Editorial
Quando, em novembro de 2009, preparávamos o editorial desse número 36 da Educar em Revista, nos campos ligados à educação aconteciam debates sobre a então denominada "Emenda da DRU" (Emenda Constitucional 59). Desde 1994 a educação brasileira tem convivido com um contingenciamento de recursos, naquele momento decorrente do Fundo Social de Emergência (FSE). Em 1997 tal fundo foi reeditado como Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e, em 2000, o fundo foi transformado em Desvinculação das Receitas da União (DRU). Em 2009, a Emenda Constitucional (EC) 59 de 11 de novembro, além de ampliar a faixa etária de obrigatoriedade da educação básica brasileira, estabeleceu o fim gradativo da DRU para os recursos vinculados à educação1, restabelecendo o compromisso da União com a vinculação de recursos, tal qual previsto no texto original da Constituição Federal, a partir de 2011.
Como política de Estado para o financiamento da educação, o fim da DRU é uma importante conquista dos defensores da escola pública, ainda que imediatamente, como política de governo, o fim gradativo do contingenciamento não possa representar ampliação de recursos para a educação.
Vejamos: a Constituição Federal de 1988 prevê que cabe à União aplicar pelo menos 18% da receita de impostos e transferências em Manutenção e Desenvolvimento do Ensino, e aos Estados e Municípios 25%. Com o mecanismo da DRU, o governo federal contingenciava 20% da receita de impostos, ou seja, descontava 20% antes de aplicar o mecanismo de vinculação. Isto significa que ao invés de 18%, a União passava a ter a obrigação de aplicar 14,4%. Cabe lembrar que estados e municípios continuaram sujeitos à regra original conforme prevista na CF.
Isso construiu um cenário com dois graves problemas: primeiro, a baixa participação do governo federal no financiamento da educação, apesar de este ser o ente federado mais forte e com mais recursos para enfrentar as desigualdades sociais estruturais do país; segundo, o patamar de recursos que a União deveria investir é tão baixo que em muitos momentos, mesmo com o mecanismo da DRU, o governo federal aplicou mais que o mínimo previsto em lei. Conforme cálculos apresentados por Pinto (2006), entre 2000 e 2003 a DRU contingenciou por ano de 15 a 20 bilhões de impostos pertencentes à esfera federal. Considerando a vinculação constitucional de 18%, a educação teria entre 3 e 4 bilhões a mais por ano. Entretanto, as despesas federais com educação, desconsiderando o efeito da DRU, chegaram perto de 20% da receita de impostos. O que explica esta segunda situação?
A DRU não foi o único mecanismo que fez com que as receitas da União ficassem distanciadas das regras constitucionais que protegem os investimentos sociais. Desde os anos 1990, a política econômica priorizou o fortalecimento da arrecadação de tributos não vinculados (contribuições sociais e de domínio financeiro) que fortaleceram a arrecadação da União sem ter aplicação obrigatória na educação ou na saúde, assim como, sem ter, necessariamente, que repartir a receita com estados e municípios.
Assim, ainda que o fim da DRU seja uma vitória no sentido de que reconstitui a lógica de proteção dos investimentos em educação conforme desenhado na Constituição Federal de 1988, não garante ampliação imediata de recursos. Num contexto de expansão de acesso à escola, de preocupação com a necessidade de ampliação da qualidade da oferta, de urgência de implementação do Piso Salarial Profissional Nacional para professores da educação básica, entre tantos desafios da educação brasileira, o fim do contingenciamento é uma vitória, porém, muito mais na defesa do princípio do que na possibilidade de vermos os grandes desafios da educação brasileira de fato resolvidos a curto prazo.
Além disso, no processo de trâmite da referida Emenda Constitucional, a Comissão Especial da Câmara Federal (em interlocução importante com o MEC) "emendou a emenda", acrescentando a ampliação da faixa etária de obrigatoriedade da educação básica brasileira, dos 4 aos 17 anos. Iremos abordar as contradições relacionadas ao acréscimo da "obrigatoriedade" da pré-escola na EC 59 no processo e nas definições aprovadas.
Os argumentos aqui expostos são síntese dos apresentados pela pesquisadora Fulvia Rosemberg (2009), em trabalho encomendado pelo Grupo de Trabalho Educação de Crianças de 0 a 6 anos da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPED).
