Resumo
A catação de materiais recicláveis é uma ocupação com crescente número de trabalhadores, que encontram nela sustento diante das desigualdades socioeconômicas e do desemprego. Este artigo descreve as estratégias de resistência de mulheres catadoras que fazem parte de uma associação no Nordeste brasileiro, além da forma como elas lidaram com problemas de saúde durante a pandemia de covid-19, especialmente no que se refere aos medicamentos. Utilizamos uma abordagem quantitativa e uma etnográfica, coletando dados sociodemográficos de 13 participantes e dos medicamentos presentes em suas casas, e também realizando observação participante e entrevistas aprofundadas. Em meio à crise sanitária, foram mencionados problemas como o desemprego, as relações de gênero, a violência e os estigmas do trabalho. Se por um lado a pandemia vulnerabilizou ainda mais alguns segmentos populacionais, por outro potencializou estratégias coletivas de enfrentamento. As catadoras e a associação se organizaram para obter insumos e melhorias tanto na sede quanto no bairro. Identificamos 58 unidades de medicamentos, prescritos e obtidos principalmente na Unidade Básica de Saúde. Desses, 27,6% tinham ação sobre o sistema nervoso (analgésicos, psicolépticos e psicoanalépticos) e 17,2% sobre o sistema cardiovascular e sobre o trato alimentar e metabolismo. As catadoras desenvolveram práticas de autoatenção com os medicamentos, destacando o papel central deles no enfrentamento dos problemas de saúde.
Palavras-chave: Catadores; Covid-19; Estratégias de Resistência; Medicamentos; Autoatenção à Saúde
Abstract
The collection of recyclable materials is an occupation with an increasing number of workers, who find in it a livelihood in a context of socioeconomic inequalities and unemployment. This article describes resistance strategies of women collectors who are part of an association in Northeast Brazil, in addition to describing how they managed health problems during the COVID-19 pandemic, especially regarding medicines. A quantitative and an ethnographic approach were used by collecting data on sociodemographic and medicines present in the homes of 13 participants and conducting participant observation and in-depth interviews. Amid the health crisis, the participants mentioned problems such as unemployment, gender relations, violence, and work stigmas. If, on the one hand, the pandemic has further increased vulnerability for certain population segments, on the other hand, it has enhanced collective resistance strategies. The collectors of the association organized to obtain various materials and benefits both for their headquarters and their neighborhood. We identified 58 units of medicines, prescribed and obtained mainly at the Basic Health Unit. Of these, 27.6% had action on the nervous system (analgesics, psycholeptics, and psychoanaleptics) and 17.2% on the cardiovascular system and on the alimentary tract and metabolism. The collectors developed self-attention practices with the medicines highlighting their central role in facing health problems.
Keywords: Solid Waste Collectors; COVID-19; Resistance Strategies; Medicines; Health self-attention
Introdução
No Brasil, a catação de materiais recicláveis se tornou uma fonte de renda nos grandes centros urbanos a partir dos anos 1950. A produção de resíduos do crescente polo industrial brasileiro fez com que uma grande quantidade de pessoas desempregadas visse no lixo uma forma de conseguir sustento (Rocha; Francischett, 2021).
“Cato papel. Estou provando como vivo!” é uma frase da autobiografia de Carolina Maria de Jesus (2014, p. 20), uma mulher negra, favelada e catadora em São Paulo, que retrata a dura labuta dessas pessoas em péssimas condições socioeconômicas, lidando com violências, com estigmas e com a necessidade de trabalhar na catação.
As populações excluídas desenvolvem estratégias de sobrevivência para obterem seu próprio sustento, vendo na coleta de lixo uma dessas possibilidades. Ao catar, separar e transportar os materiais recicláveis em lixões, aterros sanitários, cooperativas, ruas e terrenos baldios, elas passam a ocupar novos espaços de trabalho e constroem uma importante fonte de renda em tempos de altas taxas de desemprego (Medeiros; Macêdo, 2006; Cruz, 2020; Rocha, 2020).
No mundo, estima-se cerca de 15 milhões de pessoas trabalhando com a catação (Coelho et al., 2018). No Brasil, essa atividade é reconhecida desde 2002, constando na Classificação Brasileira de Ocupações como “Trabalhadores da coleta e seleção de material reciclável” (MTE, 2017). Segundo um estudo de 2012, de 400 mil a 600 mil pessoas trabalhavam na época com catação de recicláveis no país, sendo 68,9% de homens e 31,1% de mulheres, com média de idade de 39,4 anos. Outros dados relevantes desse estudo são: 66,1% eram negros; 38,6% possuíam alguma relação contratual de trabalho; e 93,3% residiam em áreas urbanas (Ipea, 2013). Ainda, calcula-se que 75% dos profissionais que atuam em cooperativas de triagem de resíduos sólidos sejam mulheres, em maioria negras, excluídas do mercado de trabalho formal, que tende a absorver mão-de-obra masculina (Cherfem, 2016; Coelho et al., 2018). Vale ressaltar que as mulheres catadoras têm renda média menor do que os homens na mesma função (Ipea, 2013).
O trabalho direto com resíduos sólidos, na maioria das vezes, acontece em locais sem estrutura. O próprio descarte deles pode comprometer e degradar os recursos hídricos e o solo, desencadeando problemas diversos e complexos, afetando a saúde física, produzindo transtornos psicológicos e psiquiátricos e desintegração social daqueles que trabalham com catação (Coelho et al., 2016, 2018; Filipak et al., 2020). Assim, problemas de saúde como doenças infecciosas, degenerativas, cardiovasculares, crises de ansiedade e depressão, síndrome do pânico, dependência química e aumento da violência, entre outras, são os componentes de um mesmo fenômeno (Siqueira; Moraes, 2009; Santos; Silva, 2011). Além disso, há os efeitos ocupacionais da catação, principalmente problemas relacionados a acidentes de trabalho (cortes, perfurações, queimaduras etc.), com alta incidência de intoxicações alimentares e doenças parasitárias (Siqueira; Moraes, 2009).
