, neste artigo, nos limitaremos a analisar os argumentos que surgiram nas audiências públicas do OIN.

Para testar a hipótese de captura ideológica das audiências públicas do OIN, realizamos revisão de literatura, pesquisa documental e pesquisa empírica. Foram estudados cerca de 100 documentos publicados pelo OIN entre fevereiro de 2022 e junho de 2023, incluindo atas, relatórios e notas (notes for the record). Quanto à pesquisa empírica, foi feita a coleta e a análise qualitativa do conteúdo de 383 vídeos disponibilizados no sítio web do OIN durante a segunda fase de audiências públicas, constituindo uma amostra de 86% do total de vídeos submetidos pelo público e 92% dos vídeos que foram aceitos pela OMS.

O texto é estruturado em quatro seções, além da introdução e das conclusões. Para contextualizar a pesquisa empírica realizada, as primeiras seções apresentam, como fruto de revisão de literatura e pesquisa documental, os antecedentes da participação social no âmbito da OMS (1) e os atores da negociação do acordo sobre pandemias (2). A seguir, como resultado de pesquisa documental, avaliamos o resultado da primeira rodada de audiências públicas do OIN, onde já surge o contraste entre a posição das Partes Interessadas (Relevant Stakeholders), e do público (3). A seguir, apresentamos os resultados da pesquisa empírica, que confirma a hipótese da captura ideológica da segunda rodada de audiências públicas (4). Por fim, apresentamos indícios de atuação concertada da extrema-direita em oposição ao acordo. Nas conclusões, defendemos a necessidade de mudança deste mecanismo de participação.

Antecedentes da participação social na OMS: do pioneirismo à regulação dos conflitos de interesses

A partir dos anos 1990, houve crescente envolvimento de movimentos sociais e Organizações não-Governamentais (ONGs) nas relações internacionais, como forma de lutar contra negociações comerciais potencialmente lesivas aos direitos sociais (Botto, 2014), entre outros objetivos. Em 1996, uma resolução do Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas (ONU) preconizou a ampla participação da sociedade civil nos processos de tomada de decisão das agências da ONU e estabeleceu princípios relativos à participação de ONGs (Nader, 2007). A OMS foi pioneira ao prever, na Constituição adotada em 1946, a possibilidade de cooperar com ONGs, inclusive a faculdade de convidá-las a participar, sem direito à voto, das sessões da AMS e de suas comissões. Desde os primeiros anos de atividade, a OMS mantém um sistema de “relações oficiais” com atores não-estatais, administrado por um comitê permanente vinculado ao Conselho Executivo. Em fevereiro de 2023, havia 218 atores não-estatais em relações oficiais com a OMS (OMS, 2023b), compreendendo, desde associações de pacientes pouco conhecidas, até grandes atores da saúde global, como a Fundação Rockefeller, a Fundação Gates ou Médicos sem Fronteiras, além de instituições com missões variadas, como Rotary, Caritas e Oxfam.

Embora apresentada como fator de incremento da democracia e da legitimidade dos processos de governança global (Brül, 2010), a participação social é alvo de numerosas críticas, a exemplo da constante referência à sub-representação das organizações do Sul Global, o que perpetua o predomínio das visões do Norte sobre os temas internacionais (Gereke; Brül, 2019). No campo da saúde coletiva, que dedica uma vasta produção acadêmica a esta temática, a participação social é geralmente percebida como um mecanismo eficiente na busca por equidade em saúde e outros benefícios sociais, mas que também pode produzir efeitos negativos, a depender da forma como é organizada e implementada (Francés; Parra-Casado, 2019). Diferentes convenções internacionais com impacto expressivo no campo da saúde adotaram mecanismos de participação social em sua elaboração. Na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, por exemplo, assinada em Nova York no ano de 2007, organizações de pessoas com deficiências e entidades de defesa dos direitos humanos participaram ativamente do grupo de trabalho que produziu o texto preliminar da convenção (Dhanda, 2008).

A Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT), adotada em 2003, foi a única convenção internacional até hoje negociada no âmbito da OMS. Foi a primeira vez que uma agência da ONU colheu as opiniões de todos os interessados em uma negociação internacional, promovendo audiências públicas que reuniram representantes de 144 organizações de todas as regiões do mundo, incluindo ONGs e o setor privado (OMS, 2000). Amplamente divulgadas, estas opiniões apoiavam, em sua maioria, a adoção da convenção (Montini et al, 2010). A sociedade civil foi o motor que impulsionou a mudança de perspectiva da agenda de negociações, estabelecendo a prioridade da saúde pública sobre os interesses comerciais (Alcazar, 2008, p. 10).

Em 2016, pressionada por conflitos de interesses apontados nas relações mantidas com seus maiores financiadores, a OMS adotou o Quadro de Colaboração com Atores Não-estatais (Framework of Engagement with Non-State Actors - Fensa), visando proteger a organização da influência indevida na formulação de suas políticas e padrões, além de garantir sua reputação e credibilidade (Rached; Ventura, 2017). Este quadro classifica os atores não-estatais em quatro categorias: ONGs, entidades do setor privado, fundações filantrópicas e instituições acadêmicas. Voltado essencialmente a orientar a ação dos dirigentes e funcionários da OMS, o novo quadro ainda encontra dificuldades de implementação.

Recentemente, a OMS publicou um Manual de Participação Social para a Cobertura Universal de Saúde, que oferece orientações práticas, fundamentadas em esclarecimentos conceituais, sobre o fortalecimento do engajamento efetivo do governo com a população, comunidades e sociedade civil na formulação de políticas nacionais de saúde (OMS, 2021a). No entanto, o documento não faz referência à participação social no âmbito da própria OMS.

Atores da negociação do acordo sobre pandemias: Estados-membros da OMS e Partes Interessadas

O OIN é dirigido por um Bureau cujos membros foram eleitos pelos pares, representando as seis regiões da OMS: África do Sul (África), Países Baixos (Europa), Brasil (Américas); Egito (Mediterrâneo Oriental); Japão (Pacífico Ocidental); e Tailândia (Sudeste Asiático). Uma vez instalado, o OIN definiu o mecanismo de participação para as Partes Interessadas, complementado à medida que seu trabalho evoluía.

O OIN é aberto aos 194 Estados-membros da OMS, três Estados associados e à União Europeia (OMS, 2021b). Os Estados são os líderes do processo negociador e os únicos que possuem direito à voto. A participação dos demais atores ocorre principalmente por meio do envio de contribuições a uma plataforma digital e de audiências públicas.

As Partes Interessadas foram classificadas pelo OIN em cinco categorias. Um documento que pode ser atualizado ao longo do processo apresenta a lista de atores e as formas de participação de cada categoria (OMS, 2022a). A Figura 1 sintetiza este documento.

Figura 1
Categorias, atores e formas de participação das Partes Interessadas no OIN

A Figura 1 evidencia o favorecimento dos atores não-estatais que mantêm relações oficiais com a OMS e possuem acesso a todas as modalidades de participação, em detrimento das entidades classificadas no Anexo E, limitadas a contribuírem por meio de portal eletrônico, audiência aberta ao público ou em trechos de uma sessão mediante convite. Segundo o OIN, os Estados deveriam indicar para o Anexo E apenas entidades de caráter internacional ou que abordem questões de saúde global, como os centros colaboradores da OMS; ter documentação básica como endereço, direção e composição acessíveis publicamente; e não ser entidades nacionais, subnacionais ou que prestam serviços a autoridades nacionais, pois estas já desfrutam da possibilidade de integrar as delegações dos Estados junto ao OIN (OMS, 2022i). No entanto, o Anexo E inclui duas pessoas físicas, cujos critérios de escolha não ficam claros. Inclui também agências nacionais como, por exemplo, no caso do Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e importantes instituições de pesquisa, como a Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto Butantan.

Quanto ao portal eletrônico, foi criado para recolher contribuições dos Estados e das Partes Interessadas sobre o conteúdo do acordo. Trata-se de um formulário com 58 possíveis temas, sobre os quais era preciso responder “sim” ou “não”, havendo espaço para justificativa da resposta, além de um espaço aberto para apresentação de propostas (OMS, 2022b). Entre março e maio de 2022, o portal recebeu 159 contribuições, sendo 102 dos Estados (64%) e 57 de Partes Interessadas (36%). As respostas não foram publicadas. Sobre as Partes Interessadas, não foi divulgado o número de participantes por Anexo, razão pela qual não sabemos quantos deles são ONGs ou outros atores. Apenas 20% das 285 Partes Interessadas responderam ao formulário. No espaço livre, do total de 3.008 comentários e 83 propostas, apenas 743 comentários (menos de 25%) e 38 propostas (cerca de 45%) foram provenientes das Partes Interessadas .