Os problemas levantados pela autora são muitos e de natureza diversa, a começar pelos sentidos dados à obrigatoriedade. Citando o artigo de Baia Horta, afirma-se que a obrigatoriedade de ensino no Brasil foi sempre uma imposição ao indivíduo, sendo a Constituição Federal de 1988 um marco de mudança para o direito do indivíduo e a obrigatoriedade de oferta pelo Estado. Tal perspectiva orientou a LDB aprovada em 1996 e o FUNDEB em 2006. Tal discussão proposta e que continuamos aqui não é relativa à obrigatoriedade da oferta, portanto: "Quanto ao dever de o Estado prover educação pré-escolar, tendo sido instituído pela constituição de 1988, não seria necessário uma emenda à constituição para reafirmá-lo" (ROSEMBERG, 2009, p. 1). A discussão é sobre o estabelecido pela EC 59 sobre a obrigatoriedade de matrícula/frequência na pré-escola para as crianças de 4-5 anos.
A confusão relativa ao conceito de obrigatoriedade no processo de discussão da EC 59 foi expressiva. Para diversos atores sociais: discurso da mídia e na mídia, depoentes referidos em audiência pública sobre o tema, discurso do Ministro da Educação em audiência pública e inclusive discursos dos Deputados que votaram a EC, a obrigatoriedade foi referida como sinônimo de ampliação de cobertura, universalização de oferta, obrigatoriedade de o Estado prover vagas. O que se estava votando, no entanto, não era só isso. Era a obrigatoriedade de matrícula/frequência na pré-escola. Um resultado possível, portanto, é a imposição sobre os indivíduos, coagindo os pais que não tenham seus filhos matriculados.
Além disso, dois outros fatores apontam que a extensão da obrigatoriedade pode ser inócua ou mesmo ter efeitos negativos para a educação infantil brasileira.
A análise dos dados internacionais disponíveis informa que se for possível falar de correlação entre: a) a existência de legislação que define a obrigatoriedade de matrícula e b) a amplitude da cobertura, tal correlação tende a ser negativa. Entre 203 países, nos 17 países com percentual de cobertura na educação infantil igual ou superior a 90%, apenas 1 adota legislação sobre obrigatoriedade da educação na pré-escola. Na América Latina, a média da taxa líquida de frequência é inferior, (47%) para os 9 países que adotam a obrigatoriedade, em relação à dos 21 países que não a adotam (58%). A Argentina adotou a obrigatoriedade para educação a partir de 5 anos em 1993, quando o índice de matrícula já era alto, e os resultados em 2003 eram de intensa iniquidade das taxas de cobertura por grupos de idade (3, 4 e 5 anos) e por nível de renda das famílias. Em estudo encomendado pela OEI (Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura) Gabriela Diker (apud ROSEMBERG, 2009) discute o impacto da obrigatoriedade da pré-escola em 7 países. Em suas sugestões finais afirma que o "modelo" brasileiro e cubano, com legislação que obriga o Estado a prover a Educação Infantil e não a obrigatoriedade da matrícula/frequência da criança na pré-escola, deveria ser o adotado por demais países da América Latina.
O segundo fator a que nos referimos é a quebra da integração da Educação Infantil entre a pré-escola (4-5 anos) e a creche (0-3anos). Tal integração vem da Constituição Federal de 1988 e orientou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394 de 1996) e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB - EC 53 aprovada em 2006). A integração tem sido enfatizada, por pesquisadores e ativistas, no que se refere ao respeito à condição de cidadania almejada para as crianças brasileiras, para quem a educação de qualidade deve se constituir num direito e deve ser ofertada de forma a respeitar suas necessidades e suas formas de participação social. A Revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, aprovada em novembro de 2009, dirige para a integração e reafirma a Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica. Contraditoriamente, a EC 59 opera num sentido contrário à integração. O sistema integrado de organização da Educação Infantil é apontado em relatório da Comissão Europeia (EURYDICE - EACEA, apud ROSEMBERG, 2009 p. 16) como importante para os países que alcançaram maior equilíbrio na oferta de ambas as etapas, ao passo que a ausência de um sistema integrado (como o brasileiro) é problema, pois ocorre intenso descompasso entre a creche e a pré-escola. Para a América Latina, o citado estudo de Diker (apud ROSEMBERG, 2009) discute como a obrigatoriedade da matrícula pode atuar para a "primarização" da pré-escola, ao aproximá-la das séries iniciais do Ensino Fundamental, que pode ter como resultado a ampliação de desigualdades.
"É necessário informar que não encontrei na literatura que levantei estudos que apontassem vantagens para a obrigatoriedade da matrícula/freqüência na pré-escola" (ROSEMBERG, 2009, p. 21). A adoção da obrigatoriedade de matrícula/frequência na pré-escola, portanto, configura-se num caso exemplar de falta de interlocução entre os atos do legislativo e o conhecimento produzido em educação (do qual a Educar em Revista é um veículo).