O ano de 2020 está marcado na história mundial como o início da pandemia do vírus SARS-CoV-2/covid-19, que gerou ruas desertas, caos na saúde pública, consequências negativas na economia e nas políticas públicas. Devido à suspensão de diversas atividades econômicas pelo período de lockdown, houve um impacto na sustentabilidade de muitas empresas e serviços, o que ocasionou a demissão de muitos trabalhadores, além da diminuição de renda, do aumento da situação de fome e da reconfiguração do trabalho em toda a América Latina (Malaver-Fonseca; Serrano Cárdenas; Castro Silva, 2021). Para as populações em vulnerabilidade social, as consequências foram ainda maiores. Frente à essa nova realidade, muitos dos desempregados viram na catação de materiais recicláveis uma alternativa, frente às dificuldades econômicas e sociais enfrentadas no período. Muitos grupos, coletivos, organizações não governamentais (ONGs) e movimentos sociais buscaram estratégias de apoio mútuo nos primeiros dois anos da pandemia. O coletivo “Juventude na Luta”, surgido durante as restrições sanitárias devido à covid-19, foi constituído por jovens moradores do Bons Ares (região periférica de uma capital do Nordeste brasileiro), que construíram ações sociais junto às catadoras da Associação de Catadores do Bons Ares (Ascaboa). Neste artigo, descrevemos o contexto local onde elas vivem, as estratégias de resistência e como lidaram com seus problemas de saúde durante a pandemia, com foco nos medicamentos. Pesquisas relacionadas a catadores de resíduos, como a de Galon (2015), a de Coelho et al. (2018), entre outras, investigaram o cuidado em saúde desses trabalhadores e como as questões sociais, laborais e ambientais influenciam seus contextos de vida. Porém, ainda são escassos os estudos na perspectiva da investigação aqui proposta, que busca compreender, a partir de sujeitos organizados em uma associação, o uso e as percepções sobre os medicamentos.
Metodologia
A coleta e análise dos dados
A pesquisa de campo ocorreu no contexto da Ascaboa, localizada em Grande Bons Ares (GBA), em uma capital nordestina, entre os meses de maio e outubro de 2021. Foram incluídas as trabalhadoras mulheres filiadas à Associação, com idade entre 18 e 59 anos (excluímos as mulheres com 60 anos ou mais por serem consideradas grupo de risco para covid-19) e que tinham como fonte de renda apenas a catação de materiais recicláveis (outras fontes citadas eram trabalho como faxineira e como entregadora). No decorrer da pesquisa, percebeu-se uma mudança nesse cenário, com homens trabalhando exclusivamente na Associação por causa do desemprego, mas se manteve o critério de inclusão citado.
Para a compreensão do uso e das percepções sobre os medicamentos pelas catadoras da Ascaboa, optamos por uma pesquisa de caráter misto, utilizando uma abordagem quantitativa e uma de cunho qualitativo de natureza etnográfica.
Para a primeira abordagem, foram coletados os dados sociodemográficos das participantes (número de moradores na casa, data de nascimento, filiação, escolaridade, raça/cor, religião e características do domicílio) e identificados os medicamentos encontrados nas suas casas (nome, dosagem, forma farmacêutica, quem receitou, onde foram adquiridos, entre outros). Os dados sobre os remédios foram organizados em planilha Excel® e analisados segundo frequência e percentual. Foi utilizado o sistema classificatório ATC/WHO (Anatomical Therapeutic Chemical/World Health Organization International Working Group for Drug Statistics Methodology), sendo que cada medicamento foi identificado segundo seu fármaco, cujo código ATC/WHO (quinto nível) foi obtido na Relação Nacional de Medicamentos (Rename) de 2022 e só então categorizado por Grupo Anatômico/Farmacológico (primeiro nível ATC/WHO) e por Grupo Terapêutico/Farmacológico (segundo nível ATC/WHO).
Para a outra abordagem metodológica, escolhemos o método etnográfico, por permitir compreender quais significados eram atribuídos à condição de catadora e qual a repercussão desse trabalho em suas vidas, bem como as suas relações com os medicamentos. Na observação participante, utilizou-se o diário de campo. Também foram realizadas entrevistas aprofundadas, em dia, horário e local definidos pelas participantes e com um roteiro para facilitar a condução dos diálogos (o tempo médio foi de 60 minutos). As entrevistas foram gravadas sempre quando autorizado, com posterior transcrição na íntegra.
A pesquisa cumpriu a Resolução CNS n.510/2016, recebendo parecer favorável à sua execução por Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. Os nomes das localidades, das instituições e das catadoras foram alterados, visando garantir o anonimato. Todas as participantes foram esclarecidas sobre a pesquisa, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
O local do estudo
A GBA é uma região formada por cinco bairros, e os dados oficiais do município registram uma população de aproximadamente 225.000 habitantes em 2021-2022, o que representa 8,33% da população da capital. Os moradores que formavam o coletivo “Juventude na Luta” e as associadas relataram que o local da Associação era o “vixe do vixe” dentro da GBA, ou seja, um espaço ainda mais violento que o restante da região, já conhecida pela interjeição de espanto e medo “vixe”, que era pronunciada pelas pessoas quando ouviam alguém dizer que vivia lá.
Como em muitas capitais e cidades brasileiras mais populosas, a GBA tem suas origens no crescimento desordenado da região, construindo um estigma social em torno de seus habitantes e produzindo situações de grande vulnerabilidade e acúmulo de problemas sociais, como a violência e problemas estruturais (precárias condições de saneamento, de calçamento e de iluminação, presença de lixo nas ruas, entre outros). Vale ainda mencionar a divisão espacial por interesses conflitantes dentro da própria localidade, que refletiam na circulação dos moradores de uma comunidade para outra, impactando no acesso diferenciado a equipamentos públicos, como postos de saúde.
Próximo à Ascaboa (cerca de 1 km) existia uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e duas farmácias privadas, que foram os principais equipamentos de saúde citados pelas catadoras.