No que diz respeito à participação nas audiências públicas, a Tabela 1 sistematiza o número de contribuições das Partes Interessadas e do público.

Tabela 1
Contribuições orais e escritas, do público em geral e das partes interessadas

A primeira rodada de audiências públicas: o contraste entre as Partes Interessadas e o público

A primeira rodada ocorreu em abril de 2022 e contou com dois tipos de contribuições: orais, das Partes Interessadas; e escritas, em portal aberto ao público. Em ambos, os participantes deveriam responder à questão “Que matérias você acha que devem ser incluídas no novo instrumento internacional sobre preparação e resposta às pandemias?” (OMS, 2022c).

Uma chamada no portal da OMS divulgou as regras de participação; as contribuições deveriam ser relevantes para o tema e apresentadas de maneira respeitosa, sem palavrões, ataques pessoais, vulgaridade ou outra linguagem inadequada, sob pena de exclusão. As Partes Interessadas foram representadas por 123 pessoas de 119 organizações. O tempo de fala foi limitado a dois minutos, falados em um dos idiomas oficiais da OMS (árabe, chinês, espanhol, francês, inglês e russo). Já as contribuições escritas poderiam ser feitas por qualquer pessoa em qualquer idioma, com limite de 250 palavras. Segundo o Secretariado da OMS, o objetivo das audiências públicas foi contribuir para a realização do princípio consagrado no preâmbulo da Constituição da OMS, segundo o qual a “opinião pública esclarecida e a cooperação ativa do público são de importância capital para a melhora da saúde das populações”; e “nenhuma outra entidade das Nações Unidas conduz este tipo de audiência pública com larga participação do público” (OMS, 2022c, p. 1).

Foram enviadas 36.294 contribuições escritas do público, das quais o relatório elaborado pelo Secretariado da OMS não fornece nenhuma forma de classificação (OMS, 2022c). Ele conclui, porém, que um pequeno número de contribuições orais (Partes Interessadas) considerou que o acordo sobre pandemias não era necessário, enquanto a maioria das contribuições escritas (público) foi contrária à negociação do acordo sobre pandemias. A síntese dos resultados das contribuições escritas elaboradas pelo Secretariado refere, de forma breve, argumentos como a defesa da soberania nacional e o direito à autonomia dos pacientes, além de propostas sobre o conceito de pandemias e a atuação da OMS. O Secretariado afirmou que muitas contribuições eram similares em forma e conteúdo, e que muitas pareciam não cumprir as condições de participação, razão pela qual discutiria formas de aperfeiçoar o processo para a próxima rodada, reconhecendo que este formato “poderia não ser útil para obter novos aportes” (OIN, 2022f, p. 2).

Criticando a primeira rodada de audiências, um grupo de especialistas em direitos humanos da ONU - entre eles a Relatora Especial sobre o Direito à Saúde, Tlaleng Mofokeng - apontou a falta de clareza sobre como os resultados seriam usados pelos negociadores; questionou, ainda, se as negociações seriam, de fato, abertas à participação de um amplo espectro de comunidades afetadas pelo futuro acordo e organizações da sociedade civil (OHCHR, 2022).

Não há dúvidas de que a limitação a dois minutos de fala (cerca de 220 palavras) para as Partes Interessadas compromete tanto a capacidade de influência dos atores como o grau de utilidade do mecanismo. É de se perguntar o quanto uma modalidade aberta ao público justifica a limitação do tempo ou do espaço de participação das Partes Interessadas. Este formato implica não somente a superficialidade de argumentos e o reducionismo de propostas, mas também coloca em mesmo plano atores com amplo domínio técnico e reconhecida atuação política sobre os temas em questão, e qualquer pessoa que, pelas mais diversas motivações, deseje expressar-se sobre o assunto.