Derramado o leite, cabe atuar para que os problemas apontados na literatura: não relação com a expansão da oferta, perseguição e constrangimento de pais (Serão as mulheres negras, pobres e "chefes" de família as primeiras a serem perseguidas e penalizadas pelas "consequências da lei"?), além da desintegração creche-pré-escola (em especial no financiamento). Na produção de conhecimento, o monitoramento dos resultados e a crítica constante podem ser significativos.
Na relação da produção do conhecimento com a gestão de políticas públicas, o processo aponta para a necessidade de melhorar as estratégias de interlocução e buscar maiores espaços nos processos decisórios, em especial os que envolvem minorias. No caso específico, os prejudicados são as crianças pequenas, em especial as de 0 a 3 anos. Amanhã o critério pode ser em raça, gênero ou orientação sexual, além da classe social.
Após estas reflexões sobre um acontecimento relevante para a política educacional, cabe passarmos a apresentação deste novo número da Educar em Revista. Neste número (36) o dossiê Cognição, Afetividade e Educação se propõe a discutir a dualidade razão-emoção nas esferas educativas.
O primeiro artigo de demanda contínua, A função didático-pedagógica da linguagem musical: uma possibilidade na educação, de autoria de Marcos Antonio Correia (FAFI UFPR), traz proposta bastante conexa com as pressuposições básicas do dossiê, ao discutir como a linguagem musical pode inserir no processo ensino-aprendizagem a dimensão da emoção.
Na sequência, o artigo Aprendizagem e método psicanalítico, de Marta Regina de Leão D'Agord (UFRGS), discute possíveis princípios de uma direção psicanalítica para a aprendizagem no ensino superior.
O próximo artigo é Da licenciatura à sala de aula: o processo de aprender a ensinar em tempos e espaços variados, de autoria de Rosemara Perpétua Lopes (Unesp) que discute, a partir de análise de respostas a questionário aplicado a alunos de licenciatura em matemática e letras, as lacunas de saberes relativos às especificidades da profissão docente na formação dos alunos.
A seguir, o artigo de Antonio Viñao Frago (Universidade de Murcia) discute, numa perspectiva histórica, relações entre a higiene escolar de outrora e a educação para a saúde atual.
Uma inovação aparente é título do artigo de Iara Bemquerer Costa (UFPR) que analisa atividades de produção escolar de textos por alunos de 8ª série. As atividades propostas via internet mantêm "uma concepção tradicional" de produção escrita escolar, que influenciou nos resultados de forma que "os textos produzidos on-line só se diferenciaram da dissertação escolar pelo suporte utilizado".
Em A privacidade da miniatura: uma pesquisa em cotidiano escolar Mitsi Pinheiro de Lacerda (Universidade Federal Fluminense) propõe a aproximação aos eventos mínimos do cotidiano escolar como forma de conhecer a "privacidade" da instituição escola, dando exemplos a partir da inserção em um cotidiano escolar.
O artigo A desconstrução das narrativas e a reconstrução do currículo: a inclusão dos saberes matemáticos dos negros e dos índios brasileiros, de autoria de Wanderleya Gonçalves Costa (Universidade Federal de Mato Grosso) e Vanisio Luiz Silva (USP), discute algumas formas por meio das quais as pesquisas em etnomatemática podem contribuir para discutir e destacar no espaço escolar conhecimentos sobre as matrizes culturais africana, afro-brasileira e indígena.
Finalmente, o texto Representação social da violência: estudo exploratório com estudantes de uma universidade do interior do estado de São Paulo, de Adriana Leonidas Oliveira, Edna Maria Oliveira Querido Chamon e Aline Gomes Cazarim Mauricio (Universidade de Taubaté) analisa as representações sociais de violência de universitários do interior do estado de São Paulo, discutindo as manifestações de duas perspectivas de representação de violência por tais estudantes universitários.
Paulo Vinicius Baptista da Silva
Andréa Barbosa Gouveia
Referências bibliográficas
- PINTO, J. M. R Os números do financiamento da educação no Brasil. Proposições: Revista Quadrimestral da Faculdade de Educação. Campinas: Faculdade de Educação, v. 16, n.3, p. 75-86, set./dez. 2005.
- ROSEMBERG, F. A educação pré-escolar obrigatória: versão preliminar. Texto preparado como trabalho encomendado pelo Grupo de Trabalho Educação de Crianças de 0 a 6 anos da ANPED, apresentado na 32Ş Reunião Anual da Anped. Caxambu (MG), 2009.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
18 Jun 2010 -
Data do Fascículo
2010