Resultados e discussão
As mulheres catadoras, os estigmas e as estratégias de resistência
No decorrer de 2021, houve aumento do número de associados: de 24 (20 mulheres e quatro homens) para 36 associados (30 mulheres e seis homens). Participaram do estudo 13 mulheres, com idade entre 23 anos e 59 anos, sendo seis negras, cinco pardas, uma indígena e uma branca. Pouco mais da metade era casada (sete) e as demais se dividiam entre solteiras (cinco) e divorciadas (uma). O número de filhos foi entre um e cinco, sendo que duas disseram não ter filhos. O grau de escolaridade variou entre não lia/não escrevia (duas), ensino fundamental incompleto (quatro) e completo (duas), ensino médio incompleto (três) e completo (duas). A maioria delas professava a fé cristã (cinco evangélicas e quatro católicas), uma se identificou como umbandista e três não quiseram declarar sua religião. Todas as 13 residências possuíam energia elétrica e água encanada. No período da pesquisa, seis casas receberam acesso à rede pública de esgoto, conquistado com obras de saneamento, fruto da articulação da Associação com outros movimentos sociais; as demais tinham fossa (cinco) ou esgoto a céu aberto (duas). A maioria (nove) das catadoras vivia em casa própria, advinda de ocupações urbanas regulamentadas pelo estado; três estavam em casa emprestada e uma morava de aluguel.
Em meio à crise sanitária provocada pela pandemia, as participantes apontaram para questões e problemas que impactavam diretamente em suas vidas, como o desemprego, as relações de gênero, a violência local e os estigmas do trabalho da catação.
Nas relações familiares, o papel central dessas mulheres foi evidente, sendo um ponto de convergência nas suas histórias. Manter a subsistência da família e criar os filhos e netos eram necessidades compartilhadas por elas. Essas mulheres, principalmente as que viviam em situação monoparental, enfatizaram a relevância da catação em suas vidas, ainda mais em momentos de desemprego e na ausência da figura paterna:
Porque eu fiquei desempregada. Eu tinha duas crianças pra sustentar e eu só gosto de depender de Deus, em primeiro lugar. E eu crio essa mocinha aí, que é minha neta e ao mesmo tempo não tem pai, não tem mãe, ela é órfã. Todo mundo sabe disso. Aí então em vez de eu sair nas casas pedindo esmola pra dar comida a elas, peguei um saquinho na reciclagem. Foi no tempo que a Alessandra começou aqui na Associação. Comecei num saco, terminei num carro. (Iara)
Vanessa falou da relação conturbada com o marido, em alguns momentos citando questões relacionadas à violência psicológica quando ele menosprezava sua situação de mulher desempregada. Ela retratou com muita mágoa o fato do marido cobrar renda e, ao mesmo tempo, boicotá-la na catação:
Ainda hoje mesmo ele fica dizendo “Ah, tá trabalhando”. Tinha um carrinho sem roda e ele não quis me ajudar a consertar. A gente tinha outro carrinho bom e ele vendeu, deixou aquela porcaria pra mim. É bem menor e tenho que me virar pra ajeitar. Eu estou ansiosa pra voltar a trabalhar formal pra sair desse homem. (Vanessa)
Todas as participantes, com exceção de uma, afirmaram terem trabalhado como empregadas domésticas em algum momento da vida. Iara relatou que a catação foi uma salvação em meio ao desemprego ocasionado pela inseguridade do trabalho como doméstica, que ela deixou quando teve problemas psicológicos depois da morte do filho.
Os conflitos entre “poderes paralelos” (expressão usada pela comunidade) estavam acirrados no período da pesquisa, gerando uma divisão territorial que impedia o livre trânsito entre os bairros, o que limitou tanto o trabalho da catação em diferentes regiões quanto a participação na Associação. Em alguns relatos, os impactos da violência urbana foram mencionados pelas mulheres que viviam em locais fora do perímetro da sede da Ascaboa, falando especialmente da dificuldade de acesso ao serviço de saúde e aos medicamentos:
Esses dois eu compro na farmácia [se referindo ao captopril e ao omeprazol]. Porque eu creio que no posto tem o remédio da pressão, mas como a gente, tem muitas pessoas da parte de onde eu moro que não tem acesso no posto. Aí fica mais complicado da gente tá se tratando, da gente tá indo atrás de médico, atrás de melhorar a saúde da gente. Não tem como. Então, a gente tem que fazer o possível e o impossível porque pra marcar consulta é demorado e também não dá, porque a gente vai e é barrada, a gente vai e é capaz de acontecer alguma coisa [referindo-se aos limites impostos pelos “poderes paralelos”] Então eu prefiro nem ir. (Sara)
O fato de trabalharem com materiais recicláveis e viverem em um local historicamente conhecido como violento e com problemas estruturais ressaltava os estigmas sociais:
Disse assim “bando de lixeiro mexendo no lixo”. Aí eu disse “não senhor, a gente tá mexendo no lixo não, a gente tá de luva, tá de máscara, a gente tá do jeito que é pra ser. Eu quando chego lá em casa, eu lavo minhas mãos também, lavo tudo direitinho”. Aí ele ameaçou chamar o conselho tutelar, porque eu tava com o menino. Aí foi o tempo que começou essa pandemia e eu não tinha com quem deixar, não tinha creche não tinha nada. (Fernanda)
Algumas mulheres falaram sobre a expectativa de que a catação abrisse portas e fosse outra fonte de renda, transformando-se em uma nova possibilidade de reinvenção dos segmentos mais pobres e de emancipação social (Velloso, 2005):
E aí eu comecei a ver o trabalho dos catadores como algo diferente, que eu não enxergava. Comecei a enxergar que pra muita gente o que é lixo, pra gente passa a ser dinheiro. Na rua é lixo, na Associação é dinheiro. E eu comecei a enxergar assim, eu disse “Não, eu vou reciclar”. De uma certa forma a gente ajuda o meio ambiente, porque tá tirando do meio ambiente todos aqueles materiais que vão levar anos pra se degradar, e aí a gente vende e ainda ganha. (Renata)
Daí então eu fui ver a importância que tinha, porque as pessoas diziam “Ah, isso aí tu pode ter uma renda extra”. Aí eu parei pra pensar “É, realmente”. Eu tava sem renda, e hoje tô montando um salão pra mim, já já vou ter duas rendas. (Meire)
A organização por meio da Associação era um ponto central na união e na articulação de resistência dessas mulheres. Catadores cooperados/associados possuem mais possibilidades de negociar suas vendas e garantir uma continuidade no fornecimento, espaço físico adequado e melhores condições de trabalho (Grimberg; Blauth, 1998). O serviço de coleta seletiva deles, além de melhorar a produtividade e a participação em movimentos sociais e fóruns, consolida suas participações dentro da institucionalidade (Siqueira; Moraes, 2009).