Os resultados da pesquisa empírica: a captura ideológica da segunda rodada de audiências públicas

A segunda rodada de audiências públicas do OIN realizou-se em setembro de 2022, por intermédio de vídeos enviados a uma plataforma digital aberta a qualquer pessoa, a título individual ou de representação de uma organização ou entidade (OMS, 2022e). Não houve diferença entre as modalidades de contribuição, colocando no mesmo plano as contribuições das Partes Interessadas e do público.

Os participantes deveriam responder à pergunta: “Com base em sua experiência na pandemia de covid-19, que temas deveriam ser tratados no plano internacional para melhorar a proteção contra futuras pandemias?” (OMS, 2022e). Segundo o Secretariado, o objetivo deste formato é aproximar-se de um debate aberto (town hall approach), em que as pessoas expressam seus pontos de vista “sem censura”.

Para que fossem considerados, os vídeos deveriam ter duração máxima de 90 segundos, expressar-se em um dos seis idiomas oficiais da organização, e ser acompanhados de uma transcrição, para facilitar sua interpretação nas demais línguas oficiais (OMS, 2002d). No momento de inscrição do respectivo vídeo, os participantes deviam apresentar uma carteira de identidade válida ou outro documento equivalente, apenas para fins de identificação.

Em resposta, o OIN recebeu 448 vídeos remetidos a título pessoal ou na condição de representantes de entidades. Funcionários da OMS avaliaram a admissibilidade dos vídeos por meio de quatro critérios: adequação (se continha elementos verbais ou visuais que os tornavam inadequados para difusão pública), pertinência (se respondiam à questão formulada), lisura (por exemplo, não poderiam conter ofensas) e acessibilidade técnica (som e imagem). Em razão da aplicação desses critérios, 30 vídeos foram excluídos das audiências pela OMS. Alguns dias após sua difusão pública, outros vídeos foram retirados da plataforma porque continham a promoção comercial de produtos e serviços (OMS, 2022e).

Do total de 418 vídeos considerados admissíveis, seis não puderam ser assistidos pelos autores por estarem bloqueados ou com dificuldades de acesso. Não foi possível compreender o conteúdo de outros 29 vídeos apresentados em árabe ou chinês que não disponibilizaram legendas. Assim, como amostra desta pesquisa, foram analisados integralmente 383 vídeos que puderam ser compreendidos e acessados pelos autores, abarcando 86% do total de vídeos submetidos pelo público e 92% dos vídeos aceitos pela OMS.

Na amostra, foi possível identificar manifestações de apoio ao acordo sobre pandemias em 159 vídeos (41%), e contrárias em 203 (53%). Em 21 vídeos (6%) não foi possível identificar posição favorável ou contrária ao acordo.

Entre as contribuições favoráveis ao acordo sobre pandemias, as instituições representadas incluem institutos de pesquisa, ONGs, agências das Nações Unidas, sociedades científicas, centrais sindicais, coalizões da sociedade civil e um número pequeno de farmacêuticas. Tais contribuições demonstram conhecimentos técnicos sobre o tema e familiaridade com processos de consulta, apresentando argumentos bem fundamentados e propostas concretas.

Das 159 contribuições favoráveis ao tratado, 143 representavam alguma entidade, sendo somente 16 vídeos de indivíduos. Das 203 contribuições contrárias, 167 foram submetidas por indivíduos. Assim, há uma notável predominância de opinião contrária ao acordo entre as manifestações individuais, e da opinião favorável entre representantes de entidades, como demonstra o Gráfico 1.

Gráfico 1
Número de manifestações favoráveis e contrárias ao acordo na amostra estudada, por clivagem manifestação individual e representação de entidade

Todos os argumentos levantados nas manifestações contrárias foram identificados, analisados e posteriormente classificados em cinco categorias: nacionalismo sanitário, primado das liberdades individuais, cooptação da OMS, informações errôneas ou falsas e violações de direitos humanos pela OMS, que serão descritas nos itens seguintes.

O número de ocorrências dos argumentos é apresentado na Tabela 2. Grande parte dos vídeos mobilizou argumentos de mais de uma categoria.

Tabela 2
Classificação e frequência dos argumentos contrários ao acordo sobre pandemias por categoria

Ressaltamos que a evidência de captura ideológica corresponde à presença de todas as categorias de argumentos estudados, e não à ocorrência isolada de um deles. Vale também destacar que os argumentos listados foram apresentados de forma superficial ou meramente alusiva pelos participantes, devido ao limite do tempo de fala em 90 segundos, nos quais é impossível aprofundar ou desenvolver os argumentos citados.