A Ascaboa se organizou em 2012, unindo catadores de diversos bairros da GBA. Em 2015, com o apoio de algumas instituições e em articulação com os movimentos comunitários da região, foi cedido um local que servia de depósito e de sede. Ainda que possuísse um galpão de cerca de só 24 m² e apenas um banheiro, isso melhorou a qualidade do trabalho, valorizando a construção de redes de comércio de materiais recicláveis na própria região. No entanto, os trabalhadores não tinham veículos de transporte manual, o que os impossibilitava de levar materiais por longas distâncias. No início eram apenas seis catadores, como relatou Alessandra. Depois da construção da primeira sede, esse número aumentou no decorrer dos anos e se intensificou durante a pandemia de covid-19, conforme mencionamos acima. Como ressaltado, as consequências da pandemia refletiram em diversos setores para além da saúde pública, impactando diretamente nas populações menos favorecidas e aumentando os números de desemprego e fome (Malaver-Fonseca; Serrano Cárdenas; Castro Silva, 2021). Todavia, a organização política dessas mulheres no período da pandemia foi fundamental para que se construíssem estratégias coletivas, entre elas, a mudança física da sede. A disputa territorial entre os “poderes paralelos” provocou o fim da concessão do local cedido pela Associação de Moradores, e a Ascaboa foi transferida para uma região de melhor acesso para a maioria das associadas. O imóvel, apesar do custo do aluguel, trouxe vantagens como um terreno maior, um terraço onde eram feitas a separação e a pesagem dos materiais, um cômodo administrativo (composto por um banheiro, uma sala e uma cozinha) e um galpão onde foi instalada uma prensa industrial. Além disso, duas casas foram cedidas para catadoras que não tinham residência própria.
Ao longo do estudo foi percebida a importância da organização dessas mulheres em torno da Associação. Alessandra era a catadora com maior idade entre as participantes, e esteve presente desde as primeiras articulações políticas para o surgimento da cooperativa. Já Renata havia se associado em 2021. Ficou claro que o sentimento de pertencimento surgido em torno da Associação constrói um vínculo identitário e de resistência frente às adversidades do contexto local.
As mulheres ocupavam posição de destaque na Ascaboa, coordenando a parte organizacional, as articulações políticas, a construção de redes de apoio e a mobilização dos associados. Os poucos homens associados ficavam com as funções braçais, consertando equipamentos e mantendo a infraestrutura.
Operacionalmente, a Associação se organizava fazendo a distribuição do apanhado nas coletas e dos itens recebidos por meio de doações. A triagem e pesagem eram feitas na sede pelas próprias catadoras, com uma parte desse processo sendo responsabilidade daquelas que tinham filhos pequenos e não podiam deixá-los sozinhos em casa.
Durante a pandemia, a Ascaboa incorporou-se a outras associações de catadores na articulação pela conquista do Auxílio Catador2 e do saneamento básico nos bairros onde as associadas residiam. Ela também se articulou com outros movimentos sociais, como o coletivo “Juventude na Luta” citado anteriormente, visando a participação em projetos e a obtenção de cestas básicas, materiais de higiene pessoal e equipamentos de proteção individual (EPIs), além de educação em saúde sobre a covid-19, entre outros.
“Então o mais fácil que eu acho é me automedicar”: as farmácias caseiras e as práticas de autoatenção
Foi observado, em 12 das 13 residências, um total de 58 medicamentos, com o mínimo de um em uma casa e o máximo de 11 em outra. Em relação à forma farmacêutica, 63,8% (n=37) correspondiam a comprimidos, 15,5% (n=9) eram líquidos para uso oral, 12,1% (n=7) sob cápsulas, 3,4% (n=2) como drágeas, 3,4% (n=2) eram pomadas e 1,7% (n=1) era solução oftálmica. A armazenagem ocorria no quarto (quatro casas), na cozinha (três residências) e na sala (três domicílios), sendo que em uma os medicamentos estavam no banheiro e uma das participantes relatou que os carregava na bolsa utilizada no dia a dia. Para sete medicamentos não foi possível identificar a data de validade e dois estavam vencidos, valendo mencionar que na casa com o maior número de medicamentos se observou um vencido e seis sem data de validade.
Ao serem perguntadas sobre quem indicou os medicamentos, 60,3% (n=35) dos itens foram prescritos pelo médico da UBS do bairro (28 prescrições) ou por um psiquiatra (sete prescrições). As indicações realizadas por farmacêuticos foram relatadas para 19% (n=11) dos medicamentos, por enfermeiras da UBS foram 8,6% (n=5) e por informações encontradas no Google, 5,2% (n=3). Os demais medicamentos foram recomendados por familiares (irmã indicou uma vez, mãe indicou duas vezes, a própria catadora se automedicou em um caso).
A maioria dos medicamentos foi adquirida em estabelecimentos públicos de saúde: 48,3% (n=28) na UBS e 6,9% (n=4) no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Uma das farmácias privadas do bairro ocupava um papel importante nessa aquisição, tendo sido observada em 37,9% (n=22) dos itens, o que demonstra que mesmo que a maior parte das prescrições tenha sido feita por médico da UBS ou do CAPS, alguns desses medicamentos foram obtidos no setor privado. Os demais medicamentos foram recebidos por doações (n=2), como amostra grátis fornecida pelo médico (n=1) ou, ainda, pela mãe (n=1).
Nas farmácias caseiras foi identificado um percentual majoritário de medicamentos relacionados, segundo o primeiro nível ATC/WHO (Grupo Anatômico/Farmacológico), ao sistema nervoso (n=16/27,6%), seguidos de fármacos com ação no sistema cardiovascular (n=10/17,2%), no trato alimentar e metabolismo (n=10/17,2%), no sangue e órgãos formadores de sangue e os anti-infecciosos para uso sistêmico (para cada grupo n=4/6,9%), entre outros (Tabela 1). Os medicamentos identificados como “não constam” (n=4/6,9%) eram itens que não possuíam código ATC/WHO, pois se tratavam de associações de fármacos como o composto de Dipirona + Orfenadrina + Cafeína.
Classificação Anatomical Therapeutic Chemical/World Health Organization International Working Group for Drug Statistics Methodology (ATC/WHO) dos medicamentos encontrados nas casas das catadoras de materiais recicláveis, Grande Bons Ares, 2021
Os grupos terapêuticos/farmacológicos (ATC/WHO, segundo nível) identificados com maior frequência foram: os analgésicos (n=8/13,8%), os fármacos que atuam no sistema renina-angiotensina (n=4/6,9%), os antibacterianos para uso sistêmico (n=4/6,9%), os psicolépticos (n=4/6,9%) e os psicoanalépticos (n=3/5,2%), conforme Tabela 1. Como dito anteriormente, quatro (6,9%) medicamentos não foram classificados por não constarem na lista ATC/WHO.
Os fármacos com presença mais frequente nas residências foram os analgésicos dipirona e paracetamol, com quatro unidades de cada (6,9%), seguidos do omeprazol (tratamento de úlcera gástrica ou duodenal) e da losartana (anti-hipertensivo), ambos com três unidades (5,2%). A frequência dos demais medicamentos foi representada por uma ou duas unidades. É importante destacar os medicamentos com ação psicoativa, classificados no sistema nervoso juntamente com os analgésicos: observamos antipsicóticos (haloperidol; carbonato de lítio; risperidona), antidepressivos (venlafaxina; escitalopram; nortriptilina), ansiolítico (diazepam) e antiepiléptico (clonazepam).
Vale ressaltar que não identificamos nas casas medicamentos do chamado “tratamento precoce” da covid-19 (ou “kit covid”), como ivermectina, cloroquina e hidroxicloroquina, tampouco eles foram mencionados pelas participantes, o que é um paradoxo frente ao observado no país (Melo et al., 2021; Hentschke-Lopes et al., 2022).
As catadoras de materiais recicláveis relataram situações variadas que podem ser compreendidas sob o conceito de autoatenção, tanto em seu sentido lato quanto estrito (Menéndez, 2005). No sentido amplo, envolvem “[…] todas as formas de autoatenção utilizadas para assegurar a reprodução biossocial dos sujeitos e grupos no nível dos microgrupos e, especialmente, do grupo doméstico” (Menéndez, 2005, p. 55). Assim, as estratégias de enfrentamento à pandemia (descritas no tópico anterior), a ida ao forró para tomar cerveja e dançar, a festa de dia das crianças promovida pela Associação, entre outras atividades, se inscrevem nessa perspectiva da autoatenção. No sentido restrito, ela também se dá no âmbito da família e de grupos sociais, ou seja, é baseada no coletivo e se caracteriza pela intencionalidade no processo saúde-doença-atenção sem a intervenção direta de especialistas, sejam da biomedicina ou de outras formas de atenção à saúde. Nos processos de adoecimento, os sujeitos buscam saídas com práxis orientada no restabelecimento da saúde. Essa busca não implica excluir ou privilegiar uma forma de atenção à saúde, mas muitas vezes se dá na articulação entre diferentes práticas. Ainda segundo Menéndez (2005), a práxis é centrada no sujeito e no seu grupo social, que sintetizam, articulam, mesclam ou justapõem as diferentes formas de atenção, reconstituindo e organizando parte delas em atividades de autoatenção.
A biomedicina considera como autoatenção somente a automedicação com medicamentos, mas para Menéndez (2005) é apenas parte dela: a automedicação é usar medicamentos e todas as outras substâncias, como ervas, álcool, maconha, etc., bem como atividades de muitos tipos, como ventosas, massagens, cataplasmas. Segundo ele, ela é dada pela intencionalidade de utilizar qualquer substância, tratamento ou realização de atividades que, segundo seus usuários, possibilitem um melhor desempenho no trabalho, no esporte, na vida sexual, etc.
Entre as mulheres catadoras, as práticas de autoatenção envolviam o uso de medicamentos e de outras preparações. Luzia era referência no bairro e para as catadoras da Associação na indicação de plantas medicinais e chás. Outras preparações citadas foram os lambedores e garrafadas comprados das “irmãs” da igreja que frequentavam. Essas soluções não eram apenas práticas baseadas em religiões de matrizes africanas ou na medicina indígena, como Luzia explicou em uma das conversas, mas também constituíam alternativas para a dificuldade de acesso aos serviços de saúde.
O uso de medicamentos, seja pela automedicação ou pela prescrição, foi relatado na rotina dessas mulheres. Havia uma prática comum, por exemplo, do uso de anti-inflamatórios para as dores que se manifestavam por consequência do trabalho. Vitória descreveu que para estas utilizava chás recomendados por Luzia e também fazia uso do paracetamol e do Dorflex®, recomendado por outras associadas: “Tomo esse aqui [chá] pra passar a dor nas costas. Tem dias que a gente carrega muito peso e como fico na triagem, às vezes é peso demais. Quando não passa, as meninas me dão paracetamol e Dorflex. A maioria sempre tem no bolso” (Vitória).
Meire falou sobre sua condição de saúde, relacionando-a com os medicamentos que utilizava e com os diagnósticos médicos. Se apresentava como uma mulher muito doente: “Eu não vivo sem meus remédios. Sou toda mazelada, né?”. Estas mazelas retratadas por Meire eram hipertensão arterial, crise de cansaço (relacionada à falta de ar), varizes e anemia profunda. Todas elas tiveram, em algum momento da sua vida, algum diagnóstico médico, mas seus entendimentos sobre tratamentos iam além da relação médico-paciente.