Nacionalismo sanitário

Por nacionalismo sanitário, neste contexto, entendemos o rechaço ao tratamento do tema das pandemias na esfera multilateral como forma de defesa da soberania dos Estados e dos poderes locais. Esta percepção colide com a evidência de que a propagação internacional das doenças só pode ser contida por meio da cooperação entre os Estados e da atuação das organizações internacionais. Em 117 vídeos, identificamos os seguintes argumentos neste sentido:

  • a OMS não foi democraticamente eleita, logo não disporia de competências para determinar o que Estados, governos, povos e indivíduos devem fazer;

  • para combater as pandemias, a OMS deveria ser dissolvida ou seus poderes devem ser reduzidos;

  • as pandemias deveriam ser geridas de forma autônoma e soberana, de acordo com as particularidades locais.

Segundo Vincent Geisser (2020, p. 18), a pandemia de covid-19 foi um terreno propício para o incremento de provincianismos e localismos, acompanhados da defesa de soluções securitárias e protecionistas que correspondem a antigas concepções “higieno-nacionalistas” dos vínculos sociais, no sentido de responsabilização de estrangeiros, imigrantes e minorias culturais pela propagação dos males no “corpo nacional”, assim como da atribuição destes males a um “excesso de democracia”. O “nacionalismo sanitário” em torno da covid-19 se inscreve nesta tradição e desemboca em duas grandes vertentes. A primeira é a “nacional-conservadora”, que prega o fortalecimento do Estado central e propõe medidas autoritárias de controle da pandemia, chamadas de “nacionalismo de confinamento”. Para atacar os regimes democráticos, ela explora as dificuldades de gerir as medidas de contenção da covid-19 e de minimizar o enorme impacto econômico e social da pandemia. A segunda vertente é a “populista-liberal”, afeita ao liberalismo econômico, que reivindica os direitos naturais e fundamentais dos cidadãos ao deslocamento, ao comércio e ao empreendedorismo, chamada de “nacionalismo anti-confinamento”. As duas vertentes teriam, porém, uma unidade política e ideológica: o desprezo do Outro (Geisser, 2020, p. 18).

Acreditamos que, em relação ao acordo sobre pandemias, as formas de nacionalismo sanitário também têm em comum o combate ao multilateralismo e, em especial, à OMS, cujas narrativas sobre a pandemia reforçavam a necessidade de proteção de grupos vulneráveis e a tomada de decisões com base em evidências científicas.

Primado das liberdades individuais

Uma segunda categoria de argumentos está associada à defesa do primado das liberdades individuais sobre o interesse coletivo, que constitui o fundamento das medidas de contenção da pandemia baseadas em evidências científicas. Em 83 vídeos, encontramos os seguintes argumentos:

  • o slogan “meu corpo, minhas regras” deveria servir também para a covid-19;

  • a proteção das liberdades religiosas deveria prevalecer sobre outros interesses;

  • o consentimento informado e a liberdade de escolha do médico deveriam prevalecer nas decisões sobre tratamentos para a covid-19.

Durante a pandemia de covid-19, ficou evidenciado como governos e movimentos de extrema-direita instrumentalizam as tensões entre as liberdades individuais, a proteção da saúde pública e o papel da comunidade científica (Kalil et al., 2021). A defesa do primado das liberdades individuais serve como justificativa emocional, política e jurídica para a insurgência contra as recomendações da OMS e das autoridades sanitárias, que se pautam pelas evidências científicas, e para a promoção dos tratamentos precoces mesmo quando sua ineficácia para a covid-19 já estava comprovada.

Os argumentos encontrados nos vídeos também se aproximam do ideário de movimentos antivacina, mobilizando elementos do debate sobre a obrigatoriedade das vacinas contra a covid-19. Embora a interferência nas liberdades individuais em nome da proteção da saúde pública seja admitida pela ampla maioria das ordens jurídicas, não há dúvida de que elas suscitam um debate ético complexo e relevante, e que as informações errôneas ou falsas prejudicam o avanço deste debate.

Cooptação da OMS

Em 57 vídeos, encontramos a alegação de que a OMS teria sido cooptada por interesses alheios à saúde pública. Os argumentos apresentados são:

  • a OMS seria controlada pela indústria farmacêutica;

  • a OMS seria controlada pela Fundação Bill e Melinda Gates;

  • a OMS seria um instrumento do marxismo;

  • a OMS não possuiria mecanismos de transparência, sendo impossível controlar a sua atuação.

Estas ideias são típicas dos movimentos antiglobalistas, baseados em teorias conspiratórias segundo as quais o capital financeiro alia-se a partidos de esquerda, mídias, universidades e burocratas internacionais, com o intuito de controlar do mundo e aculturar as sociedades, minando os valores tradicionais da família, da nação e de Deus, impondo visões de mundo progressistas e cosmopolitas (Casarões; Farias, 2021).

Os argumentos relativos à cooptação articulam-se com as demais categorias. Assim, a extrema-direita é capaz de mobilizar uma identidade conservadora densa (thick conservative identity), composta de três funções interrelacionadas: a antiglobalista, composta de narrativas de oposição às instituições internacionais; a nacionalista, composta de narrativas a favor da soberania dos Estados; e a de combate aos adversários, composta de narrativas na clivagem amigo/inimigo (Guimarães; Silva, 2021).

Informações errôneas ou falsas

Ao longo do ano de 2022, houve preocupação constante dos membros do Bureau com a crescente desinformação sobre o acordo, a ponto de solicitarem ao Secretariado a elaboração de uma estratégia de comunicação para lutar contra ela (OIN, 2022g, 2022h, 2022i). Em 49 vídeos, encontramos informações que se baseiam em equívocos ou são fornecidas com o propósito de confundir ou induzir a erro. Elas se expressam pelos seguintes argumentos:

  • tratamentos precoces contra a covid-19 seriam eficazes, especialmente cloroquina e ivermectina;

  • medidas recomendadas pela OMS em resposta à covid-19 como uso de respiradores, lockdown e uso de máscaras por crianças e adolescentes causariam mais danos à saúde do que a própria doença;

  • o Partido Comunista chinês teria criado o novo coronavírus;

  • o conceito de pandemia teria sido alterado por razões conspiratórias.

Ao difundir estes vídeos na página oficial do OIN, a OMS torna acessíveis informações errôneas ou falsas, inclusive teorias da conspiração, sem que uma advertência sobre a inconfiabilidade de seu conteúdo seja afixada. Em nosso entendimento, a OMS deveria oferecer um contraponto, baseado em fatos e evidências, a cada informação errônea ou falsa divulgada. Não se trata de censura à expressão de diferentes pontos de vista, e sim da checagem de informações.

Manter acessível a desinformação pode produzir efeitos negativos em relação à percepção da opinião pública a respeito do acordo sobre pandemias, mas de modo mais amplo pode configurar a tolerância à propaganda contra a saúde pública. Neste caso, entendemos por propaganda contra a saúde pública o discurso político que utiliza argumentos econômicos, ideológicos e morais, além de notícias falsas e informações técnicas não verificadas cientificamente, com o objetivo de desacreditar as autoridades de saúde, enfraquecer a adesão popular às recomendações baseadas na ciência e promover ativismo político contra as medidas de saúde pública necessárias para conter a disseminação da covid-19 (Ventura et al., 2021).

Violação de direitos humanos pela OMS

Em 21 vídeos, encontramos denúncias de que a OMS teria violado os direitos humanos de populações ou indivíduos durante a pandemia de covid-19. Os argumentos são os seguintes:

  • a OMS teria praticado crimes contra a humanidade e genocídio durante a pandemia de covid-19;

  • a OMS teria realizado testes perigosos e recomendado medidas sem base científica comprovada em seres humanos;

  • a OMS exerceria o controle digital dos dados sobre saúde dos indivíduos;

  • a OMS teria promovido a censura e a perseguição de especialistas e profissionais de saúde que defendem tratamentos precoces e a imunidade de rebanho.

Estes argumentos configuram a lógica amigo/inimigo, no caso, da OMS contra o povo. Segundo os participantes, a acusação de crimes contra a humanidade e genocídio estaria relacionada à adoção de medidas e recomendações equivocadas, que teriam causado a morte de centenas de milhares de pessoas, e a experiências realizadas em seres humanos, como, por exemplo, a autorização de vacinas experimentais contra a covid-19.