Desde a ida à UBS com fortes dores de cabeça e uma pressão arterial aferida em torno de 16/10 mmHg, quando o médico lhe deu o diagnóstico de hipertensão, Meire se entendia como hipertensa. Outro médico da mesma UBS indicou práticas não farmacológicas de tratamento e retirou o anti-hipertensivo. No entanto, a catadora contrariou a alta médica e as demais recomendações, questionando as condutas contraditórias e a relação com a equipe de saúde. Ao ser perguntada sobre o captopril presente na sua farmácia caseira, disse:
Eu pegava o captopril no posto. O meu captopril. Mas como o médico tirou, ele falou que eu não precisava, mas eu sei que eu precisava. Porque um médico já disse que eu precisava de uso contínuo, e chegou outro médico lá, até saiu o doutor. Tudo pra ele era “Você vai fazer caminhada que você tá com obesidade mórbida”, e nada de remédio. Pronto, ele tirava todos os medicamentos que a gente tinha que usar, pelo menos no meu caso. Aí eu me automedico. Tá precisando? Eu não vou no posto. Até porque pra você ir pedir um remédio, você tem que passar por um clínico, e sem dizer que é difícil uma consulta, então o mais fácil que eu acho é me automedicar. (Meire)
Segundo Conrad (1985), os indivíduos desenvolvem estratégias a partir das percepções sobre o diagnóstico e tratamento, adequando-as às suas realidades. O autor denominou esse mecanismo de autorregulação, que pode ser ajuste de doses ou abandono de tratamento, por exemplo, não cumprindo com as orientações médicas.
A mudança de médico na unidade de saúde e a possível orientação sobre fazer exercícios físicos para cuidar do excesso de peso não foram efetivas, do ponto de vista biomédico. Meire construiu formas de lidar com sua condição de hipertensa, aferindo sua pressão arterial, entendendo os sintomas característicos de quando sua pressão estava alterada e buscando aconselhamentos de familiares com experiências sobre hipertensão:
Porque eu já fui várias vezes com uma dor de cabeça muito forte no posto, e eu cheguei a medir minha pressão e minha pressão já chegou a dar 18/8, entendeu? E aí eu comprei meu aparelho de medir pressão e sempre ela tá oscilando. A minha pressão normal é 10/6, 10/7, normal. Aí quando ela já chega a 13, pra eles, eles dizem que é normal, mas como minha pressão sempre é baixa, eu já sinto dor de cabeça. Aí então eu tomo meu remédio, entendeu? Tomo meu captopril e tomo remédio pra dor de cabeça.[…]. (Meire)
Minha mãe me indicou pra eu tomar o AAS [ácido acetilsalicílico] também, às vezes quando eu estou com dor de cabeça eu tomo o AAS também. Além de afinar o sangue, evita derrame. É o que minha mãe sempre me fala, dor de cabeça e pressão alta é danado pra dar um derrame. Ela já teve. AAS é pra mim tomar todo dia, mas tem dia que eu não lembro de tomar e tomo quando lembro. (Meire)
Assim como Meire, outras quatro catadoras, com idade entre 28 e 59 anos, foram diagnosticadas com hipertensão, trazendo diferentes relatos para a origem do problema. Inseridas no mesmo contexto local, paradoxalmente a relação médico-paciente trazia outras implicações para a prática da autoatenção por essas mulheres. Alessandra e Patrícia residiam em torno de 20 m da UBS. As outras duas catadoras que conviviam com a hipertensão eram Sara e Fernanda. Ambas, assim como Meire, tinham em comum o fato de residirem próximas umas das outras e mais afastadas da UBS.
A menor ou maior proximidade à unidade de saúde refletia na forma que essas mulheres lidavam com a condição da hipertensão. Alessandra e Patrícia não relataram problemas em adquirir os medicamentos e afirmaram seguir à risca as orientações dadas para o uso, tecendo elogios ao bom atendimento e de como eram bem tratadas na UBS.
Por outro lado, Sara, Fernanda e Meire discorreram sobre situações diferentes envolvendo a conformidade com o tratamento. Nestes casos, as dificuldades de acesso aos medicamentos as levavam a construir outras narrativas. Fernanda, falando do uso do captopril: “Eu prefiro comprar logo na farmácia, tem muita coisa que não tem no posto e eu compro logo lá” (Fernanda). Sara construía sua relação com o medicamento baseada na vizinhança e na forma como as companheiras da Associação tomavam suas medicações para a hipertensão:
O captopril eu uso por causa da minha pressão. Quando eu sinto dor de cabeça, sinto náusea, aí eu sei que a pressão tá alta, aí eu tomo dois comprimidos. […] Não tomo todo dia não. Porque eu não quero ficar dependente dos remédios. Então quando eu vejo que a pressão tá alta aí eu tomo. (Sara)
Iara relatou ter um problema crônico, que denominou “fobia”, descrita por ela como uma tristeza, dificuldade para dormir, agitação, medo de sair de casa, batimento cardíaco acelerado e, às vezes, até desmaios. Ela era atendida pelo CAPS e recebia toda sua medicação pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo ela, o diazepam 10 mg foi prescrito pelo médico para dormir, a venlafaxina 75 mg e o carbonato de lítio3 300 mg para “parar de sentir tristeza” (Iara), e o haloperidol líquido para parar de “pular como um grilo” (Iara), devido à sua agitação e ao medo de sair de casa. No início da conversa, o relato de suas crises mais fortes parecia atrelar os problemas à morte do filho adolescente, como mencionamos acima. No entanto, ao ser perguntada sobre como começou a “fobia”, ela disse que não havia sido causada pelo evento citado, mas sim devido à uma violência sexual sofrida na sua infância, construindo um processo de adoecimento crônico que afetava a sua saúde mental:
Não foi com a morte do meu menino. Eu já tinha fobia, não foi por causa da morte do meu menino não. Foi, eu já tinha antes de eu ter filho, só que eu não sabia o que era fobia, eu sabia o que era o medo. Eu saia pros canto, eu não me sentia bem, chegava em certos canto eu me sentava. Uma vez saí pra trabalhar, cheguei no terminal, me acoquei [agachei] pra não cair no meio do terminal. Aí eu pedi a mão a um e a outro pra me ajudar a me levantar dali, porque eu tava de coca [cócoras]. Aí o pessoal achava [que estava pedindo algo]: “Não, não tem não, perdoe”. Eu não tava pedindo esmola! Eu tava pedindo a mão. Eu não consegui ir pra casa sozinha não. Liguei pra minha filha, eu não conseguia nem segurar o celular. Realmente comecei muito nova. Não foi trabalho não, mas muitas coisas que acontece na vida das pessoas que às vezes a pessoa se cala pra não sentir vergonha. Naquela época fazia vergonha. Hoje não faz mais não. A pessoa ser tentada, agarrada, tentada me estuprar duas vezes. Eu tinha o que? Onze pra doze anos. (Iara)
Esse sofrimento, que se prolongava por mais de 40 anos, possuía um histórico de adoecimento mental iniciado a partir de uma violência física, que impactou sua vida, fazendo com que ela desenvolvesse um estigma por ter problemas psiquiátricos crônicos:
Eu no começo, o que eu conversei com ele, eu fiquei com vergonha de dizer que eu fazia tratamento no CAPS, que eu não gosto de falar da vida, a gente não tem que falar dos problemas da gente pros outro, que ninguém vai resolver. Aí com o tempo eu fui dizendo: “Tô indo amanhã pra uma consulta”. Então ele: “Consulta de quê?”. “Não, vou pro CAPS”. “Fazer o quê no CAPS?”. “Não, é que eu faço acompanhamento”. Aí pronto. Entendeu? Mas fica aquele medo assim, tipo assim, as pessoas têm medo daquela pessoa, diz que a pessoa é meio abestalhada. (Iara)
Iara ainda manifestou uma relação de dependência com os psicotrópicos que utilizava: “Eles são a fonte que me acalma. Tomando eles, não saio por aí pulando que nem um grilo, consigo dormir, não sinto as presenças estranhas me olhando e até consigo sair de casa. Quando tô em crise não consigo sair pra catar” (Iara).
Renata narrou sua história de adoecimento mental, atribuindo à pandemia de covid-19 o fator que desencadeou uma crise de pânico, levando-a a procurar ajuda psiquiátrica:
Quando foi no ano de 2020, começou a pandemia e eu tive covid, e aí eu fiquei meio doente psicologicamente. Eu fiquei com pânico, porque eu achava que eu ia morrer da doença, e tal, e comecei a sentir crises de falta de ar e tudo. Só que sempre tudo muito certinho, todo dia eu tava no posto, verificava a pressão, verificava o oxigênio, e eu estava bem, tá entendendo? Só que no meu psicológico eu tava muito doente, eu acordava de madrugada, como se eu tivesse morrendo de falta de ar. (Renata)
Para Renata, o Rivotril® (clonazepam4) e o Lexapro® (escitalopram) melhoraram seu sono, descrevendo-os como seus “baldinhos da felicidade”. A história de vida dessas duas mulheres destaca o papel central dos medicamentos psicoativos que tem sido abordado em outros estudos (Silveira, 2000; Whyte; Van Der Geest; Hardon, 2002; Maluf; Tornquist, 2010), revelando uma clara relação entre gênero, saúde mental e sofrimento.
Considerações finais
O crescimento do número de catadores de materiais recicláveis acompanha o aumento dos índices de desemprego, o que faz com que essas populações excluídas socialmente desenvolvam estratégias de sobrevivência para a obtenção do próprio sustento e para lidar com seus adoecimentos, especialmente no período da pandemia de covid-19. Neste estudo, identificou-se que o recorte de gênero era muito relevante na Associação, composta em maioria por trabalhadoras que eram responsáveis pela administração e organização, atuando politicamente.
A literatura registra a catação de materiais como uma atividade laboral com risco de adoecimento físico e psíquico, submetendo as(os) trabalhadoras(es) a situações insalubres e à exposição de materiais nocivos. No entanto, as condições socioeconômicas enfrentadas por elas também são fatores que influenciam na saúde.
Identificar onde cada participante vivia, observar suas rotinas, descrever seus contextos e suas percepções sobre saúde e doença, ouvindo suas histórias, permitiu compreender que a estigmatização, pelo território onde residem e pelo trabalho que realizam, e as relações de gênero impactam em suas enfermidades e tratamentos.
Por viverem na região da capital com os piores índices de desenvolvimento humano, fazendo parte de um território com conflitos entre “poderes paralelos”, havia dificuldade para a construção de um maior vínculo com os serviços públicos de saúde. Relatos de adoecimento ligados à violência de gênero foram identificados na pesquisa, assim como as dificuldades para manter uma família em situação monoparental.
A relação dessas mulheres com os medicamentos apontou que a autoatenção por automedicação tornou-se uma importante estratégia para lidar com as situações adversas presentes em seus cotidianos. Ainda que a maior parte dos medicamentos encontrados nas casas tenha sido prescrita por médicos, cada uma das participantes manipulava o uso de acordo com seus conhecimentos e suas experiências prévias. Chamou atenção o uso de medicamentos psicoativos, em um processo de medicamentalização da vida e do sofrimento psíquico e emocional.
Para enfrentar muitas das dificuldades, a participação ativa na Associação passou a proporcionar mais possibilidade de melhoria das condições de trabalho e de moradia, além de construir um vínculo identitário e de resistência frente às adversidades do contexto local, reverberando diretamente em melhorias nas condições de vida observadas no período da pandemia de covid-19.
Referências
- CHERFEM, C. O. Relações de Gênero e Raça em uma Cooperativa de Resíduos Sólidos: desafios de um setor. In: PEREIRA, B.C.J; GOES, F.L. (Org.). Catadores de Materiais Recicláveis: um encontro nacional. Brasília, DF: IPEA, 2016. p. 47-74.