O papel de formular recomendações de resposta à pandemia baseadas em evidências científicas implicou, muitas vezes, que representantes da OMS desmentissem e condenassem publicamente a tese da imunidade de rebanho por contágio, e a utilização de tratamentos cuja ineficácia para covid-19 já havia sido demonstrada. Os autores dos vídeos procuram caracterizar os alertas da OMS como censura e perseguição aos militantes e simpatizantes da extrema-direita que persistiram na defesa desta tese e destes tratamentos.

Os indícios de atuação concertada

A ausência de caráter espontâneo da participação da extrema-direita nas audiências públicas merece estudos empíricos específicos e aprofundados, principalmente relacionados à identificação dos participantes. Para os fins deste artigo, nos limitamos a uma investigação simples por meio do motor de buscas Google, utilizando o descritor “#StopTheTreaty”, que identificamos nas redes sociais à época das audiências estudadas. Chegamos facilmente ao sítio web do Conselho Mundial da Saúde (World Council for Health), que se apresenta como uma coalizão de mais de 200 iniciativas da área da saúde e grupos da sociedade civil localizados em 45 países, sem fins lucrativos, voltada à salvaguarda dos direitos humanos e do livre arbítrio, capacitando as pessoas para que assumam o controle de sua própria saúde e bem-estar. Além da campanha contra o acordo sobre pandemias, a coalizão fornece vasto material, em diversos idiomas, de campanhas para que os países abandonem a OMS (#ExitTheWHO) e rejeitem as emendas ao Regulamento Sanitário Internacional, que também se encontram em fase de negociação (#StopTheAmendments), além de compartilhar informações falsas sobre a vacina contra a covid-19.

A lista de membros revela que o Brasil é representado nesta coalizão pelo movimento Médicos pela Vida. Em março de 2022, o Médicos pela Vida compartilhou no Telegram uma postagem afirmando que, se o acordo sobre pandemias for aprovado, “a OMS terá o poder de exigir vacinas obrigatórias e passaportes de vacina, e sua decisão substituirá as leis nacionais e estaduais”, acrescentando que “não haverá mais democracia” (PROJETO COMPROVA, 2022).

No sítio web da coalizão, encontramos duas postagens específicas sobre as audiências públicas do OIN. Sobre a primeira rodada, a coalizão afirma que o acordo sobre pandemias outorgará à OMS “direitos antidemocráticos sobre povos soberanos” (Conselho Mundial da Saúde, 2022). Por conseguinte, encoraja a participação na primeira rodada de audiências públicas do OIN, sugerindo que sejam enviadas as seguintes contribuições ao conteúdo do acordo: os dirigentes nacionais e locais conservarão plena autonomia, reservando-se o direito de tomar decisões baseadas no que é melhor para o seu povo; nações e municípios poderão excluir-se do acordo, no todo ou em parte, sem consequências; deve haver um processo aberto e transparente, para que todos os povos possam votar em favor de medidas que impeçam a aplicação do acordo nos locais em que a maioria da população não o deseja; e devem ser adotadas medidas que impeçam farmacêuticas e outros aproveitadores da saúde global de influenciar o processo. Constatamos, portanto, que os argumentos apresentados nos vídeos enviados ao OIN correspondem a uma clara direção política, proveniente de uma fonte que indubitavelmente se alinha ao que definimos neste artigo como extrema-direita, e é pouco provável que seja a única desta natureza a mobilizar contra o tratado.

Uma nova postagem da coalizão, relativa à segunda rodada de audiências públicas, alerta para o fato de que a OMS modificou as regras de participação: um formulário de identificação deverá ser preenchido (CONSELHO MUNDIAL DA SAÚDE, 2022b). A coalizão previne que, embora a OMS garanta que todas as informações de identificação serão apagadas após a conclusão das audiências públicas, não há razão para que se acredite nela, razão pela qual é preciso ter prudência ao enviar vídeos. Isto pode explicar a redução do número de colaborações da primeira para a segunda rodada de audiências públicas. De qualquer forma, a coalizão incita quem preferir não enviar vídeos a ao menos divulgar a notícia de que esse órgão não eleito democraticamente e com “transparência zero” quer “assumir o controle total da nossa saúde, liberdade e soberania” (Ibid., s/p).

Não resta dúvidas, portanto, sobre a existência de uma mobilização de extrema-direita em oposição ao acordo sobre pandemias.

Considerações finais

Apesar do expressivo número de participantes, as audiências públicas do OIN foram nada mais do que uma sondagem ampla quanto ao conteúdo do acordo sobre pandemias, com grande fragmentação da participação social no que se refere a atores e agendas, e escassa possibilidade de efetiva incidência (Ventura et al., 2022). Porém, mais grave do que o desperdício de uma oportunidade de diálogo com a sociedade civil, é a impressão final de que a cidadania é contrária ao acordo.

Neste aspecto, a experiência da CQCT é uma referência importante. Ela indicou que os benefícios da participação social na formação de políticas de saúde pública são numerosos, incluindo o incremento da legitimidade e da credibilidade do processo negociador, bem como a construção de coalizões e o apoio popular à convenção (Montini et al., 2010). Não se pode ignorar, contudo, que todos os atores sociais envolvidos na negociação, embora em campos opostos, eram de fato interessados e atuantes na temática (OMS, 2000).

Embora consensualmente reconhecida como benéfica por governos e organizações internacionais, a participação social no campo da saúde pública possui disfunções relevantes, como o distanciamento entre representantes e representados, a ausência de marcadores claros quanto à escolha das entidades que integram os mecanismos de participação, o déficit de capacitação técnica e política, e as relações assimétricas entre atores sociais que dela podem decorrer, além de outros problemas relacionados ao desenho institucional dos espaços de participação (Paiva et al., 2014). Ademais, há muito já se conhece a capacidade da saúde de mobilizar, de forma espasmódica, os distintos setores da sociedade em torno de demandas específicas (Cohn; Bujdoso, 2015), o que exige particular cuidado na gestão desta participação. No plano internacional, estas dificuldades se somam à constatação de que, nos últimos anos, a relativa indiferença do público em relação às organizações internacionais parece estar se transformando em resistência e até mesmo em hostilidade (Bearce; Jolliff Scott, 2019).

O OIN vem se destacando pela busca da transparência no acesso aos seus documentos, e a transmissão ao vivo, via internet, de grande parte de suas sessões e processos deliberativos. Entretanto, a predominância de opiniões contrárias ao acordo, que resulta da captura ideológica dos mecanismos de participação social, é negativa tanto para as negociações em curso como para o futuro da saúde global. Não se pode menosprezar a desenvoltura da extrema-direita quando se trata das mídias sociais digitais, consideradas cruciais para que a onda populista autoritária pudesse alcançar dimensão global (Pinheiro-Machado; Vargas-Maia, 2023).

A rigor, caso seu intuito fosse de sinalizar a importância conferida à sociedade civil, o predomínio de posições contrárias ao acordo nas audiências públicas obrigaria a OMS a suspender temporariamente o processo negociador. Porém, a correta opção, neste caso, pela indiferença às contribuições do público, pode produzir efeitos negativos no futuro, desacreditando os mecanismos de participação. Entendemos que o predomínio de posições favoráveis ao acordo na etapa restrita às Partes Interessadas denota a importância da capacidade técnica, da responsabilidade (no sentido de responder pelos seus atos) e do histórico dos intervenientes como critérios de participação, a fim de prevenir a captura ideológica dos mecanismos de consulta que pode decorrer do uso coordenado e massivo da tecnologia digital, terreno no qual diferentes formas de extremismo se movimentam com desenvoltura.

Concluímos, então, que os mecanismos de participação social da OMS necessitam de urgente aperfeiçoamento, levando em conta as já conhecidas dificuldades enfrentadas na participação em saúde e em organizações internacionais, além dos desafios do momento histórico que vivemos. A definição de critérios de participação objetivos, discutidos com entidades da sociedade civil com reconhecido histórico na área, assim como a checagem de informações divulgadas pelo portal da OMS, não constituem formas de censura, e sim o melhor caminho para que, de fato, a regulação da saúde global leve em conta a opinião e os interesses daqueles que deveriam ser seus principais destinatários.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Jul 2023
  • Aceito
    11 Out 2023
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