- COELHO, A. P. F. et al. Risco de adoecimento relacionado ao trabalho e estratégias defensivas de mulheres catadoras de materiais recicláveis. Escola Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, e20160075, 2016.
- COELHO, A. P. F. et al. Cargas de trabalho de catadoras de materiais recicláveis: proposta para o cuidado de enfermagem. Revista Gaúcha de Enfermagem, Porto Alegre v. 39, e2018-0006, 2018.
- CONRAD, P. The meaning of medications: another look at compliance. Social Science & Medicine, Oxford, v. 20, n. 1, p. 29-37, 1985.
- CRUZ, U. R. X. A relação entre o trabalho dos catadores de materiais recicláveis da rede de reciclagem do estado do Rio de Janeiro e a manutenção da indústria de reciclagem. Revista Tamoios, São Gonçalo, v. 16, n. 2, p. 117-142, 2020.
- FILIPAK, A.; STEFANELLO, S.; OKADA, J. M.; HUNZICKER, M. H. “O motor é a gente mesmo”: cuidado em saúde dos trabalhadores da reciclagem. Interface, Botucatu, v. 24, n. supl. 1, e190472, 2020.
- GALON, T. Do lixo à mercadoria, do trabalho ao desgaste: estudo do processo de trabalho e suas implicações na saúde de catadores de materiais recicláveis. 2015. Tese (Doutorado em Enfermagem) - Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2015.
- GRIMBERG, E.; BLAUTH, P. Coleta seletiva: reciclando materiais, reciclando valores. São Paulo: Instituto Pólis, 1998.
- HENTSCHKE-LOPES, M. et al. Sales of “COVID kit” drugs and adverse drug reactions reported by the Brazilian Health Regulatory Agency. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 38, n. 7, e00001022, 2022.
-
IPEA - INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Situação social das catadoras e dos catadores de material reciclável e reutilizável. Brasília, DF: IPEA , 2013. Disponível em: <Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/9979/1/situacao_social_mat_reciclavel_brasil.pdf >. Acesso em: 28 ago. 2022.
» http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/9979/1/situacao_social_mat_reciclavel_brasil.pdf - JESUS, C. M. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. 10. ed. São Paulo: Ática, 2014.
- MALAVER-FONSECA, L.F.; SERRANO CÁRDENAS, L.F.; CASTRO-SILVA, H.F. La pandemia COVID-19 y el rol de las mujeres en la economía del cuidado en América Latina: una revisión sistemática de literatura. Estudios Gerenciales, Cali, v. 37, n. 158, p. 153-163, 2021.
- MALUF, S. W.; TORNQUIST, C. S. (Org.). Gênero, saúde e aflição: abordagens antropológicas. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2010.
- MEDEIROS, L. F. R.; MACÊDO, K. B. Catador de material reciclável: uma profissão para além da sobrevivência?. Psicologia & Sociedade, Recife, v. 18, n. 2, p. 62-71, 2006.
- MELO, J. R. R. et al. Automedicação e uso indiscriminado de medicamentos durante a pandemia da covid-19. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 7, n. 4, e00053221, 2021.
- MENÉNDEZ, E. L. Intencionalidad, experiencia y función: la articulación de los saberes médicos. Revista de Antropología Social, Madrid, n. 14, p. 33-69, 2005.
-
MTE - MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO; CBO - CLASSIFICAÇÃO BRASILEIRA DE OCUPAÇÕES. 5192-Trabalhadores da coleta e seleção de material reciclável. 2017. Disponível em: <Disponível em: http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/pesquisas/BuscaPorTituloResultado.jsf >. Acesso em: 30 jun. 2022.
» http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/pesquisas/BuscaPorTituloResultado.jsf - ROCHA, D. C. O contexto histórico-social do trabalho dos sujeitos da Associação de Catadores de Materiais Recicláveis de Dois Vizinhos-PR. 2020. 185 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Francisco Beltrão, 2020.
- ROCHA, D. C.; FRANCISCHETT, M. N. Aspectos históricos e sociais do trabalho do(a) catador(a) de materiais recicláveis. Pesquisa em Educação Ambiental, [s.l.], v. 16, n. 1, p. 33-51, 2021.
- SANTOS, G. O.; SILVA, L. F. F. Os significados do lixo para garis e catadores de Fortaleza (CE, Brasil). Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 8, p. 3413-3419, 2011.
- SILVEIRA, M. L. O nervo cala, o nervo fala: a linguagem da doença. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2000.
- SIQUEIRA, M. M.; MORAES, M. S. Saúde coletiva, resíduos sólidos urbanos e os catadores de lixo. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 14, n. 6, p. 2115-2122, 2009.
- VELLOSO, M. P. Os catadores de lixo e o processo de emancipação social. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 10, n. supl., p. 49-61, 2005.
- WHYTE, S. R.; VAN DER GEEST, S.; HARDON, A. Woman in distress: medicines for control. In: WHYTE, S. R.; VAN DER GEEST, S.; HARDON, A. (Ed.). Social lives of medicines. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. p. 50-63.
-
1
Coutinho Júnior recebeu bolsa de mestrado pelo Programa de Demanda Social/ Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (DS/CAPES) junto ao Programa de Pós-Graduação em Assistência Farmacêutica-Associação de IES na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
-
2
O Programa Auxílio Catador, aprovado em 2020 por lei estadual, repassava um valor financeiro diretamente aos catadores por meio de um cartão bancário personalizado, buscando-se, em contrapartida a esse apoio, o incremento de atividades relativas à reutilização, reciclagem e tratamento dos resíduos sólidos.
-
3
O carbonato de lítio está classificado pela ATC/WHO e Rename como antipsicótico, porém, quando associado a um antidepressivo, recebe outro código na ATC/WHO. Na bula do carbonato de lítio há indicação de uso conjunto com antidepressivo no caso de depressão recorrente grave.
-
4
Na classificação ATC/WHO e Rename, o clonazepam é considerado antiepiléptico/anticonvulsivante, mas tem indicações para tratamento de transtornos de ansiedade e de humor em adultos, o que parece ser o caso de Renata.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Mar 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
12 Out 2023 -
Aceito
18 Nov 2023